Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

19.10.2015 Views

poder. Eles são criminosos também por razões estéticas. Todos os homens desejam ser figuras lendárias, heróis, objetos de admiração, espanto ou mesmo de horror. A felicidade do criminoso quando a sua fotografia aparece na primeira página do jornal! Há um enorme prazer em se sentir temido e odiado. O horrendo pode ser belo. Também os criminosos se alimentam de fantasias narcísicas! Na Idade Média havia uma forma curiosa de punir os criminosos. Eles eram colocados em pelourinhos com cabeças e mãos presas numa peça de madeira. O pelourinho ficava numa praça pública. Ali ficavam os infratores, expostos ao riso e zombaria do povo. Essa situação de ridículo, imagino, se constituía num poderoso antídoto a quaisquer imagens heroicas que os criminosos pudessem ter de si mesmos. Não há narcisismo que resista à zombaria. Aí fiquei pensando se não haveria uma forma moderna de se aplicar esse castigo pedagógico e inspirado na psicanálise. O medo do ridículo é capaz de desencorajar muitas ações. Já imaginaram? Poderia haver praças dedicadas aos políticos corruptos, aos sequestradores, aos pedófilos, aos assassinos, etc., etc. Lá ficariam eles expostos ao riso público e, preferivelmente, com as partes pudendas à mostra. Se essa proposta é inviável, por razões práticas (não há praças em número suficiente, o número dos criminosos é muito grande), as autoridades competentes poderiam colocar na Internet um site com o nome de “Pelourinho”. Ali poderíamos ver a cara dos criminosos nas mais variadas versões. Aí o povo começaria a rir deles. Quem sabe os criminosos se regenerariam, por vergonha... Sobre direitos e avessos “Consulte sempre um advogado. Você tem direitos. Consulte sempre um psicanalista. Você tem avessos...” Emulsão de Scott Como é que uma coisa ruim vira coisa boa, e só é boa se continuar a ser ruim? Não, não pensem que endoidei. Vou contar o que aconteceu. Esses dias de outono, céu muito azul, um friozinho gostoso, as cores mais brilhantes... Me lembrei, com saudade, da minha infância em Minas. Lembrei-me que, quando chegava o mês de julho, mês de férias, era o tempo de tomar Emulsão de Scott. Para quem não sabe, Emulsão de Scott é um fortificante à base de óleo de fígado de bacalhau. Branco, pastoso, difícil de engolir, malcheiroso, gosto ruim. Vinha a minha mãe com a colher de Emulsão de Scott numa mão e uma tampa de laranja na outra, pra tirar gosto e cheiro. Pois não é que fiquei com saudade da Emulsão de Scott! Pensei, então, que eu gostaria de tomar Emulsão de Scott para voltar, na imaginação, à

minha infância. Fui à farmácia, comprei um vidro e preparei-me. Mas, oh! decepção! Os laboratórios estragaram a emulsão. Deixou de ser branca. Está corde-rosa! E o que fizeram com o gosto ruim de óleo de fígado de bacalhau? Estragaram-no com sabor doce de morango! Fracassou minha programada volta à infância! Porque Emulsão de Scott, para ser boa, para ter poderes mágicos, tem de ser ruim... Convicções “É preciso que aquele que pensa não se esforce em persuadir os outros a aceitar sua verdade... (Esse é) o lamentável caminho do ‘homem de convicções’; os homens políticos gostam de se qualificar assim. Mas o que é uma convicção? É um pensamento que parou, que se imobilizou, e o ‘homem de convicções’ é um homem tacanho; o pensamento experimental não deseja persuadir, mas inspirar; inspirar um outro pensamento, pôr em movimento o pensar.” (Ignoro o autor) Avestruz Falam muito mal dos avestruzes, injustamente. Seus detratores, movidos por motivos inconfessáveis, declaram que aquelas aves são de estupidez sem paralelo. Dizem que elas, ao se defrontar com um leão, enterram suas cabeças na areia. Se assim eles se comportam é porque devem ser adeptos de uma antiga filosofia que afirmava que “ser é perceber”. Raciocinam os avestruzes: se não percebo o perigo, o perigo não existe para mim. (Traduzido popularmente: “Aquilo que os olhos não veem, o coração não sente”.) Continua o pensamento dos avestruzes: “Posso, assim, me comportar como se ele não existisse, desde que continue com a cabeça enterrada na areia”. Tudo estaria bem se o leão não fosse de verdade. E o resultado é que o avestruz acaba na barriga do leão... Mas, como disse antes, eu não acredito que os avestruzes sejam assim tão estúpidos. Estupidez igual somente encontrei em exemplares da espécie Homo sapiens a que pertencemos. O que provocou essa meditação foi uma conversa que tive com o dr. Augusto Rocha, que me falou sobre o curioso comportamento de pessoas que têm hipertensão arterial e se recusam a tomar remédio. Hipertensão é doença crônica. Sem cura. Para o resto da vida. Como o diabetes. Embora não possam ser curadas, as doenças crônicas podem ser controladas. Para isso, o doente há de aceitar uma rotina diária de tomar os remédios devidos. Se isso é doença crônica, podemos dizer que todos nós somos portadores de uma enfermidade crônica que, se não for tratada rotineira e diariamente, pode levar à morte em um mês. É a fome. E o remédio diário para ela é um bom prato de comida... O fato é que ninguém se esquece de comer. Mas

