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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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não sobra espaço para os nossos próprios pensamentos tristes.<br />

Patologia<br />

Quem conta é Oliver Sacks, um famoso neurologista. Aconselharia a todos que<br />

lessem os seus livros. São fascinantes porque nos fazem entrar no mundo bizarro<br />

da alma humana. Pois ele foi procurado por um homem que a ele veio contra a<br />

vontade, empurrado por amigos, para lidar com algo estranho em sua forma de ver<br />

as coisas. Sacks relata a primeira entrevista, ele e o homem conversando de<br />

maneira normal, sem que fosse possível notar qualquer coisa que sugerisse alguma<br />

perturbação mental. Mas Sacks ficou intrigado com um sentimento estranho: ele<br />

tinha a impressão de que aquele homem que o encarava de frente não o estava<br />

vendo. Tinha os olhos perfeitos, via tudo, mas não via... Até que ele, Sacks, atinou<br />

com o mistério dos seus olhos: eles viam as partes perfeitamente bem, mas não<br />

eram capazes de juntar as partes num todo significativo. Via as orelhas, a boca, o<br />

nariz, os cabelos – mas os via soltos, sem que se encaixassem para formar um<br />

rosto. Sim, os olhos daquele homem não eram capazes de ver um rosto. Diante de<br />

uma fotografia do seu irmão que lhe foi mostrada com a pergunta “Quem é essa<br />

pessoa?”, ele se pôs imediatamente a descrever as partes da imagem com a maior<br />

precisão. A testa larga, os lábios finos, o nariz ligeiramente achatado, o maxilar...<br />

“Esse maxilar, com esse ângulo me faz pensar... Sabe? Meu irmão tem um maxilar<br />

com um ângulo exatamente igual a esse. Será, por acaso, uma foto do meu<br />

irmão?” Ele foi incapaz de reconhecer o rosto do irmão. Chegou ao irmão através<br />

da geometria: a igualdade dos ângulos do maxilar. “O que é isso?”, Sacks lhe<br />

perguntou, mostrando-lhe uma luva. “Bem, trata-se de um saco maior do qual<br />

saem cinco sacos finos e compridos...” Ele descreveu perfeitamente a luva, mas foi<br />

incapaz de reconhecê-la. Seus olhos só percebiam as partes. O interessante das<br />

patologias é que elas frequentemente não passam de traços comuns das pessoas<br />

ditas normais, aumentados por meio de uma lupa. A patologia, assim, serve-nos<br />

como um espelho. As grandes bizarrices da patologia são nossas pequenas<br />

bizarrices vistas através de um zoom... Como é o caso do homem que assistiu a um<br />

concerto e dele o que mais o impressionou foi a calva do clarinetista... Às vezes eu<br />

tenho a impressão de que a especialização científica pode produzir um efeito<br />

semelhante: os cientistas se tornam especialistas nas partes e as conhecem com<br />

grande precisão. Mas ficam perdidos quando se trata de ver o “rosto” da realidade.<br />

Na verdade, nem mesmo reconhecem o seu próprio rosto quando o veem no<br />

espelho. Essas associações foram provocadas por aquele homem desconhecido que<br />

toma a sopa mas só percebe o lascado na beirada do prato...

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