Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves
assassinou Eliot. Escreveu: “a liberdade íntima para o desejo prático...”. Desejo prático é o desejo de fazer coisas. Nunca havia passado pela cabeça do revisor, certamente um ativista político, que exista na vida um delicioso momento de vagabundagem. Quando as mãos nada têm a fazer por obrigação. É nesse momento de vagabundagem que as coisas que haviam permanecido sufocadas durante a vida inteira pela obrigação prática de fazer começam a fazer o que querem. Max Weber confessou que suas melhores ideias lhe vinham quando caminhava distraído pelas ruas de Heidelberg. As ideias veem quando não as estamos buscando. E, quando aparecem, ficamos surpresos. “Eu não procuro, eu encontro”, dizia Picasso. A velhice é um desses momentos. Os velhos não têm obrigação de fazer coisa alguma. Nada se espera deles. Tempo da aposentadoria. A poesia começou a brotar da Cora Coralina depois dos setenta anos. Antes disso, a poesia não apareceu. Certamente ela estava muito ocupada com as obrigações de uma dona de casa. Meu primo Paulo Berutti passou a vida inteira fazendo as coisas que sua profissão de engenheiro agrônomo o obrigava a fazer. Aposentado, veio a vagabundagem. Perguntou-se: “Que vou fazer?”. Foi então que surgiu das funduras do esquecimento o tapeceiro que ele fora desde sempre. Suas tapeçarias maravilhosas viajaram o mundo. E que dizer do professor Avelino Rodrigues de Oliveira, que durante sua vida profissional se dedicou de maneira competente a ensinar os mistérios da bioquímica aos seus alunos? Aposentou-se e o pintor que morara nele desde que nascera floresceu. Ele pinta quadros maravilhosos. A profissão é, frequentemente, o túmulo dos artistas. Hans Born Aconteceu com o meu amigo Hans Born, alemão de nascimento, naturalizado “mineirro”. Aposentou-se. Mudou-se de São Paulo para Caldas com a Tomiko, sua esposa. Tomiko é aquela que, quando completei sessenta anos, me disse que chegara a hora de eu comprar um blazer vermelho, a cor dos deuses, a quem tudo é permitido. Comprei, está no meu guarda-roupas, mas tenho vergonha de usá-lo. Livre da compulsão prática, o Hans viu nascer dentro dele um artesão apaixonado pelas madeiras. Artesão menino que gosta de brincar. As madeiras são os seus brinquedos. Acaba de fazer um painel com 35 cubos de madeiras diferentes que podem ser identificadas pela cor, pelos desenhos, pelo perfume. Com as madeiras, ele faz quebra-cabeças fantásticos de precisão milimétrica, inspirados nos desenhos doidos de Escher. Não servem para nada. Não têm nenhuma função prática. Servem para brincar. Mas só o Hans brinca três vezes. Brinca planejando o que vai fazer. Brinca fazendo o que planejou, serrando a madeira com serras da espessura de uma lâmina de gilete. Brinca uma terceira vez montando os quebra-cabeças...
Quando se está livre da compulsão prática, a criança que foi reprimida pelo adulto salta lá de dentro e põe-se a fazer artes, a fazer arte. Os velhos são morada de crianças. “Os grandes silêncios da alma das crianças!”¸ escreveu Miguel de Unamuno. “Os grandes silêncios da alma dos anciãos...” Crianças e velhos estão assim tão próximos uns dos outros porque ambos estão livres da compulsão prática. Tenho uma inveja boa do Hans. O seu rigor. A sua paciência. A ordem e limpeza da sua oficina. Mas o que o Hans gostaria mesmo de fazer, eu penso, é ensinar. Ensinar as crianças a ser crianças. Ensinar os adultos a ser crianças. E o que ele quer fazer, sem ter que fazer, por puro prazer, é transformar as madeiras em brinquedos, em entidades dotadas de alma. Não conheço ninguém que se pareça com ele, o Hans. Ele é uma caixa de surpresas. Surpresas que estiveram guardadas por muitos anos, os anos de suas atividades profissionais práticas. Até que chegou o momento feliz da liberdade da obrigação prática... Causa mortis Estou curioso. Pergunto aos médicos. Será que, num atestado de óbito se pode escrever, na causa mortis, simplesmente “velhice”? Se não pode, acho que deveria poder. Explico. Há várias causas para explicar o fato de a chama da vela