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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCOPRÓ-REITORIA ACADÊMICAMESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃOPENTECOSTALISMO E IMAGINÁRIO: RUPTURAS E CONTINUIDADESNA HINOLOGIA PENTECOSTAL NA PASSAGEM DA MODERNIDADEPARA A PÓS-MODERNIDADEESDRAS GUSMÃO DE HOLANDA PEIXOTORECIFE, 2008


ESDRAS GUSMÃO DE HOLANDA PEIXOTOPENTECOSTALISMO E IMAGINÁRIO: RUPTURAS E CONTINUIDADESNA HINOLOGIA PENTECOSTAL NA PASSAGEM DA MODERNIDADEPARA A PÓS-MODERNIDADEDissertação <strong>de</strong> Mestrado apresentadocomo requisito parcial à obtenção dograu <strong>de</strong> Mestre em Ciências daReligião, elaborado sob a orientação doprofessor Dr. Gilbraz <strong>de</strong> Souza Aragão.RECIFE, 2008


ESDRAS GUSMÃO DE HOLANDA PEIXOTOPENTECOSTALISMO E IMAGINÁRIO: RUPTURAS E CONTINUIDADESNA HINOLOGIA PENTECOSTAL NA PASSAGEM DA MODERNIDADEPARA A PÓS-MODERNIDADEDissertação aprovada como requisito parcial à obtenção do grau <strong>de</strong>Mestre em Ciencias da Religiao, pela Universida<strong>de</strong> Catolica <strong>de</strong>Pernambuco, por uma banca examinadora formada pelos seguintesprofessores:_____________________________________Prof. Dr. Gilbraz <strong>de</strong> Souza Aragão_____________________________________Prof. Dr. Drance Elias da Silva_____________________________________Profª. Drª. Danielle Perin Rocha PittaRECIFE, 2008


Em memória <strong>de</strong> Maria e O<strong>de</strong>te,flores que se foram emprimaveras consecutivas, me<strong>de</strong>ixando <strong>de</strong>solado.


LISTA DE TABELASTABELA 01 – Ondas do Pentecostalismo e suas ênfases................................25TABELA 02 – Bacias Semânticas e formas <strong>de</strong> expressões evangélicas..........58


ÍNDICEIntrodução.......................................................................................................8Capítulo I...........................................................................................................13Antece<strong>de</strong>ntes, gêneses e elementos do pentecostalismo................................18Tipologia do Pentecostalismo brasileiro............................................................23O projeto mo<strong>de</strong>rno e o Protestantismo..............................................................26Defraudações Mo<strong>de</strong>rnas e Pentecostalismo.....................................................36Pós-pentecostalismo e pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.........................................................41Organizando as expressões nas Bacias Semânticas.......................................53Capítulo II..........................................................................................................60O paradigma transdisciplinar e pesquisas em Ciências da Religião.................60Transdisciplinarida<strong>de</strong> e Pesquisas em Ciências da Religião............................73As contribuições <strong>de</strong> Baruch Espinosa e Gaston Bachelard..............................78Gilbert Durand e a Teoria do Imaginário...........................................................88Mitodologia: Mitocrítica e Mitanálise.................................................................98Capítulo III......................................................................................................103Protestantismo e Iconografia..........................................................................104Brasileira ou Alienígena: o problema das geradoras......................................107Contextualizando a amostra hinológica..........................................................115Análise Mitodológica do cancioneiro pentecostal e pós-pentecostal...............119Consi<strong>de</strong>rações Finais......................................................................................142Referências.....................................................................................................145


RESUMOO presente trabalho procura investigar as rupturas e continuida<strong>de</strong>s na teologia,mentalida<strong>de</strong> e visão <strong>de</strong> mundo dos pentecostais brasileiros.Para isso, assumecomo objeto privilegiado <strong>de</strong> investigação o repertório musical dascomunida<strong>de</strong>s pentecostais, contemplando as evoluções internas daquilo que écantado em seus cultos e reuniões. A música é o vetor principal na mo<strong>de</strong>lagemdo comportamento dos fiéis. Sendo produto <strong>de</strong>rivado do ambiente cultural,portanto não completamente controlado pelo compositor, a hinologiapentecostal tanto reflete quanto incute símbolos que irão orientar o universohabitado pelos a<strong>de</strong>ptos <strong>de</strong> uma crença.Toma a Teoria do Imaginário (GilbertDurand) como mediador hermenêutico da leitura simbólica do cancioneiropentecostal clássico e pós-pentecostal, empregando sua metodologia àsimagens existentes nas canções pentecostais. O estudo se vale <strong>de</strong> umaepistemologia que prima pela compreensivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>nominadaTransdisciplinarieda<strong>de</strong>. Outra importante filiação conceitual <strong>de</strong>ste trabalho é ácorrente sociológica que caracteriza o tempo presente como pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.PALAVRAS-CHAVE: Pentecostalismo / Imaginário / Transdiciplinarieda<strong>de</strong> /Pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.


ABSTRACTThis dissertation attempts to investigate the discontinuities and continuities inthe theology, mentality and world-vision of Brazilian pentecostals. To that end ithas as its special object of study the musical repertoire of the pentecostalcommunities, evaluating the internal evolution of that which is sung in theworship services and other meetings. Music is the principal means by which thebehavior of the faithful is moul<strong>de</strong>d. Since it is a product <strong>de</strong>rived from thesurrounding culture, and so not completely controlled by the composer,pentecostal hymnology both reflects and inculcates symbols which direct theuniverse which its followers inhabit. Gilbert Durand's book, The Theory of theImaginary, provi<strong>de</strong>s the hermeneutical basis for our interpretation of thesymbolic as present in the hymn-books both of classic pentecostalism and ofpost-pentecostalism, and we apply Durand's methodology to the imagespresent in the pentecostal hymns. As to its epistemology, this study is bothtransdisciplinary and comprehensive, as well as taking into account currentsociological trends present in what is known as post-mo<strong>de</strong>rnity.KEY WORDS: Pentecostal / Imaginary / Transdisciplinary / Post-mo<strong>de</strong>rnity


8INTRODUÇÃOAo sinal do regente o menino e com ele todos os que ali estavam enchiam anave do templo com aquela melodia <strong>de</strong> letra empe<strong>de</strong>rnida, tão a gosto <strong>de</strong> umProtestantismo pretensiosamente culto, letrado e racional.“Se da vida as vagas procelosas sãoSe com <strong>de</strong>salento julgas tudo vão”E por aí se ia. A hinologia do Protestantismo sempre intrigou aquele garoto.Primeiro pelo seu linguajar extravagante. Afinal, porque não se po<strong>de</strong>ria cantar nolugar <strong>de</strong> “vagas procelosas”, “ondas agitadas”, muito mais compreensivo e natural,perguntava-se o menino consultando o dicionário. Será que essa gente entendia oque estava cantando?Alguns anos <strong>de</strong>pois, ao sinal do regente todos que ali estavam se puseram <strong>de</strong>pé, menos aquele adolescente trajando tênis, camiseta e calça jeans. Não iriacontribuir para encher a nave do santuário com aquele cântico, o <strong>de</strong> número seis dotradicional Cantor Cristão dos batistas brasileiros, intitulado Glória ao Senhor:“Ao nosso Pai do céu tributa, lábio meu,Glória e louvor!”– Glória e louvor uma ova! Era o que dizia em voz baixa aquela figuraespinhenta e <strong>de</strong>sengonçada. Como era possível a gente ficar cantando um hino queera uma sobreposição <strong>de</strong> uma letra evangélica ao Hino Nacional Inglês, o famoso“God save the Queen”. Imaginava os missionários rolando <strong>de</strong> rir: “Reparem só essesnativos aclamando a Coroa Britânica! “Será que a gente que cantava sabia o quê eos porquês daquilo que estavam cantando?O menino e o adolescente sou eu. Sim, pegando carona na confissão <strong>de</strong>Rubem Alves, “Sou protestante. Sou porque fui. Mesmo quando me rebelo e<strong>de</strong>nuncio (...) Sou protestante. Hoje, muito diferente do que fui”. (2004, p. 19). Comcerteza nem todas as canções me afetaram <strong>de</strong> uma maneira negativa. Muitas <strong>de</strong>lasme <strong>de</strong>ram consolo ou embalaram a minha esperança. Não se po<strong>de</strong> abandonar ascoisas que foram parte dos nossos primeiros referenciais <strong>de</strong> vida.


9Com o tempo outras coisas foram chamando a minha atenção naqueleshinos. Uma ansieda<strong>de</strong> por uma vida futura acompanhada por um repúdio <strong>de</strong> tudo oque era produzido pela cultura brasileira, a recorrência <strong>de</strong> termos bélicos e virisincitando para o combate <strong>de</strong> modo a fazer crer que o outro, o católico, o ateu, oespírita, o a<strong>de</strong>pto <strong>de</strong> cultos afros eram sempre inimigos que precisavam sercombatidos.Recentemente tomei conhecimento da Teoria do Imaginário <strong>de</strong> GilbertDurand. De repente, lá estava eu novamente folheando os antigos hinários,procurando localizar imagens fazendo correlações entre as imagens que osevangélicos cantam – sim, é possível se cantar imagens – seus comportamentos emaneira <strong>de</strong> enxergar a vida. Ocorre que os protestantes tradicionais, dos quais eume origino, experimentam um período <strong>de</strong> estagnação, para não dizer abertamente,<strong>de</strong> <strong>de</strong>clínio. Na passagem da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> para a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, diluiu-se apertinência da proposta protestante histórica. Seu projeto entrou em colapso, e seudiscurso per<strong>de</strong>u sentido. No ambiente <strong>de</strong> pluralismo que a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> enseja,o pentecostalismo, com o <strong>de</strong>slocamento que fazem do discurso racional para assensações, conseguem uma maior <strong>de</strong>senvoltura e adaptação ao contextosociocultural.O pentecostalismo, contudo, não é monolítico. Como se verá ele nasceu nos<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iros momentos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, herdando algumas características doProtestantismo, seu antecessor, com o qual ainda guarda estreitas vinculações. Emvirtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua natureza flexível e dinâmica, o pentecostalismo sofreu mutações pelaincorporação <strong>de</strong> diversos elementos culturais que haviam sido esnobados pelosprotestantes tradicionais. A resultante <strong>de</strong>ssas assimilações são tipos <strong>de</strong>pentecostalismo que se distanciaram do nascedouro. Por outro lado, há certaspersistências, um fio condutor, um traço comum que une protestantes, pentecostaisclássicos, pentecostais <strong>de</strong> segunda geração e pós-pentecostais. Como objeto <strong>de</strong>estudo, os pentecostais acabaram sendo para mim muito mais atraentes.Há, portanto rupturas e continuida<strong>de</strong>s no meio evangélico. Elas são maisnítidas no movimento pentecostal. A música e as imagens que acabam por darorigem a essas composições, que por sua vez influenciam na mentalida<strong>de</strong> e sãoretroalimentadas por aqueles aos quais dita os comportamentos, se constituem, emnossa opinião um flanco privilegiado para se observar velhas e novas idéias vigentes


10neste ambiente religioso. Neste instante, é preciso comentar um pouco sobre amúsica e suas qualida<strong>de</strong>s relevantes para esse trabalho.A música sempre serviu para transmitir conteúdos. É indiscutível a sua funçãopedagógica. De uns tempos para cá, tem-se avançado muito nas proprieda<strong>de</strong>sterapêuticas da música. Haveria na música duas dimensões, pelo menos, a músicaenquanto fenômeno cognitivo seria uma maneira <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a realida<strong>de</strong>.Através da ativida<strong>de</strong> artística e da acurada percepção da música, chega-se a ver e aenten<strong>de</strong>r coisas que <strong>de</strong> outro modo não se po<strong>de</strong>ria alcançar. Um outro ponto <strong>de</strong>vista consiste em enten<strong>de</strong>r a música enquanto expressão da emotivida<strong>de</strong> carregada<strong>de</strong> um simbolismo por vezes muito subjetivo.De um modo geral, a música não seria um empreendimento discursivo. Issosignifica que a música não po<strong>de</strong> ser analisada como uma ativida<strong>de</strong> que utiliza umalinguagem no sentido estrito. O discurso se vale da linguagem em uma situaçãocomunicativa on<strong>de</strong> a aplicação <strong>de</strong> conceitos é fundamental. O discurso, portanto,pressupõe uma série comum <strong>de</strong> conceitos e se revela na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>compreensão. É o que se percebe nas situações paradigmáticas como os diálogos<strong>de</strong> uma encenação teatral, muito embora a música seja freqüentemente <strong>de</strong>scritaatravés <strong>de</strong> termos <strong>de</strong> um contexto lingüístico.Contudo, não há na música sintaxe ou semântica que se assemelhe ao queencontramos em linguagens naturais ou formais, pois para ela não vigoram asregras gramaticais. É só através das metáforas que se po<strong>de</strong> apontar o que é dito namúsica. É impossível falar sobre verda<strong>de</strong> ou falsida<strong>de</strong>, conceitos semânticosbásicos, porque não há mo<strong>de</strong>lo em que as proposições encontrem respaldo paraserem admitas como verda<strong>de</strong>iras ou falsas. Desse modo, a comunicação musicalnão conta com sistema ou estrutura que proporcionem uma série <strong>de</strong> significados eexpressões rígidas e inflexíveis, que possam ser tomados por uma dadacomunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> usuários da linguagem. Assim sendo, o referencial, a matéria primada música não é o logos, mas o ícone, nada se reduz a palavra, mas se inicia pelaimagem.No capítulo primeiro é feita uma revisão bibliográfica e conceitual dastipologias do Protestantismo histórico e também do pentecostalismo. Procura-sejustificar a adoção do tipo pós-pentecostal criado pelo Professor da Universida<strong>de</strong>Rural <strong>de</strong> Pernambuco, Paulo Donizeti Siepierski, em substituição ao termolargamente utilizado neo-pentecostais. Vasculham-se as visões teológicas e


11escatológicas, o i<strong>de</strong>ário social e a visão <strong>de</strong> mundo do Protestantismo dopentecostalismo e do pós-pentecostalismo. Outro direcionamento contido nestaprimeira parte corre em busca <strong>de</strong> situar e caracterizar o pensamento e cosmovisãomo<strong>de</strong>rno, gerado pelo Iluminismo. O surgimento da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, comorefutação do projeto mo<strong>de</strong>rno, a <strong>de</strong>núncia das meta-narrativas tidas pelos teóricospós-mo<strong>de</strong>rnos como mera ficção retórica e a constatação da pluralida<strong>de</strong> dafragmentação e da emergência <strong>de</strong> novas <strong>de</strong>mandas e atores sociais e culturais,também são discutidos.Pela noção <strong>de</strong> bacias semânticas e a aceitação do mo<strong>de</strong>rno e do pósmo<strong>de</strong>rnocomo verda<strong>de</strong>iras concentrações <strong>de</strong> sentidos orientados por um<strong>de</strong>terminado imaginário no qual estão ativos certos mitos regentes, conforme temproposto Gilbert Durand com sua metáfora fluvial, faz-se uma ligação entre, <strong>de</strong> umlado, expressões religiosas nascidas na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, a saber, Protestantismo epentecostalismo <strong>de</strong> primeira geração e, <strong>de</strong> outro, a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e a gestação<strong>de</strong> manifestações religiosas ancoradas em referências imagéticas distintas dosencontrados até o início da década <strong>de</strong> 1960. Neste espectro, disponta o póspentecostalismo,que tem muito mais a ver com a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> além do que oprefixo “pós” pareceria indicar a primeira vista.O segundo capítulo dispõe sobre os aportes epistemológicos e metodológicosda pesquisa, além <strong>de</strong> explicitar sua fundamentação teórica mais profunda, ou seja, aTeoria do Imaginário <strong>de</strong> Gilbert Durand. No campo epistemológico, o pesquisador sefilia a uma nova proposta científica que prima muito mais pela compreensivida<strong>de</strong> dosfenômenos do que pela mera explicação reducionista e mutiladora dos mesmos.Enten<strong>de</strong>-se que o caminho diagonal aproveita melhor as diversas contribuições dosvários ramos da ciência e do conhecimento. Desta forma, a transdisciplinarida<strong>de</strong>com seu tripé sustentador – níveis <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, complexida<strong>de</strong>, lógica do terceiroincluído – torna-se o pano <strong>de</strong> fundo que legitima a exploração <strong>de</strong> um campo outrora<strong>de</strong>stinado a periferia do interesse científico, e rotulado como simples faláciaespeculativa: os arquétipos e as imagens.Empreen<strong>de</strong>-se um ajuntamento <strong>de</strong> autores dissi<strong>de</strong>ntes em relação a ciênciaconvencional. Para fortalecer o ponto <strong>de</strong> vista sustentador <strong>de</strong>sta pesquisa, foinecessário então recorrer-se ao “argumento <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>”. Neste ponto, talveztenha havido um certo acúmulo <strong>de</strong> citações. Autores como, Thomas Kuhn, GastonBachelard, Barsarab Nicolescu, o físico romeno divulgador da transdisciplinarieda<strong>de</strong>,


12documentos da UNESCO e alguns outros autores pertencentes a esta correnteinovadora, são bastante citados para que não reste dúvidas quanto a serieda<strong>de</strong> epotencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste novo modo <strong>de</strong> inquirição científica.Segue-se um <strong>de</strong>talhamento do imaginário tal como o compreen<strong>de</strong> Durand emsuas obras mais voltadas à temática. Por fim, a<strong>de</strong>ntra-se na mitodologia, forma pelaqual se leva adiante uma pesquisa que tenha no imaginário e seus elementos uminteresse especial. Fala-se da mitocrítica e da mitanálise. Opta-se, então por ummo<strong>de</strong>lo que é heuristicamente fecundo e que tenha a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se colocar <strong>de</strong>uma maneira permanentemente aberta, como na verda<strong>de</strong> é a proposta inicial <strong>de</strong>Gilbert Durand. Deve-se aos portugueses Alberto Felipe Araújo e Armando Malheiroda Silva a indicação <strong>de</strong>ste caminho, que foi seguido com muita liberda<strong>de</strong> durante apesquisa.Já no terceiro e último capítulo discute-se, inicialmente, o problema dasgeradoras, como optou-se <strong>de</strong>nominar as fontes <strong>de</strong> material semântico e cultural dasquais beberam e bebem os pentecostalismos. O <strong>pró</strong>ximo passo constitui-se emcontextualizar as amostras hinológicas que foram escolhidas para análise. Foi,então, selecionado um referencial mítico a<strong>de</strong>quado para se i<strong>de</strong>ntificar asredundâncias e os mitologemas dispostos pelos hinos e canções entoados pelospentecostais. Contribuiu muito para esse <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro passo a tipologia dos hinoscatalogados em Salmos e Hinos, ancestral da Harpa Cristã dos assembleianos, e <strong>de</strong>todas as coletâneas utilizadas pelas gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>nominações protestantes que seinstalaram no Brasil, levada a efeito pelo professor Antonio Gouveia <strong>de</strong> Mendonça.Os objetivos <strong>de</strong>ste trabalho situam-se numa tentativa <strong>de</strong> compreensão. Háuma carga pessoal muito gran<strong>de</strong>, pois na verda<strong>de</strong> é aquele menino/adolescente aquem primeiro busco dar satisfação. O escopo e o mérito resi<strong>de</strong>m em servir <strong>de</strong>subsídio inicial para que se possa enten<strong>de</strong>r a mentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado gruporeligioso e como as mudanças culturais e sociais foram capazes <strong>de</strong> influir no seucomportamento. Para essa finalida<strong>de</strong>, o imaginário <strong>de</strong>sponta como meio privilegiado,quadro teórico apto a <strong>de</strong>snudar uma série <strong>de</strong> situações que partem do inconscientecoletivo dos pentecostais.


13CAPÍTULO 1Princípio <strong>de</strong> junho. O ano é 1911. Nos primeiros dias do mês, os missionáriossuecos vindos dos Estados Unidos, Daniel Berg e Gunnar Vingren, intensificam oseu trabalho junto aos membros <strong>de</strong> uma Igreja Batista em Belém do Pará. Des<strong>de</strong>novembro do ano anterior eles estavam em terras brasileiras e se estabeleceramcomo voluntários, dada a vacância <strong>de</strong> um pastor na pequena comunida<strong>de</strong> batista,embora um seminarista servisse como obreiro, li<strong>de</strong>rando o grupo <strong>de</strong> fiéis. O“avivamento” já estava em curso na congregação, causando <strong>de</strong>sconforto a gruposprotestantes <strong>de</strong> linha mais contida, como anglicanos, presbiterianos e metodistasque também haviam instalado trabalhos naquela localida<strong>de</strong>.Entretanto, o evento narrado em Atos capítulo 2, versos 17 e 18, conhecidoentre os pentecostais como “batismo com Espírito Santo” ainda não tinha se dado. 8<strong>de</strong> junho. Reunidos na casa <strong>de</strong> nº 19 da Rua Siqueira Men<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>Celina Albuquerque, crente batista que viria a ser a primeira pessoa a vivenciar umaexperiência do batismo com o Espírito Santo em terras brasileiras, aguardavam aação espetacular da terceira pessoa da Trinda<strong>de</strong>. É bem provável que osmissionários além <strong>de</strong> orarem com fervor suplicando a Deus pela <strong>de</strong>scida <strong>de</strong> umPentecostes sobre aquela residência, também entoassem a plenos pulmões e semacompanhamento <strong>de</strong> qualquer instrumento um hino <strong>de</strong>ste tipo 1 :Já refulge a glória eterna <strong>de</strong> Jesus, o Rei dos reis;Breve os reinos <strong>de</strong>ste mundo seguirão as suas leis!Os sinais da sua vinda mais se mostram cada vez.Vencendo vem Jesus!1 Vencendo vem Jesus (Harpa Cristã nº 525). Este hino é o resultado do aproveitamento da melodia<strong>de</strong> uma canção marcial entoada pelo Exército da União durante a Guerra da Secessão. Chamava-seJohn Brown´s Body a música original, que versava sobre a morte <strong>de</strong> John Brown e <strong>de</strong> seus filhos quelutaram pelo fim da escravidão. Indignada com os versos <strong>de</strong> incitação à violência e à vingança, aescritora Julia Wood Howe produz uma nova versão para adaptar-se à melodia marcial. Contudo, nãoaltera a conotação militarista e índole beligerante contido no hino primitivo. Percebe-se umrelacionamento estreito com a temática do po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> seu exercício no relato da pesquisadora daHinologia Protestante Edith Brock Mulholand. “Ao longo dos anos, o hino per<strong>de</strong>u qualquer resquicio<strong>de</strong> partidarismo e tornou-se um dos hinos mais amados dos Estados Unidos. Arranjos maravilhosos<strong>de</strong>ste hino foram feitos por compositores <strong>de</strong> renome e cantadas nos momentos mais solenes do país.Foi cantado na posse do Presi<strong>de</strong>nte Lyndon Johnson, e, tornando-se internacionalmente no cultofunerário <strong>de</strong> Winston Churchill, como planejado por ele mesmo”.MULHOLAND, Edith Brock. Hinário para o culto cristão: notas históricas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Juerp, 2001,p. 126


14Glória, glória! Aleluia! Glória, glória! Aleluia! Glória, glória! Aleluia!Vencendo vem Jesus!O clarim que chama os crentes à batalha, já soou;Cristo, à frente do seu povo, multidões já conquistou.O inimigo, em retirada, seu furor patenteou.Vencendo vem Jesus!Eis que em glória refulgente sobre as nuvens <strong>de</strong>scerá,E as nações e os reis da terra com po<strong>de</strong>r governará.Sim, em paz e santida<strong>de</strong> toda a terra regerá.Vencendo vem Jesus!E por fim entronizado as nações há <strong>de</strong> julgar,Todos, gran<strong>de</strong>s e pequenos, o juiz hão <strong>de</strong> encarar.E os remidos triunfantes, em fulgor hão <strong>de</strong> cantar:Vencendo tem Jesus!Domingo, 8 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2007, Avenida Con<strong>de</strong> da Boa Vista no centro doRecife, exatamente 96 anos após o evento estático do primeiro batismo em línguasno Brasil, um grupo <strong>de</strong> fiéis com olhos fechados e apertados, as mãos levantadas,animadamente, faz ecoar no templo da Comunida<strong>de</strong> Sara Nossa Terra uma cançãodifundida por um grupo musical <strong>de</strong>nominado Toque no Altar; O chão vai tremer é otítulo da composição:Ele vem cavalgando nos montesCom Seus pés <strong>de</strong> latão reluzenteTem os olhos <strong>de</strong> fogo e voz <strong>de</strong> trovãoVem marchando com Seus cavaleirosArvorando a Sua ban<strong>de</strong>iraTem o cetro <strong>de</strong> ouro e a espada nas mãosEle vem revestido <strong>de</strong> brancoEle é santo, ele é santo, ele é santo!Eu já posso ouvir os seus passos aquiEle vem coroado <strong>de</strong> glória


15É agora, é agora, é agora!Que o chão vai tremer e o céu vai se abrirO chão vai tremer!O Céu vai se abrir!Os anjos <strong>de</strong> Deus vão <strong>de</strong>scer e subirSenhor dos Exércitos é o Seu nomeQuase cem anos se passaram, e apesar da instrumentalização, dos arranjose do ritmo serem completamente diferentes, é possível perceber com uma clarezasolar, a i<strong>de</strong>ntificação temática e as semelhanças no plano do simbolismo que unemos dois cânticos. Prova da imutabilida<strong>de</strong> das verda<strong>de</strong>s do Evangelho <strong>de</strong> Jesus? Oupersistência <strong>de</strong> uma mentalida<strong>de</strong> beligerante que plasmou o cristianismo e cai muitobem a um pentecostalismo repleto <strong>de</strong> convicções triunfalistas?É preciso observar que embora a Assembléia <strong>de</strong> Deus e a Sara Nossa Terrapertençam a gran<strong>de</strong> família pentecostal brasileira, elas são comunida<strong>de</strong>s bastantedíspares, quer na morfologia <strong>de</strong> seus cultos quer nas práticas comportamentais eainda nas ênfases doutrinarias e teológicas que abraçam. Ou seja, não se po<strong>de</strong>confundi-las. Entre as duas, percebe-se, além do lapso temporal que distancia afundação da Assembléia <strong>de</strong> Deus da organização Sara Nossa Terra, clivagenssociais distintas.Talvez seja possível ilustrar o que acima se quis dizer. Na periferia <strong>de</strong> umagran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong> qualquer do Brasil, uma dona <strong>de</strong> casa, mãe <strong>de</strong> cinco filhos e esposaabnegada põe para tocar no seu CD Player, comprado em parcelas a per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vistae cujas prestações são <strong>de</strong>scontadas <strong>de</strong> sua parca aposentadoria, na voz aguda dojá falecido Jessé 2 uma faixa on<strong>de</strong> o cantor interpreta um hino extraído da HarpaCristã, enquanto realiza suas tarefas rotineiras:Da linda pátria estou bem longe;Cansado estou;Eu tenho <strong>de</strong> Jesus saudada,2 Trata-se da faixa 9 do álbum Ao meu Pai, no qual o cantor Jessé, <strong>de</strong> família assembleiana e elemesmo tendo sido na adolescência membro daquela <strong>de</strong>nominação religiosa, interpreta alguns hinoscontidos na Harpa cristã, o hino em questão, O Exilado, encontra-se sob o número 36.


