Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

19.10.2015 Views

Como o seio Somos amantes muito antes de nos encontrarmos com a mulher ou o homem que será objeto do nosso amor. Somos como a criancinha que já ama o seio mesmo antes do primeiro encontro. Sentimentos não se podem prometer Somos donos dos nossos atos, mas não somos donos dos nossos sentimentos. Somos culpados pelo que fazemos, mas não somos culpados pelo que sentimos. Podemos prometer atos. Não podemos prometer sentimentos. “Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida vou te amor...” Lindo e mentiroso. Não se podem prometer sentimentos. Eles não dependem da nossa vontade. Sua existência é efêmera. Como o voo dos pássaros... Reflexo efêmero Meditando sobre as telas de Monet você entenderá o amor. Tudo são reflexos efêmeros... Por um momento a beleza cintila, mas logo o tremor da água faz desaparecer o reflexo... O êxtase do amor é como os reflexos da luz sobre a superfície das águas da lagoa. Alegre-triste Disse a Adélia: “O amor é a coisa mais alegre. O amor é a coisa mais triste. O amor é a coisa que eu mais quero...”. Todo símbolo é alegre-triste. Alegre, por lembrar a coisa amada, triste por ser o lugar onde ela não está... Hesse conclui não ser possível fixar o nosso amor em nenhuma pessoa. A fidelidade a uma única pessoa seria um equívoco... Narciso Pobre Narciso, enfeitiçado pela beleza que via refletida na superfície da fonte... Sempre que tentava tocá-la, seus dedos encrespavam o espelho da água e ela desaparecia. Será assim o êxtase da experiência amorosa? A bela imagem está lá, sorridente, no rosto da pessoa amada! Aí, vamos tocá-la – e ao tentar fazê-lo ela se desvanece... Sobre a desilusão amorosa

Os apaixonados vivem num mundo maravilhoso de fantasia amorosa. Concordam com o Tom Jobim: “O nosso amor vai ser assim, eu pra você, você pra mim...”. Eles acreditam firme e honestamente que o casamento será a realização da sua paixão em toda a pureza da fantasia. Mas todo mundo sabe, menos os apaixonados, que na vida não acontece assim. As rotinas do dia a dia não combinam com fantasias amorosas. Casados os apaixonados na casinha pequenina, eles terão agora de lidar com uma porção de coisas banais e irritantes. Por exemplo, o pingo de xixi na tampa da privada... Alguém me contou que, na Alemanha, encontrou nos banheiros cartazes proibindo que os homens fizessem xixi da maneira clássica, macha, de pé. A ordem é fazer xixi assentado, como as mulheres. Fazer xixi assentado pode ser um golpe na autoimagem machista dos homens mas, sem dúvida, é uma solução para as tampas de privada molhadas com xixi. Milan Kundera, no seu livro Os testamentos traídos, faz um comentário sobre Madame Bovary, de Flaubert, indicando que naquele livro o autor fez uma descoberta “por assim dizer, ontológica: a descoberta da estrutura do momento presente”, que é feito pela “coexistência perpétua do banal e do dramático sobre o qual nossas vidas estão fundamentadas”. Muitos momentos terríveis nascem de coisas absolutamente banais, como uma tampa de privada respingada de xixi... Uma tampa de privada respingada de urina é um golpe definitivo na imagem do príncipe encantado pela qual a esposa estava apaixonada... Quer ser amado? Alugue os seus ouvidos A delícia dos livros está em que eles, repentinamente, nos abrem os olhos, e vemos então coisas que nunca havíamos visto. A diferença entre os textos científicos e os textos literários está em que, enquanto os textos científicos nos colocam diante da mesa metálica onde se dissecam os cadáveres, os textos literários nos colocam bem no centro da vida. Quando se lê literatura vive-se a vida de outras pessoas, em outros tempos, em outros lugares. Vidas que não existiram. Acabei de ler O livro do riso e do esquecimento, de Milan Kundera. Uma simples frase me deu um choque: “Nós escrevemos porque nossos filhos se desinteressaram de nós”. Sim, escrevemos porque somos seres solitários à procura de outros filhos. Ele conta a estória de uma jovem que trabalhava como garçonete num bar. Seu nome era Tamina. Tamina “fica sentada no bar, num tamborete, e quase sempre há alguém que quer conversar com ela. Todo mundo gosta de Tamina. Porque ela sabe ouvir o que lhe contam. Mas será que ela ouve mesmo? Ou não faz outra coisa senão olhar, muito atenta, muito calada? O que conta é que ela não interrompe a fala. Vocês sabem o que acontece quando duas pessoas conversam. Uma fala e a outra lhe corta a palavra: ‘é exatamente como eu, eu...’ e

Como o seio<br />

Somos amantes muito antes de nos encontrarmos com a mulher ou o homem que<br />

será objeto do nosso amor. Somos como a criancinha que já ama o seio mesmo<br />

antes do primeiro encontro.<br />

Sentimentos não se podem prometer<br />

Somos donos dos nossos atos, mas não somos donos dos nossos sentimentos.<br />

Somos culpados pelo que fazemos, mas não somos culpados pelo que sentimos.<br />

Podemos prometer atos. Não podemos prometer sentimentos. “Eu sei que vou te<br />

amar, por toda a minha vida vou te amor...” Lindo e mentiroso. Não se podem<br />

prometer sentimentos. Eles não dependem da nossa vontade. Sua existência é<br />

efêmera. Como o voo dos pássaros...<br />

Reflexo efêmero<br />

Meditando sobre as telas de Monet você entenderá o amor. Tudo são reflexos<br />

efêmeros... Por um momento a beleza cintila, mas logo o tremor da água faz<br />

desaparecer o reflexo... O êxtase do amor é como os reflexos da luz sobre a<br />

superfície das águas da lagoa.<br />

Alegre-triste<br />

Disse a Adélia: “O amor é a coisa mais alegre. O amor é a coisa mais triste. O amor<br />

é a coisa que eu mais quero...”. Todo símbolo é alegre-triste. Alegre, por lembrar a<br />

coisa amada, triste por ser o lugar onde ela não está... Hesse conclui não ser<br />

possível fixar o nosso amor em nenhuma pessoa. A fidelidade a uma única pessoa<br />

seria um equívoco...<br />

Narciso<br />

Pobre Narciso, enfeitiçado pela beleza que via refletida na superfície da fonte...<br />

Sempre que tentava tocá-la, seus dedos encrespavam o espelho da água e ela<br />

desaparecia. Será assim o êxtase da experiência amorosa? A bela imagem está lá,<br />

sorridente, no rosto da pessoa amada! Aí, vamos tocá-la – e ao tentar fazê-lo ela<br />

se desvanece...<br />

Sobre a desilusão amorosa

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