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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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diferença. As orelhas, os olhos, o focinho, os dentes, os pelos na pata, o cheiro de<br />

corrupção, tudo dizia: “Fuja! Não é a vovozinha! É o lobo!”. Mas Chapeuzinho era<br />

muito burra, muito burrinha mesmo. Como o povão que vê televisão, ela acreditava<br />

na “imagem”. Na estória, os caçadores salvam a tonta. Mas acho que não merecia<br />

ser salva. O lobo era mais inteligente que ela. A burrice não merece ser salva. Essa<br />

estória dá duas lições negativas às crianças. A primeira é que nem sempre é sábio<br />

fazer o que a mãe manda. Uma mãe que manda uma filha por uma floresta onde<br />

havia um lobo só pode ser louca. Maternidade não é garantia de sanidade. A<br />

segunda é uma lição mentirosa: que não importa ser burro porque os caçadores<br />

aparecem no fim para consertar o estrago. Na vida real o fim é outro. O lobo,<br />

juntamente com os caçadores e os produtores de imagem, comem Chapeuzinho<br />

Vermelho, como atestam esses anos de “democracia” no Brasil.<br />

Se começou errado não tem conserto<br />

O destino da democracia se decide no momento da sua fundação. Se os lobos são<br />

eleitos para estabelecer as regras do jogo, será inútil que as ovelhas que os<br />

elegeram berrem depois ao serem transformadas em churrasco. Pois os lobos, que<br />

elas elegeram como seus representantes para fazer as leis, escreveram como lei:<br />

“É direito dos lobos comer ovelhas”. Não existe caso em que os lobos tenham,<br />

democraticamente, aberto mão dos direitos que eles mesmos estabeleceram. As<br />

ovelhas são as culpadas de sua desgraça. Foram elas que, pelo voto, deram poder<br />

aos lobos.<br />

Apesar de você...<br />

No tempo da ditadura havia mais esperança. Era noite e nós sonhávamos sonhos<br />

lindos. Aí ela se foi e os sonhos não se realizaram. Agora é difícil sonhar.<br />

Insônia<br />

Foi no tempo do terror, a ditadura. Eu não conseguia dormir. O medo era grande.<br />

Amigos já tinham sido mortos. Levantei-me, fui até a janela do prédio e olhei. A<br />

cidade dormia. O silêncio era quebrado apenas pelos apitos dos guardas noturnos,<br />

informando os ladrões da sua aproximação. Olhei para o céu estrelado. Pensei que<br />

ele tinha estado lá por bilhões de anos e continuaria a estar lá daqui a bilhões de<br />

anos. Lembrei-me do que um prisioneiro deixou escrito na cela de um campo de<br />

concentração nazista: “Daqui a cem anos tudo isso terá passado”. Com essas<br />

palavras na cabeça, voltei a dormir.

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