16Oh, quando é que eu vou?Passarinhos, belas flores,Querem m'encantar;São vãos terrestres esplendores,Mas contemplo o meu lar.Jesus me <strong>de</strong>u a Sua promessa;Me vem buscar;Meu coração está com pressa,Eu quero já voar.Meus pecados foram muitos,Mui culpado sou;Porém, Seu sangue põe-me limpo;Eu para pátria vou.Qual filho <strong>de</strong> seu lar saudoso,Eu quero ir;Qual passarinho para o ninho,Pra os braços Seus fugir;É fiel - Sua vinda é certa,Quando... Eu não sei.Mas Ele manda estar alerta;Do exílio voltarei.Sua vinda aguardo eu cantando;Meu lar no céu;Seus passos hei <strong>de</strong> ouvir soandoAlém do escuro véu.Passarinhos, belas flores,Querem m'encantar;São vãos terrestres esplendores,Mas contemplo o meu lar.


17Muda-se o cenário. Dentro <strong>de</strong> seu carro <strong>de</strong> vidros levantados para que o arcondicionado não escape, aquele jovem corretor segue confiante em fechar mais umbom negócio com um promissor cliente, cuja prospecção só aconteceu <strong>de</strong>pois daeficiente oração do pastor e <strong>de</strong> seu compromisso em dizimar corretamente e ofertarcom liberalida<strong>de</strong>. No seu MP3 novinho em folha o Ministério <strong>de</strong> Louvor Toque noAltar vai motivando o corretor a conquistar mais uma vitória:Quando a vi<strong>de</strong>ira brotarE no campo o trigo crescerE a fonte das águasCorrerem dos montesChegou a restituiçãoQuando a chuva <strong>de</strong>scerE o <strong>de</strong>serto florescerE quando se ouvir entãoA voz dos que cantamChegou a restituiçãoOs meus celeiros transbordarãoDa provisão do SenhorO gafanhoto não mais consumiráO que o Senhor restituiuOs céus se abremA chuva <strong>de</strong> Deus chegouTrazendo sete vezes maisDo que o <strong>de</strong>vorador roubouOs céus se abremA chuva <strong>de</strong> Deus chegouTrazendo sete vezes maisDe restituiçãoSete vezes mais, sete vezes maisDo que o <strong>de</strong>vorador roubouSete vezes mais, sete vezes mais!


18As duas hipotéticas cenas se passam no tempo presente, e, no entanto,parece não haver conexão entre os símbolos que se articulam em cada uma dasmúsicas. De um lado, um mundo que precisa ser rejeitado com toda a sorte <strong>de</strong>acontecimentos que po<strong>de</strong>m tirar o peregrino do seu rumo, o reino do céu. Do outro,um mundo a ser <strong>de</strong>sfrutado com inúmeras bênçãos, fartura e prosperida<strong>de</strong>, a terraque mana leite e mel, a terra prometida aqui e agora.Se nos primeiros exemplos, extraídos <strong>de</strong> acontecimento relatados em livros 3 epresenciados pelo pesquisador, verificou-se que os hinos remetiam a um mesmonúcleo temático e, por que não dizer, teológico; portanto para uma continuida<strong>de</strong>. János casos fictícios, mas extremamente aproximados do corriqueiro, contata-se umapolarização, um contraste <strong>de</strong>scomunal que <strong>de</strong>ixa patente as rupturas havidas no subcampo pentecostal.ANTECEDENTES, GÊNESES E ELEMENTOS DO PENTECOSTALISMOAntes <strong>de</strong> se investir na <strong>de</strong>scrição tipológica do pentecostalismo brasileiro éimportante frisar que além do Protestantismo experimentado aqui nos temposconturbados das incursões francesas e incursões holan<strong>de</strong>sas, o Brasil só veio apermitir a expressão da fé protestante em seu território a partir do início do séculoXIX. O Protestantismo dos colonos alemães e o anglicanismo dos comerciantes efuncionários dos gran<strong>de</strong>s empreendimentos ingleses foi batizado sociologicamentecomo <strong>de</strong> imigração, e visava tão somente a manutenção da fé original <strong>de</strong>staspessoas, admitindo o culto que era realizado na língua materna e em espaços quenão possuíam aspectos exteriores <strong>de</strong> templo.Da meta<strong>de</strong> do século XIX em diante começa a atuar um Protestantismo quese reporta aos esforços das socieda<strong>de</strong>s missionárias americanas e inglesas. Suapretensão é expansionista, proselitista e conversora. As missões ligadas às gran<strong>de</strong>sigrejas nacionais norte-americanas trazem a insígnia do <strong>de</strong>nominacionalismo, tãomarcante por lá. É o Protestantismo <strong>de</strong> missão, que vai ser a faceta mais3 Cf. por exemplo, VINGREN, Ivan. Gunnar Vingren: o diário do pioneiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: CPAD, 1973.BERG, David. Daniel Berg: enviado por Deus. Rio <strong>de</strong> Janeiro: CPAD, 1995. E ainda. ALMEIDA,Abraão <strong>de</strong>. História das Assembléias <strong>de</strong> Deus no Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: CPAD, 1982. Estes livros,embora estivessem mais preocupados em fazer uma louvação da origem e da trajetória dasAssembléias no Brasil do que historiografia séria – aliás, as duas primeiras obras são escritos pelosfilhos dos missionários fundadores – dão uma perspectiva do ambiente, das crenças, das motivaçõese das expectativas dos primeiros pentecostais brasileiros.


19representativa do Protestantismo entre nós até a década <strong>de</strong> 1980, não tanto peloseu contingente numérico, mas, sobretudo por sua inserção nas camadas medias dapopulação brasileira e por ter sido o <strong>de</strong>tentor da hegemonia no campo sócio-cultural,tornando-se o referencial daquilo que se <strong>de</strong>nominava como Protestantismobrasileiro.O pentecostalismo que vem bater na década <strong>de</strong> 1910 no Brasil é fruto <strong>de</strong><strong>de</strong>sdobramentos do movimento <strong>de</strong> santificação que se po<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar comooriginário da “era metodista”, como assim ficou conhecido nos Estados Unidos operíodo em que por influência do metodismo e <strong>de</strong> sua ênfase na experiência <strong>de</strong>santida<strong>de</strong>, que era posterior a conversão, gran<strong>de</strong> parte do Protestantismo americanoabsorveu essa mentalida<strong>de</strong>, chegando inclusive a reelaborar crenças centrais da Fé,como no caso dos Batistas do Sul 4 . É preciso observar que este modo <strong>de</strong> enxergar avida religiosa e <strong>de</strong> vivenciá-la era sobretudo do pioneiro, do <strong>de</strong>sbravador que partiapara o Far West, do homem <strong>de</strong> iniciativa, do “self ma<strong>de</strong> man”. Para esses novostempos, <strong>de</strong>cisivos na construção do território e do <strong>pró</strong>prio ethos norte-americano, erapreciso superar uma teologia elitista como era o calvinismo e propor algo mais<strong>de</strong>mocrático e acessível. Aqui entra então, a proposta metodista:A expansão do metodismo na América do Norte se dá na esteira daconquista e colonização do sudoeste americano e das áreas dosudoeste americano que, por compras ou conquistas foram sendoincorporadas ao território da nova nação. As <strong>de</strong>mais <strong>de</strong>nominaçõesacompanharam essa expansão, mas os metodistas, por suaspeculiarida<strong>de</strong>s conseguiam se adaptar melhor as condições sociaisda “fronteira”. Os metodistas estavam habituados à prática religiosainformal, a realizar suas reuniões ao “ar livre”, com seus pregadoresleigos e itinerantes e sua teologia simples e emotiva. Desse modo, aIgreja metodista estava sempre na linha <strong>de</strong> frente, era a primeira achegar, pois não exigia lugares sagrados, nem ministros formados enem aparatos litúrgicos. (Mendonça, 1995, p. 55-56)E a idéia esposada é complementada pelo mesmo autor um pouco mais a frente,dando especial <strong>de</strong>staque a questão do avivamento:A teologia dos avivamentos foi uma resposta necessária da religiãoàs condições sociais sui generis em que as oportunida<strong>de</strong>s estavamabertas para todos. A ascensão <strong>de</strong>pendia das aspirações e do4 Os Batistas do Sul dos Estados Unidos seriam do chamado grupo particular, <strong>de</strong> fortes convicçõescalvinistas, tendo passado no correr do século XIX a um entendimento arminiano, encaixando-se nogrupo <strong>de</strong>nominado como batistas gerais. Cf. SELPH, Robert B. Os batistas e a doutrina da eleição.São José dos Campos: Fiel, 1995.


20<strong>de</strong>sempenho e as diferenciações sociais ainda estavam por se fazer.Desse modo, uma religião montada sobre o velho calvinismo erapouco viável, pois que suas doutrinas da soberania absoluta <strong>de</strong> Deuse da total incapacida<strong>de</strong> do homem chocava-se contra o princípio do<strong>de</strong>sempenho, assim como o da eleição contra o principio dovoluntarismo. Por outro lado, o elitismo calvinista repugnava aoigualitarismo. Ainda, as idéias filosóficas evolucionistas reforçavamcrédito na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aperfeiçoamento e progresso do individuo eda socieda<strong>de</strong>. Não havia como fugir a uma reformulação teológicareformulação essa que teve como matriz o arminianismo metodista.(Ibid., p. 57)Nesta passagem <strong>de</strong> Mendonça, po<strong>de</strong>-se verificar ainda o prenúncio dabifurcação entre uma proposição <strong>de</strong> um evangelho humanista, com acentuado nível<strong>de</strong> encarnação social, e o germe do individualismo espiritualista que se isola <strong>de</strong> cenasocial, quer por medo ou <strong>de</strong>sencanto. Daí surgiram as correntes pós e pré-milenista,que serão retomadas mais a frente.A fermentação avivalista continuou a agir no cal<strong>de</strong>irão multicultural e étnicoem que se havia tornado os Estados Unidos com a crescente <strong>de</strong>manda <strong>de</strong>imigrantes vindos <strong>de</strong> lugares tão diferentes quanto a Escandinávia, a China ou aIrlanda. O rápido e caótico crescimento das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s americanas, que nãotinham condições estruturais para receber a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gente que a elasacorriam, resultavam num ambiente <strong>de</strong>gradante, notadamente para os imigrantes enegros, que ainda não haviam conquistado um estatuto social igualitário 5 , mesmoapós o término da escravatura.Por outro lado, o progresso das ciências no lugar <strong>de</strong> engran<strong>de</strong>cer ao “DeusCriador”, como era mais do que um a expectativa, antes uma verda<strong>de</strong>ira exigênciados mais extremados membros do movimento <strong>de</strong> santificação, questionava ospostulados centrais da fé e solapava os ensinos tradicionais da Bíblia.5 Um dos conceitos mais importantes para se enten<strong>de</strong>r o que estava acontecendo entre o final doséculo XIX e as primeiras décadas do século XX nos Estados Unidos, e que foi amplamente utilizadopor inúmeros investigadores do pentecostalismo, é o conceito <strong>de</strong> anomia. Por anomia po<strong>de</strong>-seenten<strong>de</strong>r, a noção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sagregamento social. Durkheim faz relacionar anomia com insucessos dadivisão social do trabalho no seio da socieda<strong>de</strong> industrial, como no problema do antagonismo entrecapital e trabalho, ou a especialização <strong>de</strong> funções. Por outro lado, em O Suicídio a anomia ocorreriapela <strong>de</strong>sregulação do comportamento, isto é, o indivíduo não pauta mais a sua conduta social sobrenormas claras e cogentes, rompendo com o fatalismo, seu, extremo oposto, que empurra o sujeitopara um padrão pré-<strong>de</strong>terminado. O mundo “urbanói<strong>de</strong>” dos E.U.A. do início do século XX seriaessencialmente anômico. Interessante lembrar que é em Chicago, cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> on<strong>de</strong> partem ospioneiros do pentecostalismo brasileiro, que surge a famosa Escola Sociológica <strong>de</strong> Chicago, apoiadanos conceitos <strong>de</strong> ecologia humana, ou seja, a influência do meio nas formas <strong>de</strong> se viver, elaboradapor Robert E. Park e trazida pra cá por Donald Pierson, que durante anos lecionou na USP. Sente-seessa influência no constante recurso a teorias funcionalistas para explicar o Pentecostalismobrasileiro por parte dos primeiros pesquisadores.


21Acuados e ofendidos em suas convicções mais íntimas, oprimidos por umasituação social <strong>de</strong> penúria, os movimentos avivalistas intensificaram sua busca poruma presença manifesta e irrefutável do Espírito Santo em suas vidas. Em abril <strong>de</strong>1906, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Los Angeles se daria a tão intensamente buscada evidência,numa reunião comandada pelo pastor negro William J. Seymour:El 9 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1906 “cayo el fuego” en uma reunión religiosa emBonnie Brae Street. El primer bautizado Del Espiritu Santo fue umnino negro <strong>de</strong> ocho años. Mucha gente, em su mayoria miembros <strong>de</strong>La Iglesia Del Nazareno y otras <strong>de</strong>ominaciones <strong>de</strong> santificaciónexperimentaton esta vivencia Del bautismo Del Espíritu Santo.Seymour alquilo uma vieja iglesia metodista em Azusa Strect 312; LaAzusa Street Mission iba a ser consi<strong>de</strong>rada pos los publicistaspentecostales como el ponto <strong>de</strong> partida Del movimiente pentecostalmundial. Durante três año si interrupción se realizaron aqui reuniones<strong>de</strong> oración em las se hablaba, se cantaba y se profetizada.(Hollenweger, 1976, p. 9)Neste ponto é importante <strong>de</strong>stacar o fator da língua, ou seja, o papel<strong>de</strong>sempenhado por falar em línguas estranhas (ou angelicais) como sinal do batismopelo Espírito Santo. A concepção clássica do metodismo, e por conseqüência dosmovimentos <strong>de</strong> santificação <strong>de</strong>le <strong>de</strong>rivados, afirmava que a vida cristã possui duasetapas distintas: a conversão, ou novo nascimento que se daria com a recepção <strong>de</strong>Jesus Cristo como salvador pelo neófito através da intervenção do Espírito Santoque o convenceria do “pecado, da justiça e do juízo”; o <strong>pró</strong>ximo passo é o processoque aperfeiçoaria o fiel, qualificando a sua espiritualida<strong>de</strong>, também pela ação doEspírito Santo e se esten<strong>de</strong>ndo por toda a vida.Os pentecostais propuseram uma tripartição da vida cristã. A conversãotambém é para os pentecostalistas um novo nascimento, ou seja, sem diferença daconcepção anterior. Já no estágio <strong>de</strong> santificação ou “segunda benção”, o EspíritoSanto promoveria uma purificação na pessoa do crente até o ponto <strong>de</strong> se po<strong>de</strong>rreceber um batismo <strong>de</strong> outra espécie, não das águas, mas <strong>de</strong> línguas <strong>de</strong> fogo, istoé, o batismo do Espírito Santo. O falar em línguas se torna o distintivo marcante quecaracteriza a visão teológica pentecostal com seu realce na pneumatologia.Mas o falar em línguas também se torna uma forma <strong>de</strong> codificação social.Além <strong>de</strong> William Joseph Seymour em Los Angeles, outra figura reivindica o título <strong>de</strong>pai mo<strong>de</strong>rno pentecostalismo, Charles Fox Parham, mentor <strong>de</strong> Seymour, que anos


22antes em Topeka, Kansas havia i<strong>de</strong>ntificado o falar em línguas como obra doEspírito Santo.Entretanto, Parham advogava a xenoglassia, ou seja, falar uma línguaestrangeira sem tê-la estudado como o verda<strong>de</strong>iro batismo, enquanto Seymourargumentava ser a glossolalia, quer dizer, falar em língua <strong>de</strong>sconhecida ou angélica,como sinal da operação do Espírito Santo. Comentando esta disputa, Siepierski<strong>de</strong>staca:Essa distinção entre xenoglassia e glossolalia no início dopentecostalismo é importante por pelo menos três implicações. Emprimeiro lugar, Goff nos informa que No estado <strong>de</strong> Kansas, on<strong>de</strong>Parhan tinha seu ministério, por volta <strong>de</strong> 1910 mais <strong>de</strong> vinte por centodos adultos nascidos no exterior não falavam inglês, e essepercentual era maior ainda para outros estados do centro-oeste. Naregião <strong>de</strong> Chicago, que havia recebido proporcionalmente maisestrangeiros, certamente esse percentual era muito maior. Para essesimigrantes que não podiam se comunicar na língua oficial, axenoglassia representava a negação da língua oficial e a legitimaçãoda língua estrangeira. O Pentecostalismo proporcionou ao imigrante,portanto um canal <strong>de</strong> expressão <strong>de</strong> sua revolta para com o mundoque, não satisfeito em tê-lo expulso <strong>de</strong> sua pátria, transformando seususos e costumes, espoliando seu trabalho, insistia em roubar-lhe alíngua, o ultimo instrumento com o qual ele po<strong>de</strong>ria reconhecer-se a simesmo. Grifos nossos (Siepierski, 2002, p. 547)Do embate saiu vencedor a tese <strong>de</strong> Seymour. A gradual integração dosimigrantes na cultura americana, inclusive com o domínio da língua inglesa, minou opotencial contestatório da xenoglassia. O êxtase glossolálico tornou-se maciçamentehegemônico e já <strong>de</strong> muito tempo não há nos meios pentecostais dúvidas quanto asua veracida<strong>de</strong> como sinal da atuação do pneuma.O pentecostalismo brasileiro foi gestado na região <strong>de</strong> Chicago tanto ofundador da Congregação Cristã no Brasil, Luigi Francescon, quanto os suecosassembleianos Vingren e Berg foram bastante influenciados pelo pastor William H.Durham, que exercia seu ministério naquela cida<strong>de</strong> e em 1907 havia se tornadopentecostal ao visitar a Missão <strong>de</strong> Azusa Street e conhecido o reverendo Seymour,com quem posteriormente estabeleceu uma controvérsia a respeito das etapas davida cristã pentecostal.A igreja <strong>de</strong> Durham era composta por uma membresia étnica e racial eculturalmente diversificada, permitindo um intercâmbio que, somado a crençaliberda<strong>de</strong> do Espírito, imprimira um caráter espontâneo à celebração do culto.


23É ainda Siepierski quem irá esboçar vínculos entre a xenoglassia e o impulsomissionário pentecostal.[...] a xenoglassia, aliada à ênfase missionária, era o dínamo daesperança por dias melhores em um mundo novo. A xenoglassia erao selo do Espírito Santo para i<strong>de</strong>ntificar aqueles que Deus haviaescolhido para reinar com Cristo no milênio. Os que aten<strong>de</strong>ssem aconvocação missionária obteriam posições <strong>de</strong> comando no governomilerista. Assim, a xenoglassia não apenas garantia ao fiel a entradano reino vindouro, como também proporcionava a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>alcançar um posto <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> em sua administração. (Ibid., p. 548)E um pouco mais adiante, ele acrescenta:Como vimos anteriormente, a xenoglassia funcionava como potentealavanca missionária na concepção pré-milenarista <strong>de</strong> Parham. Aindaque as profecias possam ter sido proferidas em línguas estranhas(glossolalia), os elementos funcionalistas da xenoglassia são bastanteevi<strong>de</strong>ntes. (Ibid., p, 552)Com todo esse entusiasmo, convictos da benção celeste a permear seusprojetos e ainda no impulso do movimento missionário iniciado no século XIX, muitoembora extremamente <strong>de</strong>sconfiados das pretensas virtu<strong>de</strong>s do progresso a gran<strong>de</strong>“meta-narrativa” 6 que embalava a socieda<strong>de</strong> daqueles princípios <strong>de</strong> 1900, ospioneiros pentecostais rumam para o Brasil.TIPOLOGIA DO PENTECOSTALISMO BRASILEIROO <strong>de</strong>senvolvimento do movimento pentecostal brasileiro, do seu surgimentoaté os dias <strong>de</strong> hoje po<strong>de</strong> ser melhor retratado a partir do emprego <strong>de</strong> uma figuraconceitual importada <strong>de</strong> uma ciência dura, a física, e assumida pelas ciênciassociais como uma metáfora elucidativa para a compreensão dos tipos pentecostaisinstalados em nosso país. Paul Freston (1993), apoiando-se em autores queestudam a história e o crescimento mundial do Protestantismo, aplica tal metáforapara lastrear seu entendimento a respeito das formas como o pentecostalismo se fezconhecido entre nós ao longo do tempo. Essas ondas seriam em numero <strong>de</strong> três,6 Cf. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-mo<strong>de</strong>rna. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Livraria José Olympio,1986. Voltar-se-à às metanarrativas um pouco mais adiante.


