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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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imaginava máquinas de todos os tipos, inclusive voadoras, estudou os fósseis, a<br />

meteorologia, a anatomia, amava os cavalos. Pois fiquei sabendo que, além de<br />

tudo isso, ele se dedicava à culinária. No final do século XV, foi trabalhar na corte<br />

de Ludovico Sforza, governante e protetor da cidade. Lá ele não só inventava<br />

utensílios culinários (foi ele que inventou a tampa para as panelas) como também<br />

coordenava eventos pantagruélicos. Aqui vão os nomes de alguns dos pratos que<br />

se serviam nos banquetes: crista de galo com miolo de pão, testículos de carneiro<br />

com creme e mel, rabos de porco com polenta, pastelão de cabeça de cabra, sopa<br />

de rã, enguias cozidas, galinha recheada com uvas, sopa de caracóis, intestinos de<br />

truta. Quem quiser experimentar as receitas que compre o livro e depois me diga:<br />

Os cadernos de cozinha de Leonardo da Vinci (Rio de Janeiro, Editora Record,<br />

2002).<br />

Linguagem<br />

Linguagem, essa mentirosa... Agora é moda falar em carros seminovos, em<br />

celulares seminovos. Isso é uma enganação. Ou é novo ou não é. Há coisas que<br />

não podem ser “semi”: semivirgem, semigrávida, semi-honesto, semibom...<br />

Culinária<br />

Os textos sagrados dizem que, quando Deus voltar à terra do seu exílio, a sua<br />

presença será servida como um banquete: todos reunidos à volta de uma mesa,<br />

comendo, bebendo, conversando, rindo... Deus se dá como comida. Tal como<br />

aconteceu no filme A festa de Babette. Babette, a feiticeira, com a sua culinária<br />

transformou uma aldeia de pessoas amargas em crianças! O comer é um ritual<br />

mágico. Comer é o impulso mais primitivo do corpo. O nenezinho tudo ignora: para<br />

ele, o mundo se reduz a um único objeto mágico, o seio da sua mãe. Nasce daí a<br />

primeira filosofia, resumo de todas as outras: o mundo é para ser comido. Disse<br />

alguém que a nossa infelicidade se deve ao fato de que não podemos comer tudo o<br />

que vemos. Sabem disso os poetas. Os poetas são seres vorazes. Escrevem com<br />

intenções culinárias. Querem transformar o mundo inteiro, os seus fragmentos mais<br />

insignificantes, em comida. Quem sabe numa simples azeitona... Poemas são para<br />

serem comidos. “Sou onívoro de sentimentos, de seres, de livros, de<br />

acontecimentos e lutas”, dizia Neruda.“Comeria toda a terra. Beberia todo o mar...”<br />

“Persigo algumas palavras... Agarro--as no voo... e capturo-as, limpo-as, aparo-as,<br />

preparando-me diante do prato, sinto-as cristalinas, ... vegetais, oleosas, como<br />

frutas, como azeitonas... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as...” A<br />

memória mais forte que tenho do cozinhar é a de um pai preparando um peixe

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