Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves
meu apartamento, a despeito do jardim que a Raquel, minha filha, pôs na varanda. Aventei a hipótese de que é porque moro no oitavo andar, talvez seja altura demais. Guimarães Rosa diz que, no sertão, só há duas alturas: altura de urubu ir e altura de urubu não ir. Fiquei pensando que, aqui no oitavo andar, só os urubus. A crônica saiu num domingo. Na segunda-feira, ao chegar em casa do trabalho no final do dia, lá estava, na sala, atendendo à minha queixa, um beija-flor empoleirado no lustre. O bichinho se assustou. Como se sabe, os homens são os seres que perderam a confiança dos pássaros. Ele se pôs a voar de um lado para outro, desorientado, sem saber onde estava a saída. Tentei pegá-lo. Inutilmente. Aí ele se refugiou no banheiro. Fechei a porta, subi numa cadeira e finalmente o segurei com palavras tranquilizantes. Ele não acreditou e até deixou várias penas na minha mão. Desci da cadeira, fui até a varanda e o soltei. Ele partiu como uma flecha. Ah! Como me senti feliz! Pois, no dia seguinte, a coisa se repetiu: não com o beija-flor, mas com uma curruíra. Ela não entrou no apartamento, mas ficou saltitando na minha mini-imitação dos jardins suspensos da Babilônia. Peguei as peninhas do beija-flor, azuis, amarrei-as com um fio e as pendurei no bambu do jardim, como mensagem de paz. Quero que os pássaros confiem em mim. Vocês não concordam comigo que o fato de um beija-flor e uma curruíra terem me visitado no meu apartamento é prova cabal de que leem jornal? Por que é que foram aparecer justo no dia seguinte ao da minha queixa? E fiquei feliz por saber que eles leem o que eu escrevo... Ninho Gaston Bachelard é um homem que amo pela erudição, simplicidade e poesia. Erudição e simplicidade, que coisa rara! A erudição de Bachelard está sempre escondida, para não atrapalhar. Erudição escancarada é sempre despudorada, pornográfica, ofensiva. A poética do espaço: esse é o título que deu a um dos seus livros. Poética do espaço? O espaço fica poético quando um homem o modela. Quem constrói uma casa faz um poema. Por isso enchemos as casas de plantas, de quadros, de música, de livros. E que dizer da poética das gavetas, dos cofres e armários? Ah! Quanta poesia as gavetas podem conter, especialmente aquelas que são trancadas a chave! A concha, casa assombrosa dos moluscos, os cantos, a imensidão íntima: todos esses espaços estão cheios de poesia. Faz uns dias, olhando o jardim que minha filha Raquel plantou na pequena varanda do meu apartamento, lembrei--me de um parágrafo seu que me comoveu: “Ergo suavemente um galho; um pássaro está ali chocando os ovos. Não levanta voo. Somente estremece um pouco. Tremo por fazê-lo tremer. Tenho medo que o pássaro que choca saiba que sou um homem, o ser que deixou de ter a confiança
dos pássaros. Fico imóvel. Lentamente se acalma – imagino eu! – o medo do pássaro e o meu medo de causar medo. Respiro melhor. Deixo o galho voltar ao seu lugar. Voltarei amanhã. Hoje, trago comigo uma alegria: os pássaros fizeram um ninho no meu jardim”. Lembrei-me desse parágrafo porque estou recebendo visitas regulares de um beija-flor e de uma curruíra. Minha alegria: quem sabe eles farão ninhos no meu jardim! Data show Sempre que vou falar em algum lugar, o pessoal técnico me pergunta, com antecedência, se vou usar data show. Se você não sabe, data show é uma expressão americana. Falar em inglês é mais avançado tecnologicamente. Show que dizer “mostrar”. E data que dizer “dados”. Trata-se de um artifício para mostrar dados, que são projetados em uma tela numa sala escura. Acho que o data show pode ser útil para mostrar dados. Mas o uso que dele se faz é horrível: os palestrantes o usam para projetar na tela os itens ou esboço da sua fala, eliminando dela qualquer surpresa, pois é claro que os ouvintes, de saída, leem o esboço até o fim. É como contar o fim da piada no início... Apagam-se as luzes, o palestrante e os ouvintes olham todos para a tela, e ele vai falando. Ninguém presta atenção. Mas todos acham que usar data show é prova de ser avançado, tecnologicamente. Quem não usa é atrasado. Quem leva suas notas num caderninho é como alguém que anda de carro de boi num mundo de Fórmula Um. Assim vão os palestrantes, todos com seus laptops, para a sessão de cineminha sem graça. Falando sobre isso, uma mulher que trabalha num firma promotora de eventos contou-me qual a maior vantagem dos data show, uma coisa em que eu não havia pensado: com as luzes apagadas, longe do olhar do palestrante, os ouvintes podem dormir à vontade. Contou-me de uma ocasião em que um homem dormiu e roncou tão alto que chegou a perturbar palestrante e ouvintes. Todo mundo se pôs a rir. Barulho de ronco é muito divertido... Mas ela foi obrigada a tomar providências. Tinha de fazer algo para pôr fim aos roncos. E o que ela fez, sádica e humoristicamente, foi colocar um microfone perto da boca do roncador. Aí ele acordou-se a si mesmo. Habilidades excepcionais Antigamente se usava chamar de “excepcionais” as pessoas deficientes. De fato, elas são exceções, em meio à dita normalidade. Hoje essa palavra não é mais usada. Mas eu gosto dela na expressão “habilidades excepcionais”. Foi criada por um empresário do Paraná para se referir às habilidades excepcionais que os