24bem <strong>de</strong>finidos no aspecto temporal e nas ênfases que <strong>de</strong>stacam, embora guar<strong>de</strong>mpontos comuns e penetração recíprocos entre si.Antes <strong>de</strong> Freston, Rolin (1985) já havia elaborado uma classificação tripartitepara a periodização do pentecostalismo: implantação (1910-1935),expansão/segmentação (1935-1964) e isolamento e diversificação (1964 em diante).Essa proposta parece a<strong>de</strong>quar-se ao esquema República velha – EstadoNovo/Re<strong>de</strong>mocratização – Ditadura Militar, tradicional repartição dos períodos <strong>de</strong>nossa História Republicana, o que não facilita na explicitação da dinâmica interna enas práticas sociais vivenciados pelos pentecostais <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua chegada.Outros pesquisadores como Bittencourt Filho (1991) e Mendonça (1989) emestudos <strong>de</strong> fôlego não muito longo, optaram por uma esquematização dicotômica dopentecostalismo: clássico e autônomo, para o primeiro autor e clássico e <strong>de</strong> curadivina para o último. O quadro classificatório <strong>de</strong> Freston é mais atento a realida<strong>de</strong>histórica e institucional do Pentecostalismo no Brasil, assim como também pareceser mais sensível as diferenciações internas dos diversos pentecostalismos. EmFreston, tem-se:Pentecostalismo <strong>de</strong> 1ª Onda: 1910-1950Pentecostalismo <strong>de</strong> 2ª Onda: 1950-1970Pentecostalismo <strong>de</strong> 3ª Onda: 1970 em dianteMariano (1999) irá <strong>de</strong>bruçar-se sobre este esquema, retrabalhando asrespectivas ondas a partir, principalmente, das ênfases teológicas e dos métodos <strong>de</strong>atuação das igrejas pentecostais, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rando o critério geográfico no qualFreston, em obra posterior, sustentava seu argumento. No tal estudo Frestonassinala que o pentecostalismo <strong>de</strong> 2ª geração seria paulista, enquanto que o <strong>de</strong> 3ªonda teria surgido num contexto carioca (1994, p. 71) 7 .7 Rebatendo a proposição <strong>de</strong> Freston, Mariano dirá que: a) a influência <strong>de</strong> autores estrangeiros àteologia da prosperida<strong>de</strong>; b) a intensificação do intercambio com entida<strong>de</strong>s e centros <strong>de</strong> propagação<strong>de</strong>sta perspectiva teológica minimizariam os contextos regionais on<strong>de</strong> surgiram as expressões dopentecostalismo pátrio. Quanto à afirmação <strong>de</strong> Freston sobre o papel <strong>de</strong>sempenhado da Igreja Deusé Amor na questão das práticas das igrejas pentecostais <strong>de</strong> terceira onda, Mariano assevera “que étemerário afirmar que Deus é Amor, seja a precursora <strong>de</strong>stes elementos que anteciparam práticas ecrenças na Universal. Até porque a Deus é Amor, <strong>de</strong> origem paulista, sectária e com presençarelativamente mo<strong>de</strong>sta no Rio <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong> surgiram Universal, Internacional da Graça <strong>de</strong> Deus eCristo Vive, parece não ter exercido qualquer influência no pentecostalismo cariosa e muito menosnas li<strong>de</strong>ranças neopentecostais”. (Mariano, 1999, p. 42)


25A proposição <strong>de</strong> Mariano po<strong>de</strong>ria ser assim representada:Tabela n. 01Ondas <strong>de</strong> Pentecostalismo e suas ênfasesONDA TIPO EXEMPLOS ÊNFASETEOLÓGICA1ª ONDA Pentecostalismo • Assembléia <strong>de</strong> Deus; Dom <strong>de</strong> línguas• Congregação Cristã2ª ONDA Deuteropentecostalismo • Igreja do Evangelho Dom <strong>de</strong> cura divinaQuadrangular;• O Brasil para Cristo;• Deus é Amor3ª ONDA Neopentecostalismo • Igreja Universal do Prosperida<strong>de</strong>;Reino <strong>de</strong> Deus;• Igreja Internacional Batalha espiritual.da Graça;• Renascer em Cristo;• Sara Nossa Terra;Para Mariano, não haveria uma ruptura propriamente dita entre opentecostalismo clássico e o <strong>de</strong>uteropentecostalismo, uma vez quesubstancialmente a teologia permanece a mesma, embora com acentos em dons doEspírito distintos em cada caso. No que concerne aos métodos, há <strong>de</strong> fato, umamodificação nos meios <strong>de</strong> evangelização, com a entrada em cena das gran<strong>de</strong>scruzadas evangelísticas e o emprego do rádio para uma maior difusão damensagem. O <strong>de</strong>uteropentecostalismo, portanto, inaugura a era do evangelismo <strong>de</strong>massa no Brasil, repetindo um mo<strong>de</strong>lo já experimentado nos Estados Unidos, comoinforma Mariano (1999, p. 31).Já para abordar os pentecostais <strong>de</strong> origem recente, Mariano emprega o termoneopentecostal, vocábulo absorvido pela Aca<strong>de</strong>mia, estudiosos do tema, imprensa epela socieda<strong>de</strong> em geral. No horizonte <strong>de</strong>ssa pesquisa, tem-se que o prefixo “neo”não caracterizaria bem a inovação que estes pentecostais representam.Em que pese a consagração ampla do termo e a argumentação <strong>de</strong> Marianoem seu favor, esta pesquisa se pauta na utilização do termo pós-pentecostalismo,<strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Paulo Siepierski (1997), nem tanto pelo caráter <strong>de</strong> ruptura que o autor


26procura conferir ao vocábulo, já que Siepierski critica o emprego da palavraneopentecostalismo justamente por trazer em si a idéia <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>. Enten<strong>de</strong>-seque o pentecostalismo <strong>de</strong> terceira onda se move entre rupturas e continuida<strong>de</strong>s,sendo bastante fortes tanto o seu caráter inovador quanto suas peculiarida<strong>de</strong>scontinuístas, o que lhe dá feições <strong>pró</strong>prias. Se ocorre o afastamento da ênfase nosdons <strong>de</strong> línguas, o dom <strong>de</strong> curas miraculosas é muito difundido. Se propõe umaacentuação exagerada da teologia da prosperida<strong>de</strong>, o faz aperfeiçoando a técnicada comunicação <strong>de</strong> massas que foi <strong>de</strong>senvolvida pelo <strong>de</strong>uteropentecostalismo.O emprego do termo pós-pentecostalismo aponta para o contexto cultural emque o pentecostalismo recente vai nascer e crescer. É sobremodo valioso conectaressa nova forma <strong>de</strong> portar-se diante do sagrado com a nova maneira <strong>de</strong> encarar erelacionar-se com o mundo, que os estudiosos tem chamado <strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Éindubitável os encaixes e interpenetrações que harmonizam a cultura pós-mo<strong>de</strong>rna eos modus vivendi e operandi dos pentecostalistas surgidos <strong>de</strong> pouco mais <strong>de</strong> 30anos para cá.O PROJETO MODERNO E O PROTESTANTISMOA mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> se mostrou pretensiosa. Encarava-se a si <strong>pró</strong>pria como eradas luzes, daí iluminismo, crença e programa embasado na capacida<strong>de</strong> da razão embem conduzir o ser humano. Por isso, o tempo em que a fé predominou comoorientadora geral do pensar e agir dos homens e mulheres foi chamado <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> dastrevas; o medievo como uma longa noite <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> mil anos, que agora éafugentada pelo raiar do sol da razão, pronta a provi<strong>de</strong>nciar aos homens oprogresso, o <strong>de</strong>senvolvimento, o conhecimento, a liberda<strong>de</strong>. Para tanto, encampa<strong>de</strong>cididamente o projeto <strong>de</strong> Francis Bacon (1511-1626) <strong>de</strong> domínio da natureza, <strong>de</strong>vencê-la pelo conhecimento. Ora, saber é po<strong>de</strong>r, afirmava Bacon.Este conhecimento também era i<strong>de</strong>alizado. Na obra Nova Atlântida, haviauma prescrição <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>, uma socieda<strong>de</strong> i<strong>de</strong>alizada, na qual a ciência seria agran<strong>de</strong> encarregada <strong>de</strong> ofertar ao gênero humano a felicida<strong>de</strong>. Em Bacon, verda<strong>de</strong> eutilida<strong>de</strong> são entrelaçadas. Toda verda<strong>de</strong> é útil e tudo o que é útil <strong>de</strong>ve serverda<strong>de</strong>iro. Daí, a necessida<strong>de</strong> do conhecimento. O conhecimento seria o mediadorentre as circunstâncias que ro<strong>de</strong>iam os homens e mulheres e os <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong>stes.Pelo conhecimento, transformar-se-ia o mundo, visando o bem estar humano.


27Os sucessores <strong>de</strong> Bacon, os iluministas propriamente ditos, marcaram <strong>de</strong>maneira profunda o <strong>de</strong>senvolvimento da cultura e do pensamento oci<strong>de</strong>ntal. Aenvergadura do ser humano foi aumentada. Ampliou-se o otimismo em relação aopotencial e a capacida<strong>de</strong> dos seres humanos em construir sua história e seu futuro,em <strong>de</strong>trimento da antropologia pessimista fundada na queda e na <strong>de</strong>pravação totaldo homem que predominara por todo o período pré-mo<strong>de</strong>rno. Descartou-se arevelação divina como condutora no processo <strong>de</strong> aquisição do conhecimento e comoárbitra do que seria verda<strong>de</strong>iro ou não. O uso da razão passa a dar conta dasistematização dos dados da experiência dos sentidos. Duas gran<strong>de</strong>s guinadascriaram as condições propícias para esta mudança <strong>de</strong> mentalida<strong>de</strong>. Com RenéDescartes (1596-1650) é inaugurado um novo padrão epistemológico, queprivilegiava o quantitativo, o matemático, valendo-se <strong>de</strong> um rígido plano<strong>de</strong>monstrativo, no qual a dúvida manuseada com rigor acaba por fornecer certezasinquestionáveis. A mente humana passa a perscrutar escrupulosa e criteriosamenteos problemas que lhe são postos.Já Isaac Newton (1642-1727) promoveu as alterações na maneira <strong>de</strong> pensaro mundo físico, fazendo <strong>de</strong>smoronar o entendimento do cosmos conforme era dadapela figura medieval dos três andares (céu na cobertura, terra no andar médio einferno no porão). O mundo que surge após Newton é matematizável, po<strong>de</strong> serobservado e compreendido a partir <strong>de</strong> certas leis universais.O iluminismo apoiado nestes antece<strong>de</strong>ntes irá edificar alguns princípiosnorteadores <strong>de</strong> seu esforço teórico a respeito do homem e do mundo. O primeiro emaior <strong>de</strong>les é o princípio da razão. Deve ser entendido o termo razão como algomaior que a capacida<strong>de</strong> intelectiva dos seres humanos. Haveria uma or<strong>de</strong>m e umaestrutura inerentes à realida<strong>de</strong>. Esta or<strong>de</strong>m e sua estrutura seriam perceptíveis àmente humana, havendo mesmo uma espécie <strong>de</strong> correspondência entre elas quepermitiriam ao homem possuir a habilida<strong>de</strong> para compreen<strong>de</strong>r e discernir asestruturas do mundo que o envolve. Ao princípio da razão, na ótica iluminista, estavasubjacente a crença na racionalida<strong>de</strong> objetiva do universo.O princípio da natureza aparece visceralmente ligado ao anterior. O universoseria um lugar on<strong>de</strong> reinaria a or<strong>de</strong>m, regido por leis, as leis da natureza. Estas leisseriam acessíveis ao homem que empregasse a razão para conhecê-las. Com asconquistas <strong>de</strong>sta nova maneira <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o mundo, foi-se afirmando a autonomia,pela erosão da aceitação dos pontos <strong>de</strong> vista dogmáticos e do recurso aos


28argumentos <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>, como o “assim está escrito” da Bíblia, ou “esse é oensinamento dos pais da igreja” do magistério.A autonomia exigia que cada indivíduo se empenhasse em <strong>de</strong>scobrir e sea<strong>de</strong>quar a lei natural que organizava o universo a fim <strong>de</strong> surgir uma socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong>se vivesse <strong>de</strong> forma harmônica. A harmonia, por seu turno, não era umacaracterística das leis da natureza com emprego imediato na vida social. Serianecessária a observação <strong>de</strong> princípios éticos que conduziria e governariam a açãohumana. Uma ética genuína só seria possível pelo banimento das modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>tutela, isto é, da incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar por si <strong>pró</strong>prio e <strong>de</strong> agir <strong>de</strong> maneira livre econsciente.Há ainda no panorama <strong>de</strong> princípio iluminista, a questão do progresso. Todo oconhecimento adquirido <strong>de</strong>veria voltar-se para a aplicação. Era preciso, uma vez<strong>de</strong>scoberta uma dada lei natural, tirar o melhor proveito <strong>de</strong>la. Todos os sereshumanos se beneficiariam do uso da razão. O mundo se tornaria um lugar melhor.As invenções e <strong>de</strong>scobertas científicas daquele período, todas elas <strong>de</strong>correntes doemprego das premissas advogadas pelo Iluminismo, fizeram surgir um sentimento<strong>de</strong> otimismo. O processo histórico estava, <strong>de</strong> um modo geral, orientado para frente,avançava.A gran<strong>de</strong> figura do projeto iluminista, aquele que lhe aprimorou as idéiasdando feições mais bem <strong>de</strong>lineadas, sem sombra <strong>de</strong> dúvidas, é Emanuel Kant(1724-1804). Na sua Crítica da Razão Prática há uma muito bem montadaaproximação dos postulados metafísicos. Em Kant, a metafísica pertencia aoaspecto “prático” da razão humana, sendo associado à dimensão moral daexistência. Nenhuma realida<strong>de</strong> que transcenda os limites do espaço e do tempopo<strong>de</strong> ser apreendida pela Ciência. Os humanos não experimentam apenas as coisasdo sensível, mas também as da moral. Dentro da teoria kantiana, a experiênciahumana no campo da moral é universal, (ou ao menos universalizante, isto é, sujeitaa uma tentativa <strong>de</strong> universalização, diriam os críticos), a isto Kant chamou <strong>de</strong>“<strong>de</strong>ver”. A vida humana consistiria em portar-se <strong>de</strong> acordo com as exigências dadimensão moral, em outras palavras, equivaleria a tornar-se o mais racionalpossível.O caminho traçado pelo <strong>de</strong>ver irá culminar num princípio <strong>de</strong> moralida<strong>de</strong>altamente racionalizado, a saber, o imperativo categórico, que na verda<strong>de</strong> nada maisé do que um método on<strong>de</strong> se testam ações para se verificar se são passíveis <strong>de</strong>


29universalização. É famoso o aforismo “age <strong>de</strong> tal modo que a máxima da tua açãopassa sempre valer mais como princípio universal da conduta”. Para chegar a um talestado <strong>de</strong> acuida<strong>de</strong> moral e racional, era preciso que o ser humano reconhecesse opapel ativo da mente no processo epistemológico. Com isso, a noção <strong>de</strong> espaço etempo não seriam proprieda<strong>de</strong>s existentes in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da consciência dochamado sujeito cognoscente. Antes, espaço e tempo se constituiriam em maneiras<strong>de</strong> se or<strong>de</strong>nar e conhecer a realida<strong>de</strong> propostas pela <strong>pró</strong>pria mente humana.O eu autônomo se <strong>de</strong>staca, torna-se central na composição do saber. O serpensante não era mais um entre outras entida<strong>de</strong>s existentes no mundo. Subjugoutodas elas, candidatou-se à universalização. Assim, dado que naquilo que concerneàs questões fundamentais as pessoas seriam iguais em qualquer parte, aquilo queum eu refletia sobre si mesmo não era relativo somente a si, mas absoluto emrelação a todos os outros. Desta forma, pronunciamentos sobre a natureza humanaemitidos dos pontos centrais e hegemônicos do globo, como a Europa <strong>de</strong> Kant,teriam peso <strong>de</strong> lei, <strong>de</strong>veriam ser seguidos a risca para o bem dos povos e culturas“atrasados”. Tudo em nome do bem da humanida<strong>de</strong>, do progresso, da civilização. Okantismo legitima uma espécie <strong>de</strong> pretensão transcen<strong>de</strong>ntal que advoga serem asformulações <strong>de</strong> uma mente e os costumes da cultura on<strong>de</strong> aquela mente (oumentalida<strong>de</strong>, como queiram) se insere, o reflexo do que seria universalmente válido(porque racional) e, portanto, o que é universalmente humano.Kant não atribui nenhuma significação ao meio cultural como mediador doconhecimento ou da moralida<strong>de</strong>, que em certo sentido, para Kant eram a mesmacoisa. No seu enten<strong>de</strong>r, a relação se dava exclusivamente entre o eu autônomo e alei universal, o primeiro sempre buscando perceber e encarnar os ditames da última,e neste <strong>de</strong>senrolar, aprimoram-se as práticas sociais.A teologia do Protestantismo histórico também se contaminou com aarrogância da totalida<strong>de</strong> na qual se forjou a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Os movimentos <strong>de</strong>reforma religiosa e os seus posteriores <strong>de</strong>sdobramentos estão calçados nosmesmos sapatos do projeto mo<strong>de</strong>rno. Não só porque legitimou do ponto <strong>de</strong> vistateológico à nova mentalida<strong>de</strong> nascente, como irá apontar Max Weber 8 ,8 Max Weber promove uma inovação na pesquisa sociológica, elaborando uma maneira peculiar <strong>de</strong>explicar os fenômenos sociais, valendo-se do estado dos múltiplos fatores que implicam num fato eque também se explicam reciprocamente. Em A ética protestante e o espírito capitalista, ele afirmaráa existência <strong>de</strong> uma “afinida<strong>de</strong> eletiva” entre o nascimento do sistema e mentalida<strong>de</strong> capitalista e adoutrina calvinista da eleição, que afirma ser sinal da graça divina o sucesso material, além <strong>de</strong> propor


30principalmente nos âmbitos políticos e econômicos. O Protestantismo também ce<strong>de</strong>uà tentação <strong>de</strong> tudo catalogar e <strong>de</strong>finir. As gran<strong>de</strong>s confissões protestantes doperíodo mo<strong>de</strong>rno, como a <strong>de</strong> Westminster, a Fórmula da Concórdia, o Sínodo <strong>de</strong>Dort, os 39 Artigos <strong>de</strong> Religião e <strong>de</strong>pois os 25 Artigos do Metodismo só para daralguns exemplos, evi<strong>de</strong>nciam a tentativa <strong>de</strong> legislar, <strong>de</strong> impor um saber, um conjunto<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s sobre Deus e a religião.Se a época áurea das concepções mo<strong>de</strong>rnas foi o século XIX, não é <strong>de</strong> seespantar que este também seja o momento <strong>de</strong> maior efervescência doProtestantismo. Neste período, ficam novamente claras as afinida<strong>de</strong>s e por vezes acumplicida<strong>de</strong> entre o protestanismo e a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. O avanço das <strong>de</strong>scobertascientíficas, como a intuição <strong>de</strong> Charles Darwin no que diz respeito à evolução dasespécies, o contínuo ir entre frente da industrialização, encheu os protestantes <strong>de</strong>esperança num futuro dourado para o mundo, no qual o Protestantismo seria oprotagonista, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que assumisse suas responsabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo. Mais umavez o voluntarismo contido na teologia arminiana adotada pelo metodismorepresenta um papel importante no cenário religioso anglo-saxão, com repercussõesem vários cantos do globo. Mendonça assinala que:[...] os avivamentos <strong>de</strong>sembocam sempre e necessariamente noprincípio do voluntarismo. O homem é senhor <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong> eresponsável por suas ações e é capaz <strong>de</strong>, por seus <strong>pró</strong>prios esforços,aperfeiçoar-se constantemente. Contra a doutrina da eleição surge adoutrina do amor <strong>de</strong> Deus: Deus ama a todos os homens e quer quetodos se salvem. A contrapartida humana é a disposição individualpara aceitar esse amor e dispor-se a modificar a vida para melhor, oque implica em novas formas <strong>de</strong> vida involucradas numa éticarigorosa. Há gran<strong>de</strong> ênfase na capacida<strong>de</strong> humana e no seu<strong>de</strong>sempenho. (Mendonça, op. cit., p. 57)São bastante sensíveis no Protestantismo americano daqueles anos ainfluência do racionalismo e do evolucionismo que em muito são favorecidos pelacosmovisão do humanismo pragmático e igualitarista que fora gestado e nutrido nosanos <strong>de</strong> formação da nação americana. A teologia que surge <strong>de</strong>ssa combinação émarcantemente preocupada com o social.uma ética ascética. No enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Weber, a maneira como o Protestantismo reinterpreta o conceito<strong>de</strong> vocação (do alemão Beruf), é também <strong>de</strong> suma importância para pavimentar a estrada que vai darno capitalismo. Cf. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira,1993.


31[...] é bastante compreensível a centralida<strong>de</strong> teológica no ser humanocomo agente moral livre, no Cristo crucificado (o Deus homem arrastae vence as <strong>pró</strong>prias condições humanas), na religião ética e na féracional e experimental. Uma escatologia otimista e progressistamarca a dinâmica <strong>de</strong>ssa teologia fortemente antropológica. Assim, oProtestantismo americano do século XIX orientou-se no sentido <strong>de</strong>conduzir o pensamento cristão a uma unida<strong>de</strong> orgânica com o ponto<strong>de</strong> vista evolucionista, com os movimentos <strong>de</strong> reconstrução social ecom as esperanças <strong>de</strong> “um mundo melhor”, pensamento dominante,então, não mente humana em geral. (Ibid., p. 58)É neste ponto que aparece a questão do “Destino Manifesto”. Quando os nãoconformistasingleses <strong>de</strong>ixaram a Inglaterra e rumaram para a recém <strong>de</strong>scobertacolônia americana, eles acalentavam um sonho: alcançar a terra prometida. Assim, oseu projeto inicial era fundar uma nova socieda<strong>de</strong> alicerçada em novos pilares, ouem outras palavras, uma civilização cristã aos mol<strong>de</strong>s do Protestantismo,<strong>de</strong>stacadamente do Protestantismo puritano. Diferia da antiga cristanda<strong>de</strong> <strong>católica</strong>justamente por não admitir em hipótese alguma a junção/união entre Estado e Igreja,uma vez que fora por conta <strong>de</strong>s<strong>de</strong> hibridismo que <strong>de</strong>correra o abandono da terranatal: não havia liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> culto na Inglaterra, pois a coroa também acumulava ocajado pastoral.Havia naqueles “pais peregrinos”, <strong>de</strong> fé calvinista, uma profunda convicção <strong>de</strong>sua escolha para uma missão singular. Eles eram o povo escolhido, liberto por Deus<strong>de</strong> uma escravidão espiritual, em busca da terra on<strong>de</strong> manaria leite e mel. Comoessa terra já era habitada, assim como os povos cananeus habitavam o territórioalmejado pelos seguidores <strong>de</strong> Moisés, era preciso conquistar a terra, combater osnativos e estabelecer esta civilização eleita. Os americanos <strong>de</strong> hoje parecemcontinuar utilizando a teologia/i<strong>de</strong>ologia do Destino Manifesto, só que na perspectivatriunfalista, do <strong>de</strong>slumbramento da sua pretendida eleição, e na maneira arrogante epresunçosa que atribui a si e a seu papel no mundo.Essa crença no protagonismo dos americanos nos <strong>de</strong>stinos do planeta é algoque no correr dos anos ultrapassou os limites da religião e a<strong>de</strong>ntrou fortemente nocampo da cultura e da política, sendo um componente vigoroso do ethos norteamericano.O professor e filosofo brasileiro Roland Corbisier apresenta algunstestemunhos que constatam a <strong>de</strong>cisiva influencia <strong>de</strong>sta mentalida<strong>de</strong> americana. Omessianismo, a consciência da <strong>pró</strong>pria pre<strong>de</strong>stinação, não é privilégio do povo ju<strong>de</strong>unem do povo alemão. Em 1765, John Adams escrevia: “Sempre consi<strong>de</strong>ro a


32fundação dos Estados Unidos como um <strong>de</strong>sígnio da providência, concebido com ofim <strong>de</strong> esclarecer e emancipar aquela parte da humanida<strong>de</strong> que ainda se encontrareduzida à escravidão”. No século passado, Herman Melville dizia coisa semelhante:“E nós, americanos, somos um ponto muito especial, um povo eleito, Israel do nossotempo; carregamos a arca das liberda<strong>de</strong>s do mundo”. E, já em nosso século, opresi<strong>de</strong>nte assassinado John Kennedy, <strong>de</strong> fé <strong>católica</strong>, mas completamentecompromissado com esse espírito que plasma toda a socieda<strong>de</strong> estaduni<strong>de</strong>nse,afirmou que os americanos, “mais por <strong>de</strong>stino que por sua vonta<strong>de</strong>, são assentinelas postadas, no mundo todo, sobre as muralhas da liberda<strong>de</strong>”. (Corbisier,1976, p. 119)Perguntar-se-ia: se não havia uma força estatal coibidora, que forçasse aobservância e provesse a manutenção <strong>de</strong> uma religião única, como se po<strong>de</strong>riagarantir a continuida<strong>de</strong> do espírito piedoso e ascético dos fundadores da naçãoamericana? A resposta não po<strong>de</strong>ria ser mais entrosada com a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: pelaexistência <strong>de</strong> instituições sólidas e pela educação, esta a gran<strong>de</strong> moldadora docaráter humano, como apregoava Jean-Jacques Rousseau. Os americanos estavamcertos <strong>de</strong> haver encontrado a receita. Novamente Mendonça se pronuncia:Deve-se compreen<strong>de</strong>r o espírito do i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> civilização cristã. Pareceque os americanos não afirmavam ter realizado ou estar prestes arealizar o Reino <strong>de</strong> Deus na terra, mas que tinham, a duras penas,encontrado o caminho.[...] O avanço da civilização, nos princípios do progressismo,norteava-se pela vinda do Reino <strong>de</strong> Deus, aperfeiçoamento ecoroação <strong>de</strong>ssa civilização. A expectativa milenarista no século XIXna América era intensa e extensa, embora variassem os <strong>de</strong>talhesteológicos. (Mendonça, op. cit., p. 58-59).Tudo concorria para uma aproximação entre a mentalida<strong>de</strong> religiosaamericana com sua inclinação para o comandar a implantação do novo cristianismoe a percepção do rápido progresso da humanida<strong>de</strong>, algo sem possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>retrocessos no sentir do povo americano do século XIX.Para muitos lí<strong>de</strong>res e pensadores eclesiásticos, a vinda do Reino sedaria após a implantação da civilização cristã; por isso, acristianização da socieda<strong>de</strong> seria uma preparação para a vinda doReino <strong>de</strong> Deus. Sendo a vinda do Reino não algo particular para osamericanos, mas um evento cósmico, é mais ou menos claro que foifácil passar <strong>de</strong>ssa crença para a empresa missionária via “DestinoManifesto”.


