Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

19.10.2015 Views

meu apartamento, a despeito do jardim que a Raquel, minha filha, pôs na varanda. Aventei a hipótese de que é porque moro no oitavo andar, talvez seja altura demais. Guimarães Rosa diz que, no sertão, só há duas alturas: altura de urubu ir e altura de urubu não ir. Fiquei pensando que, aqui no oitavo andar, só os urubus. A crônica saiu num domingo. Na segunda-feira, ao chegar em casa do trabalho no final do dia, lá estava, na sala, atendendo à minha queixa, um beija-flor empoleirado no lustre. O bichinho se assustou. Como se sabe, os homens são os seres que perderam a confiança dos pássaros. Ele se pôs a voar de um lado para outro, desorientado, sem saber onde estava a saída. Tentei pegá-lo. Inutilmente. Aí ele se refugiou no banheiro. Fechei a porta, subi numa cadeira e finalmente o segurei com palavras tranquilizantes. Ele não acreditou e até deixou várias penas na minha mão. Desci da cadeira, fui até a varanda e o soltei. Ele partiu como uma flecha. Ah! Como me senti feliz! Pois, no dia seguinte, a coisa se repetiu: não com o beija-flor, mas com uma curruíra. Ela não entrou no apartamento, mas ficou saltitando na minha mini-imitação dos jardins suspensos da Babilônia. Peguei as peninhas do beija-flor, azuis, amarrei-as com um fio e as pendurei no bambu do jardim, como mensagem de paz. Quero que os pássaros confiem em mim. Vocês não concordam comigo que o fato de um beija-flor e uma curruíra terem me visitado no meu apartamento é prova cabal de que leem jornal? Por que é que foram aparecer justo no dia seguinte ao da minha queixa? E fiquei feliz por saber que eles leem o que eu escrevo... Ninho Gaston Bachelard é um homem que amo pela erudição, simplicidade e poesia. Erudição e simplicidade, que coisa rara! A erudição de Bachelard está sempre escondida, para não atrapalhar. Erudição escancarada é sempre despudorada, pornográfica, ofensiva. A poética do espaço: esse é o título que deu a um dos seus livros. Poética do espaço? O espaço fica poético quando um homem o modela. Quem constrói uma casa faz um poema. Por isso enchemos as casas de plantas, de quadros, de música, de livros. E que dizer da poética das gavetas, dos cofres e armários? Ah! Quanta poesia as gavetas podem conter, especialmente aquelas que são trancadas a chave! A concha, casa assombrosa dos moluscos, os cantos, a imensidão íntima: todos esses espaços estão cheios de poesia. Faz uns dias, olhando o jardim que minha filha Raquel plantou na pequena varanda do meu apartamento, lembrei--me de um parágrafo seu que me comoveu: “Ergo suavemente um galho; um pássaro está ali chocando os ovos. Não levanta voo. Somente estremece um pouco. Tremo por fazê-lo tremer. Tenho medo que o pássaro que choca saiba que sou um homem, o ser que deixou de ter a confiança