- Page 2 and 3: DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A
- Page 4 and 5: Copyright © 2008, Rubem Alves Revi
- Page 6: Sumário Caleidoscópio Amor Beleza
- Page 9 and 10: Ostra feliz não faz pérola Ostras
- Page 11 and 12: outras. Acusaram-me de corruptor da
- Page 13 and 14: que é que o professor que escreveu
- Page 15 and 16: lindo casal de brasileiros que fazi
- Page 17 and 18: quantidade de ideias que eu colocav
- Page 19 and 20: ao mundo dos grandes. Você já é
- Page 21 and 22: uma carta imediatamente. O conteúd
- Page 23: num país estrangeiro. Carimbo de P
- Page 27 and 28: Patativa do Assaré Que homem extra
- Page 29 and 30: infância. Os poetas, somente os po
- Page 31 and 32: imaginar um público que coma sempr
- Page 33 and 34: isto é, passou nos exames. O que
- Page 35 and 36: Sem inveja “O tico-tico não se r
- Page 37 and 38: que se encontram fora do controle d
- Page 39 and 40: imaginava máquinas de todos os tip
- Page 41 and 42: ela não quer ouvir é grosseria. P
- Page 43 and 44: minha infância. Fui à farmácia,
- Page 45 and 46: preferência. Eles param para que o
- Page 47 and 48: pessoa mais poderosa se valha de su
- Page 49 and 50: Confissão Escrevi um texto de elog
- Page 51 and 52: especial, me deixou feliz. Porque e
- Page 53 and 54: minha juventude, os médicos eram d
- Page 55 and 56: como chegou. Sua chegada foi notíc
- Page 57 and 58: efeições! Com a técnica da comid
- Page 60 and 61: Amor
- Page 62 and 63: não é o que elas sentem. É o ato
- Page 64 and 65: madrugada. Mais que prazer, é prec
- Page 66 and 67: Como o seio Somos amantes muito ant
- Page 68: começa a falar sobre si até que a
- Page 71 and 72: Moça com brinco de pérolas ... é
- Page 73 and 74: Tornei a ouvir-te quando te ouvi...
dos pássaros. Fico imóvel. Lentamente se acalma – imagino eu! – o medo do<br />
pássaro e o meu medo de causar medo. Respiro melhor. Deixo o galho voltar ao<br />
seu lugar. Voltarei amanhã. Hoje, trago comigo uma alegria: os pássaros fizeram<br />
um ninho no meu jardim”. Lembrei-me desse parágrafo porque estou recebendo<br />
visitas regulares de um beija-flor e de uma curruíra. Minha alegria: quem sabe eles<br />
farão ninhos no meu jardim!<br />
Data show<br />
Sempre que vou falar em algum lugar, o pessoal técnico me pergunta, com<br />
antecedência, se vou usar data show. Se você não sabe, data show é uma<br />
expressão americana. Falar em inglês é mais avançado tecnologicamente. Show<br />
que dizer “mostrar”. E data que dizer “dados”. Trata-se de um artifício para mostrar<br />
dados, que são projetados em uma tela numa sala escura. Acho que o data show<br />
pode ser útil para mostrar dados. Mas o uso que dele se faz é horrível: os<br />
palestrantes o usam para projetar na tela os itens ou esboço da sua fala,<br />
eliminando dela qualquer surpresa, pois é claro que os ouvintes, de saída, leem o<br />
esboço até o fim. É como contar o fim da piada no início... Apagam-se as luzes, o<br />
palestrante e os ouvintes olham todos para a tela, e ele vai falando. Ninguém<br />
presta atenção. Mas todos acham que usar data show é prova de ser avançado,<br />
tecnologicamente. Quem não usa é atrasado. Quem leva suas notas num<br />
caderninho é como alguém que anda de carro de boi num mundo de Fórmula Um.<br />
Assim vão os palestrantes, todos com seus laptops, para a sessão de cineminha<br />
sem graça. Falando sobre isso, uma mulher que trabalha num firma promotora de<br />
eventos contou-me qual a maior vantagem dos data show, uma coisa em que eu<br />
não havia pensado: com as luzes apagadas, longe do olhar do palestrante, os<br />
ouvintes podem dormir à vontade. Contou-me de uma ocasião em que um homem<br />
dormiu e roncou tão alto que chegou a perturbar palestrante e ouvintes. Todo<br />
mundo se pôs a rir. Barulho de ronco é muito divertido... Mas ela foi obrigada a<br />
tomar providências. Tinha de fazer algo para pôr fim aos roncos. E o que ela fez,<br />
sádica e humoristicamente, foi colocar um microfone perto da boca do roncador. Aí<br />
ele acordou-se a si mesmo.<br />
Habilidades excepcionais<br />
Antigamente se usava chamar de “excepcionais” as pessoas deficientes. De fato,<br />
elas são exceções, em meio à dita normalidade. Hoje essa palavra não é mais<br />
usada. Mas eu gosto dela na expressão “habilidades excepcionais”. Foi criada por<br />
um empresário do Paraná para se referir às habilidades excepcionais que os