33A crença na possibilida<strong>de</strong> da realização do Reino <strong>de</strong> Deus na terraintensificou a cooperação entre todas as <strong>de</strong>nominações protestantes,que, embora mantivessem suas características <strong>pró</strong>prias assim comosuas formas especificas, nivelaram-se numa teologia mais ou menosuniforme como produto dos reavivamentos e do metodismo. As<strong>de</strong>nominações dispunham-se a cooperar para a reforma do mundo apartir da visão <strong>de</strong> um população religiosa, livre, letrada, industriosa,honesta e obediente às leis.Durante todo o século XIX, imperava a idéia <strong>de</strong> que religião ecivilização estavam unidas na visão da América cristã e que Deus temsempre agido através <strong>de</strong> povos escolhidos. Os <strong>de</strong> língua inglesa,escolhidos mais do que quaisquer outros, são obrigados a propagaras idéias cristãs e a civilização anglo-saxônica eram os EstadosUnidos. (Ibid., p. 60-61)O casamento entre teologia <strong>de</strong> Destino Manifesto e o progresso humanoocorrido no ambiente cultural anglo-saxônico, gerará dois rebentos: oempreendimento missionário e a escatologia pós-milenarista. O último servirá <strong>de</strong>plataforma ao primeiro, que por sua vez funcionará como ponta-<strong>de</strong>-lança daquele.Os dois, entretanto, em maior ou menor grau, quer conscientemente ou não,prestaram um inestimável serviço ao imperialismo dos países do hemisfério norte,como <strong>de</strong> resto inúmeras ciências e pesquisadores também o fizeram.Sobre o Pós-milenarismo 9 , po<strong>de</strong>-se afirmar que ele evoca uma concepçãosobre o tempo e a historia <strong>de</strong> caráter evolucionária, <strong>de</strong>sautorizando as posturasapocalípticas. Seu foco era o futuro a partir do agora, o eixo <strong>de</strong>sta escatologia giravaem torno das idéias <strong>de</strong> progresso social e humano. O método histórico-crítico <strong>de</strong>estudo da Bíblia, há muito utilizado pelos centros formadores <strong>de</strong> teologia naAlemanha, é recepcionado pelos seminários americanos, implicando uma revisão naliteratura <strong>de</strong> livros canônicos como o <strong>de</strong> Apocalipse <strong>de</strong> São João e o do profetaDaniel. A proposta pós-milenarista foi gradativamente se afinando com oamilenarismo, que propugnava a suspensão <strong>de</strong> toda e qualquer especulação a9 O pesquisador <strong>de</strong> movimentos messiânicos e milenarismos francês, Henri Deroche, traz a seguintecompreensão sobre o pós-milênio enquanto movimento-idéia <strong>de</strong>ntro do cristianismo protestante:“Pós-milenarismo: 1. O reino <strong>de</strong> Deus instaura-se progressivamente por intermédio <strong>de</strong> um processoevolutivo, integrando-se ao enca<strong>de</strong>amento dos fatos históricos (sociais e eclesiásticos) e orientando omundo, pela lógica interna <strong>de</strong> sua evolução social e religiosa, em direção a um ponto em que, aexemplo da árvore que dá um fruto, ele produzirá o reino milenário ou messiânico. 2. A ação dohomem animada e controlada pela religião não apenas <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> se opor a essa chegada última. Porsua <strong>pró</strong>pria natureza, ela acelera seu ritmo. O milênio, em todo caso, vem <strong>de</strong>pois (pós) <strong>de</strong>sse esforçohumano coletivo que é uma <strong>de</strong> suas condições previas.” In: DESROCHE, Henri. Dicionário <strong>de</strong>messianismos e milenaristas. São Bernardo do Campo: Umesp, 2000, p. 37


34respeito do fim do mundo e do reinado vindouro <strong>de</strong> Cristo, dando origem aochamado Evangelho social.As idéias centrais do novo estado <strong>de</strong> animo era continuida<strong>de</strong> natural eprogresso social. O otimismo impregnava o ar. O impulsor era oantigo pós-milenarismo, mas acompanhado agora da teoriaevolucionista <strong>de</strong> Darwin. A crença na continuida<strong>de</strong> natural significavaque, <strong>de</strong> fato, crise alguma era esperada. Aliado a isso, <strong>de</strong>paramo-noscom o mesmo culto à eficiência e ao pragmatismo já constatado nopré-milenarismo, só que agora a serviço <strong>de</strong> uma gama antiética <strong>de</strong>valores. Aqui também, e com menos escrúpulos do que em círculospré-milenaristas, administravam-se igrejas e organizações religiosas àmoda empresarial. A edificação do reino <strong>de</strong> Deus se tornara umaquestão tanto <strong>de</strong> técnica e programação quanto <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> e<strong>de</strong>voção religiosa. (Bosch, 2002, p. 387-88)Essa noção <strong>de</strong> que seria <strong>de</strong>snecessário aos planos <strong>de</strong> Deus uma gran<strong>de</strong>crise ou intervenção turbulenta entre o período terreno da graça e o período celesteda glória – o milênio <strong>de</strong> Cristo, uma espécie <strong>de</strong> transição entre o sazonal e o perene– causou inúmeros <strong>de</strong>sconfortos na igreja protestante norte americana. OPuritanismo que permeara a formação teológica americana concebia uma outra idéia<strong>de</strong> reino <strong>de</strong> Deus, baseada na i<strong>de</strong>ntificação da personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus mais <strong>pró</strong>ximado antigo testamento, ou seja, um Deus zeloso, ciumento, que vasculha asprofun<strong>de</strong>zas da alma humana cobrando santida<strong>de</strong> e pureza, pronto a exercer ajustiça divina a ponto <strong>de</strong> extermina o pecado e punir o pecador.O Protestantismo estava dividido entre liberais e conservadores, tanto nosEstados Unidos quanto na Europa. A empresa missionária patrocinada pela linhaliberal reconhecia alguma verda<strong>de</strong> nas religiões não-cristãs e passaram a enfatizarnão a salvação da alma, mas a transformação do mundo, redirecionando amensagem que abandona o foco no indivíduo e se concentra na socieda<strong>de</strong>. A alaconservadora persistiu nas velhas crenças e nos antigos métodos. Oaprofundamento <strong>de</strong>sta divisão fará surgir no meio conservador o fundamentalismo.Apoiou-se e construções teológicas <strong>de</strong> natureza conservadora os movimentos <strong>de</strong>santida<strong>de</strong> se apoiaram em construções teológicas conservadoras. Daí, a formulaçãodoutrinária dos pentecostais possuir um parentesco com o fundamentalismo, emboranão seja correto confundir um com o outro.Outro gran<strong>de</strong> ator na consecução do projeto mo<strong>de</strong>rno adotado peloProtestantismo foi, sem sombra <strong>de</strong> dúvidas, o Movimento Voluntário Estudantil,fundado em 1886, e que tinha como lema “a evangelização do mundo nesta


35geração”. É sintomático porque une aspectos que pareciam inconciliáveis: jovensrecém-egressos das Universida<strong>de</strong>s se apresentam às agências missionárias,aliando conhecimento técnico e acadêmico ao fervor evangelístico, fazendo <strong>de</strong>stesmissionários intelectualmente mais preparados que seus congêneres católicos, parase <strong>de</strong>ter ao caso brasileiro. As classes médias brasileiras ao comparar o nível <strong>de</strong>erudição do clero nacional com os evangelistas estrangeiros tendiam a reconhecernestes últimos um maior grau <strong>de</strong> conhecimento.Não foi apenas com o emprego <strong>de</strong> estudantes que o Protestantismo buscouassociar religião e educação, progresso e fé evangélica. O recurso à colégios eoutros estabelecimentos <strong>de</strong> ensino foi uma constante em terras brasileiras. Ocontexto sócio-político do período <strong>de</strong> implantação das missões protestantes noBrasil, foi muito propício para o relativo sucesso <strong>de</strong>sta estratégia <strong>de</strong> ancoramento eabordagem aos nativos. As tensões surgidas na socieda<strong>de</strong> nacional pela circulação<strong>de</strong> idéias liberais, anti-escravagistas e republicanas e a correlação <strong>de</strong> forças <strong>de</strong>grupos políticos divergentes que disputavam entre si a hegemonia sobre o país,divididos entre os <strong>de</strong>fensores do regime monárquico e da configuração do tecidosocial vigente à época e os simpatizantes <strong>de</strong> sistemas políticos que pareciamfomentar o <strong>de</strong>senvolvimento, a igualda<strong>de</strong> e a riqueza (confundidos e/ou i<strong>de</strong>ntificadoscom o sistema político norte-americano), favoreceu à simpatia dispensada aosmissionários por parte dos grupos que reconheciam nos elementos culturaisconstitutivos da socieda<strong>de</strong> americana uma força capaz <strong>de</strong> colaborar no alcance<strong>de</strong>ste projeto <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> para o Brasil.Estes setores sociais ligados à maçonaria, as concepções filosóficaspositivistas, a posturas políticas <strong>de</strong> cunho liberal e arraigadamente anticlericais,cujos maiores representantes se encontravam nos setores médios, escolarizados eurbanos da socieda<strong>de</strong> brasileira estavam convencidos <strong>de</strong> que mo<strong>de</strong>lo educacionalem vigor no Império não correspondia às suas expectativas nem po<strong>de</strong>ria levar o paísa saltar em busca dos patamares <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento social e econômicoconstatados nos países do hemisfério norte. Assim, engajaram-se no transplante daeducação aos mol<strong>de</strong>s protestantes e norte-americanos para o Brasil. Seu afã erapromover o aparecimento <strong>de</strong> uma nova mentalida<strong>de</strong> em condições <strong>de</strong> tornar-sehegemônica e fazer pen<strong>de</strong>r a balança política a seu favor.É notório que o intelectual Gilberto Freyre foi aluno do Colégio AmericanoBatista, chegando a freqüentar a Primeira Igreja Batista da cida<strong>de</strong> do Recife,


36fundada em 1886, exemplificando a camaradagem que havia entre os meiosvanguardistas da socieda<strong>de</strong> brasileira e a i<strong>de</strong>ologia educacional protestante naquelaépoca.Para atingir o objetivo conversionista era preciso promover uma espécie <strong>de</strong>choque cultural pela educação do qual sairia <strong>de</strong>stacada a superiorida<strong>de</strong> da culturaamericana e da fé protestante:Nós, os evangélicos, estamos plenamente convencido dasuperiorida<strong>de</strong> dos nossos i<strong>de</strong>ais, mas o povo culto em geral nãoaceita o Evangelho antes <strong>de</strong> ficar convencido da superiorida<strong>de</strong> dacultura evangélica. Afinal <strong>de</strong> contas, a evangelização no Brasil implicano conflito <strong>de</strong> dois sistemas (ou <strong>de</strong> duas civilizações: a <strong>católica</strong> e aevangélica) e o resultado <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrara superiorida<strong>de</strong> do cristianismo evangélico. Não será fácil no Brasil,on<strong>de</strong> a vantagem do treinamento <strong>de</strong> séculos está com os católicos.Os i<strong>de</strong>ais, a maneira <strong>de</strong> pensar, as instituições políticas e domésticas,os costumes e hábitos sociais do povo, bem como a vida coletiva sãoinfluenciados e formados pela religião <strong>católica</strong>, e naturalmenteresistem, até entre os <strong>pró</strong>prios evangélicos, aos princípios <strong>de</strong><strong>de</strong>mocracia e individualismo. [...] É no campo da educação que oEvangelho produz os seus frutos seletos e superiores. (Crabtree eMesquita, 1940, p. 125-26)O <strong>de</strong>poimento acima transcrito ajuda a enten<strong>de</strong>r o porquê que Freyre, umapaixonado pelo Brasil, sua gente e sua cultura, ter <strong>de</strong>scartado o Protestantismotanto como proposta <strong>de</strong> fé quanto como visão i<strong>de</strong>ológica. Como há <strong>de</strong> ser visto maisa frente, nas colocações <strong>de</strong> Bittencourt Filho (2003), o Protestantismo se <strong>de</strong>svia da“Matriz Religiosa Brasileira”.DEFRAUDAÇÕES MODERNAS E PENCOSTALISMOSe é possível compreen<strong>de</strong>r o Protestantismo histórico como filho legítimo damo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, é também seguro afirmar surgir o movimento pentecostal das<strong>de</strong>cepções e frustrações <strong>de</strong> expressivo contingente populacional que se viu<strong>de</strong>fraudado em suas expectativas <strong>de</strong> inclusão e participação nos benefíciosprometidos pelo projeto <strong>de</strong> progresso (logo, <strong>de</strong> bem-estar) e <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia (e,portanto, para todos) alar<strong>de</strong>ado pela mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.O Pentecostalismo é, em parte, fruto da incapacida<strong>de</strong> das engrenagenscriadas pelas instituições mo<strong>de</strong>rnas <strong>de</strong> fornecer condições <strong>de</strong> abrangência einclusão. O Pentecostalismo é o filho bastardo da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Passa a olhar com


37<strong>de</strong>sconfiança o seu discurso, <strong>de</strong>sprezará as conquistas que o homem po<strong>de</strong> garantirna história. Seu horizonte é o além, o a-histórico.Uma incursão, ainda que breve, pelos movimentos <strong>de</strong> santida<strong>de</strong> americanas,é por <strong>de</strong>mais importante para situar o que estará sendo dito.Os movimentos <strong>de</strong> santida<strong>de</strong>, ou santificação, que começaram a estourar nosEstados Unidos durante o século XIX, foram uma constante por todo aquele período.As maiores influências sofridas pelos pregadores e grupos partidários da busca porsantida<strong>de</strong> foram o metodismo wesleiano, como já se viu, além do pietismo e doapocalipsismo, último ingrediente a se juntar a mistura. O pietismo era a herançados gran<strong>de</strong>s avivamentos iniciados por Jonanthan Edward, oscilando entre umaintima e reconfortante experiência pessoal do indivíduo e o recurso ao sentimentoaproximando-se muito da forma preconizada por Scheleiermacher, por exemplo. Omais interessante no pietismo, e talvez seja esse o seu maior trunfo para po<strong>de</strong>rcontinuar sendo aceito nas <strong>de</strong>nominações mais rígidas em matéria <strong>de</strong> ortodoxia,com certeza é a sua especial capacida<strong>de</strong> em combinar experiência pessoal com osagrado e um credo hermético. Assim, o pietismo não se interessava pela a<strong>de</strong>sãointelectiva à fé; focava na conversão da pessoa, e, não satisfeito, incutia nosindivíduos convertidos a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se buscar a perfeição, a santificação. Esteperfeccionismo ocasionou a abdicação dos esforços humanos em nome <strong>de</strong> umatotal entrega do ser ao divino. Despoja-se o humano imperfeito e se é <strong>de</strong>ixado levarpelo divino na obra <strong>de</strong> polimento do caráter e espírito do indivíduo.O apocalipsismo, por seu turno, é em gran<strong>de</strong> parte herança dos movimentosavivalistas somados com a pregação <strong>de</strong> grupos como os adventistas queaguardavam o retorno imediato do Cristo. Esse tipo <strong>de</strong> pensamento, embora hajacorrentes pós-milenaristas <strong>de</strong>ntro do apocalipsismo, ten<strong>de</strong> ao imobilismo e aoescapismo, <strong>de</strong>scomprometendo a pessoa com as coisas terrenas. O misticismo éuma freqüente nesta modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> crença, pois o sobrenatural está sempre naiminência <strong>de</strong> agir, quer pontualmente intervindo em favor dos fieis, quer <strong>de</strong> maneira<strong>de</strong>finitiva, como se espera ver concretizado, com a instalação repentina do governo<strong>de</strong> Cristo. Sobre o apocaliptismo e o pietismo, Mendonça dá o seu parecer:Tanto o pietismo como o apocalipticismo, juntos ou separados,recusam os termos das mudanças teológicas ou sociais; o pietismo,por ignorá-las e preocupar-se unicamente com a vida espiritual, e oapocaliptismo, por escapar para um tempo futuro <strong>de</strong> bem-


38aventurança. No último quartel do século XIX, o pré-milenismo firmouseem igrejas como a presbiteriana, a reformada, a episcopal e acongregacional. (op. cit., p. 69)O movimento <strong>de</strong> santificação era algo supra<strong>de</strong>nominacional, envolvendo agran<strong>de</strong> maioria dos fiéis <strong>de</strong> todas as <strong>de</strong>nominações norte-americanas. Algumasincompatibilida<strong>de</strong>s surgiram no seio do movimento, inviabilizando a permanênciados segmentos mais empolgados com a santificação <strong>de</strong>ntro das igrejasestabelecidas. A igreja do Nazareno, cujo lema ainda na atualida<strong>de</strong> é “santida<strong>de</strong> aoSenhor”, é fruto <strong>de</strong> cisões <strong>de</strong>rivadas da busca perfeccionista em matéria espiritualno seio da igreja metodista. É válida a inclusão neste estudo da palavra <strong>de</strong> Barrera(2005), muito pertinente e didática sobre os movimentos <strong>de</strong> santificaçãoestaduni<strong>de</strong>nses.O contexto protestante no qual surge o Pentecostalismo vale a penaser relembrado. Salvo exceção, os Pentecostalismos que chegaram àAmérica Latina, nas primeiras décadas do século XX, foram <strong>de</strong>procedência norte-americana. As raízes teológicas <strong>de</strong>sse movimentoencontram-se no metodismo e no “movimento <strong>de</strong> santida<strong>de</strong>”. Nasprimeiras décadas do século XIX, circulava nos Estados Unidos umaenorme quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> literatura evangélica, orientada a promover abusca <strong>de</strong> santificação. A doutrina wesleyana da “segunda bênção” –sendo a primeira a conversão – tornara-se objeto <strong>de</strong> procura intensa,chegando a ser uma obsessão. O fenômeno <strong>de</strong>ve ser entendido nocontexto dos “gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>spertamentos” do Protestantismo norteamericano.A literatura evangélica da época registra gran<strong>de</strong>s títuloscomo: Manual do cristão, Tratado sobre a perfeição cristã, Guia paraa perfeição cristã, Guia para a santida<strong>de</strong>, A doutrina escritural daperfeição cristã, e assim por diante. Algumas <strong>de</strong>ssas publicaçõestiveram enorme sucesso editorial, por exemplo, o Guia para aperfeição cristã, que se converteu no principal órgão do movimento <strong>de</strong>santida<strong>de</strong> entre os metodistas. A literatura estava, pois, saturada dotema da santificação. Também surgiram organizações cujo propósitoera a promoção da busca da santida<strong>de</strong>. Tudo isso levou a umarenovação da doutrina da santificação, movimento que se esten<strong>de</strong>uprimeiro entre os metodistas, que na época já eram uma das maioresIgrejas dos Estados Unidos, e logo nas outras <strong>de</strong>nominações, como aBatista e a Presbiteriana. Professores e pastores viram-se obrigadosa tratar do tema da santificação, introduzindo-o em suas aulas,escritos e conferências. (Ibid., p. 90-91)Com o passar dos anos o que era apenas influência, se tornou obsessão. Ocenário religioso norte-americano estava em ebulição. Reuniões <strong>de</strong> pregadoresavivados eram muito freqüentadas. Os fiéis se empenhavam e clamavam para queDeus vivificasse a nação americana. Ansiava-se pelo “mover po<strong>de</strong>roso do Espírito”,diriam os pentecostais <strong>de</strong> hoje. Barrera continua a <strong>de</strong>screver o quadro:


39A <strong>de</strong>scoberta do relato sobre a vida da “Igreja primitiva” no livro <strong>de</strong>Atos, na Bíblia, e a procura intensa por um novo Pentecoste refletemsena linguagem pentecostal da literatura evangélica da segundameta<strong>de</strong> do século XIX. Nesse período, o tema da santificação ésubstituído pelo Pentecoste. Dito em outras palavras, a santida<strong>de</strong>torna-se pentecostal. Esse clima permeava gran<strong>de</strong> parte doProtestantismo norte-americano, gerando certo consenso em torno dafraternida<strong>de</strong> cristã, que servia também para alimentar o sonho daunida<strong>de</strong> da nação cristã chamada a levar seu mo<strong>de</strong>lo para fora <strong>de</strong>suas fronteiras. O <strong>de</strong>nominacionalismo que separava as Igrejasparecia ce<strong>de</strong>r lugar à unida<strong>de</strong> pentecostal. Mas esse clima <strong>de</strong>fraternida<strong>de</strong> e igualda<strong>de</strong> entre as pessoas <strong>de</strong>via passar pelasuperação <strong>de</strong> problemas bem mais complicados e objetivos, como adiferença racial e a estratificação social. Ao mesmo tempo, a naçãoamericana recebia migrantes <strong>de</strong> diferentes tradições religiosas, comoju<strong>de</strong>us e católicos. A unida<strong>de</strong> americana não podia mais construir-seem torno da religião cristã. O surgimento do Pentecostalismo nosEstados Unidos foi precedido por um divisionismo entre as Igrejasprotestantes. As Igrejas se dividiam não apenas por questõesteológicas ou doutrinaria, mas também por questões sociais, <strong>de</strong> etniae <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia. As teologias da evolução, por exemplo, dividiram asIgrejas entre fundamentalistas e liberais. Um dos primeiros lí<strong>de</strong>res daAssembléia <strong>de</strong> Deus, Charles Perham, era um branco racista eadmirador da tenebrosa Ku Klux Klan. Na época, o racismo dividia opaís em duas cores. Nos estados do sul, a lei proibia os cultosreligiosos mistos.Outro dos fundadores do pentecostalismo norte-americano foi WilliamSeymour. Ele era negro, escravo e assistia escondido aos cultos <strong>de</strong>Perham. Tornou-se pregador em um grupo <strong>de</strong> santida<strong>de</strong> em LosAngeles e foi um dos primeiros a li<strong>de</strong>rar cultos pentecostais queincluíam a experiência da glossolalia ou manifestações <strong>de</strong> línguasestranhas, que se tornaria <strong>de</strong>pois a marca registrada dopentecostalismo. O Protestantismo, sempre aberto aos ensinamentosda Bíblia, não tinha como resistir a um movimento que se apoiava na<strong>pró</strong>pria Bíblia. Sobre o sentido do Pentecoste mediava apenas umaquestão <strong>de</strong> interpretação. Enquanto a tradição reformada o entendiacomo um fato histórico original, exclusivo e irrepetível, opentecostalismo passou a consi<strong>de</strong>rá-lo como promessa,conseqüentemente como experiência para o presente. (Ibid., p. 91-92)Os futuros pentecostais adotaram a escatologia pré-milenarista 10 comocartilha aplicável ao comportamento social; sua ética direcionou-se ao celeste. Osa<strong>de</strong>ptos do pré-milenarismo se tornariam <strong>de</strong> um ativismo missionário <strong>de</strong>veras10 É ainda Disroche quem fala do pré-milenarismo: “Pré-milenarismo: 1. O reino <strong>de</strong> Deus intervém exabruptopor um processo revolucionário, quebrando a corrente das causalida<strong>de</strong>s naturais e históricas,visitando o mundo por meio <strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro arrombamento a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>sintegrá-lo, reintergrando-oou não a um nível mais ou menos <strong>pró</strong>ximo <strong>de</strong>ste mundo ou do mundo do além. 2. Essa intervenção éobra <strong>de</strong> uma iniciativa caracterizada por um other worldness (misericórdia ou cólera); sem ela, a açãodo homem pelo reino milenário nada po<strong>de</strong>; ela vem antes (pré) <strong>de</strong>le, só ela torna-o possível. (Id.,Ibid.)


40significativo, daí o curto lapso temporal entre o surgimento do movimentopentecostal mo<strong>de</strong>rno e sua chegada ao Brasil em 1910.Os partidários do pré-milenarismo enxergavam um mundo radicalmentedicotômico, antíteses flagrantes entre o bem e o mal, o salvo e o perdido, o justo e opecador, não havendo meio termo: salvo pela meta<strong>de</strong> é perdido por inteiro. O<strong>de</strong>stino do indivíduo era <strong>de</strong>cidido por sua escolha pessoal, optando por aceitar aJesus ou permanecer sobre o peso da con<strong>de</strong>nação eterna. Assim, privilegiava-se aluta contra os pecados pessoais, <strong>de</strong>sprezando a temática das estruturaspecaminosas, tão caras aos pós-milenaristas.Um outro aspecto relevante on<strong>de</strong> se entrecruzam reações a favor daliberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consciência, ban<strong>de</strong>ira oriunda da Reforma do século XVI e também<strong>de</strong>stacada área do programa da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> com o seu apreço pelo indivíduo, é aortodoxia eclesiástica que procurava manter uma unida<strong>de</strong> coerente alicerçada, emparte, também no projeto mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> a tudo dar uma resposta satisfatória à razão, oque muito incomodavam aqueles que queriam maior autonomia <strong>de</strong> expressão paraas “coisas do Espírito” no ambiente das <strong>de</strong>nominações protestantes. O embate sedá justamente no nevrálgico ponto da legitimida<strong>de</strong> para se interpretar a Bíblia:No que concerne à hermenêutica, o novo movimento a<strong>de</strong>riu a duasposições as quais mesmo que seus <strong>de</strong>fensores não o tenhampercebido, eram em essência irreconciliáveis. A primeira era oprincípio, formulado classicamente no lançamento da AliançaEvangélica (britânica), em 1846, do <strong>de</strong>ver e direito ao julgamentoprivado na interpretação das Sagradas Escrituras. Esse princípioexpressava o <strong>de</strong>sejo “mo<strong>de</strong>rno” <strong>de</strong> cada crente <strong>de</strong>ve chegar a umacompreensão pessoal da fé e a um compromisso pessoal. Talconvicção, porém só po<strong>de</strong>ria estar em tensão com uma outradoutrina, ou seja, a da inerrância da Bíblia – da Bíblia como “umrepertório <strong>de</strong> fatos, uma revelação <strong>de</strong> doutrinas e uma instância <strong>de</strong>apelo para todas as questões com as quais esteja relacionada aBíblia como recipiente <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s proposicionais que po<strong>de</strong>m ser<strong>de</strong>terminadas por qualquer pessoa que a examinar comimparcialida<strong>de</strong> e como literalmente verda<strong>de</strong>ira nas suas afirmações.Em cada subgrupo, havia um conjunto <strong>de</strong> dogmas inegociáveisusados como xiboletes para <strong>de</strong>marcar a divisa entre o subgrupo eoutros; e para cada um dos dogmas apelava-se diretamente àEscritura. (Bosch, op. cit., p. 381-382)Se a estas últimas coisas que vem sendo ditas forem acrescidos do contextosocial norte americano do final do século XIX e início do XX, sobre o qual pairavauma intensa ansieda<strong>de</strong> combinada com certa frustração ante o fato da restritacapacida<strong>de</strong> da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>de</strong> incluir na esteira <strong>de</strong> seus benefícios parcelas,


