Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

19.10.2015 Views

iniciados entendem. Como o doente não sabe o que elas significam, ele fica pensando que vai morrer. No terceiro tipo, o professor e os alunos conversam com o paciente e o chamam pelo nome. “O que é que o senhor acha que tem?” Todo doente tem ideias sobre a sua doença e formas de explicá-la. “O que é que o senhor espera de nós?” As respostas dos doentes são surpreendentes. Lembro-me de um filme em que a visita do segundo tipo estava acontecendo. Os alunos faziam todo tipo de perguntas ao professor. Mas ninguém se dirigia ao doente. Foi então que um dos estudantes, o Robin Williams, levantou a mão e perguntou: “Qual é o nome do paciente?”. Ninguém sabia. Lâmpadas e inteligência Num dos meus momentos de vagabundagem, um pensamento me apareceu que fez uma ligação metafórica entre lâmpadas e inteligências que nunca me havia passado pela cabeça. Tratei, então, de seguir a trilha. As lâmpadas servem para iluminar. Para isso são dotadas de potências de iluminação diferentes. Há lâmpadas de 60 watts, de 100 watts, de 150 watts etc. Qual é a melhor lâmpada? Parece que as de 150 watts são as melhores porque iluminam mais. Também as inteligências servem para iluminar. Tanto assim que se diz “tive uma ideia luminosa!”. E nos gibis, para dizer que um personagem teve uma boa ideia, o desenhista desenha uma lâmpada acesa sobre a sua cabeça. E também as inteligências, à semelhança das lâmpadas, têm potências diferentes. Os psicólogos inventaram testes para atribuir números às inteligências. A esses números deram o nome de QI, coeficiente de inteligência. Segundo as mensurações dos psicólogos, há QIs de 100, de 150, de 200... Ah! Uma pessoa com QI 200 deve ser maravilhosa! Porque, como todo mundo sabe, inteligência é coisa muito boa. Todo pai quer ter filho inteligente. Mas as lâmpadas não são objetos de contemplação. Não se fica olhando para elas. Olhamos para aquilo que elas iluminam. Uma lâmpada de 150 watts pode iluminar o rosto contorcido de um homem numa câmara de torturas. E uma lâmpada de 60 watts pode iluminar uma mãe dando de mamar ao filhinho. As lâmpadas valem pelas cenas que iluminam. As inteligências valem pelas cenas que iluminam. Há inteligências de QI 200 que só iluminam esgotos e cemitérios. E como ficam bem iluminados os esgotos e os cemitérios! E há inteligências modestas, como se fossem nada mais que a chama de uma vela, que iluminam o rosto de crianças e jardins! A inteligência pode estar a serviço da morte ou da vida. E a inteligência, pobrezinha, não tem o poder para decidir o que iluminar. Ela é mandada. Só lhe compete obedecer. As ordens vêm de outro lugar. Do coração. Se o coração tem gostos suínos, a inteligência iluminará chiqueiros, porcos e lavagem. Se o coração gosta de crianças e jardins, a inteligência iluminará

crianças e jardins. Por isso é mais importante educar o coração que fazer musculação na inteligência. Eu prefiro as inteligências que iluminam a vida, por modestas que sejam. Professores inesquecíveis Tive professores inesquecíveis. Alguns são inesquecíveis pela beleza da sua pessoa, por sua inteligência, pelo respeito aos alunos. Esses me fazem sorrir. Outros se tornaram inesquecíveis por sua pequenez e tolice. Esses me fazem rir. É o caso de um professor de geografia que tive no curso científico. Ele tinha um caderninho onde estavam escritas as aulas que tinha ditado por anos. Ele ditava, nós copiávamos – nisso se resumia sua filosofia da educação. De tudo o que ele ditou, uma única coisa ficou gravada na minha memória, de tão ridícula. Falando sobre a importância política dos rios, terminou a aula com essa afirmação que, segundo ele, provava o seu ponto: “E o grito de independência de dom Pedro aconteceu às margens do rio Ipiranga”. É. Se o riachinho Ipiranga não existisse, dom Pedro não teria gritado “Independência ou morte!” e nós ainda seríamos colônia de Portugal. (Mas será que foi isso mesmo que ele gritou? Por vezes, os gritos reais dos heróis são impublicáveis...) Por razões que não conheço, o dito professor resolveu candidatar-se a vereador, no Rio de Janeiro, certamente convencido de que tinha uma grande contribuição política a oferecer à cidade. Ou pode ser que ele mesmo tenha sentido o tédio dos seus ditados. Melhor ser vereador. Ganhar dinheiro sem fazer força, sem ditados, sem corrigir provas. Muitas decisões políticas se fazem por razões não políticas. Ele parava de ditar e falava sobre sua vitória certa. “Tenho sido professor por vinte anos. Por minhas mãos passaram 2500 alunos.” (Inventei esse número. O número real eu esqueci.) Esses alunos se casaram. 2500 se transformam em 5000: maridos e esposas. Esses 5000 têm parentes e amigos... Ao final de suas contas ele seria eleito com mais de 50.000 votos... Ler ... é uma das maiores fontes de alegria. Claro, há uns livros chatos. Não os leiam. Borges dizia que, se há tantos livros deliciosos de serem lidos, por que gastar tempo lendo um livro que não dá prazer? Na leitura fazemos turismo sem sair de casa gastando menos dinheiro e sem correr os riscos das viagens. O Shogun me levou para uma viagem ao Japão do século XVI, em meio aos ferozes samurais e às sutilezas do amor nipônico e das cerimônias de chá. Cem anos de solidão, que reli faz alguns meses, me produziu espantos e ataques de riso. Achei que o Gabriel García Márquez deveria estar sob o efeito de algum alucinógeno quando o

