Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

19.10.2015 Views

um banho. Se vocês quiserem ler um exemplo de absoluta incompreensão de Nietzsche leiam o que Coplestone, padre jesuíta, disse dele na sua história da filosofia. Críticos Penso que um crítico de arte, ao se pronunciar sobre uma tela, uma música, um livro, uma escultura, deveria ter o cuidado de não dizer: “Essa obra é medíocre”, “Essa obra é genial”. Ao escrever assim, ele está fazendo uma afirmação sobre a verdade daquela obra. Mas o fato é que ele não sabe a verdade de coisa alguma. Muitas obras de arte hoje consideradas geniais foram ridicularizadas pelos críticos da moda. Segundo Karl Popper, nem mesmo a ciência sabe a verdade. A ciência só dá “palpites provisórios”, que são constantemente modificados. É preciso que os críticos se reconheçam como “palpiteiros”. Um crítico dá os seus palpites, opiniões, impressões, sentimentos acerca da obra sobre a qual escreve. Assim, um crítico cuidadoso e ético deveria dizer: “Penso que essa obra é medíocre”, “Penso que essa obra é genial”. Porque assim ele estará honestamente comunicando os seus pensamentos sobre a obra e não a verdade sobre a dita obra. A sua crítica é apenas um pedaço dele mesmo, a “sua” obra de arte, as suas reações subjetivas à obra. Muitas obras que foram sentenciadas como medíocres por críticos do momento foram consideradas geniais posteriormente. Nos Primeiros cadernos, de Albert Camus (Lisboa, Livros do Brasil, p. 213), encontra-se o seguinte fragmento de uma carta que o escritor escreveu ao crítico literário A. R.: “Três anos para escrever um livro, cinco linhas para o ridicularizar – e citações falsas”. Albert Camus recebeu o Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1957. A história provou que medíocre era o crítico. Estórias para crianças Frequentemente pessoas me perguntam sobre o “método” que uso para escrever uma estória para crianças. Houve uma que chegou a me perguntar sobre a “teoria” de que eu me valia... Coisa de gente acostumada aos jeitos universitários. Nem método nem teoria. Tudo começa com uma coceira. Coceira é coisa que incomoda. A coceira pode ser, por exemplo, a ansiedade de uma criança que vai ser operada. Ou a ansiedade de uma criança diante da sua diferença: ela se julga feia, é deficiente, tem um defeito físico. A dor da criança se transforma em coceira na gente. Aí eu começo a coçar e vou coçando, até sair sangue. Quando o sangue sai, a estória está pronta para ser escrita. Como dizia Nietzsche, é preciso escrever com sangue.

Sem inveja “O tico-tico não se ressente do canto da patativa, e até mesmo o aprova, achandoo melodioso. Mas, se não canto como você canta, você me chama de mentiroso.” (Angelus Silesius, século XVII) O que Deus ajuntou... Faz muito tempo que não assisto a um casamento, e quando assisto não presto muita atenção naquilo que o padre fala porque aqueles que foram contratados para fazer o vídeo e o álbum de fotografias não deixam. Mas é assim mesmo. A cerimônia do casamento existe só para ser filmada e fotografada. Quando os amigos fazem uma visita é hora de mostrar o álbum de fotografias e os vídeos. O que comprova que todos os casamentos são iguais. “Como a noiva estava linda!” Todas as noivas são igualmente lindas. Disseram-me que num país do Oriente (as coisas estranhas só acontecem em países do Oriente...) escolhem-se as damas de honra entre as moças mais feias – para que a beleza da noiva fique realçada. Nesse país, ser convidada para ser dama de honra é um desaforo. Divaguei. Disse tudo isso só para explicar que não estou certo das palavras tradicionais da liturgia. “Aquilo que Deus ajuntou não o separe o homem”: é isso? Se for, acho que está errado. O verbo está no imperativo. De acordo com a teologia católica, quem realiza o sacramento não é o padre. É o próprio Deus. Se é Deus que ajunta está vedado aos homens desfazer o nó que Deus deu. O fervor da Igreja sobre a questão da indissolubilidade do casamento não é derivada de um piedoso amor à família. O que está em jogo não é a família, é a Igreja. Aceitar o divórcio é rejeitar a teologia sacramental da Igreja, é rejeitar a própria Igreja. Assim, está proibido separar aquilo que Deus ajuntou, isto é, aquilo que a Igreja julga ter ajuntado. Eu proponho, entretanto, que o verbo, em vez de estar no modo imperativo, deve estar no modo indicativo: “Aquilo que Deus ajuntou não o separa o homem”. Se separou é porque Deus não ajuntou. Os portugueses se horrorizaram ao saber que os índios matavam as pessoas e as comiam. Os índios se horrorizaram ao saber que os portugueses matavam as pessoas e não as comiam. Tudo depende do ponto de vista. Composição da mesa Há muitas coisas que provocam a minha curiosidade. Por que os paletós dos homens têm três botões nas mangas? Parece não terem função alguma. Disseram-