41significativas da socieda<strong>de</strong>, é possível se i<strong>de</strong>ntificar as brechas e rachaduras quepermitem vir à tona o Pentecostalismo.O aparecimento <strong>de</strong> uma mentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperançada e melancólica emrelação à socieda<strong>de</strong> foi o que se seguiu. O ser humano po<strong>de</strong>ria fazer muito poucoem prol do bem-estar do mundo; <strong>de</strong>ver-se-ia aguardar o retorno <strong>de</strong> Cristo para quefossem modificados em profundida<strong>de</strong> as estruturas sociais contaminadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong>sempre pelo pecado. Dessa forma, os pentecostais assumiram uma forma <strong>de</strong> serisolacionista, retirada do mundo e <strong>de</strong> suas preocupações políticas, não formulandoum mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>vesse almejar. Seu projeto po<strong>de</strong>ria ser<strong>de</strong>nominado <strong>de</strong> a-histórico, pois obliterou as questões <strong>de</strong> cunho social da forma pelaqual enxergava a vida.Outros grupos também participantes das convicções pré-milenaristas, no dizerdo já citado Bosch, não compartilhavam tanta radicalida<strong>de</strong> na separação em relaçãoàs coisas da vida secular, não havendo “apelo no sentido <strong>de</strong> as pessoasabandonarem a maioria dos padrões do estilo <strong>de</strong> vida da classe média americana.Em verda<strong>de</strong>, era para esses valores que as pessoas <strong>de</strong>veriam ser convertidos”, oque <strong>de</strong>monstra que “esses mesmos pré-milenaristas negadores do mundo não eramrealmente apolíticos”. (2002, P. 385)Na verda<strong>de</strong>, a perspectiva teológica pré-milenar abrangia um círculo muitomaior <strong>de</strong> a<strong>de</strong>ptos do que os pentecostais. As <strong>de</strong>nominações <strong>de</strong> orientaçãoevangelical não estavam dispostas a abrir mão das benesses do progressomo<strong>de</strong>rno, uma vez que estavam inseridos no seu êxito. O corte sociológico e <strong>de</strong>classe dos seus membros <strong>de</strong>monstra que os seus valores sociais não seincompatibilizam com a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, antes ajustam-se e acomodam-se, muitodiferente do que ocorria com os pentecostais.PÓS-PENTECOSTALISMO E PÓS-MODERNIDADEUm <strong>de</strong>bate inconcluso. Um tema espinhoso. É assim que se po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rara querela entre mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, enquanto momento filosóficoculturaldo mundo <strong>de</strong> hoje. Poucas vezes uma expressão causou tanta celeuma e<strong>de</strong>sconforto nos meios eruditos quanto o vocábulo pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. A geraçãomais recente da Escola <strong>de</strong> Frankfurt, encabeçada por um gigante como JürgenHabermas, se <strong>de</strong>sdobra para afirmar a valida<strong>de</strong> ainda vigente do projeto


42emancipatório da razão iluminista, vendo nas afirmações pós-mo<strong>de</strong>rnas um fortetom conservador ou neoconservador. Do outro lado, encontra-se um Jean-FrançoisLyotard que vaticina <strong>de</strong> uma maneira bastante empolgada o <strong>de</strong>clínio das gran<strong>de</strong>snarrativas que guiavam os projetos <strong>de</strong>rivados do iluminismo, sejam eles <strong>de</strong> quecoloração fossem.Então, no que consistiria o fenômeno pós-mo<strong>de</strong>rno e quais as suasimplicações? Em primeiro lugar, há uma fratura nos eixos norteadores da existênciahumana, isto é, os antigos balizamentos (Razão, História, Estado, Ciência, Sujeito)foram colocados em cheque, postos na condição <strong>de</strong> invenções humanas, dotamanho exato <strong>de</strong> ficções.Depois, aparece uma nova apreciação do tempo. A mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> mirava ofuturo, – daí a idéia <strong>de</strong> progresso e evolução, – em contraste com o medievo prémo<strong>de</strong>rnoque se contentava em contemplar o passado. Na era pós-mo<strong>de</strong>rna estariasendo reverenciado como supremo referencial <strong>de</strong> tempo o presente, ou seja, oagora, o “faça já”. Há uma carência <strong>de</strong> expectativa futura, o que aproximaria a pósmo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>do niilismo.Po<strong>de</strong>-se ainda elencar a liberalização dos câmbios e das combinações, o quefaz do pós-mo<strong>de</strong>rno uma época <strong>de</strong> prevalência do eclético, do inusitado. Ascolagens e as bricolagens, os simulacros: tudo isso <strong>de</strong>monstra uma incrívelliberda<strong>de</strong> em se combinar fragmentos, em juntar coisas anteriormente nãoassociáveis.Contudo, nenhum fator é mais <strong>de</strong>cisivo para a <strong>de</strong>flagração do espírito pósmo<strong>de</strong>rnoquanto o advento da era da informação e da socieda<strong>de</strong> midiática. A bemda verda<strong>de</strong>, a difusão dos valores tidos como pós-mo<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong>ve muitíssimo acapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção e distribuição, a gran<strong>de</strong> capilarida<strong>de</strong> e penetração advindosdas tecnologias <strong>de</strong> informação e as novas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> entretenimento, todaselas postas a serviço do consumo.A chegada da chamada socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> informação pós-industrial comosucessora da socieda<strong>de</strong> industrial mo<strong>de</strong>rna, on<strong>de</strong> predominava a manufatura <strong>de</strong>bens, é o habitat gerador dos valores e práticas vinculados ao pós-mo<strong>de</strong>rno. Essanova mentalida<strong>de</strong>, ao menos no discurso, apregoa mais do que simplesmentetolerância por outros comportamentos e pontos <strong>de</strong> vista: ela estaria apta ahomenagear e celebrar o diferente, o diverso. Nisto talvez se encontre o gran<strong>de</strong>perigo a que Habermas faz menção a encontrar fortes traços <strong>de</strong> conservadorismo na


43empreitada pós-mo<strong>de</strong>rna, a saber, a massificação da diversida<strong>de</strong> e seurebaixamento à condição <strong>de</strong> produto, tão comercializável quanto outro qualquer epor isso passível <strong>de</strong> ser colocado à venda nas gôndolas dos supermercados.Numa posição mais mo<strong>de</strong>rada ante o duelo entre os <strong>de</strong>fensores damo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e teóricos entusiastas da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, encontra-se o sociólogoinglês Anthony Gid<strong>de</strong>ns (1991). Sua intervenção no <strong>de</strong>bate caminha no sentido <strong>de</strong>situar o tempo pelo qual passamos como o da alta-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, que viria a ser ummomento <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> aguda, que questiona a si mesmo, numa ampliação dosvalores da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> agora voltados contra si mesmo:A pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> se refere a algo diferente, ao menos como eu<strong>de</strong>fino a noção. Se estamos nos encaminhando para uma fase <strong>de</strong>pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, isto significa que a trajetória do <strong>de</strong>senvolvimentosocial está nos tirando das instituições da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> rumo a umnovo e diferente tipo <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m social. O pós-mo<strong>de</strong>rnismo, se eleexiste <strong>de</strong> forma válida, po<strong>de</strong> exprimir uma consciência <strong>de</strong> taltransição, mas não mostra que ela existe.Ao que se refere comumente a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>? Afora o sentidogeral <strong>de</strong> se estar vivendo um período <strong>de</strong> nítida disparida<strong>de</strong> dopassado, o termo com freqüência tem um ou mais dos seguintessignificados: <strong>de</strong>scobrimos que nada po<strong>de</strong> ser conhecido com algumacerteza, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que todos os “fundamentos” preexistentes daepistemologia se revelaram sem credibilida<strong>de</strong>; que a “história” é<strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> teleologia e conseqüentemente nenhuma versão <strong>de</strong>“progresso” po<strong>de</strong> ser plausivelmente <strong>de</strong>finida; e que uma novaagenda social e política surgiu com a crescente proeminência <strong>de</strong>preocupações ecológicas e talvez <strong>de</strong> novos movimentos sociais emgeral. (p. 52)Comentando Gid<strong>de</strong>ns, Campos (1997) dirá que:[...] o emprego do conceito <strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> pressupõe umaperspectiva <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> rompimento das fronteirasanteriormente <strong>de</strong>limitadas. Assim, o ser humano estaria vivendo umprocesso social <strong>de</strong> atomização, tornando-se mais individualista,<strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> historicida<strong>de</strong>, voltando-se para si mesmo, na busca <strong>de</strong>referencias para o viver diário. Nesse contexto, valoriza-se o lúdico,enfatiza-se o irracionalismo e <strong>de</strong>scrê-se da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> tudoque a caracteriza. Para o indivíduo, pouco lhe interessa o passado eo futuro, pois sua ênfase privilegia o presente. (p. 46)Para Gid<strong>de</strong>ns, a propalada pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> ainda não chegou, mas ten<strong>de</strong> ase tornar hegemônica na cultura mundial, principalmente naquela veiculada pelamídia, um estilo <strong>de</strong> vida que era, até então, um fenômeno localizado. A sua chegadanas várias regiões do mundo vai provocando o “<strong>de</strong>sencaixe dos sistemas sociais” e


44uma posterior reor<strong>de</strong>nação das relações sociais, influenciadas pela entrada contínua<strong>de</strong> novos conhecimentos.A aposta <strong>de</strong> Gid<strong>de</strong>ns é ser esta uma época <strong>de</strong> transições, caracterizada pelareflexivida<strong>de</strong> da <strong>pró</strong>pria mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. A pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> teorizada por muitos nãopassaria <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sdobramento da <strong>pró</strong>pria mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Suas palavras caminhamneste sentido:Ao invés <strong>de</strong>stes <strong>de</strong>senvolvimentos nos levarem para “além damo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>”, eles nos proporcionam uma compreensão mais plenada reflexivida<strong>de</strong> inerente à <strong>pró</strong>pria mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. A mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> nãoé perturbadora apenas <strong>de</strong>vido à circularida<strong>de</strong> da razão, mas porque anatureza <strong>de</strong>sta circularida<strong>de</strong> é <strong>de</strong>cisivamente intrigante. [...]. Amo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> revela-se enigmática em seu cerne e parece não havermaneira <strong>de</strong>ste enigma po<strong>de</strong>r ser “superado”. Fomos <strong>de</strong>ixados comperguntas que uma vez pareceram ser respostas, e <strong>de</strong>vo argumentarulteriormente que não são apenas os filósofos que se dão conta disto.Uma consciência geral <strong>de</strong>ste fenômeno se filtra em ansieda<strong>de</strong>s cujapressão todos sentem. (Gid<strong>de</strong>ns, op. cit., p. 55)Nesta etapa, é interessante sumariar os pontos principais esboçados porJean-François Lyotard, aquele que teria sido o arauto da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, emboraainda no século XIX Nietzsche já tenha lançado uma enorme suspeição sobre tudo oque procedia do iluminismo. Em primeiro lugar, Lyotard (1986) diz ser o local <strong>de</strong>instalação da condição pós-mo<strong>de</strong>rna as socieda<strong>de</strong>s pós-industriais, on<strong>de</strong> predominaa informatização, comprometendo a antiga maneira <strong>de</strong> produzir e transmitirconhecimentos. Assim sendo, a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses saberes não é mais algo que sepossa por acima <strong>de</strong> qualquer suspeita, nem po<strong>de</strong>ria este saber se preten<strong>de</strong>r fiadordos “meta-discursos” ou “meta-narrativas” (gran<strong>de</strong>s récits).As narrativas emancipatórias, mais do que qualquer outras, estariamfulminadas <strong>de</strong> modo inexorável, não escapando nada nelas contidas, quer mesmo anarrativa marxista da superação da exploração e da alienação pela socialização dotrabalho, quer ainda a narrativa capitalista da <strong>de</strong>rrota final da pobreza pelo<strong>de</strong>senvolvimento tecnológico e industrial capaz <strong>de</strong> produzir bens suficientes para asatisfação das necessida<strong>de</strong>s humanas e criação <strong>de</strong> uma situação generalizada <strong>de</strong>bem-estar.O que então substituiria como lastro e fonte <strong>de</strong> valorização as gran<strong>de</strong>snarrativas? Certamente que os discursos fragmentados, capazes <strong>de</strong> melhores


45performances em termos <strong>de</strong> imaginação, e por isso mesmo capaz <strong>de</strong> reinventar asformas <strong>de</strong> se fazer ciência e <strong>de</strong> se organizar a socieda<strong>de</strong>.Por fim, Lyotard não crê na capacida<strong>de</strong> dos seres humanos encontrarem um<strong>de</strong>nominador comum, constituindo-se o consenso uma impossibilida<strong>de</strong>. Ahumanida<strong>de</strong> não caminharia como um sujeito coletivo, unida em busca da suaemancipação conjunta. Entretanto, a condição pós-mo<strong>de</strong>rna não seria algo situadocontra o mo<strong>de</strong>rno nem mesmo após o mo<strong>de</strong>rno necessariamente.Depois <strong>de</strong>ssas consi<strong>de</strong>rações genéricas sobre a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> é precisotrazer a discussão para a esfera da religião e como esta recepciona o fenômeno dopós-mo<strong>de</strong>rno, já que nos autores acima vistos, embora não haja uma concordância,é perceptível em todos eles a impressão <strong>de</strong> que algo foi irremediavelmente alteradono ambiente sóciocultural globalizado, e que para fins <strong>de</strong>ste trabalho continuarásendo chamado pelo termo pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.Stéfano Martelli escreveu uma obra <strong>de</strong> título A Religião na socieda<strong>de</strong> pósmo<strong>de</strong>rna,no qual aborda as teorias sociológicas clássicas sobre religião, a gran<strong>de</strong>maioria <strong>de</strong>las formuladas numa época <strong>de</strong> transição do mundo rural para o mundoindustrial-urbano, e que no entendimento do sociólogo da religião italianoencontram-se obsoletas e não servem <strong>de</strong> quadro referencial interpretativo do atualestágio dos fenômenos religiosos tais quais se apresentam no mundo pós-industrial<strong>de</strong> hoje.Seguindo a linha histórica do pensamento sociológico que se <strong>de</strong>bruça sobrea religião, estuda o conceito <strong>de</strong> secularização, relacionado as transformaçõesverificadas na socieda<strong>de</strong>, culminando por realizar um esforço <strong>de</strong> construção <strong>de</strong>cenários para a religião na socieda<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna. Seu objetivo é “indicar algumaspistas <strong>de</strong> análise para uma sociologia da religião que queira ser sensível àcomplexida<strong>de</strong> do fenômeno religioso” (p. 452). Neste afã, o autor afirmará haverespaços no plano cultural para a manifestação <strong>de</strong> espontaneida<strong>de</strong> na qual é posta atranscendência, opondo uma racionalida<strong>de</strong> instrumental rígida a uma racionalida<strong>de</strong><strong>de</strong> caráter substancial, mais flexível, dinâmica e imprevisível. Nas suas <strong>pró</strong>priaspalavras:Na verda<strong>de</strong>, a observação atenta dos fenômenos sociais leva àconclusão <strong>de</strong> que a racionalida<strong>de</strong> instrumental reine incontestesomente nos meios mais especializados e, no entanto, <strong>de</strong>ve convivercom uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas simbólicas que lhe po<strong>de</strong>m ser


46reduzíveis, as quais prosperam justamente por causa da relativaautonomia que distingue o campo cultural, caracterizado por umacrescente intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fluxos comunicativos. O <strong>de</strong>sencanto e aracionalização não são, portanto, um <strong>de</strong>stino universal e irreversível;ao contrário, criam-se espaços e ocasiões para repensar, em termos<strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> substancial, nas questões-limite da experiênciahumana. Igualmente é recolocada a questão <strong>de</strong> transcendência aténas biografias <strong>de</strong> pessoas, como os cientistas, que estão mais <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong> setores dominados pela racionalida<strong>de</strong> instrumental. (Martelli, 1995,p. 452-453)O riquíssimo acervo simbólico da religião parece lhe dar a vantagem <strong>de</strong> quenecessitaria para vencer <strong>de</strong> uma vez a ameaça do processo <strong>de</strong> secularização e <strong>de</strong>elevar o religioso como um campo criativo e restaurativo do ser humano:Também no plano macro-sociológico a Religião po<strong>de</strong> encontrar novosgraus <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> em sua relação com a socieda<strong>de</strong>, na época do“eclipse da secularização”. A condição “pós-mo<strong>de</strong>rna” po<strong>de</strong>riafavorecer, paradoxalmente, um renovado interesse pela Religião,embora em níveis diversificados e com modalida<strong>de</strong>s diferenciadas,isto é, tanto no plano “micro”, como no “macro”, ao mesmo tempo emnível pessoal e em nível institucional. Tendo sido <strong>de</strong>ixada <strong>de</strong> lado aênfase colocada pela mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> sobre a secularização comoracionalização unilinear e oniabrangente, e tendo aparecido toda afragilida<strong>de</strong> da secularização como subjetivação (a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>não é apenas a época do “fim da História” mas também a da “mortedo sujeito”), a Religião constitui, hoje, uma reserva <strong>de</strong> símbolos esignificados, reproduzidos institucionalmente, ou livremente buscadospelos indivíduos, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> percursos e níveis.(Ibid., p. 453)Falando do Catolicismo europeu, seu objeto <strong>de</strong> estudo mais <strong>pró</strong>ximo, Martellienxerga na metáfora da “igreja como complexida<strong>de</strong>”, o cenário mais favorável noqual as relações entre religião e socieda<strong>de</strong> po<strong>de</strong>riam ser compreendidas. Vale apena olhar os seus argumentos:O sétimo e último cenário, que para nós oferece mais elementos parainterpretar as relações entre Religião e socieda<strong>de</strong> “pós-mo<strong>de</strong>rna” é a“metáfora da Igreja como complexida<strong>de</strong>”. Complexida<strong>de</strong>, em termos<strong>de</strong> organização da vida social, indica que, na socieda<strong>de</strong>contemporânea, reduziu-se o espaço dos comportamentos e dasexpectativas reguladas pela necessida<strong>de</strong> ou pelo costume, e que seamplia um espaço <strong>de</strong> in<strong>de</strong>terminação, ou seja, <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, aberto àiniciativa dos indivíduos e dos grupos. Complexida<strong>de</strong> é também adisponibilida<strong>de</strong>, para a vida social, <strong>de</strong> muitos outros instrumentos <strong>de</strong>intervenção aos <strong>de</strong>safios <strong>de</strong> um ambiente, seja físico ou humano, oqual se torna sempre mais ativo, sempre mais heterogeneamentereativo em relação aos sistemas sociais. Complexida<strong>de</strong> é tambémcrescimento <strong>de</strong> autonomias <strong>de</strong>ntro da organização social.[...]A metáfora da complexida<strong>de</strong> parece mais a<strong>de</strong>quada do que asproce<strong>de</strong>ntes, para interpretar as mudanças <strong>de</strong>ntro da religião


47institucional, levando, ao mesmo tempo, em conta os gran<strong>de</strong>seventos socioculturais e político-internacionais recentes, os quaisconfiguram um quadro das relações entre Catolicismo e socieda<strong>de</strong>,bem diverso daquele que as teorias da secularização tinham atéagora <strong>de</strong>lineado, a ponto <strong>de</strong> exigir um posterior esforço <strong>de</strong>imaginação teórica. (Ibid., p. 464-465)A idéia <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> é sobremaneira interessante. Com gradaçõesdiferenciadas e guardadas as <strong>de</strong>vidas distâncias entre o contexto europeu e arealida<strong>de</strong> social brasileira, pensa-se ser aplicável tal “metáfora” como instrumentoanalítico do fenômeno religioso pós-pentecostal que se encontra em francaexpansão no país.Continuando sua explanação sobre o relativo revigoramento religiosoeuropeu, Martelli recorre a uma série <strong>de</strong> acontecimentos que <strong>de</strong>monstraram ao serhumano a sua incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gerir com minuciosa precisão os fatos da vida,lançando-o numa ansieda<strong>de</strong> só estancável em algum alicerce transcen<strong>de</strong>nte, semque no entanto viesse a ocupar o seu antigo lugar central na vida cotidiana.[...] a perda <strong>de</strong> confiança nas perspectivas sociais e mundiais dosanos 60 (segurança social para todos, paz universal, <strong>de</strong>senvolvimentoetc) e o crescimento da inquietação, dos temores por causa dapoluição ambiental, dos medos por causa da expansão dacriminalida<strong>de</strong>, temores <strong>de</strong> contágio pela AIDS e também a liberda<strong>de</strong>,a insegurança cotidiana, a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> programar etc.; tudo issocolocou novamente uma “necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> religião-ambiente” que,porém, não inci<strong>de</strong> nas opções cotidianas do sistema e, portanto, é umfator conservador ou, no máximo, configura-se como subsistemaespecializado para algumas funções alternativas ou complementaresao Welfare State.(Ibid., p. 465)Se em Martelli a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixa a religiosida<strong>de</strong> figurar novamentecomo elemento <strong>de</strong> relevância para a <strong>de</strong>terminação da vida social por ser elanecessária, dada a inaptidão da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> em preencher os vazios existenciaishumanos, num pensador como Zygmunt Bauman a religião adquire o seu statusnestes novos tempos graças as <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>s conceituais que o “espírito pósmo<strong>de</strong>rno”não se nega a integrar em algo mais amplo. Desse modo:O espírito pós-mo<strong>de</strong>rno, <strong>de</strong>sta vez, concorda em suprir essa família,maltratada ou con<strong>de</strong>nada à <strong>de</strong>portação pela razão científica, <strong>de</strong> umapermanente licença <strong>de</strong> residência. O espírito pós-mo<strong>de</strong>rno, maistolerante (visto que mais consciente <strong>de</strong> sua <strong>pró</strong>pria fraqueza) do queseu antecessor e crítico mo<strong>de</strong>rno, está sensatamente consciente datendência das <strong>de</strong>finições a escon<strong>de</strong>r tanto quanto revelam e mutilar,ofuscar enquanto aparentam esclarecer e <strong>de</strong>senredar. Ele tambémaceita o fato <strong>de</strong> que, com <strong>de</strong>masiada freqüência, a experiência


48transborda das gaiolas verbais em que <strong>de</strong>sejaríamos retê-la, <strong>de</strong> quehá coisas sobre as quais <strong>de</strong>vemos silenciar, uma vez que nãopo<strong>de</strong>mos falar <strong>de</strong>las, e <strong>de</strong> que o inefável é uma parte tão integral damaneira humana <strong>de</strong> estar no mundo quanto a re<strong>de</strong> lingüística comque tentamos (em vão, e por acaso, embora não menosvigorosamente por essa razão) captá-lo.A chegada da serenida<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna não significa, evi<strong>de</strong>ntemente,ser provável que as <strong>de</strong>sesperadas tentativas <strong>de</strong> “<strong>de</strong>finir a religião”estejam para se reduzir a uma pausa. O espírito pós-mo<strong>de</strong>rno nãopodia viver completamente <strong>de</strong> acordo com a combativa convocação<strong>de</strong> André Breton “para lidar drasticamente com aquele ódio domaravilhoso, que é o exuberante em algumas pessoas”. O espíritopós-mo<strong>de</strong>rno é bastante humil<strong>de</strong> para proibir e bastante fraco parabanir os excessos da ambição do espírito mo<strong>de</strong>rno. Ele apenas, porassim dizer, os coloca em perspectiva – expõe suas nascentesinteriores, assim como sua vaida<strong>de</strong>. (Bauman, 1998, p. 205)Fica no ar a pergunta sobre quais funções caberia a religião <strong>de</strong>sempenhar napós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Bauman aborda este tema partindo <strong>de</strong> colocações <strong>de</strong> AlainTouraine sobre a matéria. Para este último pensador a religião teria três “utilida<strong>de</strong>s”precípuas na vida social. As duas primeiras, or<strong>de</strong>nar a rotina estabelecendo o ritmoda vida e fixar uma rígida estratificação social, teriam sido solapadas e <strong>de</strong>stituídaspela mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Restaria tão somente uma última função, que Bauman apresentae <strong>de</strong>bate da seguinte maneira:A terceira utilida<strong>de</strong> da religião é <strong>de</strong>scrita por Touraine como “aapreensão do <strong>de</strong>stino, da existência e da morte humana”. No caso<strong>de</strong>ssa última função, Touraine observa seu incessante “isolamento”:“como a dança e a pintura, a religião se torna uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lazer,isto é, comportamento <strong>de</strong>liberado, não-regulamentado, pessoal esecreto”. Essa afirmação po<strong>de</strong> ser aceita com uma condição <strong>de</strong> que éo <strong>pró</strong>prio “interesse pela existência e pela morte” que foi relegado apassatempos <strong>de</strong> lazer, aqueles que apresentam apenas um impactomarginal no modo como são organizadas as ativida<strong>de</strong>s da vida sériae cotidiana. Se as “igrejas e seitas” existentes, particularmenteaquelas que se gabam <strong>de</strong> um número maior, e <strong>de</strong> crescimento maisrápido, dos seguidores po<strong>de</strong>m ser similarmente marginalizados comoutilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> lazer, é discutível. O ponto importante é que, com o fim<strong>de</strong> resistir a tal marginalização, as igrejas e seitas que conseguiramfazer exatamente isso tenham precisado assenhorear-se <strong>de</strong> outrasfunções que não a <strong>de</strong> abastecer a preocupação com os mistérios daexistência e da morte. (Ibid., p. 214-215)Aqui Bauman levanta uma questão importantíssima. As modalida<strong>de</strong>sreligiosas que continuam em alta na nossa época são justamente aquelas quemostraram ter capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> adaptação ao novo meio sociocultural. Para tanto,avocaram para si outras <strong>de</strong>mandas. Afirmaram possuir legitimida<strong>de</strong> para opinar nãosó quanto as causas do além; disseram ter pertinência para se intrometerem em


