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Androginia<br />
O segredo do amor é a androginia: somos todos, homens e mulheres, masculinos e<br />
femininos ao mesmo tempo. É preciso saber ouvir. Deixar que o outro entre dentro<br />
da gente. Nada mais fatal contra o amor que a resposta rápida. Uma resposta<br />
rápida é um alfanje que decapita. Escutar demanda tempo. Há pessoas muito<br />
velhas cujos ouvidos ainda são virginais: nunca foram penetrados.<br />
O que amo?<br />
Releio as Confissões de santo Agostinho. Ele pergunta: “O que é que amo quando<br />
amo o meu Deus?”. Ele sabia que a simples afirmação “Eu amo o meu Deus” não<br />
significa coisa alguma. O amor exige um rosto. Imaginem que um apaixonado<br />
fizesse essa pergunta à sua amada: “Que é que eu amo quando amo você?”. Ela<br />
responderia perplexa: “Então, não é a mim que você ama? Você ama uma outra<br />
coisa que aparece em mim?”. Esse é um segredo que nenhum amante sabe: ele<br />
não ama a pessoa amada. Ele ama algo misterioso que se mostra no seu corpo. A<br />
raposa olhava para os campos de trigo e sentia amor ao vê-los oscilando ao vento.<br />
Amava os campos de trigo porque eles a faziam lembrar do cabelo dourado do<br />
Pequeno Príncipe. A pessoa amada é apenas o lugar onde a aparição acontece. “O<br />
que amamos é sempre um símbolo”, disse Hermann Hesse. “Símbolo” é algo que<br />
está no lugar da outra coisa. O pão e o vinho eucarísticos marcam o lugar da<br />
ausência de Cristo. O símbolo, qualquer símbolo, sendo “uma outra coisa” que não<br />
a coisa amada, é sempre um lugar de saudade. “Por que tenho saudade de você,<br />
no retrato, ainda que o mais recente? E por que um simples retrato, mais que você,<br />
me comove, se você mesma está presente?” (Cassiano Ricardo)<br />
Sem razões<br />
Angelus Silesius disse que o amor é como a rosa: “A rosa não tem ‘porquês’. Ela<br />
floresce porque floresce”...<br />
A cena<br />
O apaixonado sofre menos com a morte da pessoa amada que com a sua partida<br />
para um novo amor. A morte torna eterno o amor. Ela fixa, para sempre, a bela<br />
cena. A partida, ao contrário, a destrói.