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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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alguns doentes crônicos se esquecem de tomar seus medicamentos. Na verdade,<br />

não creio que seja esquecimento. Segundo Freud, todos os esquecimentos são<br />

intencionais. Os portadores de doenças crônicas se “esquecem” de tomar seus<br />

medicamentos porque eles são adeptos da filosofia dos avestruzes. Acham que,<br />

não percebendo, a coisa não existe. Acham que ninguém pensa assim? Tive um<br />

amigo, um homem inteligente de extraordinárias habilidades mecânicas que não ia<br />

ao médico de forma alguma. Alegava: “Não vou ao médico porque pode ser que eu<br />

tenha alguma coisa...”. Não ia ao médico para não saber. Não sabendo, ele<br />

acreditava que a doença não existia. O leão existe mesmo quando fechamos os<br />

olhos...<br />

Direitos humanos<br />

Li que Baudelaire escreveu: “Esqueceram-se de dois direitos na Declaração dos<br />

Direitos do Homem: o de se contradizer e o de se ir embora”. De acordo. Mas<br />

quero acrescentar outro: o direito ao silêncio. O silêncio é parte do meu espaço.<br />

Qualquer ruído que o perturbe é uma invasão da minha casa, uma agressão ao<br />

meu corpo.<br />

Cidades<br />

As cidades são como os seres humanos: têm um corpo e têm uma alma. Talvez<br />

muitas almas, porque o corpo é um albergue onde moram muitas almas, todas<br />

diferentes em ideias e sentimentos, todas com a mesma cara. O corpo das cidades<br />

são as ruas, praças, carros, lojas, bancos, escritórios, fábricas, coisas materiais. A<br />

alma, ao contrário, são os pensamentos e sentimentos dos que nela moram. Há<br />

corpos perfeitos com almas feias e são como um violino Stradivarius em mãos de<br />

quem não gosta de música e não sabe tocar. Mas pode acontecer o contrário: um<br />

corpo tosco com alma bonita. Aí é como acontecia com as rabecas do querido<br />

Gramanni. Rabecas são violinos rústicos fabricados por artesãos desconhecidos.<br />

Mas o Gramanni era capaz de tocar Bach nas suas rabecas... O mesmo vale para as<br />

cidades: cidades bonitas por fora e com almas feias, cidades rústicas por fora com<br />

almas bonitas. Onde se podem encontrar as almas das cidades? Eu as encontro<br />

bonitas nas feiras, nas bancas de legumes e frutas, no mercadão, no sacolão. Esses<br />

são lugares onde acontecem reencontros felizes. Também na feira de artesanato,<br />

nos jardins onde há crianças, nos concertos... Mas ela aparece assustadora nas<br />

torcidas de futebol e no tráfego... Ah, o tráfego! É nele que a alma da cidade<br />

aparece mais nua. Pensei nisso na semana que passei em Portugal. Lembrei-me<br />

que há lugares onde os motoristas sabem que o pedestre tem sempre a

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