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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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“BADULAQUE, s. m.: Guisado de fígado e bofes; coisa miúda, ou velha, de pouco<br />

valor; o que as mulheres põem no rosto para amaciar ou enfeitar a pele.” Está no<br />

Aurélio. No sobradão colonial do meu avô, com sala de visitas de teto barroco,<br />

piano Pleyel vindo da França, castiçais para velas, vidros coloridos importados e<br />

desenhos dourados, havia um quartão que as tias mantinham fechado a chave<br />

(aquelas chavonas pretas, enormes, que se pegam com a palma da mão) e que<br />

nós, os sobrinhos, apelidamos de “quarto do mistério”. Sobre ele escrevi uma<br />

crônica, que se encontra no livro O quarto do mistério. Nele se encontravam coisas<br />

maravilhosas: canastras antiquíssimas cheias de coisas velhas, aparelhos de<br />

medicina que meu tio médico havia abandonado, duas cítaras bordadas em<br />

madrepérola, caixas com bisnagas de tinta (minhas tias eram prendadas;<br />

pintavam, tocavam cítara, piano, bandolim...), uma vitrola sem a corneta, revistas,<br />

um relojão de parede redondo, parado... Os sobrinhos eram proibidos de entrar lá,<br />

por causa da poeira e das teias de aranha. Mas a gente roubava a chave, entrava,<br />

trancava por dentro, e ficava viajando por mundos imaginários. E havia um outro<br />

quarto, não tão proibido, o “quarto dos badulaques”. Lá não se servia guisado de<br />

fígado e bofes, nem havia as coisas que as mulheres põem no rosto para amaciar<br />

ou enfeitar a pele. Lá se encontravam “coisas miúdas, velhas, de pouco valor”,<br />

quinquilharias sem conta, brinquedos, livros de figura... Era o “quarto dos<br />

badulaques”...<br />

Miolo<br />

Meu sogro era um alemão que veio para o Brasil após a Primeira Guerra. Filho de<br />

um pastor adventista, tinha uma série de tabus alimentares. Não comia carne de<br />

porco, camarão, frango ao molho pardo... E tinha também um tabu particular:<br />

detestava, sem nunca haver comido, miolo de boi. Pois um dia ele foi convidado a<br />

almoçar numa casa tipicamente brasileira. E ficou felicíssimo porque o prato<br />

principal era couve-flor empanada. Comeu, gostou, repetiu, encheu a barriga. Ao<br />

final, boca e estômago havendo aprovado, ele quis fazer um elogio à dona da casa.<br />

“Essa couve-flor estava divina!”, ele disse. Ao que ela esclareceu: “Me alegro que o<br />

senhor tenha gostado. Mas não é couve-flor. É miolo...”. Ouvida a palavra miolo o<br />

estômago entrou em estertores e ele teve de sair correndo da mesa para vomitar<br />

no banheiro. O que foi que ele vomitou? Ele vomitou a palavra “miolo”. Nós<br />

gostamos não é da “coisa”, mas do nome que pomos nela...<br />

Médicos<br />

Eu desejei muito ser médico. Por que não fui, nem sei explicar direito. Mas, na

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