minha infância. Fui à farmácia, comprei um vidro e preparei-me. Mas, oh!<br />

decepção! Os laboratórios estragaram a emulsão. Deixou de ser branca. Está corde-rosa!<br />

E o que fizeram com o gosto ruim de óleo de fígado de bacalhau?<br />

Estragaram-no com sabor doce de morango! Fracassou minha programada volta à<br />

infância! Porque Emulsão de Scott, para ser boa, para ter poderes mágicos, tem de<br />

ser ruim...<br />

Convicções<br />

“É preciso que aquele que pensa não se esforce em persuadir os outros a aceitar<br />

sua verdade... (Esse é) o lamentável caminho do ‘homem de convicções’; os<br />

homens políticos gostam de se qualificar assim. Mas o que é uma convicção? É um<br />

pensamento que parou, que se imobilizou, e o ‘homem de convicções’ é um homem<br />

tacanho; o pensamento experimental não deseja persuadir, mas inspirar; inspirar<br />

um outro pensamento, pôr em movimento o pensar.” (Ignoro o autor)<br />

Avestruz<br />

Falam muito mal dos avestruzes, injustamente. Seus detratores, movidos por<br />

motivos inconfessáveis, declaram que aquelas aves são de estupidez sem paralelo.<br />

Dizem que elas, ao se defrontar com um leão, enterram suas cabeças na areia. Se<br />

assim eles se comportam é porque devem ser adeptos de uma antiga filosofia que<br />

afirmava que “ser é perceber”. Raciocinam os avestruzes: se não percebo o perigo,<br />

o perigo não existe para mim. (Traduzido popularmente: “Aquilo que os olhos não<br />

veem, o coração não sente”.) Continua o pensamento dos avestruzes: “Posso,<br />

assim, me comportar como se ele não existisse, desde que continue com a cabeça<br />

enterrada na areia”. Tudo estaria bem se o leão não fosse de verdade. E o<br />

resultado é que o avestruz acaba na barriga do leão... Mas, como disse antes, eu<br />

não acredito que os avestruzes sejam assim tão estúpidos. Estupidez igual somente<br />

encontrei em exemplares da espécie Homo sapiens a que pertencemos. O que<br />

provocou essa meditação foi uma conversa que tive com o dr. Augusto Rocha, que<br />

me falou sobre o curioso comportamento de pessoas que têm hipertensão arterial e<br />

se recusam a tomar remédio. Hipertensão é doença crônica. Sem cura. Para o resto<br />

da vida. Como o diabetes. Embora não possam ser curadas, as doenças crônicas<br />

podem ser controladas. Para isso, o doente há de aceitar uma rotina diária de<br />

tomar os remédios devidos. Se isso é doença crônica, podemos dizer que todos nós<br />

somos portadores de uma enfermidade crônica que, se não for tratada rotineira e<br />

diariamente, pode levar à morte em um mês. É a fome. E o remédio diário para ela<br />

é um bom prato de comida... O fato é que ninguém se esquece de comer. Mas

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