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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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minha juventude, os médicos eram diferentes dos médicos de hoje. Tinham de ser<br />

porque o mundo era diferente Os hospitais eram raros e raros também eram os<br />

laboratórios. Como um Sherlock Holmes, valendo-se de pistas mínimas, o médico<br />

tinha de descobrir o criminoso que deixava suas marcas no corpo do doente.<br />

Naqueles tempos a inteligência do médico era muito importante. Os médicos eram,<br />

frequentemente, heróis solitários que atendiam unha encravada, cachumba,<br />

desidratação, bronquite, pneumonia, parto, prisão de ventre, resfriado, crupe,<br />

disenteria, gonorreia, berne, conjuntivite, furúnculo, hemorroidas, lombriga, dor de<br />

garganta, coqueluche, tosse de cachorro, verruga, indigestão... E tinham de ser<br />

humildes porque as derrotas na luta contra a morte e o sofrimento eram mais<br />

frequentes. Vocês poderiam ler a estória do Jeca Tatuzinho, do Monteiro Lobato,<br />

distribuída em mais de oitenta milhões de exemplares. Com meus cinco anos, eu<br />

sabia a estória do Jeca Tatuzinho de cor e a “lia”, compenetrado, para minha tia<br />

Noemia, que estava doente... Com frequência, o médico recebia como pagamento<br />

um frango, duas dúzias de ovos, um leitão – mais a eterna gratidão de quem tinha<br />

sido atendido e não podia pagar. Deus no céu, o “doutor” na terra, eram as valias<br />

dos pobres. O médico que me inspirou foi Albert Schweitzer. Hoje, quando se pensa<br />

num médico, pensa-se em alguém portador de um conhecimento especializado: a<br />

lista deles se encontra no catálogo da Unimed... Cada médico é uma unidade<br />

biopsicológica móvel portadora de conhecimentos especializados e que executa<br />

atos sobre o corpo do paciente... Naqueles tempos era diferente. Os médicos<br />

tinham, sim, conhecimentos e executavam atos sobre o corpo do paciente. Mas o<br />

que os caracterizava, mesmo – pelo menos no imaginário popular –, era o fato de<br />

serem seres movidos por compaixão. Compaixão, nas suas origens etimológicas,<br />

quer dizer “sofrer com um outro”. A compaixão é, talvez, a mais humana das<br />

nossas características. Toda pessoa que procura um médico está sofrendo. O<br />

“paciente” é aquele que sofre. Há sofrimentos dos mais variados tipos, das hérnias<br />

de disco e cálculos renais até a absoluta falta de apetite e a tristeza. O médico,<br />

que pode não estar sofrendo nada (se ele estiver sofrendo será um médico mais<br />

compassivo...), sofre um sofrimento que não é seu, é de um outro. E é só porque<br />

sofre com os sofrimentos dos outros que ele se impõe a disciplina de estudar,<br />

pesquisar e desenvolver habilidades: para que o outro sofra menos ou deixe de<br />

sofrer. A medicina nasceu da compaixão. Albert Schweitzer era uma pessoa muito<br />

especial. Desde menino sofria com o sofrimento de todas as coisas vivas, os<br />

mínimos animais e até mesmo com o capim cortado pela foice. Se disserem que ele<br />

deveria ter alguma perturbação mental, eu direi que vocês provavelmente estão<br />

certos. Esse tipo de sensibilidade não se encontra no normal das pessoas. Mas é<br />

precisamente essa sensibilidade exacerbada que caracteriza os grandes homens e<br />

as grandes mulheres. São Francisco, Chopin, Cecília Meireles, madre Teresa de

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