49assuntos da vida cotidiana daqueles para os quais direciona seu discurso. A cadavez maior participação dos evangélicos, notadamente os <strong>de</strong> linhagem póspentecostal,bem como o apelo a soluções no campo da saú<strong>de</strong>, nas finanças enegócios, e nos problemas sentimentais, dão segura comprovação para aintervenção feita por Bauman a respeito do ultrapassamento da religião dasfronteiras às quais permanecera adstrita durante todo o período mo<strong>de</strong>rno.Se for tomado em consi<strong>de</strong>ração o que já foi dito há pouco sobre a crescenteansieda<strong>de</strong> trazida ao âmago dos seres humanos por este tempo traiçoeiramenteincerto e volúvel, on<strong>de</strong> nada é para sempre, então po<strong>de</strong>r-se-á melhor compreen<strong>de</strong>r anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um discurso forte, <strong>de</strong> uma fala viril, capaz <strong>de</strong> impor uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>ao indivíduo fragilizado que se apresenta na pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.Aparece neste trabalho novamente Anthony Gid<strong>de</strong>ns. Algo que ele chamou<strong>de</strong> segurança ontológica passou a ser o estado <strong>de</strong> espírito buscado por todos etodas nós.A segurança ontológica é uma forma, mas uma forma muitoimportante, <strong>de</strong> sentimentos <strong>de</strong> segurança no sentido amplo em queempreguei o termo mais atrás. A expressão se refere à crença que amaioria dos seres humanos têm na continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua autoi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>e a na constância dos ambientes <strong>de</strong> ação social e materialcircundantes. Uma sensação da fi<strong>de</strong>dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas e coisas,tão central à noção <strong>de</strong> confiança, é básica nos sentimentos <strong>de</strong>segurança ontológica; daí os dois serem relacionadospsicologicamente <strong>de</strong> forma íntima.A segurança ontológica tem a ver com “ser” ou, nos termos dafenomenologia, “ser-no-mundo”. Mas trata-se <strong>de</strong> um fenômenoemocional ao invés <strong>de</strong> cognitivo, e está enraizado no inconsciente.(Gid<strong>de</strong>ns, op. cit., p. 95)Privados <strong>de</strong>ste estado <strong>de</strong> segurança ontológica os seres humanos vagueiamcarentes, ávidos por encontrar preenchimentos que lhes façam crer possuir umai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, que lhe asseverem ser alguém. Estes infelizes personagens precisamainda optar pelo que é mais urgente: a tranqüilida<strong>de</strong> quanto ao mundo vindouro ouencontrarem o seu “eu” ou ao menos um “eu” qualquer nesta vida.São as incertezas concentradas na i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> individual, em suaconstrução nunca completa e em seu sempre tentado<strong>de</strong>smantelamento com o fim <strong>de</strong> reconstruir-se, que assombram oshomens e mulheres mo<strong>de</strong>rnas, <strong>de</strong>ixando pouco espaço e tempo paraas inquietações que proce<strong>de</strong>m da insegurança ontológica. É nestavida, neste lado do ser (se é que absolutamente há outro lado), que ainsegurança existencial está entrincheirada, fere mais e precisa sertratada. Ao contrário da insegurança ontológica, a incerteza


50concentrada na i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> não precisa nem das benesses do paraíso,nem da vara do inferno para causar insônia. Está tudo ao redor,saliente e tangível, tudo sobressaindo <strong>de</strong>mais nas habilida<strong>de</strong>srapidamente envelhecedoras e abruptamente <strong>de</strong>svalorizadas, emlaços humanos assumidos até segunda or<strong>de</strong>m, em empregos quepo<strong>de</strong>m ser subtraídos sem qualquer aviso, e nos sempre novosatrativos da festa do consumidor, cada um prometendo tipos <strong>de</strong>felicida<strong>de</strong> não experimentados, enquanto apagam o brilho dos jáexperimentados. (Bauman, op. cit., p. 221).O fato das experiências vivenciadas serem <strong>de</strong> uma efemerida<strong>de</strong>impressionante, aguça ainda mais a busca. Por isso, partem com maior voracida<strong>de</strong>ao encontro <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s pré-moldadas, <strong>de</strong> gente pronta para lhes dizer o quefazer. E nisto é possível perceber as profundas semelhanças entre as ênfases, querpor meio dos discursos quer pelo emprego do material simbólico dos hinos ecânticos pós-pentecostais e os apelos da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo, firmados naspossibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sentir e <strong>de</strong> usufruir. Recorre-se, <strong>de</strong> novo, a Bauman:Os homens e mulheres pós-mo<strong>de</strong>rnos realmente precisam doalquimista que possa, ou sustente que possa, transformar a incerteza<strong>de</strong> base em preciosa auto-segurança, e a autorida<strong>de</strong> da aprovação(em nome do conhecimento superior do acesso à sabedoria fechadoaos outros) é a pedra filosofal que os alquimistas se gabam <strong>de</strong>possuir. A pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> é a era dos especialistas em “i<strong>de</strong>ntificarproblemas”, dos restauradores da personalida<strong>de</strong>, dos guias <strong>de</strong>casamento, dos autores dos livros <strong>de</strong> “auto-afirmação”: é a era do“surto <strong>de</strong> aconselhamento”. Os homens e mulheres pós-mo<strong>de</strong>rnosquer por preferência, quer por necessida<strong>de</strong>, são selecionadores. E aarte <strong>de</strong> selecionar é principalmente em torno <strong>de</strong> evitar um perigo: o <strong>de</strong>per<strong>de</strong>r uma oportunida<strong>de</strong> – por não vê-la bastante claramente; ou pornão persegui-la bastante incisivamente, ou por ser um agente <strong>de</strong><strong>de</strong>masiada inexperiência para capturá-la. Para evitar esse perigo, oshomens e mulheres pós-mo<strong>de</strong>rno s precisam <strong>de</strong> aconselhamento. Aincerteza <strong>de</strong> estilo pó-mo<strong>de</strong>rno não gera a procura da religião: elaconcebe, em vez disso, a procura sempre crescente <strong>de</strong> especialistasna i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Homens e mulheres assombrados pela incerteza <strong>de</strong>estilo pós-mo<strong>de</strong>rno não carecem <strong>de</strong> pregadores para lhes dizer dafraqueza do homem e da insuficiência dos recursos humanos. Elesprecisam da reafirmação <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>m fazê-lo – e <strong>de</strong> um resumo arespeito <strong>de</strong> como fazê-lo. (Ibid., p. 221-222)É preciso dizer ao homem e a mulher hodiernos que é lícita toda a aspiração<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za e o provar das mais intensas sensações. A gran<strong>de</strong> benção <strong>de</strong> Deus<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser o amor, o conforto; agora os verda<strong>de</strong>iramente abençoados estão emcampanha pela prosperida<strong>de</strong>, e os quinhões aos quais julgam ter direito são cadavez mais aumentados.


51Falando daquilo que <strong>de</strong>veria suce<strong>de</strong>r as já ultrapassadas “organizaçõesreligiosas”, Bauman proce<strong>de</strong> a uma articulação que, sem exagero algum, po<strong>de</strong> muitobem ser aplicada as igrejas <strong>de</strong> linha pós-pentecostal, dada a confortávelambientação que elas têm no mundo pós-mo<strong>de</strong>rno.Obviamente já não são as “organizações religiosas”, com a suamensagem da perpétua insuficiência do homem, que são mais bemadaptadas à “comunicação da experiência máxima a quem não atingeo máximo”. O que quer que lhes tome o lugar <strong>de</strong>ve antes e acima <strong>de</strong>tudo abolir totalmente o conceito <strong>de</strong> “quem não atinge o máximo” e<strong>de</strong>clarar a experiência máxima um <strong>de</strong>ver e uma perspectiva realistapara todo o mundo. “Você po<strong>de</strong> fazer isso”. “Todo o mundo po<strong>de</strong>fazê-lo”. Cabe somente a você <strong>de</strong>cidir se vai fazê-lo”. “Se você <strong>de</strong>ixa<strong>de</strong> fazê-lo, só tem <strong>de</strong> botar a culpa em você mesmo”. Em segundolugar, <strong>de</strong>sligado o sonho da experiência máxima das práticasinspiradas na religião, <strong>de</strong> abnegação e afastamento das atraçõesmundanas, é necessário atrelá-lo aos <strong>de</strong>sejos dos bens terrenos edispô-lo como a força condutora <strong>de</strong> intensa ativida<strong>de</strong> comoconsumidor. Se a versão religiosa da experiência máxima costumavareconciliar o fiel com uma vida <strong>de</strong> miséria e privação, a versão pósmo<strong>de</strong>rnareconcilia seus seguidores com uma vida organizada emtorno do <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> um consumo ávido e permanente, embora nunca<strong>de</strong>finidamente satisfatório. Os exemplos e profetas da versão pósmo<strong>de</strong>rnada experiência máxima são recrutados na aristocracia doconsumismo – aqueles que conseguiram transformar a vida numaobra <strong>de</strong> arte da acumulação e intensificação <strong>de</strong> sensações, graças econsumir mais do que os que procuram comumente a experiênciamáxima consumir produtos mais refinados e consumi-los <strong>de</strong> um modomais requintado. (Ibid., p. 224)Não se po<strong>de</strong> fugir <strong>de</strong> aceitar o fato <strong>de</strong> que a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> trouxeimplicações <strong>de</strong> grandioso vulto para a religiosida<strong>de</strong> mais tradicional, acarretandonovas formas <strong>de</strong> expressão <strong>de</strong> religiosida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> acesso ao sagrado. Isso pareceser uma necessida<strong>de</strong>, dada a concorrência acentuada <strong>de</strong> outros núcleosagregadores e chamativos no interior da cultura pós-mo<strong>de</strong>rna.Leonildo Silveira Campos vê uma tendência integralizadora <strong>de</strong> pontos outroradíspares e irreconciliáveis contribuindo para o êxito e dinamismo daquilo que nestetrabalho assume-se por pós-pentecostalismo e ele trata pela forma maisfrequentemente utilizada na literatura especializada, neo-pentecostalismo:A pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tem sido apresentada como uma das causas dosurgimento <strong>de</strong> novos movimentos religiosos no Oci<strong>de</strong>nte. G. K.Nelson relaciona a penetração <strong>de</strong> visões <strong>de</strong> mundo entre nós, vindosdo Oriente, à necessida<strong>de</strong> que as pessoas tem <strong>de</strong> reor<strong>de</strong>nar a vidanuma socieda<strong>de</strong> naturalista e secularizada. Nessa mesma linha,po<strong>de</strong>mos analisar o neopentecostalismo, enfocando a passagem <strong>de</strong>um cenário cultural oci<strong>de</strong>ntal, racionalista e científico, no qual


52predominou a influência <strong>de</strong> Newton-Descartes na produção <strong>de</strong> umavisão analítica e <strong>de</strong>sagregadora da vida, para uma visão maisintegralizadora, à qual se atribui a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser “holística”. Oadvento <strong>de</strong>ssas novas opções <strong>de</strong> misticismo e religiosida<strong>de</strong>, emsubstituição às ênfases na ação social, acabou por beneficiar tambémos novos movimentos religiosos <strong>de</strong> origem cristã, entre eles omovimento carismático na Igreja Católica e o neopentecostalismoprotestante. (Campos, op. cit., p. 46-47)Essa integralização, contudo, não significa uma recepção amistosa <strong>de</strong> todoproduto disponível à uma coligação. O patrimônio das religiões <strong>de</strong> matriz africana,por exemplo, é incorporado. Só que sua utilização serve mesmo é para <strong>de</strong>marcaruma fronteira <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre as “coisas <strong>de</strong> Deus” e as “coisas do diabo”. Aliás,<strong>de</strong>ntro da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é um tema em evidência.Katryn Woodward diz que “as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s são produzidas em momentosparticulares no tempo” (2000, p. 38). E porque se discute tanto a respeito dai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>? Justamente por conta <strong>de</strong>sta encontrar-se em crise: “os processoshistóricos que, aparentemente, sustentavam a fixação <strong>de</strong> certas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s estãoentrando em colapso e novas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s estão sendo forjados” (p. 39). Nesseprocesso <strong>de</strong> reconfecção das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s se procura um lastro que assegure certasreivindicações <strong>de</strong> tradição (no caso dos pós-pentecostais a sua vinculação históricacom os ramos protestantes que lhes antece<strong>de</strong>ram) ou o seu assentamento emfontes fi<strong>de</strong>dignas <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> (a Bíblia, por exemplo).A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> instaura-se numa relação, enquanto que as diferenças sãoconstruídas por meio <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>marcação simbólica. É a diferença que fornecesentido as práticas e relações sociais que os seres humanos estabelecem.I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e diferença são faces <strong>de</strong> uma mesma moeda, já que a última é<strong>de</strong>cisiva na formação da primeira. Os sistemas simbólicos ten<strong>de</strong>m a reproduzir asdiferenças. “A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, pois, não é o oposto da diferença: a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>da diferença” (p. 39-40). Falando <strong>de</strong> Durkheim e <strong>de</strong> seu livro As formas elementaresda vida religiosa, a autora dirá que:Utilizando a religião como um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> como os processossimbólicos funcionam, ele (Durkheim) mostrou que as relaçõessociais são produzidas e reproduzidas por meio <strong>de</strong> rituais e símbolos,os quais classificam as coisas em dois grupos: as sagradas e asprofanas.[...] Segundo Durkheim, se quisermos compreen<strong>de</strong>r os significadospartilhados que caracterizam os diferentes aspectos da vida social,temos que examinar como eles são classificados simbolicamente.Assim, o pão que é comido em casa é visto simplesmente como


53elemento da vida cotidiana, mas quando especialmente preparado epartido na mesa da comunhão, torna-se sagrado, po<strong>de</strong>ndo simbolizaro corpo <strong>de</strong> Cristo. (Ibid., p. 40-41)A música também passa por igual transformação. Se composta e executadapor pessoas “ungidas”, se sua mensagem trata <strong>de</strong> assuntos relacionados com os<strong>de</strong>sígnios divinos para nossa vida, então ela <strong>de</strong>ixa o plano do entretenimento ou dainspiração, ganhando uma áurea especial. Foi sacralizada.O pós-pentecostalismo, expressão religiosa que guarda uma estreitacumplicida<strong>de</strong> com a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, ao contrário <strong>de</strong> seus pre<strong>de</strong>cessores, não temum projeto histórico, à la Protestantismo, isto é, com visão <strong>de</strong> futuro e i<strong>de</strong>alização <strong>de</strong>socieda<strong>de</strong> ou a-histórico como o escapismo isolacionista do Pentecostalismoclássico. Ele oferece à base, à gran<strong>de</strong> massa <strong>de</strong> seus fiéis, pequenos e localizadosprojetos pessoais. Daí, tantos cultos e celebrações realizados durante toda asemana, encampando as mais diversas áreas da vida cotidiana: um culto nasegunda-feira para a resolução <strong>de</strong> problemas sentimentais, uma corrente na terçapara solucionar dificulda<strong>de</strong>s financeiras, na quarta uma celebração em prol dafamília, na quinta ocupa-se da saú<strong>de</strong>, na sexta do “<strong>de</strong>scarrego” e dos “encostos”, nosábado a tônica são as causas impossíveis e no domingo, um culto <strong>de</strong> cura elibertação arremata a semana, e isso tudo em três horários, pois o importante éservir bem ao fiel. Já para a cúpula, o projeto pós-pentecostal é uma empreitada embusca do po<strong>de</strong>rio político e econômico, ao julgar pelos inúmeros empreendimentos ecandidaturas oriundos do alto clero <strong>de</strong>ste segmento.No tocante ao aspecto teológico-escatológico, o pós-pentecostalismo não seapresenta nem a<strong>de</strong>pto do pós-milenarismo protestante, nem partidário do prémilenarismodos pentecostais <strong>de</strong> primeira hora. Ocupa-se do cotidiano, das coisas<strong>de</strong>ste momento, posto que é o presente que importa. O pós-pentecostalismo é o “já”,o “pra hoje”, o “eu não posso esperar”. O agora tornou-se sagrado.ORGANIZANDO AS EXPRESSÕES NAS BACIAS SEMÂNTICASGilbert Durand advoga que a formação do imaginário, que irá ser objeto <strong>de</strong>maior <strong>de</strong>talhamento no <strong>pró</strong>ximo capítulo, se dá por meio <strong>de</strong> uma dinâmicaespecifica, representada pelo que ele chamou metaforicamente <strong>de</strong> “bacias


54semânticas”, numa apropriação <strong>de</strong> explicações surgidas no campo da embriologiapara se explicar e processo <strong>de</strong> maturação do embrião.A constatação inicial que levou Durand a pensar as bacias semânticas é aseguinte: há no curso da historia alterações <strong>de</strong> conteúdos semânticos e estilísticosque dão origem a uma certa mentalida<strong>de</strong>; uma <strong>de</strong>terminada homogeneização docorpo social no que diz respeito a idéias mestras, à moda, e aos meios <strong>de</strong> seexpressar como a linguagem escrita, por exemplo. Essas tendências não ocorrem<strong>de</strong> uma maneira frouxa e sem obe<strong>de</strong>cer algum critério. Para <strong>de</strong>monstrar como seestatui a mentalida<strong>de</strong> padrão <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada época é que Durand criou a“metáfora fluvial”. Que se tenha sempre em vista que as bacias semânticas sãoprocessos dinâmicos e seqüenciais, como a <strong>pró</strong>pria idéia <strong>de</strong> rio <strong>de</strong>ixa transparecer.As bacias semânticas são compostas por seis fases ou “subconjuntos” quefacilitariam a análise da matéria-prima sobre o qual se <strong>de</strong>tém os estudiosos doimaginário (pictografia, mitos condutores, por exemplo), po<strong>de</strong>ndo ao final daaveriguação do material selecionado proporem-se mensurações que justifiquem asmudanças percebidas no comportamento e mentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>.A primeira etapa componente <strong>de</strong> uma bacia semântica seria a doescoamento. O período <strong>de</strong> escoamento se assemelha a diversos vazamentos, cadaum com suas especificida<strong>de</strong>s, mas que convergiriam em um <strong>de</strong>terminado ponto emcomum: sua dissidência com a mentalida<strong>de</strong> vigente (Durand, 1998, p. 104-106)Depois ocorre a divisão das águas em que se cuida do “momento da junção<strong>de</strong> alguns escoamentos que formam uma oposição mais ou menos acirrada contraos estados imaginários prece<strong>de</strong>ntes e outros escoamentos atuais” (p. 107). É nestafase, portanto, que ocorre a polarização em torno <strong>de</strong> idéias-mestras.Segue-se o período das confluências. A linha vencedora do embate passa arecepcionar as ramificações <strong>de</strong> pensamento que precisam <strong>de</strong>saguar nela: “Assimcomo um rio formado <strong>de</strong> seus afluentes, uma corrente nitidamente consolidadanecessita ser reconfortada pelo reconhecimento, apoio das autorida<strong>de</strong>s locais e daspersonalida<strong>de</strong>s e instituições” (p. 110). O processo <strong>de</strong> confluência torna o rio maiscaudaloso, dota-o <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>, confere-lhe maior número <strong>de</strong> correntezas. Vaisendo consolidada uma nova era, com uma outra mentalida<strong>de</strong>, mitos diretores,cosmovisão, gestos, interesses e estilos são introduzidos <strong>de</strong> maneira mais incisiva.O <strong>pró</strong>ximo momento é o batismo. Após a consolidação é preciso dar nome aonovo tempo que surge. A nomenclatura escolhida é “o nome do pai solidamente


55mitificado, esboça-se quando um personagem real ou fictício caracteriza a baciasemântica como um todo” (p. 112), ou seja, o nome do rio. Durand dá o exemplo <strong>de</strong>São Francisco <strong>de</strong> Assis e o “século fransciscano” para nomear o século XII.Po<strong>de</strong>r-se-ia falar nos termos a que este trabalho se propõe, do “século dasluzes” dos pais iluministas do 18, ou no campo do Protestantismo mundial da “erametodista” já aludida. Nos dois casos evoca-se a idéia caríssima à mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>de</strong>progresso humano e cientifico, aparecendo o mito grego <strong>de</strong> Prometeu, que rouba ofogo dos Deuses e o disponibiliza aos homens. Deve-se observar que a ciênciapassa a explicar o mundo sem a hipótese Deus, enquanto que John Wesley,fundador daquilo que mais tar<strong>de</strong> se faz erigir como o movimento metodista, revigorao arminianismo, ou seja, propõe uma soteriologia acessível a todos os sereshumanos e não apenas restrita aos eleitos como acreditava o Protestantismo <strong>de</strong>visão calvinista. De certo modo, foi abolida a soberania incondicional <strong>de</strong> Deus.Note-se também o mesmo quê universalista que compõe ambos: iluminismo ea razão universal; metodismo e salvação universal. E ainda a noção gradual <strong>de</strong>progresso da Ciência iluminista e a idéia <strong>de</strong> salvação por etapas em Wesley, queacreditava numa “segunda benção” essencial ao <strong>de</strong>senvolvimento da vida cristã.Há ainda a organização dos rios. Serve para sistematizar, dando lastro,respeitabilida<strong>de</strong> e, quiçá, a necessária legitimida<strong>de</strong> a fim <strong>de</strong> prevenir eventuaisquestionamentos. A organização dos rios “consiste numa consolidação teórica dosfluxos imaginários on<strong>de</strong> ocorrem, com freqüência, os exageros <strong>de</strong> certascaracterísticas da corrente pelos ‘segundos fundadores’, como são Paulo e opropagamento dos Evangelhos” (p. 113). É o instante propício para os dogmatismose para toda a sorte <strong>de</strong> instrumentos castradores darem ar <strong>de</strong> sua graça. Aqueles queprocuram proce<strong>de</strong>r <strong>de</strong> maneira mais arejada e criativa irão ocupar o que Durandchama <strong>de</strong> “margens” da bacia semântica. Este é o local da resistência. É o ponto <strong>de</strong>partida para os futuros escoamentos que darão origem a vindoura bacia semântica.De certo modo, os pentecostais, também her<strong>de</strong>iros do movimento metodistacaminharam para as margens ao não concordarem com as conclusões que aCiência chegava em relação às Escrituras, bem como com a tendência àburocratização (institucionalização, rotinização do carisma em termos weberianos)que “domesticava” a ação do espírito. Quando o momento se fez propício, operaramnumerosos vazamentos minando a então vigente bacia semântica.


56Por fim, aparecem os <strong>de</strong>ltas. Este ponto <strong>de</strong> chegada da bacia semântica“ocorre quando a corrente mitogênica – o ‘inventor’ dos mitos – que transportou oimaginário especifico ao longo do rio se <strong>de</strong>sgasta, atingindo, segundo Sorokin, umasituação limite e <strong>de</strong>ixa-se penetrar aos poucos pelos escoamentos anunciadores dos<strong>de</strong>uses por vir”. (p. 114)O que se verifica em nossos dias, num plano macro, é a continua fragilizaçãoda bacia semântica que po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, com o <strong>de</strong>sgaste doseu mito diretivo Prometeu (ou a metanarrativa do progresso, diria Lyotard), queper<strong>de</strong> espaço para pensamentos outrora marginais e <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rados. As mídias,verda<strong>de</strong>iras tecnologias do imaginário, fazem aflorar a diversida<strong>de</strong> e valorizam odiferente. A comunicação é entendida como a principal característica <strong>de</strong> nossa era.Desse modo, o mito diretivo personificado por Hermes é guinado a uma posição <strong>de</strong><strong>de</strong>staque num mundo on<strong>de</strong> tudo é muito ágil e efêmero e leva vantagem aquele quesabe se comunicar. Hermes, um <strong>de</strong>us-mensageiro, que possui asas nos pés é umafigura a<strong>de</strong>quada para representar um mundo em constantes inovações.Outro mito diretivo que ascen<strong>de</strong> é o <strong>de</strong> Dionísio. O festivo <strong>de</strong>us-grego dovinho e da festa personifica um tempo em que já não mais se aposta no progressomais opta-se por investir no imediato como único tempo possível <strong>de</strong> propiciarsatisfação. Dionísio é o espetáculo e o nosso tempo é midiático.O Protestantismo histórico e suas as representações como as conhecemosno Brasil quer na versão <strong>de</strong> transplante quer a <strong>de</strong> ênfase conversionista, parece teresgotado suas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> viabilização enquanto proposta religiosa justamenteno mesmo tempo em que a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> entra em crise. Daí o retrocessoobscurantista <strong>de</strong> algumas <strong>de</strong>nominações como a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB),que fechou-se por longo período num mo<strong>de</strong>lo purista <strong>de</strong> igreja. Também po<strong>de</strong> seri<strong>de</strong>ntificado o outro lado da moeda, com o surto <strong>de</strong> avivamento no seio das igrejasprotestantes históricas, que Carlos Ta<strong>de</strong>u Siepierski retrata (2003, p. 59-62).Começa a ser reconhecível a substituição <strong>de</strong> uma bacia semântica por outra.O Pentecostalismo <strong>de</strong> viés clássico aparece como uma reação ao riochamado mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Ele não quis tornar-se um afluente. Preferiu isolar-se. Com o<strong>de</strong>sgaste da teologia que se afinava com o projeto mo<strong>de</strong>rno, o Pentecostalismopassou a utilizar o seu promissor reservatório semântico. Se as soluções e caminhospropostos por um Protestantismo pretensamente vanguardista não se tornaramplausíveis, <strong>de</strong>ver-se-ia investir naquele segmento que esteve sempre à margem.