iniciados entendem. Como o doente não sabe o que elas significam, ele fica<br />

pensando que vai morrer. No terceiro tipo, o professor e os alunos conversam com<br />

o paciente e o chamam pelo nome. “O que é que o senhor acha que tem?” Todo<br />

doente tem ideias sobre a sua doença e formas de explicá-la. “O que é que o<br />

senhor espera de nós?” As respostas dos doentes são surpreendentes. Lembro-me<br />

de um filme em que a visita do segundo tipo estava acontecendo. Os alunos faziam<br />

todo tipo de perguntas ao professor. Mas ninguém se dirigia ao doente. Foi então<br />

que um dos estudantes, o Robin Williams, levantou a mão e perguntou: “Qual é o<br />

nome do paciente?”. Ninguém sabia.<br />

Lâmpadas e inteligência<br />

Num dos meus momentos de vagabundagem, um pensamento me apareceu que<br />

fez uma ligação metafórica entre lâmpadas e inteligências que nunca me havia<br />

passado pela cabeça. Tratei, então, de seguir a trilha. As lâmpadas servem para<br />

iluminar. Para isso são dotadas de potências de iluminação diferentes. Há<br />

lâmpadas de 60 watts, de 100 watts, de 150 watts etc. Qual é a melhor lâmpada?<br />

Parece que as de 150 watts são as melhores porque iluminam mais. Também as<br />

inteligências servem para iluminar. Tanto assim que se diz “tive uma ideia<br />

luminosa!”. E nos gibis, para dizer que um personagem teve uma boa ideia, o<br />

desenhista desenha uma lâmpada acesa sobre a sua cabeça. E também as<br />

inteligências, à semelhança das lâmpadas, têm potências diferentes. Os psicólogos<br />

inventaram testes para atribuir números às inteligências. A esses números deram o<br />

nome de QI, coeficiente de inteligência. Segundo as mensurações dos psicólogos,<br />

há QIs de 100, de 150, de 200... Ah! Uma pessoa com QI 200 deve ser<br />

maravilhosa! Porque, como todo mundo sabe, inteligência é coisa muito boa. Todo<br />

pai quer ter filho inteligente. Mas as lâmpadas não são objetos de contemplação.<br />

Não se fica olhando para elas. Olhamos para aquilo que elas iluminam. Uma<br />

lâmpada de 150 watts pode iluminar o rosto contorcido de um homem numa<br />

câmara de torturas. E uma lâmpada de 60 watts pode iluminar uma mãe dando de<br />

mamar ao filhinho. As lâmpadas valem pelas cenas que iluminam. As inteligências<br />

valem pelas cenas que iluminam. Há inteligências de QI 200 que só iluminam<br />

esgotos e cemitérios. E como ficam bem iluminados os esgotos e os cemitérios! E<br />

há inteligências modestas, como se fossem nada mais que a chama de uma vela,<br />

que iluminam o rosto de crianças e jardins! A inteligência pode estar a serviço da<br />

morte ou da vida. E a inteligência, pobrezinha, não tem o poder para decidir o que<br />

iluminar. Ela é mandada. Só lhe compete obedecer. As ordens vêm de outro lugar.<br />

Do coração. Se o coração tem gostos suínos, a inteligência iluminará chiqueiros,<br />

porcos e lavagem. Se o coração gosta de crianças e jardins, a inteligência iluminará

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