Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

19.10.2015 Views

interessam. Dão-me, ao contrário, um grande cansaço. Elas pensam que estou ali na cama. Não sabem que já estou longe, dentro da minha canoa, navegando no grande rio, rumo à terceira margem. Mas o meu tempo é curto e não posso desperdiçá-lo ouvindo banalidades. Contaram-me de um teólogo místico que teve um tumor no cérebro. O médico lhe disse a verdade: ‘O senhor tem mais seis meses de vida...’. Aí ele se virou para sua mulher e disse: ‘Chegou a hora das liturgias do morrer. Quero ficar só com você. Leremos juntos os poemas e ouviremos as músicas do morrer e do viver. A morte é o acorde final dessa sonata que é a vida. Toda sonata tem de terminar. Tudo o que é perfeito deseja morrer. Vida e morte se pertencem. E não quero que essa solidão bonita seja perturbada por pessoas que têm medo de olhar para a morte. Quero a companhia de uns poucos amigos que conversarão comigo sem dissimulações. Ou somente ficarão em silêncio’. Enquanto pude, li os poetas. Nesses dias eles têm sido os meus companheiros. Seus poemas conversam comigo. Os religiosos não me ajudam. Eles nada sabem sobre poesia. O que pensam saber são coisas do outro mundo. Mas o outro mundo não me interessa. Não vou gastar o meu tempo pensando nele. Se Deus existe, então não há por que me preocupar com o outro mundo, porque Deus é amor. Se Deus não existe então não há razão para me preocupar com o outro mundo, porque ele não existe e nada me faltará se eu mesmo faltar. Ah! Como seria bom se as pessoas que me amam lessem os poemas de que gosto. Então eu sentiria a presença de Deus. Ouvir música e ler poesia são, para mim, as supremas manifestações do divino. A consciência da proximidade da morte trouxe lucidez aos meus sentimentos. Eles ficaram simples e claros. Neste momento, o que enche a minha alma é a tristeza. A vida está cheia de tantas coisas boas! Não quero partir... Acho que o nome dessa tristeza é saudade. Já estou com saudades deste mundo... Um amigo me contou que sua filha de dois anos o acordou pela manhã e lhe perguntou: ‘Papai, quando você morrer você vai sentir saudades?’. Foi o jeito que ela teve de dizer: ‘Papai, quando você morrer eu vou sentir saudades’. Na cama, o dia todo fico a meditar: ‘Nas escolas ensinam-se tantas coisas inúteis que não servem para nada. Mas nada se ensina sobre o morrer’. Me diga, doutor: O que lhe ensinaram na escola de medicina sobre o morrer? Sei que lhe ensinaram muito sobre a morte como um fenômeno biológico. Mas o que lhe ensinaram sobre a morte como uma experiência humana? Para isso seria necessário que os médicos tivessem lido os poetas. Os poetas foram lidos como parte do seu currículo? Na escola de medicina nada lhe ensinaram sobre o morrer humano porque ele não pode ser dito com a linguagem da ciência. A ciência só lida com generalidades. Mas a morte de uma pessoa é um evento único, nunca houve e nunca haverá outro igual. Minha morte será única no universo! Uma estrela vai se apagar. Os remédios que o senhor receita, nesse ponto, são inúteis e o senhor sabe disso. O senhor os

eceita como desencargo de consciência. Na verdade, o senhor está medicando os meus parentes. São ilusões para manter neles acesa a chama da esperança. Mas há um momento da vida em que é preciso perder a esperança. Abandonada a esperança, a luta cessa e vem então a paz. Mas há algo que os seus remédios podem fazer. Não quero morrer com dor. Nesse ponto, é para isso que serve a ciência: para me tirar a dor. Muitos médicos se enchem de escrúpulos por medo de que os sedativos matem o doente. Preferem deixá-lo sofrendo a fim de manter limpa e sem pecado sua própria consciência. Com isso, eles transformam o fim harmonioso da melodia que é a vida num acorde de gritos desafinados. Somos humanos apenas enquanto brilha em nós a esperança da alegria. Quando a possibilidade de alegria se vai, é porque a vida humana se foi. Este é o meu último pedido: quero que minha sonata termine bonita e em paz... E agora, doutor, me responda: Será que eu saio desta? Ficarei feliz se o senhor não me der aquela resposta boba mas se assentar ao lado da minha cama e me disser: ‘Você está com medo de morrer. Eu também tenho medo de morrer...’. Então conversaremos sobre o medo que mora em nós dois que vamos morrer...” Oração pelos que vão morrer “Ó tu, Senhor da eternidade, nós que estamos condenados a morrer elevamos nossas almas a ti à procura de forças, porque a Morte passou por nós na multidão dos homens e nos tocou, e sabemos que em alguma curva do nosso caminho ela estará nos esperando para nos pegar pela mão e nos levar... não sabemos para onde. Nós te louvamos porque para nós ela não é mais uma inimiga, e sim um grande anjo teu, o único a poder abrir, para alguns de nós, a prisão de dor e de sofrimento e nos levar para os espaços imensos de uma nova vida. Mas somos como crianças, com medo do escuro e do desconhecido, e tememos deixar esta vida que é tão boa, e os nossos amados, que nos são tão queridos. Dá-nos um coração valente para que possamos caminhar por essa estrada com a cabeça levantada e um sorriso no rosto. Que possamos trabalhar alegremente até o fim e amar os nossos queridos com ternura ainda maior, porque os dias do amor são curtos. Sobre ti lançamos a carga mais pesada que paralisa nossa alma: o medo que temos de deixar aqueles que amamos, os quais teremos de deixar desabrigados num mundo egoísta. Nós te agradecemos porque experimentamos o gosto bom da vida. Somos-te gratos por cada hora de nossas vidas, por tudo o que nos coube das alegrias e lutas dos nossos irmãos, pela sabedoria que ganhamos e será sempre nossa. Se nos sentirmos abatidos com a solidão, sustenta-nos com a tua companhia. Quando todas as vozes do amor ficarem distantes e se forem, teus braços eternos ainda estarão conosco. Tu és o Pai dos nossos espíritos. De ti

