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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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médica. <strong>Faz</strong>er isso seria uma crueldade que não se pode admitir.<br />

Por quê?<br />

Haviam acabado de jantar. Pai velho e filho médico vão para a sala de estar, para<br />

conversar. Conversa mansa, gostosa... De repente, o filho nota que o pai ficou<br />

silencioso, não mais reagia às suas palavras, a cabeça pendida para o lado...<br />

Médico, ele compreendeu imediatamente: seu pai morrera. Fez então aquilo que<br />

lhe haviam ensinado, que fazia parte dos seus automatismos médicos: deitou o pai<br />

no chão, fez respiração boca a boca, massagem cardíaca, lutou contra a morte,<br />

como é dever dos médicos. O coração recomeçou a bater. A respiração voltou. Seu<br />

pai voltou a viver. Mas houve sequelas. Ele perdeu o controle dos seus esfíncteres e<br />

ficou obrigado às humilhações e incômodos do fraldão. Assentado na sua cadeira,<br />

ele olhava o filho e lhe dizia: “Por que você fez aquilo? Eu morri tão feliz, em meio<br />

à nossa conversa... Mas você me trouxe de volta e agora estou aqui. Por que você<br />

fez aquilo, filho?”.<br />

Necrologia<br />

Era a página de necrologia. Havia fotografias dos mortos enquanto vivos. Entre<br />

elas, a de uma linda menina. Teria uns dez anos, talvez. Era o convite para uma<br />

missa, por ocasião do dia em que seria o seu aniversário. Meu coração ficou junto<br />

ao coração dos pais. Imaginei-me na situação deles, a dor pela perda de uma filha<br />

menina ainda. Mas houve uma afirmação que não entendi. Dizia-se que a missa<br />

seria “em sufrágio de sua alma”. Eu não sei o que “sufrágio” quer dizer. A alma da<br />

menininha estaria em alguma fila de espera no outro mundo? Deus não abraça as<br />

crianças? Há débitos pendentes? Não estava no céu? Acho que não. Porque se<br />

estivesse no céu seria só alegria. Nenhum sufrágio seria necessário. Tenho uma<br />

enorme dificuldade em entender as coisas das religiões.<br />

Solução criativa<br />

Meu irmão foi engenheiro-chefe da Rede Ferroviária Federal, em Minas. E havia<br />

uma norma relativa ao uso dos telégrafos: somente os telegrafistas-chefes tinham<br />

permissão para telegrafar. Imagino que essa norma foi escrita para impedir abusos,<br />

namoro pelo telégrafo, recados pelo telégrafo. Pois um telegrafista-chefe e seu<br />

ajudante se encontravam numa estaçãozinha perdida na serra. E o telegrafistachefe<br />

teve um ataque de coração e morreu. O ajudante ficou numa situação<br />

impossível. De um lado, ele tinha de avisar o escritório central rapidinho do

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