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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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num sotaque bonito. Os mineiros da roça, bem como os piracicabanos e os<br />

tatuienses, têm, por causa do sotaque natural, facilidade para falar os erres tortos<br />

dos americanos. E acrescentou: “E falo também alemão!”. Com o meu alemão de<br />

pé quebrado tratei de colocá-lo à prova, para ver se ele não sabia só meia dúzia de<br />

palavras. Que nada! Ele falava mesmo! Seu nome: João Batista Souto, 54 anos,<br />

maître do restaurante do Belo Horizonte Othon Palace. No dia seguinte, ao sair,<br />

deixei na portaria uns livros para ele.<br />

Missa do cadáver<br />

Nos meus anos de professor na Unicamp, conheci uma professora de quem me<br />

tornei um grande amigo: Vilma Clóris de Carvalho. Sua especialidade e prazer era a<br />

neuroanatomia. E até frequentei um dos seus cursos como aluno igual aos outros,<br />

pra valer. O que eu mais admirava na Vilma é uma virtude que está ficando cada<br />

vez mais rara: ela era apaixonada por ensinar. Gostava dos seus alunos. Digo que<br />

a paixão por ensinar está ficando cada vez mais rara porque, nos relatórios de<br />

avaliação que os professores têm de preencher para os órgãos oficiais de controle<br />

burocrático, as atividades de ensino nem mesmo são mencionadas. O que vale são<br />

as pesquisas publicadas em revistas internacionais. Os professores, assim, deixam<br />

de ser professores. Transformam-se em pesquisadores. Os alunos não importam.<br />

Na realidade, atrapalham... Eu, pessoalmente, acho que ensinar é muito mais<br />

importante que pesquisar. Porque é no ensino que se aprende a pensar. E é da<br />

capacidade de pensar que surgem os pesquisadores. Se a pesquisa é um fruto, o<br />

ensino são as sementes que foram plantadas. Sem sementes não há árvores, sem<br />

árvores não há frutos. Pois a Vilma vivia para plantar, vivia a ensinar a pensar. Era<br />

uma verdadeira educadora. Uma das práticas mais comoventes de suas atividades<br />

como professora de anatomia era a “Missa do Cadáver”. Lidando com peças<br />

anatômicas diariamente, o aluno pode se tornar insensível e embrutecido,<br />

esquecido de que aquelas peças um dia foram um corpo que sonhou, sofreu, amou<br />

– alguém como nós. A “Missa do Cadáver” era para que os alunos se lembrassem<br />

das pessoas... Lembro-me de que, numa das missas, sobre a mesa eucarística,<br />

dentro de um recipiente de vidro, havia um coração vermelho. Houve tempo em<br />

que aquele coração batia... O caráter da Vilma marcou os seus alunos. Aposentouse.<br />

Mudou-se para Recife. Escreveu um lindo livro em que aparecem combinadas as<br />

suas memórias de vida – fascinantes! – e o seu trabalho como professora e<br />

pesquisadora: Vivendo sem calendário.<br />

Janucz Korczak

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