interessam. Dão-me, ao contrário, um grande cansaço. Elas pensam que estou ali<br />

na cama. Não sabem que já estou longe, dentro da minha canoa, navegando no<br />

grande rio, rumo à terceira margem. Mas o meu tempo é curto e não posso<br />

desperdiçá-lo ouvindo banalidades. Contaram-me de um teólogo místico que teve<br />

um tumor no cérebro. O médico lhe disse a verdade: ‘O senhor tem mais seis<br />

meses de vida...’. Aí ele se virou para sua mulher e disse: ‘Chegou a hora das<br />

liturgias do morrer. Quero ficar só com você. Leremos juntos os poemas e<br />

ouviremos as músicas do morrer e do viver. A morte é o acorde final dessa sonata<br />

que é a vida. Toda sonata tem de terminar. Tudo o que é perfeito deseja morrer.<br />

Vida e morte se pertencem. E não quero que essa solidão bonita seja perturbada<br />

por pessoas que têm medo de olhar para a morte. Quero a companhia de uns<br />

poucos amigos que conversarão comigo sem dissimulações. Ou somente ficarão em<br />

silêncio’. Enquanto pude, li os poetas. Nesses dias eles têm sido os meus<br />

companheiros. Seus poemas conversam comigo. Os religiosos não me ajudam. Eles<br />

nada sabem sobre poesia. O que pensam saber são coisas do outro mundo. Mas o<br />

outro mundo não me interessa. Não vou gastar o meu tempo pensando nele. Se<br />

Deus existe, então não há por que me preocupar com o outro mundo, porque Deus<br />

é amor. Se Deus não existe então não há razão para me preocupar com o outro<br />

mundo, porque ele não existe e nada me faltará se eu mesmo faltar. Ah! Como<br />

seria bom se as pessoas que me amam lessem os poemas de que gosto. Então eu<br />

sentiria a presença de Deus. Ouvir música e ler poesia são, para mim, as supremas<br />

manifestações do divino. A consciência da proximidade da morte trouxe lucidez aos<br />

meus sentimentos. Eles ficaram simples e claros. Neste momento, o que enche a<br />

minha alma é a tristeza. A vida está cheia de tantas coisas boas! Não quero<br />

partir... Acho que o nome dessa tristeza é saudade. Já estou com saudades deste<br />

mundo... Um amigo me contou que sua filha de dois anos o acordou pela manhã e<br />

lhe perguntou: ‘Papai, quando você morrer você vai sentir saudades?’. Foi o jeito<br />

que ela teve de dizer: ‘Papai, quando você morrer eu vou sentir saudades’. Na<br />

cama, o dia todo fico a meditar: ‘Nas escolas ensinam-se tantas coisas inúteis que<br />

não servem para nada. Mas nada se ensina sobre o morrer’. Me diga, doutor: O que<br />

lhe ensinaram na escola de medicina sobre o morrer? Sei que lhe ensinaram muito<br />

sobre a morte como um fenômeno biológico. Mas o que lhe ensinaram sobre a<br />

morte como uma experiência humana? Para isso seria necessário que os médicos<br />

tivessem lido os poetas. Os poetas foram lidos como parte do seu currículo? Na<br />

escola de medicina nada lhe ensinaram sobre o morrer humano porque ele não<br />

pode ser dito com a linguagem da ciência. A ciência só lida com generalidades. Mas<br />

a morte de uma pessoa é um evento único, nunca houve e nunca haverá outro<br />

igual. Minha morte será única no universo! Uma estrela vai se apagar. Os remédios<br />

que o senhor receita, nesse ponto, são inúteis e o senhor sabe disso. O senhor os

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