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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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ocorrido. Do outro, ele estava proibido de fazê-lo usando o telégrafo, por causa da<br />

dita norma. Mas ele encontrou uma solução inteligente. Por ela deveria ter sido<br />

promovido a telegrafista-chefe. Foi ao telégrafo e mandou a mensagem: “Quero<br />

comunicar à chefia que faleci esta manhã”. E assinou o nome do telegrafista-chefe.<br />

O direito de decidir sobre a própria vida<br />

Todos saem comovidos do filme Menina de ouro. O assunto é o direito que tem<br />

uma pessoa de tomar a decisão de pôr um fim à sua vida quando a vida perdeu o<br />

sentido. Os diálogos com o padre, no filme, são terríveis. O padre nada sente da<br />

vida. Ele vive num mundo de regras que teólogos lógicos deduziram. Identifiqueime<br />

com a moça. Se estivesse na situação dela, eu não desejaria continuar a viver.<br />

E identifiquei-me com o seu treinador, Clint Eastwood. Eu teria feito o que ele fez.<br />

Esse assunto vai crescendo dentro de mim à medida que a vida se escoa. Amo a<br />

vida absurdamente. Meu epitáfio deverá ser: “Ele teve um caso de amor com a<br />

vida...”. Mas a vida humana não se mede por batidas cardíacas ou ondas cerebrais.<br />

A vida humana só é humana enquanto existe a possibilidade de beleza e riso. Sem<br />

beleza e sem risos a vida humana acabou. O que resta é apenas um corpo que<br />

deseja morrer. Hoje já se está dando atenção ao que se chama “terapia paliativa”.<br />

“Paliativo” vem do latim pallium, capa, cobrir, esconder. A terapia paliativa entra<br />

em cena quando se sabe que a batalha está perdida. Não há mais sentido para os<br />

“recursos heroicos”. Quantas quimioterapias sabidamente inúteis deixariam de ser<br />

feitas! Quanto sofrimento seria poupado! O objetivo da terapia paliativa é tornar o<br />

mais confortável possível a despedida da pessoa que vai morrer. Há de se viver<br />

bem. Há de se morrer bem. A ideia de que a medicina é uma luta contra a morte<br />

está errada. A medicina é uma luta pela vida boa, da qual a morte faz parte.<br />

Delicadeza<br />

Eu estava nos Estados Unidos com a família, como professor visitante do Union<br />

Theological Seminary, Nova York. Era novembro. Um telefonema do Brasil nos deu<br />

a triste notícia: meu sogro havia morrido num acidente automobilístico. A notícia<br />

correu, mas estávamos mergulhados na dor e na solidão, no pequeno apartamento<br />

onde vivíamos. Nada podíamos fazer. Aí, por alguma razão, abrimos a porta de<br />

entrada. No chão se encontrava um buquê de flores. Devia ter estado lá por<br />

bastante tempo. A pessoa que o trouxera não apertara o botão da campainha.<br />

Simplesmente deixara o buquê ali, silenciosamente, e se fora. O envelope tinha o<br />

nome da minha esposa. No cartão havia uma única frase, curtíssima: “Não quis<br />

perturbar a sua dor”. Já faz muitos anos. Mas não me esqueci e não me esquecerei.

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