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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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para o forno. Ele ficava transfigurado. Acho que teria se realizado mais como<br />

cozinheiro. Quando via o prazer no rosto dos convidados era como se eles<br />

estivessem devorando ele mesmo, o cozinheiro, antropofagicamente. Todo<br />

cozinheiro quer sentir-se devorado. Toda comida é antropofagia, toda comida é<br />

sacramento. Fico a me perguntar: quais foram as razões que fizeram com que a<br />

culinária nunca tenha sido elevada à dignidade acadêmica de “arte”, como a<br />

música e a pintura? Não sei a resposta.<br />

“De onde?”<br />

Apresentei-me à recepcionista da empresa e disse: “Sou <strong>Rubem</strong> <strong>Alves</strong>. Tenho uma<br />

entrevista marcada...”. Ela me olhou e perguntou: “De onde?”. Levantei o meu<br />

braço em curva e, com o indicador, apontei verticalmente para o cocuruto da minha<br />

cabeça e lhe disse: “Daqui!”. Ela ficou espantada, achou que eu fosse louco. Essa<br />

pergunta “de onde?” quer dizer: De que empresa? E traduzida em linguagem mais<br />

clara significa o seguinte: O senhor como indivíduo não existe. Mas o senhor<br />

passará a existir para a minha empresa quando disser o nome da empresa a que o<br />

senhor se encontra plugado. Acho que nunca passara pela cabeça da recepcionista<br />

que houvesse pessoas que não estivessem plugadas a empresas, cuja identidade<br />

não dependesse do “onde”. Essa é a norma, ao telefone. Quando a inocente<br />

telefonista (inocente porque esse procedimento lhe foi ensinado) me faz a<br />

pergunta de praxe, eu lhes respondo: “De onde? Da rua Frei Antônio de Pádua,<br />

1521”. Ela se embaraça. E eu, de maldade, acrescento: “É no bairro Guanabara,<br />

Campinas...”. Elas não são culpadas. Disseram-lhes que fizessem assim. Mas essa<br />

simples pergunta revela um horror: vivemos no mundo em que as pessoas<br />

deixaram de existir como pessoas. Essa é a tragédia dos aposentados: estão<br />

desplugados de empresas. Cartesianismo ao contrário: “Estou desplugado de uma<br />

empresa, logo não existo...”.<br />

Telefone<br />

Ligo para a Receita Federal. A telefonista atende. Eu digo: “Preciso falar com o<br />

delegado da Receita Federal...”. Pergunta a telefonista: “Quem gostaria?”.<br />

Respondo: “Gostaria? Eu não disse que gostaria. Na verdade, eu não gostaria. Eu<br />

preferiria não ter que falar sobre imposto de renda... Eu só disse que preciso falar<br />

com o delegado, mesmo sem gostar...”. Terrível é quando nos deixam ao telefone<br />

enquanto, na espera, fica uma gravação falando sobre as maravilhas da empresa.<br />

Se demora, a gravação começa a se repetir. E eu não tenho alternativas. Tenho de<br />

ficar ouvindo, à espera de que o outro atenda. Obrigar uma pessoa a ouvir o que

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