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Mas o comandante resolveu arriscar. Enfiou o avião na nuvem. Chovia forte. Os<br />
raios iluminavam a escuridão. O avião pulava. Um grande silêncio pairou sobre<br />
todos os passageiros. Ninguém conversava. Silêncio medo. Silêncio reza. Com uma<br />
exceção: um menino e uma menina. Os pulos do avião, eles os recebiam com<br />
gargalhadas. Acho que imaginavam que aquilo era uma espécie de montanharussa,<br />
um parque de diversões, muita adrenalina sem nenhum perigo. Acho que<br />
todos rezavam. Uma vez viajei ao lado de um grande mestre de xadrez brasileiro,<br />
monge. Céu azul, sem turbulência, o ronronar macio das turbinas... Mas ele agarrou<br />
um terço e ficou batendo beiço a viagem inteira. Como pode ser isso, que um<br />
grande mestre de xadrez, mente lógica, ao entrar no avião esqueça a lógica e se<br />
transforme em feiticeiro? Acho que ele pensou, ao aterrissar: “Se não fosse por<br />
minha reza...”. Eu estava com muito medo mas não rezava. Acho que não, porque<br />
não acredito. Se rezar adiantasse, aviões não cairiam, porque há sempre alguém<br />
que faz o sinal da cruz quando o avião arranca para a decolagem. Por que caem<br />
aviões? Porque as rezas não foram suficientes? Deus só sustenta os aviões se os<br />
passageiros rezarem? É Deus que mantém o avião lá em cima? Quer dizer que foi<br />
Deus que manteve no ar o avião norte-americano que levou as bombas atômicas<br />
para Hiroshima e Nagasaki? Ele ficou no ar porque os norte-americanos rezaram<br />
mais que os japoneses? Se eu fosse Deus, o destino da fortaleza voadora teria sido<br />
outro... Não rezei. Para não perder o respeito por Deus. Eu não respeitaria um<br />
Deus que só salvasse os homens que constantemente o chamam ao telefone.<br />
<strong>Feliz</strong>mente o próprio comandante se encheu de medo, criou juízo e fez o avião dar<br />
meia-volta, rumo ao céu azul, rumo ao aeroporto de Confins. Juízo na cabeça é<br />
melhor que reza em boca de quem não tem juízo...<br />
Gosto de música erudita<br />
A beleza é inexprimível. Está além das palavras. Por mais que uma pessoa diga “é<br />
belo, é belo”, essas palavras não me fazem sentir o belo. Tente descrever a beleza<br />
do sol poente ou a beleza do sorriso de uma criança. Por mais que você escreva,<br />
suas palavras não me comunicarão nada. Imagine agora uma pessoa que não<br />
gosta de música clássica. Que ela ouça uma música que me fala ao coração, a<br />
Suíte no 1 de Bach, para violoncelo. E ela diga: “Que música mais sem graça!”. Aí<br />
eu fico bravo. Fico bravo com a Suíte de Bach? Não. Fico bravo com aquilo que<br />
alguém disse sobre ela. O que ela disse exprime o que sentiu e pensou ao ouvir a<br />
Suíte no 1. É, na verdade, uma revelação sobre ela mesma. Assim acontece com<br />
Deus... Os teólogos e pregadores tentam dizer o Grande Mistério, o Mar Sem Fim.<br />
São pintores. Eles pintam com palavras o Deus que existe nos seus corações. Quem<br />
lê um livro de teologia tem acesso ao coração do teólogo.