57Nos novos tempos o Pentecostalismo estava <strong>de</strong>stinado a assumir um papel <strong>de</strong>protagonismo no campo religioso brasileiro.Só que para isso <strong>de</strong> fato viesse a ocorrer era preciso uma atualização quepusesse em estado <strong>de</strong> compatibilida<strong>de</strong> a mensagem e as formas <strong>de</strong> transmissão.Aqui resi<strong>de</strong> a gran<strong>de</strong> contribuição do Pentecostalismo <strong>de</strong> segunda geração ou<strong>de</strong>uteropentecostalismo. Sem dúvida este tipo não apenas faz a transição entre oPentecostalismo pioneirista e o recente Pentecostalismo multimidiádito e varejista;foi também ocasionador da pentecostalização do campo religioso brasileiro aoinvadir as igrejas históricas com sua mensagem e forma <strong>de</strong> cultuar. Enfim, se fezponte entre um cristianismo protestante mo<strong>de</strong>rnista e o pós-mo<strong>de</strong>rno.Analisando comparativamente o Pentecostalismo clássico e o<strong>de</strong>uteropentecostalismo no que se refere as predileções teológicas <strong>de</strong> cada um,Mariano assinala que a primeira onda <strong>de</strong>stacava um dom distinto do da segunda,mas no conjunto trilhavam o mesmo percurso: “Quanto à teologia, entretanto, asduas primeiras ondas pentecostais apresentam diferenças apenas nas ênfases quecada qual confere a um ou outro dom do Espírito Santo. A primeira enfatiza o dom<strong>de</strong> línguas, a segunda o <strong>de</strong> cura” (Mariano, 2005, p. 31).Se o nexo teológico oriundo dos tempos pioneiros é preservado noPentecostalismo <strong>de</strong> segunda onda, há, por outra mirada, uma ligação com o Póspentecostalismoa qual não se po<strong>de</strong> fechar os olhos. Está se falando dos meiosempregados. Mariano assim retrata:A segunda onda teve início nos anos 50 na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo como trabalho missionário <strong>de</strong> dois ex-atores <strong>de</strong> filmes <strong>de</strong> faroeste docinema americano, Harold Williams e Raymond Boatright, vinculadosà International Church of The Foursquare Gospel. À frente daCruzada Nacional <strong>de</strong> Evangelização, braço evangelístico daEvangelho Quadrangular, eles trouxeram para o Brasil o evangelismo<strong>de</strong> massa centrado na mensagem da cura divina. Difundiram-na pormeio do rádio (que, por sectarismo ou por consi<strong>de</strong>rá-lo mundano ediabólico, até a década <strong>de</strong> 50 não era usado pela Assembléia <strong>de</strong>Deus; a Congregação Cristã ainda hoje continua a não fazer uso <strong>de</strong>qualquer meio <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa, nem mesmo <strong>de</strong> revistas,jornais, folhetos e literatura), do evangelismo itinerante em tendas <strong>de</strong>lona, <strong>de</strong> concentrações em praças públicas, ginásios <strong>de</strong> esporte,estádios <strong>de</strong> futebol, teatros e cinemas. Com mensagem sedutora emétodos inovadores e eficientes, atraíram, além <strong>de</strong> fiéis e pastores <strong>de</strong>outras confissões evangélicas, milhares <strong>de</strong> indivíduos dos estratosmais pobres da população, muitos dos quais migrantes nor<strong>de</strong>stinos.(Ibid., p. 30)


58É emblemático o fato <strong>de</strong> inaugurar-se o <strong>de</strong>uteropentecostalismo no Brasil esua metodologia extravagante com dois ex-atores <strong>de</strong> cinema. O uso <strong>de</strong> tendas,ginásios e estádios, locais cuja finalida<strong>de</strong> é proporcionar espetáculo eentretenimento, também diz muito. Uma era estava sendo <strong>de</strong>ixada para trás.A presença evangélica na televisão brasileira tem seu ponta-pé inicial nasegunda meta<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 1970 com a importação <strong>de</strong> programas apresentadospor televangelistas americanos. Entretanto, a espetacularização do sagrado, amidiatização do religioso tem seu começo ainda na década <strong>de</strong> 1950.O que os pós-pentecostais imprimem hoje na mídia num formato maissofisticado guarda uma enorme e estreita proximida<strong>de</strong> com aquilo que outrora erarealizado sob lonas circenses: os encontros são festas, precisam ser marcantes, osfiéis <strong>de</strong>vem ser impactados ou ao menos, entretidos. Não é à toa que os cultospassaram a ser nomeados celebrações. É o império da festivida<strong>de</strong>, não havendolugar para temas melancólicas como a vida terrena <strong>de</strong> sofrimentos – tão cara aosprimeiros pentecostais e aos protestantes históricos. O crente é feliz, e o crenteverda<strong>de</strong>iro prospera.Tomando a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> enquanto bacias semânticas,po<strong>de</strong>r-se-ia construir o seguinte quadro, que resume bem o que veio sendo<strong>de</strong>monstrado no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>ste capítulo:Tabela n. 02Bacias Semânticas e formas <strong>de</strong> expressões evangélicasBACIASEMÂNTICAExpressãoEvangélicaPreocupação/VisãoEscatológicaProjeto <strong>de</strong>Socieda<strong>de</strong>MODERNIDADE + MODERNIDADE - PÓS-MODERNIDADEProtestantismo Pentecostalismo Pós-pentecostalismoHistóricoPós-milenarismo Pré-milenarismo CotidianoProjeto Histórico Projeto A-Histórico Projetos <strong>de</strong> Po<strong>de</strong>r(Cúpula)Projetos Pontuais(Base)


59Na passagem <strong>de</strong> um campo semântico para outro, tornou-se inevitávelalterações na forma <strong>de</strong> se relacionar com o sagrado. O ambiente sócio-culturalconcorria para essa mudança. Os pentecostais foram os primeiros religiosos, a sentira fragilida<strong>de</strong> do discurso mo<strong>de</strong>rno, ainda que <strong>de</strong> maneira inconsciente. Suaresposta, entretanto, foi pessimista ao privilegiar o escapismo.Os pós-pentecostais fazem uma leitura mais competente da conjunturacultural. Assim, oferecem bens simbólicos mais atrativos e viáveis para um momentoon<strong>de</strong> mídia, festa, bem-estar e imediatismo regem os movimentos dos atoressociais, inclinando-os para uma cada vez maior busca pela praticida<strong>de</strong>, pelo prazer epela afirmação individual.


60CAPÍTULO IIO PARADIGMA TRANSDISCIPLINAR APLICADO ÀS PESQUISAS CIENTÍFICASConstata-se um <strong>de</strong>slocamento nos paradigmas da ciência. O mo<strong>de</strong>lo aindamajoritário na gran<strong>de</strong> maioria das Universida<strong>de</strong>s e centros <strong>de</strong> pesquisa, assim comona cabeça dos cientistas esta gradualmente obsolecendo. Procura-se cada vez maisdar relevância a uma visão sistêmica da realida<strong>de</strong> em <strong>de</strong>trimento da arcaica posturamecanicista, que com suas práticas atomísticas acabou por não dar conta do todoem sua gran<strong>de</strong>za.O estágio atual da humanida<strong>de</strong> exige uma ciência disposta em empreen<strong>de</strong>r aarticulação e integração dos saberes. A colaboração dos vários conhecimentos, seinterpenetrando e mantendo um profícuo e fecundo intercâmbio <strong>de</strong> informação,métodos e mesmo intuições, é o caminho que está se constituindo como o maiseficiente em vista da complexida<strong>de</strong> das coisas.A premissa fundamental que orienta esta mudança é a constatação <strong>de</strong> que osproblemas do homem e da socieda<strong>de</strong> estão inter-relacionados, ou seja, há um liameligando as instâncias e or<strong>de</strong>nando-as. A já tão discutida “al<strong>de</strong>ia global” é um fato quese impõe. Nunca as partes do planeta estiveram tão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes entre si quantonos nossos dias. Os meios <strong>de</strong> comunicação e as novas tecnologias foram <strong>de</strong>cisivosneste processo <strong>de</strong> amarração dos pontos car<strong>de</strong>ais do globo.Nas pesquisas sobre Religião, também é necessário avançar naultrapassagem dos velhos mo<strong>de</strong>los. Para um melhor entendimento <strong>de</strong>stanecessida<strong>de</strong> urgente, é preciso recorrer-se a argumentação do físico e historiadordas ciências, autor da teoria dos paradigmas científicos, Thomas Kuhn, muitoembora não se pretenda levar a efeito uma discussão pormenorizada <strong>de</strong> todas asminúcias e meandros <strong>de</strong> suas proposições.Em primeiro lugar a utilização <strong>de</strong> Kuhn não é um mero contrabando, uma vezque para a este autor a valia <strong>de</strong> sua tese se restringiria as Ciências Naturais, ou“maduras”, no seu dizer, não sendo contempladas as Ciências Sociais, tidas peloautor como “protociências”. Entretanto, o impacto das <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> Kuhn forammuito além do que ele talvez preten<strong>de</strong>sse, abalando os alicerces <strong>de</strong> vários ramos dosaber, dando coragem e motivação a muitos pesquisadores <strong>de</strong> também dizeremcoisas novas e ousadas em relação ao dogmatismo cientifico. No Brasil, pensadores


61como Hilton Japiassú e Rubem Alves são exemplos <strong>de</strong> acadêmicos que não seconformam com o conhecimento estagnado e com cheiro <strong>de</strong> mofo que teima em sair<strong>de</strong> nossas <strong>universida<strong>de</strong></strong>s; uma sopa diversas vezes requentada.A<strong>de</strong>ntrando no pensamento <strong>de</strong> Kuhn, tem-se que a Ciência não se<strong>de</strong>senvolve num processo acumulativo que ten<strong>de</strong>ria sempre a aproximar-se dassoluções <strong>de</strong>finitivas dos problemas. Este conhecimento quantitativo, <strong>de</strong> estocagem eprogressivamente linear não seria aquilo que <strong>de</strong> fato se dá em relação aoconhecimento cientifico.Contudo, nos últimos anos, alguns historiadores estão encontrandomais e mais dificulda<strong>de</strong>s para preencher as funções que lhes sãoprescritas pelo conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento-por-cumulação. Comocronistas <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> aumento, <strong>de</strong>scobrem que a pesquisaadicional torna mais difícil (e não mais fácil) respon<strong>de</strong>r a perguntascomo: quando foi <strong>de</strong>scoberto o oxigênio? Quem foi o primeiro aconceber a conservação da energia? Cada vez mais, alguns <strong>de</strong>lessuspeitam <strong>de</strong> que esses simplesmente não são os tipos <strong>de</strong> questõesa serem levantadas. Talvez a ciência não se <strong>de</strong>senvolva pelaacumulação <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobertas e invenções individuais.Simultaneamente, esses mesmos historiadores confrontam-se comdificulda<strong>de</strong>s crescentes para distinguir o componente “científico” dasobservações e crenças passadas daquilo que seus pre<strong>de</strong>cessoresrotularam prontamente <strong>de</strong> “erro” e “superstição”. Quanto maiscuidadosamente estudam, digamos, a dinâmica aristotélica, a químicaflogística ou a termodinâmica calórica, tanto mais certos tornam-se <strong>de</strong>que, como um todo, as concepções <strong>de</strong> natureza outrora correntes nãoeram nem menos científicas, nem menos o produto da idiossincrasiado que as atualmente em voga. Se essas crenças obsoletas <strong>de</strong>vemser chamadas <strong>de</strong> mitos, então os mitos po<strong>de</strong>m ser produzidos pelosmesmos tipos <strong>de</strong> métodos e mantidos pelas mesmas razões que hojeconduzem ao conhecimento científico. Se, por outro lado, elas <strong>de</strong>vemser chamadas <strong>de</strong> ciências, então a ciência inclui conjuntos <strong>de</strong> crençastotalmente incompatíveis com as que hoje mantemos. Dadas essasalternativas, o historiador <strong>de</strong>ve escolher a última. Teorias obsoletasnão são acientíficas em princípio, simplesmente porque foram<strong>de</strong>scartadas. Contudo, esta escolha torna difícil conceber o<strong>de</strong>senvolvimento cientifico como um processo <strong>de</strong> acréscimo. Amesma pesquisa histórica, que mostra as dificulda<strong>de</strong>s para isolarinvenções e <strong>de</strong>scobertas individuais, dá margem a profundas dúvidasa respeito do processo cumulativo que se empregou para pensarcomo teriam se formado essas contribuições individuais à ciência.(Kuhn, 1982, p. 21)Kuhn <strong>de</strong>ixa claro a influência das afinida<strong>de</strong>s do pesquisador na forma <strong>de</strong>steproce<strong>de</strong>r em relação à sua pesquisa. É um ataque feroz ao enganador pressupostoda neutralida<strong>de</strong> científica e da completa isenção <strong>de</strong> quem investiga face ao que estásendo investigado. O subjetivo está sempre operando:


62Que aspectos da ciência revelar-se-ão como proeminentes no<strong>de</strong>senrola <strong>de</strong>sse esforço? Em primeiro lugar, ao menos na or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>apresentação, está a insuficiência das diretrizes metodológicas paraditarem, por si só, uma única conclusão substantiva para váriasespécies <strong>de</strong> questões científicas. Aquele que, tendo sido instruídopara examinar fenômenos elétricos ou químicos, <strong>de</strong>sconhece essasáreas, mas sabe como proce<strong>de</strong>r cientificamente, po<strong>de</strong> atingir <strong>de</strong>modo legitimo qualquer uma <strong>de</strong>ntre muitas conclusões incompatíveis.Entre essas possibilida<strong>de</strong>s legítimas, as conclusões particulares aque ele chegar serão provavelmente <strong>de</strong>terminadas por suaexperiência prévia em outras áreas, por aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> suainvestigação e por sua <strong>pró</strong>pria formação individual. Por exemplo, quecrenças a respeito das estrelas ele traz para o estudo da Química eda eletricida<strong>de</strong>? Dentre muitas experiências relevantes, quais eleescolhe para executar em primeiro lugar? Quais aspectos dofenômeno complexo que daí resulta o impressionam comoparticularmente relevantes para uma elucidação da natureza dastransformações químicas ou das afinida<strong>de</strong>s elétricas? Respostas aquestões como essas são frequentemente <strong>de</strong>terminadas essenciaispara o <strong>de</strong>senvolvimento cientifico, pelo menos para o indivíduo eocasionalmente para a comunida<strong>de</strong> científica. (Ibid., p. 22-23)E então passa a tratar do caminho que, partindo da arbitrarieda<strong>de</strong> constrói oconsenso, sem esquecer <strong>de</strong> mostrar que não há um proposital <strong>de</strong>scuido no rigor dasobservações, o que acentua ainda mais a impossibilida<strong>de</strong> da neutralida<strong>de</strong> absolutados métodos e teorias científicas:A observação e a experiência po<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>vem restringirdrasticamente a extensão das crenças admissíveis, porque <strong>de</strong> outromodo não haveria ciência. Mas não po<strong>de</strong>m, por si só, <strong>de</strong>terminar umconjunto específico <strong>de</strong> semelhantes crenças. Um elementoaparentemente arbitrário, composto <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes pessoais ehistóricos, é sempre um ingrediente formador das crenças esposadaspor uma comunida<strong>de</strong> cientifica específica numa <strong>de</strong>terminada época.Contudo, esse elemento <strong>de</strong> arbitrarieda<strong>de</strong> não indica que algumgrupo possa praticar seu ofício sem um conjunto dado <strong>de</strong> crençasrecebidas. [...] A pesquisa eficaz raramente começa antes que umacomunida<strong>de</strong> científica pense ter adquirido respostas seguras paraperguntas como: quais são as entida<strong>de</strong>s fundamentais que compõemo universo? Como interagem essas entida<strong>de</strong>s umas com as outras ecom os sentidos? Que questões po<strong>de</strong>m ser legitimamente feitas arespeito <strong>de</strong> tais entida<strong>de</strong>s e que técnicas po<strong>de</strong>m ser empregadas nabusca <strong>de</strong> soluções? Ao menos nas ciências plenamente<strong>de</strong>senvolvidas, respostas (ou substitutos integrais para as respostas)a questões como essas estão firmemente engastadas na iniciaçãoprofissional que prepara e autoriza o estudante para a práticacientífica. [...] Nós perguntaremos simultaneamente se a pesquisapo<strong>de</strong>ria ter seguimento sem tais esquemas, qualquer que seja oelemento <strong>de</strong> arbitrarieda<strong>de</strong> contido nas suas origens históricas e,ocasionalmente, no seu <strong>de</strong>senvolvimento posterior.[...]No entanto esse elemento <strong>de</strong> arbitrarieda<strong>de</strong> está presente e temtambém um efeito importante no <strong>de</strong>senvolvimento cientifico. [...] Aciência normal, ativida<strong>de</strong> na qual a maioria dos cientistas empregainevitavelmente quase todo seu tempo, é baseada no pressuposto <strong>de</strong>


63que a comunida<strong>de</strong> cientifica sabe como é o mundo. Gran<strong>de</strong> parte dosucesso do empreendimento <strong>de</strong>riva da disposição da comunida<strong>de</strong>para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r esse pressuposto – com custos consi<strong>de</strong>ráveis, senecessário. Por exemplo, a ciência normal frequentemente suprimenovida<strong>de</strong>s fundamentais, porque estas subvertem necessariamenteseus compromissos básicos. Não obstante, na medida em que essescompromissos retêm um elemento <strong>de</strong> arbitrarieda<strong>de</strong>, a <strong>pró</strong>prianatureza da pesquisa normal assegura que a novida<strong>de</strong> não serásuprimida por muito tempo. (Ibid., p. 23-24)Uma pequena minoria <strong>de</strong> divergentes começa a operar a ciência <strong>de</strong> modoqualitativo, distanciando-se do consenso da comunida<strong>de</strong> cientifica, por sentir ainsuficiência do mo<strong>de</strong>lo para se chegar a respostas satisfatórias as indagaçõesproblemas.Caminhando numa direção oposta ao da maioria, estes cientistasrebel<strong>de</strong>s, por força do amadurecimento <strong>de</strong> seus trabalhos acabam, por assim dizer,esbarrando num novo paradigma ou, estrutura teórica. O ininterrupto <strong>de</strong>sgaste domo<strong>de</strong>lo anterior acaba por atrair os novos cientistas para o paradigma emergente,<strong>de</strong>sequilibrando a balança em favor <strong>de</strong>ste.Kuhn discute ainda as repercussões da inovação que alteram drasticamente omundo que o cientista habita, a saber, a aca<strong>de</strong>mia ou a comunida<strong>de</strong> científica. Égran<strong>de</strong> o atordoamento, pois todo o universo <strong>de</strong> conceitos, <strong>de</strong> procedimentos que jáeram plenamente conhecidos e dominados agora foram colocados em xeque, senão <strong>de</strong>finitivamente taxados como obsoletos e con<strong>de</strong>nados ao <strong>de</strong>suso.Regularmente e <strong>de</strong> maneira apropriada, a invenção <strong>de</strong> novas teoriasevoca a mesma resposta por parte <strong>de</strong> alguns especialistas que vêemsua área <strong>de</strong> competência infringida por essas teorias. Para esseshomens, a nova teoria implica uma mudança nas regras quegovernavam a prática anterior da ciência normal. Por isso, a novateoria repercute inevitavelmente sobre muitos trabalhos científicos jáconcluídos com sucesso. É por isso que uma nova teoria, por maisparticular que seja seu âmbito <strong>de</strong> aplicação, nunca ou quase nunca éum mero incremento ao que já é conhecido. Sua assimilação requer areconstrução da teoria prece<strong>de</strong>nte e a reavaliação dos fatosanteriores. [...] Os compromissos que governam a ciência normalespecificam não apenas as espécies <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s que o universocontém, mas também, implicitamente, aquelas que não contém.Embora este ponto exija uma discussão prolongada, segue-se queuma <strong>de</strong>scoberta como a do oxigênio ou do raio X não adicionaapenas mais um item à população do mundo do cientista. Esse é oefeito final da <strong>de</strong>scoberta – mas somente <strong>de</strong>pois da comunida<strong>de</strong>profissional ter reavaliado os procedimentos experimentaistradicionais, alterado sua concepção a respeito <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s com asquais lida com o mundo. Teoria e fato científicos não sãocategoricamente separáveis, exceto talvez no interior <strong>de</strong> uma únicatradição da prática cientifica normal. É por isso que uma <strong>de</strong>scobertainesperada não possui uma importância simplesmente fatual. Omundo do cientista é tanto qualitativamente transformado como


64quantitativamente enriquecido pelas novida<strong>de</strong>s fundamentais <strong>de</strong> fatosou teorias. (Ibid., p. 26-27)Isto ocorre como se viu, <strong>de</strong> uma maneira gradual. Também é conflitiva, já quenão se abandona <strong>de</strong> bom grado um mo<strong>de</strong>lo científico no qual se foi criado e do qualse extraiu status <strong>de</strong>ntro do meio acadêmico. A Física, ramo do qual o <strong>pró</strong>prioThomas Kuhn é egresso é a melhor ilustração do que se está falando. Não foi sematritos e sobressaltos que o mo<strong>de</strong>lo da física grega foi superado pela propostacopernicana, nem esta pela newtoniana e nem tampouco esta última pela físicaquântica. No âmbito da vida, estas mentalida<strong>de</strong>s e cosmovisões coexistem. Abra-seum parênteses para se dizer que concepções religiosas pré-mo<strong>de</strong>rnas, mo<strong>de</strong>rnas epós-mo<strong>de</strong>rnas divi<strong>de</strong>m o mesmo espaço e disputam entre si o campo religioso,ainda que analistas apontem excessos, retrocessos e <strong>de</strong>scompassos, encontrandofalta <strong>de</strong> sincronia em relação a um dado referencial tomado como árbitro e validadordos comportamentos e das crenças.Voltando a Kuhn, os paradigmas nascem frutos <strong>de</strong> rupturas e se consolidampela atração <strong>de</strong> uma gama cada vez maior <strong>de</strong> pesquisadores, o que lhe confereestabilida<strong>de</strong>, chegando-se, por fim, ao consenso. O paradigma iluminista, oumo<strong>de</strong>rno, em vigor <strong>de</strong>s<strong>de</strong> meados do século XVII, e pai <strong>de</strong> todos os mo<strong>de</strong>losreinantes nos diversos campos científicos e sociais parece estar em franca<strong>de</strong>composição e já não oferece soluções e repostas compatíveis aos problemas quelhes são colocados.Por isso, é importante se promover a substituição dos paradigmasnorteadores das pesquisas científicas, <strong>de</strong>vendo-se assumir o risco <strong>de</strong> colocar-se aolado do novo, não pelo apelo fácil que a novida<strong>de</strong> possa ter, e sim por conta daesperança que se <strong>de</strong>posita naquilo que ainda é incipiente <strong>de</strong> melhor aten<strong>de</strong>r asinquietações do nosso tempo.Esta pesquisa <strong>de</strong>clara-se simpática e a<strong>de</strong>pta do mo<strong>de</strong>lo transdisciplinar. Atransdisciplinarieda<strong>de</strong> ocupa-se daquilo que se encontra entre, através e além dasdisciplinas sejam elas quais forem, marchando para uma unida<strong>de</strong> do conhecimentoque acarrete na compreensão da realida<strong>de</strong> da maneira mais aproximada o possível,respeitando e observando que, pela complexida<strong>de</strong> do mundo, algo sempre iráescapar <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer. A proposta transdisciplinar é, portanto,pretensiosa e mo<strong>de</strong>sta simultaneamente.


65Basarab Nicolescu (2001) constata um <strong>de</strong>scompasso entre a mentalida<strong>de</strong> dospesquisadores <strong>de</strong> nosso tempo e as necessida<strong>de</strong>s impostas por momentos críticoscomo esses que a humanida<strong>de</strong> parece estar experimentando agora. Haveria umainadaptação entre o acúmulo <strong>de</strong> saberes e a disposição das mentalida<strong>de</strong>s emrelação à recepção dos métodos e pesquisa cientifica. Uma extremada <strong>de</strong>manda porespecializações cada vez mais pormenorizadas e microscópicas fez com que seper<strong>de</strong>sse a noção <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong>. O diálogo entre os saberes se torna inviabilizandoem <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> uma falta <strong>de</strong> interface da precária inteligibilida<strong>de</strong>, dapauperização dos canais <strong>de</strong> comunicação, já que a metodologia disciplinarista acabapor inibir as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interlocução.Da constatação da escassez <strong>de</strong> horizonte da disciplinarida<strong>de</strong>, ou seja, daconvicção <strong>de</strong> que ela por si mesma é um meio insuficiente para satisfazer acomplexa realida<strong>de</strong> da existência, foram elaboradas propostas metodológicas queprocuravam suprir as <strong>de</strong>ficiências inerentes ao mo<strong>de</strong>lo disciplinar e que po<strong>de</strong>m serconsi<strong>de</strong>rados passos que ajudaram a chegar na transdisciplinarida<strong>de</strong>. Por suaimportância <strong>de</strong>ntro daquilo que este estudo propõe, vão ser aqui examinados.A primeira tentativa <strong>de</strong> se conceber um liame entre os ramos doconhecimento foi a pluridisciplinarida<strong>de</strong>. Nela um objeto <strong>de</strong> uma disciplina específicase tornava objeto <strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> várias disciplinas ao mesmo tempo, enriquecendoe aprofundando aquilo que se sabe a respeito do objeto em questão. No entanto,apenas essa dada disciplina sai do processo com divi<strong>de</strong>ndos, uma vez que não hátrocas, tão somente mera recepção <strong>de</strong> conhecimentos em favor do quadro teórico dadisciplina “<strong>de</strong>tentora” do objeto, em se tratando <strong>de</strong> métodos. Quanto à informaçõesque cada modalida<strong>de</strong> científica possui sobre o objeto, aí sim há um relativointercâmbio.Outro significativo avanço foi a construção do arcabouço interdisciplinar. Essaenxergava <strong>de</strong> modo mais ampliado. Aqui é flagrante o anseio porcomplementarida<strong>de</strong>. As fraturas do saber são reconhecidas e se busca comdiligência uma reconfiguração do conhecimento. Sabe-se que não se sabe,parafraseando aquilo que teria sido dito por Sócrates, ou no muito sabe-se que sesabe muito pouco. Rompe-se o confinamento. As distâncias são diminuídas. Como?Pela implementação da transferência <strong>de</strong> métodos. Sommerman (2006) disponibilizavaliosas informações extraídas do Congresso Internacional <strong>de</strong> Transdisciplinarida<strong>de</strong>,que foi realizado em Locarno, Suíça sob os auspícios da UNESCO, em 1997.