dos pássaros. Fico imóvel. Lentamente se acalma – imagino eu! – o medo do pássaro e o meu medo de causar medo. Respiro melhor. Deixo o galho voltar ao seu lugar. Voltarei amanhã. Hoje, trago comigo uma alegria: os pássaros fizeram um ninho no meu jardim”. Lembrei-me desse parágrafo porque estou recebendo visitas regulares de um beija-flor e de uma curruíra. Minha alegria: quem sabe eles farão ninhos no meu jardim! Data show Sempre que vou falar em algum lugar, o pessoal técnico me pergunta, com antecedência, se vou usar data show. Se você não sabe, data show é uma expressão americana. Falar em inglês é mais avançado tecnologicamente. Show que dizer “mostrar”. E data que dizer “dados”. Trata-se de um artifício para mostrar dados, que são projetados em uma tela numa sala escura. Acho que o data show pode ser útil para mostrar dados. Mas o uso que dele se faz é horrível: os palestrantes o usam para projetar na tela os itens ou esboço da sua fala, eliminando dela qualquer surpresa, pois é claro que os ouvintes, de saída, leem o esboço até o fim. É como contar o fim da piada no início... Apagam-se as luzes, o palestrante e os ouvintes olham todos para a tela, e ele vai falando. Ninguém presta atenção. Mas todos acham que usar data show é prova de ser avançado, tecnologicamente. Quem não usa é atrasado. Quem leva suas notas num caderninho é como alguém que anda de carro de boi num mundo de Fórmula Um. Assim vão os palestrantes, todos com seus laptops, para a sessão de cineminha sem graça. Falando sobre isso, uma mulher que trabalha num firma promotora de eventos contou-me qual a maior vantagem dos data show, uma coisa em que eu não havia pensado: com as luzes apagadas, longe do olhar do palestrante, os ouvintes podem dormir à vontade. Contou-me de uma ocasião em que um homem dormiu e roncou tão alto que chegou a perturbar palestrante e ouvintes. Todo mundo se pôs a rir. Barulho de ronco é muito divertido... Mas ela foi obrigada a tomar providências. Tinha de fazer algo para pôr fim aos roncos. E o que ela fez, sádica e humoristicamente, foi colocar um microfone perto da boca do roncador. Aí ele acordou-se a si mesmo. Habilidades excepcionais Antigamente se usava chamar de “excepcionais” as pessoas deficientes. De fato, elas são exceções, em meio à dita normalidade. Hoje essa palavra não é mais usada. Mas eu gosto dela na expressão “habilidades excepcionais”. Foi criada por um empresário do Paraná para se referir às habilidades excepcionais que os

dos pássaros. Fico imóvel. Lentamente se acalma – imagino eu! – o medo do<br />

pássaro e o meu medo de causar medo. Respiro melhor. Deixo o galho voltar ao<br />

seu lugar. Voltarei amanhã. Hoje, trago comigo uma alegria: os pássaros fizeram<br />

um ninho no meu jardim”. Lembrei-me desse parágrafo porque estou recebendo<br />

visitas regulares de um beija-flor e de uma curruíra. Minha alegria: quem sabe eles<br />

farão ninhos no meu jardim!<br />

Data show<br />

Sempre que vou falar em algum lugar, o pessoal técnico me pergunta, com<br />

antecedência, se vou usar data show. Se você não sabe, data show é uma<br />

expressão americana. Falar em inglês é mais avançado tecnologicamente. Show<br />

que dizer “mostrar”. E data que dizer “dados”. Trata-se de um artifício para mostrar<br />

dados, que são projetados em uma tela numa sala escura. Acho que o data show<br />

pode ser útil para mostrar dados. Mas o uso que dele se faz é horrível: os<br />

palestrantes o usam para projetar na tela os itens ou esboço da sua fala,<br />

eliminando dela qualquer surpresa, pois é claro que os ouvintes, de saída, leem o<br />

esboço até o fim. É como contar o fim da piada no início... Apagam-se as luzes, o<br />

palestrante e os ouvintes olham todos para a tela, e ele vai falando. Ninguém<br />

presta atenção. Mas todos acham que usar data show é prova de ser avançado,<br />

tecnologicamente. Quem não usa é atrasado. Quem leva suas notas num<br />

caderninho é como alguém que anda de carro de boi num mundo de Fórmula Um.<br />

Assim vão os palestrantes, todos com seus laptops, para a sessão de cineminha<br />

sem graça. Falando sobre isso, uma mulher que trabalha num firma promotora de<br />

eventos contou-me qual a maior vantagem dos data show, uma coisa em que eu<br />

não havia pensado: com as luzes apagadas, longe do olhar do palestrante, os<br />

ouvintes podem dormir à vontade. Contou-me de uma ocasião em que um homem<br />

dormiu e roncou tão alto que chegou a perturbar palestrante e ouvintes. Todo<br />

mundo se pôs a rir. Barulho de ronco é muito divertido... Mas ela foi obrigada a<br />

tomar providências. Tinha de fazer algo para pôr fim aos roncos. E o que ela fez,<br />

sádica e humoristicamente, foi colocar um microfone perto da boca do roncador. Aí<br />

ele acordou-se a si mesmo.<br />

Habilidades excepcionais<br />

Antigamente se usava chamar de “excepcionais” as pessoas deficientes. De fato,<br />

elas são exceções, em meio à dita normalidade. Hoje essa palavra não é mais<br />

usada. Mas eu gosto dela na expressão “habilidades excepcionais”. Foi criada por<br />

um empresário do Paraná para se referir às habilidades excepcionais que os

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