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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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pobreza. Depois, pobreza simplesmente. Desses anos não tenho uma única<br />

memória infeliz. Tive dores, como toda criança tem: dor de dente, dor de tombo,<br />

dor de barriga, dor de queimadura. Mas não tive experiência de infelicidade. Minha<br />

infelicidade começou quando a vida melhorou e nos mudamos de uma cidade do<br />

interior de Minas para o Rio de Janeiro. Meu pai me matriculou num colégio de<br />

cariocas ricos. Foi então que, como Camus, senti vergonha da minha pobreza e da<br />

minha família: eu era diferente, não pertencia ao mundo elegante dos meus<br />

colegas. Num outro lugar do seu diário, Camus registrou: “Atenção: Kierkegaard, a<br />

origem dos nossos males está na comparação”. Kierkegaard foi um solitário filósofo<br />

dinamarquês. Os desbravadores são sempre solitários. Veem coisas que os outros<br />

não veem. Como foi o caso de Nietzsche. Kierkegaard foi meu primeiro amigo<br />

filósofo. Com ele tive longas e mansas conversas. Sua filosofia é construída em<br />

meio a uma teia de sutis percepções psicológicas. O sofrimento da pobreza, quando<br />

não é miséria, se encontra na comparação. A miséria é diferente da pobreza. A<br />

pobreza está muito próxima da simplicidade. Simplicidade tem a ver com as coisas<br />

que são essenciais. Simplicidade é caminhar com uma mochila leve. A riqueza, ao<br />

contrário, é caminhar arrastando muitas malas pesadas, sem alças... A pobreza<br />

simples é uma pobreza feliz. <strong>Feliz</strong> porque leve. É a comparação, origem da inveja,<br />

que a torna infeliz. Camus e eu experimentamos a infelicidade da comparação na<br />

escola. Mas hoje não é preciso ir à escola para sentir a sua maldição. Basta ligar a<br />

televisão. A televisão é uma máquina de infelicidade, na medida em que ela nos<br />

obriga a comparar. Os pobres, nos lugares mais distantes, ligam as novelas e<br />

sentem a sua desgraça. A comparação é um exercício dos olhos: vejo-me; estou<br />

feliz.<br />

Armadilha da memória<br />

Um dia eu estava andando de carro com meu amigo Carlos Rodrigues Brandão, em<br />

Pocinhos, por uma estrada de terra. Aí ele começou uma conversa mole sobre a<br />

memória. Disse-me: “<strong>Rubem</strong>, estou agora seguindo a seguinte filosofia: eu não<br />

possuo aquilo de que me esqueci. O que é que você acha disso?”. Pensei: Eu me<br />

esqueci da coisa que possuo. Se me esqueci dela é como se ela não existisse para<br />

mim. Não vou usá-la nem sentirei a sua falta. E concluí: “Está certo: eu não possuo<br />

aquilo de que me esqueci”. Aí a fala mole do Brandão ficou rápida e concluiu: “Você<br />

se esqueceu de que eu lhe devo R$200,00. Portanto, você não os possui mais. Vou<br />

dá-los para a Soninha comprar tijolos...”. Soninha era uma amiga comum que<br />

estava lutando para construir sua casa. E assim ele o fez. E eu não pude reclamar<br />

porque havia acabado de concordar que não possuo aquilo de que me esqueci... Eu<br />

havia me esquecido de que o Brandão me devia R$200,00.

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