Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
ando de patos domésticos. Eram muitos. Estavam tranquilamente deitados à<br />
sombra de uma árvore. Não precisavam voar. Não havia caçadores. Não<br />
precisavam buscar o que comer: o seu dono lhes dava milho diariamente. E o pato<br />
selvagem invejou os patos domésticos e resolveu juntar-se a eles. Disse adeus aos<br />
seus companheiros, baixou seu voo e passou a viver a vida mansa que pedira a<br />
Deus. E assim viveu por muitos anos. Até que... Até que, num ano como os outros<br />
chegou de novo o tempo da migração dos patos. Eles passavam nas alturas, no<br />
fundo do azul do céu, grasnando, um grupo após o outro. Aquelas visões dos patos<br />
em voo, as memórias de alturas, aqueles grasnados de outros tempos começaram<br />
a mexer com algum lugar esquecido dentro do pato domesticado, o lugar chamado<br />
saudade. Uma nostalgia pela vida selvagem, pelas belezas que só se veem nas<br />
alturas, pelo fascínio do perigo... Até que não foi mais possível aguentar a saudade.<br />
Resolveu voltar a ser o pato selvagem que fora. Abriu suas asas, bateu-as para<br />
voar, como outrora... mas não voou. Caiu. Esborrachou-se no chão. Estava gordo<br />
demais. E assim passou o resto de sua vida: em segurança, gordo de barriga cheia,<br />
protegido pelas cercas e triste por não poder voar...<br />
Dentaduras<br />
Meu dentista me contou que em tempos antigos as dentaduras se faziam com<br />
dentes arrancados aos escravos. E como não havia técnicas para fazer com que as<br />
dentaduras se encaixassem sob pressão nas gengivas, um dentista imaginoso fez<br />
dentaduras articuladas uma com a outra, mantidas abertas por meio de molas.<br />
Essas dentaduras, ao contrário das modernas, que permanecem discretamente<br />
fechadas quando fora da boca, dentro do copo d’água, estavam permanentemente<br />
abertas, prontas a morder.<br />
Caras<br />
Em situações de tédio somos capazes de ler as coisas mais absurdas. Numa cela de<br />
penitenciária, vazia, o prisioneiro lê até rótulo de pasta dental. Eu já li bula de<br />
remédio numa viagem de ônibus. Pois eu estava na sala de espera do meu<br />
dentista. Houve atraso, não por culpa dele. Eu tinha de matar o tempo. Na mesa,<br />
pilhas da revista Caras. Nunca havia me interessado por ler uma, embora soubesse<br />
da sua fama. Folheando, vi que havia palavras cruzadas. Um bom passatempo. Mas<br />
todas já estavam resolvidas. E eram muito fáceis. Resolvi, então, ir à substância da<br />
revista. Achei-a muito interessante. A pessoa que a criou deve ser um gênio.<br />
Podem imaginar uma revista que é sempre igual, tratando sempre de um mesmo<br />
assunto, e é comprada semanalmente por milhares de leitores famintos? Podem