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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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ando de patos domésticos. Eram muitos. Estavam tranquilamente deitados à<br />

sombra de uma árvore. Não precisavam voar. Não havia caçadores. Não<br />

precisavam buscar o que comer: o seu dono lhes dava milho diariamente. E o pato<br />

selvagem invejou os patos domésticos e resolveu juntar-se a eles. Disse adeus aos<br />

seus companheiros, baixou seu voo e passou a viver a vida mansa que pedira a<br />

Deus. E assim viveu por muitos anos. Até que... Até que, num ano como os outros<br />

chegou de novo o tempo da migração dos patos. Eles passavam nas alturas, no<br />

fundo do azul do céu, grasnando, um grupo após o outro. Aquelas visões dos patos<br />

em voo, as memórias de alturas, aqueles grasnados de outros tempos começaram<br />

a mexer com algum lugar esquecido dentro do pato domesticado, o lugar chamado<br />

saudade. Uma nostalgia pela vida selvagem, pelas belezas que só se veem nas<br />

alturas, pelo fascínio do perigo... Até que não foi mais possível aguentar a saudade.<br />

Resolveu voltar a ser o pato selvagem que fora. Abriu suas asas, bateu-as para<br />

voar, como outrora... mas não voou. Caiu. Esborrachou-se no chão. Estava gordo<br />

demais. E assim passou o resto de sua vida: em segurança, gordo de barriga cheia,<br />

protegido pelas cercas e triste por não poder voar...<br />

Dentaduras<br />

Meu dentista me contou que em tempos antigos as dentaduras se faziam com<br />

dentes arrancados aos escravos. E como não havia técnicas para fazer com que as<br />

dentaduras se encaixassem sob pressão nas gengivas, um dentista imaginoso fez<br />

dentaduras articuladas uma com a outra, mantidas abertas por meio de molas.<br />

Essas dentaduras, ao contrário das modernas, que permanecem discretamente<br />

fechadas quando fora da boca, dentro do copo d’água, estavam permanentemente<br />

abertas, prontas a morder.<br />

Caras<br />

Em situações de tédio somos capazes de ler as coisas mais absurdas. Numa cela de<br />

penitenciária, vazia, o prisioneiro lê até rótulo de pasta dental. Eu já li bula de<br />

remédio numa viagem de ônibus. Pois eu estava na sala de espera do meu<br />

dentista. Houve atraso, não por culpa dele. Eu tinha de matar o tempo. Na mesa,<br />

pilhas da revista Caras. Nunca havia me interessado por ler uma, embora soubesse<br />

da sua fama. Folheando, vi que havia palavras cruzadas. Um bom passatempo. Mas<br />

todas já estavam resolvidas. E eram muito fáceis. Resolvi, então, ir à substância da<br />

revista. Achei-a muito interessante. A pessoa que a criou deve ser um gênio.<br />

Podem imaginar uma revista que é sempre igual, tratando sempre de um mesmo<br />

assunto, e é comprada semanalmente por milhares de leitores famintos? Podem

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