ter-se apagado: uma lufada de vento, alguém a apagou, faltou oxigênio, pingou água no pavio... Nesses casos, houve uma causa mortis exterior que produziu o apagamento da chama. Mas há também o caso daquela vela que vai queimando, vai queimando, até que a cera acaba e o pavio não tem outra alternativa a não ser apagar. A vida não será assim? Há golpes exteriores que lhe põem um fim. Aí faz sentido dizer: causa mortis. Mas há essa situação em que a morte acontece porque a vida gastou-se toda. Não houve uma causa para a morte. A vida simplesmente acabou... Causa mortis: velhice. Inutilidade À minha frente, um auditório cheio de idosos, cabelos brancos, calvas, rugas, desejoso de viver a vida. Eu, muito mais novo que eles (isso aconteceu há vinte anos...), comecei: “Senhoras e senhores: Então vocês chegaram finalmente à idade em que podem se dar ao luxo de ser totalmente inúteis...”. Estabeleceu-se a confusão. Protestos. Serenados os ânimos, continuei: “Uma sonata de Mozart é inútil, não serve para nada. Mas uma vassoura é muito útil. Vocês preferem a companhia das vassouras à companhia da música de Mozart... Uma poesia do Fernando Pessoa não serve para nada, é inútil, mas o papel higiênico é muito útil. Vocês acham o papel higiênico mais importante que a poesia do Fernando
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Quando se está livre da compulsão prática, a criança que foi reprimida pelo adulto<br />
salta lá de dentro e põe-se a fazer artes, a fazer arte. Os velhos são morada de<br />
crianças. “Os grandes silêncios da alma das crianças!”¸ escreveu Miguel de<br />
Unamuno. “Os grandes silêncios da alma dos anciãos...” Crianças e velhos estão<br />
assim tão próximos uns dos outros porque ambos estão livres da compulsão<br />
prática. Tenho uma inveja boa do Hans. O seu rigor. A sua paciência. A ordem e<br />
limpeza da sua oficina. Mas o que o Hans gostaria mesmo de fazer, eu penso, é<br />
ensinar. Ensinar as crianças a ser crianças. Ensinar os adultos a ser crianças. E o<br />
que ele quer fazer, sem ter que fazer, por puro prazer, é transformar as madeiras<br />
em brinquedos, em entidades dotadas de alma. Não conheço ninguém que se<br />
pareça com ele, o Hans. Ele é uma caixa de surpresas. Surpresas que estiveram<br />
guardadas por muitos anos, os anos de suas atividades profissionais práticas. Até<br />
que chegou o momento feliz da liberdade da obrigação prática...<br />
Causa mortis<br />
Estou curioso. Pergunto aos médicos. Será que, num atestado de óbito se pode<br />
escrever, na causa mortis, simplesmente “velhice”? Se não pode, acho que deveria<br />
poder. Explico. Há várias causas para explicar o fato de a chama da vela ter-se<br />
apagado: uma lufada de vento, alguém a apagou, faltou oxigênio, pingou água no<br />
pavio... Nesses casos, houve uma causa mortis exterior que produziu o<br />
apagamento da chama. Mas há também o caso daquela vela que vai queimando,<br />
vai queimando, até que a cera acaba e o pavio não tem outra alternativa a não ser<br />
apagar. A vida não será assim? Há golpes exteriores que lhe põem um fim. Aí faz<br />
sentido dizer: causa mortis. Mas há essa situação em que a morte acontece porque<br />
a vida gastou-se toda. Não houve uma causa para a morte. A vida simplesmente<br />
acabou... Causa mortis: velhice.<br />
Inutilidade<br />
À minha frente, um auditório cheio de idosos, cabelos brancos, calvas, rugas,<br />
desejoso de viver a vida. Eu, muito mais novo que eles (isso aconteceu há vinte<br />
anos...), comecei: “Senhoras e senhores: Então vocês chegaram finalmente à idade<br />
em que podem se dar ao luxo de ser totalmente inúteis...”. Estabeleceu-se a<br />
confusão. Protestos. Serenados os ânimos, continuei: “Uma sonata de Mozart é<br />
inútil, não serve para nada. Mas uma vassoura é muito útil. Vocês preferem a<br />
companhia das vassouras à companhia da música de Mozart... Uma poesia do<br />
Fernando Pessoa não serve para nada, é inútil, mas o papel higiênico é muito útil.<br />
Vocês acham o papel higiênico mais importante que a poesia do Fernando