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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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obra alguma, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua<br />

serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro”. Comprar<br />

alguma coisa, nem falar. Já contei a história de uma menininha que, numa manhã<br />

de domingo, chorava, pedindo que a mãe lhe comprasse um sorvete. A mãe<br />

respondia firme que não. Um senhor que contemplava a cena teve dó da menina e<br />

quis dar-lhe um sorvete de presente. Mas a menininha respondeu entre soluços:<br />

“Num adianta. Nois, além de ser pobre, é crente”. Domingo as crianças choravam.<br />

Não podiam brincar. Brincar era pecado. Ir ao futebol, nem falar. E nem ouvir rádio.<br />

Os missionários protestantes vieram para o Brasil na segunda metade do século<br />

XIX. O seu programa era bonito: construir escolas, para salvar o povo da<br />

ignorância. Construir hospitais, para salvar o povo das doenças. Construir igrejas,<br />

para salvar o povo do Inferno. Porque, como se sabia, os católicos eram almas<br />

perdidas. Um grupo veio para Campinas. Aí aconteceu a epidemia de febre<br />

amarela, muita gente morreu. Os missionários deixaram a cidade empesteada e se<br />

transferiram para Minas, Patrocínio e Lavras. Em Lavras, quem os protegeu foram<br />

os meus parentes, que não gostavam de padres. Os padres eram atentados contra<br />

a inteligência. Eles eram espíritas, liberais, republicanos, amantes das ciências.<br />

Meu bisavó, doutor Jorge, que tinha uma belíssima propriedade cheia de árvores<br />

(ele era dendrófilo, e chegou a importar mudas para a sua chácara ), vendeu-a aos<br />

missionários por dezoito contos de réis para que lá fizessem uma escola, o Instituto<br />

Gammon, que chegou a gozar de fama pelo Brasil inteiro, nos tempos em que os<br />

pais ricos enviavam seus filhos para receberem educação em internatos. Os líderes<br />

mais notáveis dessa instituição foram o doutor Samuel Gammon e a dona Carlota<br />

Kemper. Há um incidente engraçado ligado à dona Carlota. Um dia, conversando<br />

com uma empregada, notou que esta não tirava os olhos dos seus sapatos.<br />

Perguntada por que olhava tão fixamente para os sapatos da patroa, ela<br />

respondeu, muito encabulada, que queria saber se aquilo que o padre dissera era<br />

verdade. Ele havia afirmado, num sermão, que os protestantes tinham pé de bode.<br />

O doutor Gammon acrescentava às suas funções de educador a função de<br />

pregador. Ia todos os domingos a uma cidadezinha distante oito quilômetros,<br />

Ribeirão Vermelho, celebrar o culto com uma meia dúzia de recém-convertidos.<br />

Para isso ele se valia de um tílburi puxado a cavalo. Domingo, de manhã bem cedo,<br />

um empregado pegava o cavalo no pasto e o atrelava ao tílburi. Dona Carlota,<br />

rigorosa observadora do domingo (diziam que se alguém lhe trouxesse uma carta,<br />

num domingo, ela não a abria...), repreendeu o doutor Gammon: ele estava<br />

transgredindo o mandamento fazendo com que o empregado trabalhasse e fazendo<br />

o mesmo com o cavalo. Não sei se por medo da dona Carlota ou por convicção, o<br />

fato é que daquele dia em diante o doutor Gammon fazia a viagem de ida e volta a<br />

Ribeirão Vermelho a pé... O que deve ter feito muito bem para a sua saúde física e

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