Sem inveja<br />

“O tico-tico não se ressente do canto da patativa, e até mesmo o aprova, achandoo<br />

melodioso. Mas, se não canto como você canta, você me chama de mentiroso.”<br />

(Angelus Silesius, século XVII)<br />

O que Deus ajuntou...<br />

<strong>Faz</strong> muito tempo que não assisto a um casamento, e quando assisto não presto<br />

muita atenção naquilo que o padre fala porque aqueles que foram contratados para<br />

fazer o vídeo e o álbum de fotografias não deixam. Mas é assim mesmo. A<br />

cerimônia do casamento existe só para ser filmada e fotografada. Quando os<br />

amigos fazem uma visita é hora de mostrar o álbum de fotografias e os vídeos. O<br />

que comprova que todos os casamentos são iguais. “Como a noiva estava linda!”<br />

Todas as noivas são igualmente lindas. Disseram-me que num país do Oriente (as<br />

coisas estranhas só acontecem em países do Oriente...) escolhem-se as damas de<br />

honra entre as moças mais feias – para que a beleza da noiva fique realçada.<br />

Nesse país, ser convidada para ser dama de honra é um desaforo. Divaguei. Disse<br />

tudo isso só para explicar que não estou certo das palavras tradicionais da liturgia.<br />

“Aquilo que Deus ajuntou não o separe o homem”: é isso? Se for, acho que está<br />

errado. O verbo está no imperativo. De acordo com a teologia católica, quem<br />

realiza o sacramento não é o padre. É o próprio Deus. Se é Deus que ajunta está<br />

vedado aos homens desfazer o nó que Deus deu. O fervor da Igreja sobre a<br />

questão da indissolubilidade do casamento não é derivada de um piedoso amor à<br />

família. O que está em jogo não é a família, é a Igreja. Aceitar o divórcio é rejeitar<br />

a teologia sacramental da Igreja, é rejeitar a própria Igreja. Assim, está proibido<br />

separar aquilo que Deus ajuntou, isto é, aquilo que a Igreja julga ter ajuntado. Eu<br />

proponho, entretanto, que o verbo, em vez de estar no modo imperativo, deve<br />

estar no modo indicativo: “Aquilo que Deus ajuntou não o separa o homem”. Se<br />

separou é porque Deus não ajuntou. Os portugueses se horrorizaram ao saber que<br />

os índios matavam as pessoas e as comiam. Os índios se horrorizaram ao saber<br />

que os portugueses matavam as pessoas e não as comiam. Tudo depende do<br />

ponto de vista.<br />

Composição da mesa<br />

Há muitas coisas que provocam a minha curiosidade. Por que os paletós dos<br />

homens têm três botões nas mangas? Parece não terem função alguma. Disseram-

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