66A interdisciplinarida<strong>de</strong> tem uma ambição diferente daquela daplurisciplinarida<strong>de</strong>. Ela diz respeito à transferência dos métodos <strong>de</strong>uma disciplina à outra. É possível distinguir três graus <strong>de</strong>interdisciplinarida<strong>de</strong>:a) Um grau <strong>de</strong> aplicação. Por exemplo, os métodos da física nucleartransferidos à medicina conduzem à aparição <strong>de</strong> novos tratamentos<strong>de</strong> câncer;b) Um grau epistemológico. Por exemplo, a transferência dosmétodos da lógica formal ao campo do direito gera analisesinteressantes na epistemologia do direito;c) Um grau <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> novas disciplinas. Por exemplo, atransferência dos métodos da matemática ao campo da física gerou afísica-matemática; da física <strong>de</strong> partículas à astrofísica, a cosmologiaquântica;da matemática aos fenômenos meteorológicos aos dabolsa, a teoria do caos; da informática à arte, a arte-informática.Como a pluridisciplinarida<strong>de</strong>, a interdisciplinarida<strong>de</strong> ultrapassa asdisciplinas, mas sua finalida<strong>de</strong> também permanece inscrita napesquisa disciplinar. Seu terceiro grau contribui até para o big bangdisciplinar. (Ibid., p. 42-43)Voltando a direcionar o foco para a transdisciplinarida<strong>de</strong>, vale a penaperscrutar a forma como ela foi sendo concebida nos diversos encontros econgressos que marcaram o seu <strong>de</strong>senvolvimento e consolidação enquantoproposta robusta e válida para se tocar a diante pesquisas científicas. O trajetocomeça em Veneza, durante o colóquio A Ciência diante da Fronteiras doConhecimento (3 a 7 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1986).Em nossa opinião, a amplidão dos <strong>de</strong>safios contemporâneos exige,por um lado, a informação rigorosa e permanente da opinião públicae, por outro, a criação <strong>de</strong> organismos <strong>de</strong> orientação e até <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão<strong>de</strong> natureza pluri e transdisciplinar [trecho final do item 5].Expressamos a esperança <strong>de</strong> que a UNESCO dê prosseguimento aesta iniciativa, estimulando uma reflexão dirigida para auniversalida<strong>de</strong> e a transdisciplinarida<strong>de</strong>. (Ibid., p. 47)Já em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1991 em Paris, por ocasião do congresso Ciência eTradição: Perspectivas transdisciplinares para o século XXI, um valioso subsídiopara àqueles que se interessam pela temática foi lavrado:Umas das revoluções <strong>de</strong>ste século veio, paradoxalmente, da ciência,mais particularmente da física quântica, que faz com que a antigavisão da realida<strong>de</strong>, com seus conceitos clássicos <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminismo,que ainda predominam no pensamento político e econômico, fosseexplodida. Ela <strong>de</strong>u à luz a uma nova lógica correspon<strong>de</strong>nte, emmuitos aspectos, a antigas lógicas esquecidas. Um diálogo capital,cada vez mais rigoroso e profundo, entre a ciência e a tradição po<strong>de</strong>então ser estabelecido a fim <strong>de</strong> construir uma nova abordagemcientifica e cultural: a transdisciplinarida<strong>de</strong> procura pontos <strong>de</strong> vista apartir dos quais seja possível torná-las interativas, procura espaços


67<strong>de</strong> pensamento que as façam sair <strong>de</strong> sua unida<strong>de</strong>, respeitando asdiferenças, apoiando-se especialmente numa nova concepção danatureza. Uma especialização sempre crescente levou a umaseparação entre a ciência e a cultura, separação que é a <strong>pró</strong>priacaracterística do que po<strong>de</strong>mos chamar <strong>de</strong> “mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” e que só fezconcretizar a separação sujeito-objeto que se encontra na origem daciência mo<strong>de</strong>rna. Reconhecendo o valor da especialização, atransdisciplinarida<strong>de</strong> procura ultrapassá-la recompondo a unida<strong>de</strong> dacultura e encontrando o sentido inerente à vida. Por <strong>de</strong>finição, nãopo<strong>de</strong> haver especialistas transdisciplinares, mas apenaspesquisadores animados por uma atitu<strong>de</strong> transdisciplinar. Ospesquisadores transdisciplinares imbuídos <strong>de</strong>sse espírito só po<strong>de</strong>mse apoiar nas diversas ativida<strong>de</strong>s da arte, da poesia, da filosofia, dopensamento simbólico, da ciência e da tradição, elas <strong>pró</strong>priasinseridas em sua <strong>pró</strong>pria multiplicida<strong>de</strong> e diversida<strong>de</strong>. Eles po<strong>de</strong>m<strong>de</strong>saguar em novas liberda<strong>de</strong>s do espírito graças a estudos transhistóricosou transreligiosos, graças a novos conceitos comotransnacionalida<strong>de</strong> ou novas práticas transpolíticas, inaugurando umaeducação e uma ecologia transdisciplinares. O <strong>de</strong>safio datransdisciplinarida<strong>de</strong> é gerar uma civilização, em escala planetária,que, por força do dialogo intercultural, se abra para a singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong>cada um e para a inteireza do ser. (Ibid., p. 48)O <strong>pró</strong>ximo passo foi dado em Portugal no I Congresso Mundial daTransdisciplinarida<strong>de</strong>, ocorrido entre os dias 2 a 6 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1994. Nesteevento foi gestado um documento intitulado Carta da transdisciplinarida<strong>de</strong> que seconstitui num verda<strong>de</strong>iro marco. Sommerman sintetiza alguns dos seus artigos que<strong>de</strong>marcam minimamente a conceituação do que é a transdisciplinarida<strong>de</strong>:Artigo 3: (...) A transdisciplinarida<strong>de</strong> não procura o domínio sobre asvárias outras disciplinas, mas a abertura <strong>de</strong> todas elas àquilo que asatravessa e as ultrapassa. (...) Artigo 5: A visão transdisciplinar éresolutamente aberta na medida em que ela ultrapassa o campo dasciências exatas <strong>de</strong>vido ao seu dialogo e sua reconciliação nãosomente com as ciências humanas, mas também com a arte, aliteratura, a poesia e a experiência espiritual. Artigo 6: Com relação àinterdisciplinarida<strong>de</strong> e à multidisciplinarida<strong>de</strong>, a transdisciplinarida<strong>de</strong> émultirrefencial e multidimensional. Embora levando em conta osconceitos <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> história, a transdisciplinarida<strong>de</strong> não exclui aexistência <strong>de</strong> um horizonte trans-histórico. Artigo 7: Atransdisciplinarida<strong>de</strong> não constitui nem uma nova religião, nem umanova filosofia, nem uma nova metafísica, nem uma ciência dasciências. (Ibid., p. 49-50)Por fim, o Congresso <strong>de</strong> Locarno vai estabelecer o seguinte balizamento:A transdisciplinarida<strong>de</strong>, como prefixo “trans” o indica, diz respeito aoque está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentesdisciplinas e além <strong>de</strong> toda disciplina. Sua finalida<strong>de</strong> é a compreensãodo mundo atual, e um dos imperativos para isso é a unida<strong>de</strong> doconhecimento. (Ibid., p. 43)


68O questionamento em primeira instância e o ultrapassamento dadisciplinarida<strong>de</strong> logocentrista, a posteriori, fez com que um contínuo processo <strong>de</strong>busca e afirmação <strong>de</strong> novos paradigmas metodológicos on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>ssem se pautaros pesquisadores insatisfeitos com os instrumentos disponibilizados pela ciênciatradicional, mas que também eram intransigentes em relação ao rigor e serieda<strong>de</strong>que requer uma investigação sobre diversos problemas e fenômenos que sãopercebidos no bojo da realida<strong>de</strong>, esta também assumida como complexa.Bem se vê que tem se alternado a forma <strong>de</strong> encarar os <strong>de</strong>safios postos pelomundo contemporâneo. No lugar <strong>de</strong> se simplificar <strong>de</strong> maneira a isolar por completo oproblema do contexto que nele influencia, tomando-se apenas algumas poucasvariantes que se crê nele po<strong>de</strong>r interferir, <strong>de</strong>ve-se complexificar, isto é, chamar paraa investigação fatores impossíveis <strong>de</strong> serem consi<strong>de</strong>rados se não for ampliada aperspectiva que orienta os procedimentos <strong>de</strong> inquirição e avaliação dos estudoscientíficos.A transdisciplinarida<strong>de</strong> <strong>de</strong>lineou as bases pelas quais se orientariam aspesquisas que a ela tenham por premissa subjacente. Partiu-se <strong>de</strong> um ponto<strong>de</strong>veras escandaloso para a forma tradicional e majoritária <strong>de</strong> se fazer ciência. Paraa ciência clássica não po<strong>de</strong>ria haver algo que se situasse entre as disciplinas oumesmo (e ao mesmo tempo) através <strong>de</strong>las. Porém, a percepção <strong>de</strong> uma novageração <strong>de</strong> estudiosos, apoiados fundamentalmente nas <strong>de</strong>scobertas da física no<strong>de</strong>correr do século passado, sugere a existência <strong>de</strong> níveis <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> diversos. Afísica quântica inaugurou um novo tempo e uma nova mentalida<strong>de</strong> científica a partirda noção <strong>de</strong> vácuo quântico, isto é, um vazio que na verda<strong>de</strong> está repleto <strong>de</strong>possibilida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> potencialida<strong>de</strong>s.Para a constituição <strong>de</strong> seu método <strong>de</strong> investigação científica, atransdisciplinarida<strong>de</strong> propôs novos sustentáculos. O suporte para essa nova forma<strong>de</strong> averiguar os fenômenos e <strong>de</strong> se produzir conhecimento gira em torno do tripéníveis <strong>de</strong> Realida<strong>de</strong>, lógica do terceiro incluído e complexida<strong>de</strong>.Quando se fala <strong>de</strong> níveis <strong>de</strong> Realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>seja-se querer abordar a existência<strong>de</strong> conjuntos <strong>de</strong> sistemas observadores <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas leis, sob as quaispermaneceram invariáveis. A passagem <strong>de</strong> um dado nível <strong>de</strong> Realida<strong>de</strong> para outropo<strong>de</strong>ria ocasionar uma ruptura das leis às quais o objeto estaria preso, alterandosuas implicações. Isso porque a estrutura dos níveis <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> não obe<strong>de</strong>ce a umesquema <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>. As operações <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada nível acontecem em


69atendimento às suas leis específicas e nunca em estreita observância <strong>de</strong> uma leisuprema e totalizante:Níveis <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> são concebidos a partir da mecânica quântica.Descobre-se que um novo tipo <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> está presente no nívelquântico, nível infinitamente pequeno e infinitamente breve. Ainteração nas partículas quânticas supõe uma conexão, uma nãoseparabilida<strong>de</strong>,o que é diferente da causalida<strong>de</strong> local das leismacrofísicas. Há correlações diferentes, não locais. Há outro tipo <strong>de</strong>coerência no nível quântico. É precisamente aqui que o <strong>de</strong>terminismotambém se <strong>de</strong>sagrega. O que leva Heisenberg a formular o princípioda in<strong>de</strong>terminação: é impossível localizar um quantum num pontoespecífico no espaço e no tempo, isto é, localizar sua trajetória. Aaleatorieda<strong>de</strong> quântica não é probabilística. Aqui não mais valem nema chance nem a necessida<strong>de</strong>. A aleatorieda<strong>de</strong> quântica é uma apostaconstrutiva, cujo significado é a construção <strong>de</strong> nosso mundomacrofísico. Mesmo no mundo clássico, no conceito <strong>de</strong> precisão temsido radicalmente chamado em questão pela teoria do caos. O caosvem embutido no coração do <strong>de</strong>terminismo.A <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> que é manifestada no mundo quântico é tambémmanifestada na estrutura dos níveis <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>. O que não impe<strong>de</strong>que os dois mundos coexistam. A prova é nossa existência. Nossoscorpos contêm simultaneamente uma estrutura macrofísica e umaestrutura quântica.Níveis <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> são radicalmente diferentes dos níveis <strong>de</strong>organização enquanto estes vêm <strong>de</strong>finidos em abordagenssistêmicas. Os níveis <strong>de</strong> organização não pressupõem uma quebrados conceitos fundamentais: muitos níveis <strong>de</strong> organização aparecemnum único e mesmo nível <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>.A realida<strong>de</strong>, por sua vez, <strong>de</strong>signa aquilo que resiste a nossasexperiências, representações, <strong>de</strong>scrições, imagens, ou formulaçõesmatemáticas. Participando do ser do mundo, ela tem uma dimensãoontológica. Não é meramente uma construção social, o consenso <strong>de</strong>uma coletivida<strong>de</strong>, ou um acordo intersubjetivo. Tem, sem dúvida, umadimensão transubjetiva, porque dados experimentais po<strong>de</strong>m fazer ruira mais bela teoria científica. (Oliveira, 2000, p. 10-11)É <strong>de</strong> significativa importância a <strong>de</strong>scoberta da <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>. Algumasgran<strong>de</strong>zas po<strong>de</strong>m permanecer estáveis após a<strong>de</strong>ntrarem noutro nível, ou seja, emcontinuida<strong>de</strong>. Entretanto, sob a égi<strong>de</strong> <strong>de</strong> novas leis há também rupturas, semnecessariamente (na verda<strong>de</strong>, quase não havendo) uma transição. Isto é, não sesobe uma la<strong>de</strong>ira para que se alcance um nível mais alto, <strong>de</strong>ixando para trás umnível mais baixo. Simplesmente salta-se. Sommerman relata a (re)evolução queculminou na proposta transdisciplinar:No início do século XX, Max Planck fez uma <strong>de</strong>scoberta que começoua <strong>de</strong>molir o paradigma científico da simplicida<strong>de</strong>, estabelecido pelafísica clássica. Ele <strong>de</strong>scobriu que a energia tem uma estrutura<strong>de</strong>scontínua: ela se move por saltos, “sem passar por nenhum pontointermediário”. Essa <strong>de</strong>scoberta, que <strong>de</strong>rrubou um dos pilares dafísica clássica, a idéia <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>, colocou em questão outro dos


70seus pilares, a causalida<strong>de</strong> local. Mas foi apenas na década <strong>de</strong> 70que o tipo <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> do mundo quântico foi esclarecido everificado: a causalida<strong>de</strong> global. No mundo subatômico, “as entida<strong>de</strong>sfísicas continuam a interagir qualquer que seja o seu afastamento”.Essa comprovação da causalida<strong>de</strong> global <strong>de</strong>rrogou um dos pilaresmetodológicos da ciência mo<strong>de</strong>rna, a separabilida<strong>de</strong> (por exemplo,entre sujeito e objeto), e um novo conceito emergiu na física, a nãoseparabilida<strong>de</strong>.No entanto, isso não colocou em dúvida acausalida<strong>de</strong> como um todo, mas mostrou a existência <strong>de</strong> outro tipo <strong>de</strong>causalida<strong>de</strong>, além da local, que não nega a objetivida<strong>de</strong> cientifica,mas apenas “uma <strong>de</strong> suas formas: a objetivida<strong>de</strong> clássica, baseadana crença <strong>de</strong> ausência <strong>de</strong> qualquer conexão não-local”. Algumasdécadas <strong>de</strong>pois da <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> Planck, outro dos pais da físicaquântica, Werner Heisenberg, <strong>de</strong>rrubará o terceiro pilar da físicaclássica, a idéia <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminismo, pois suas equações mostraram queas entida<strong>de</strong>s quânticas encontradas no Planck (os quanta: os pacotes<strong>de</strong> energia que se movem por saltos) não po<strong>de</strong>m ser localizados numponto preciso do espaço e num ponto preciso do tempo. Essasentida<strong>de</strong>s quânticas, muito diferentes dos dois tipos <strong>de</strong> objetos bemdistintos quer eram estudados pela física clássica, os corpúsculos eas ondas – pois são as duas coisas ao mesmo tempo –, não po<strong>de</strong>mter sua trajetória prevista. Portanto, na escala subatômica (o interiordo átomo) reina um in<strong>de</strong>terminismo. No entanto este não significaacaso ou imprecisão, pois, por um lado, as entida<strong>de</strong>s quânticas nãorespeitam, como vimos, as idéias fundamentais da física clássica, acontinuida<strong>de</strong> e a causalida<strong>de</strong> local, e, por outro, as previsõesprobabilísticas da mecânica quântica são muito precisas no que dizrespeito a essas entida<strong>de</strong>s. (Sommerman, op. cit., p. 55-56)Um segundo pé transdisciplinar, é o que se convenciona chamar <strong>de</strong> lógica doterceiro incluído, também este altamente subversivo em relação ao pensamentocientífico estabelecido, uma vez que minou a consistência da lógica binária que anteaos problemas respondia em termos <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro ou falso, como numa provaescolar, ten<strong>de</strong>ndo sempre a simplificar excessivamente as coisas ao não levar emconta outros aspectos tidos como não comunicantes ao fenômeno e por issoirrelevantes.Essa inovação na formulação dos procedimentos lógicos aplicados àproblemas também é tributaria da mecânica quântica. A lógica clássica bináriaguiou-se pelo eixo da contradição. Já a lógica ternária procura promover umaconciliação pela inclusão <strong>de</strong> um terceiro termo capaz <strong>de</strong> servir <strong>de</strong> ponte entre osdois primeiros. Na lógica tradicional, ter-se-ia:1. Axioma da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> → A é A2. Axioma da não-contradição → A não é não – A3. Axioma do terceiro excluído → T não existe (um terceiro termo que fosseA e não – A ao mesmo tempo é uma impossibilida<strong>de</strong>.


71É a receita do preto e do branco, que não consegue enxergar as diversascores e tonalida<strong>de</strong>s diferentes, que efetivamente fazem a vida ser bela. Uma lógica<strong>de</strong>spreparada para dar conta <strong>de</strong> um mundo em acelerada <strong>de</strong>sconstrução <strong>de</strong>conceitos pré-estabelecidos.A lógica quântica não se organiza apenas em termos <strong>de</strong> A e não – A. para elao T (terceiro excluído) faz parte do jogo e nele <strong>de</strong>sempenha um papel <strong>de</strong> notávelrelevo.FIGURA IA Não – A NÍVEL 1----------------------------- ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------T NÍVEL 2O que no Nível 1 é oposição, num outro Nível, o 2, po<strong>de</strong> ser conciliado. Comona física quântica on<strong>de</strong> o corpúsculo e a onda são contraditórios no plano macro,mas no plano micro conciliados pelo quantum.Um questionamento legítimo que po<strong>de</strong>ria invalidar a proposta da lógicaquântica seria aquele que afirma já haver Hegel solucionado o problema dacontradição com sua proposta <strong>de</strong> tría<strong>de</strong>, na qual a Tese e seu contraponto aAntítese viriam a ser integradas num terceiro elemento superior aos dois, a Síntese.Ocorre que no pensamento hegeliano a Síntese é posterior no tempo a Antítese, quepor sua vez aparece <strong>de</strong>pois da Tese, sendo sua negação. Na lógica quântica, aocontrário, os termos estão dispostos simultaneamente, embora um <strong>de</strong>les precise sersituado noutro nível <strong>de</strong> Realida<strong>de</strong>.Tal lógica do terceiro termo incluso não é apenas uma metáfora. Pelocontrário, é, talvez, a lógica privilegiada da complexida<strong>de</strong>, no sentidoque nos permite cruzar as diferentes áreas do conhecimento numcaminho coerente. A lógica do termo excluído é perigosa em casoscomplexos, como <strong>de</strong>ntro das esferas sociais e políticas, bem comonas ciências humanas em geral e na teologia em particular. Em tais


72casos, ela opera como uma genuína lógica <strong>de</strong> exclusão: sujeito ouobjeto, consciente ou inconsciente, razão ou afeto, corpo ou espírito,Deus ou o ser humano, bom ou mau, direita ou esquerda, homem oumulher, rico ou pobre, negro ou branco. Assim, ela po<strong>de</strong> serreveladora na analise da xenofobia, do racismo, do anti-semitismo, donacionalismo e <strong>de</strong> outros “ismos” exclu<strong>de</strong>ntes. Acrescente-se, porexemplo, fundamentalismo, racionalismo, fi<strong>de</strong>ísmo. (Oliveira, op. cit.,p. 11-12)Há ainda a noção <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong>. Sommerman dirá que “o paradigma dasimplicida<strong>de</strong> da física clássica também encontrou seu contraditório, a complexida<strong>de</strong>,coexistindo simultaneamente” (op. cit., p. 57). Um reconhecimento <strong>de</strong> que aexistência, a relação com outros seres humanos, com a natureza é algo complexo,<strong>de</strong> difícil apreensão, mas <strong>de</strong> uma possível compreensão. O mundo não é simples(<strong>de</strong> simplex, isto é, com uma dobra só) como presumia a física clássica. Antes háinúmeras imbricações e entrelaces: ele é complexo (<strong>de</strong> complexus, ou seja,possuindo várias dobraduras).Os problemas não se prestam a <strong>de</strong>composições ou retalhamentos que visamtorná-los inteligíveis e solucionáveis pela contínua fragmentação em busca dasimplicida<strong>de</strong> fundamental. Para a complexida<strong>de</strong>, há <strong>de</strong> se ter em vista amultidimensionalida<strong>de</strong> das coisas. A realida<strong>de</strong> possui referências múltiplas todaselas agindo entre si, dinamizando ao infinito a vida e suas manifestações.No entanto, isso ocorre sem promover o caos, como alguns críticos dopensamento complexo po<strong>de</strong>riam sugerir. Há uma coerência surpreen<strong>de</strong>nte entre asgran<strong>de</strong>zas infinitamente pequenas e aquelas infinitamente gran<strong>de</strong>s.Numa via paradoxal, a complexida<strong>de</strong> é embutida no verda<strong>de</strong>irocoração da simplicida<strong>de</strong>: a física fundamental, consi<strong>de</strong>rando aspartículas fundamentais – quarks, léptons, outras que venham a ser<strong>de</strong>scobertas e os mensageiros das interações físicas. Todas aspartículas se relacionam “<strong>de</strong>mocraticamente” e uma existe como talporque as outras existem ao mesmo tempo. Tudo, em suma, serelaciona. A complexida<strong>de</strong> aparece no momento em que as partículaspassam ao nosso mundo, que é caracterizado por quatro dimensõese por baixas energias.Por conseqüência, a complexida<strong>de</strong> vem manifestada em todo lugar,nas ciências exatas (hard) ou humanas (soft). Em biologia e emneurociência, por exemplo, que apresentam um rápido<strong>de</strong>senvolvimento, cada dia traz mais complexida<strong>de</strong> e novassurpresas. A complexida<strong>de</strong> social enfatiza a complexida<strong>de</strong> que inva<strong>de</strong>todas as áreas do conhecimento ao ponto do paroxismo. Por fim, acomplexida<strong>de</strong> é tanto encontrada na verda<strong>de</strong>ira natureza das coisasquanto é criada em nossas mentes. (Oliveira, op. cit., p. 12)


73TRANSDISCIPLINARIDADE E PESQUISAS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃOFaz-se oportuno discutir nesta etapa a valida<strong>de</strong> e a viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seempregar o método transdisciplinar neste campo que é recente no Brasil. Deve serdito que não há uma forma consensual <strong>de</strong> <strong>de</strong>nominar este ramo disciplinar. Porvezes encontrar-se-á o termo “ciência” em outras oportunida<strong>de</strong>s o plural “ciências”.Quanto ao objeto, o mesmo ocorre: “religião” ou “religiões”, sendo que é possívelencontrar programas <strong>de</strong> pós-graduação <strong>universida<strong>de</strong></strong>s com nomenclaturas diversas.Então, a aplicação <strong>de</strong> um método investigativo iniciante no âmbito <strong>de</strong> umcampo ainda em vias da plena consolidação – muito embora a caminhada tenhasido até aqui segura, séria e promissora – não representaria um risco? Qual obenefício <strong>de</strong> utilizá-lo nessa pesquisa específica? Mais ainda, qual o contributo paraa(s) ciência(s) da(s) religião ou religiões? São indagações legítimas e pertinentes,tendo em vista o processo <strong>de</strong> afirmação <strong>de</strong>sta área <strong>de</strong> conhecimento. Uma boanotícia que motiva o emprego <strong>de</strong> um novo quadro <strong>de</strong> referências conceituais é oestágio formativo da cultura epistemológica em que se encontra o estudo dasreligiões por esta novíssima área acadêmica.A autonomia da disciplina em questão e sua maior vertebração a médio elongo prazo correspon<strong>de</strong> proporcionalmente a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> absorver umamultiplicida<strong>de</strong> metodológica. Pondé acredita que “praticar epistemologia éexperimentar, no sentido mais forte do termo, a insegurança, o limite, o esforço <strong>de</strong>lidar com essa angustia <strong>de</strong> cognição” sendo que o “epistemólogo, ou a pesquisadoraque pensa seu método <strong>de</strong> trabalho, é alguém que trabalha uma falha, uma falta”. (InTeixeira, 2001, p. 12). Foi essa impressão <strong>de</strong> ausência dos meios necessários parauma abordagem satisfatória do problema sobre o qual esta pesquisa se <strong>de</strong>dica, quefez com que se chegasse ao paradigma teórico transdisciplinar como maisa<strong>de</strong>quado para esta investigação.Pondé se vale da figura do “contrato” para evi<strong>de</strong>nciar o “dramaepistemológico” em todas as suas possibilida<strong>de</strong>s e limitações. O referido contratoepistemológico seria a maneira possível <strong>de</strong> se suprir a “falha cognitiva” e as<strong>de</strong>ficiências do aparelho noético em captar e processar com correção os dados e asinformações liberadas pelos objetos em sua relação com a realida<strong>de</strong>. Esse contratotem seus critérios <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finidos pelos agentes que compartilham dosmesmos pontos <strong>de</strong> vista.


74Tomando Blaise Pascal como exemplo, Pondé <strong>de</strong>monstra como oencaminhamento da pesquisa <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá em muito “do instrumental utilizado, daarmação conceitual partilhada pela comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> especialistas” e “pela assunçãoarbitrária <strong>de</strong> um dos dados do sistema”, chegando a conclusão <strong>de</strong> que “a valida<strong>de</strong><strong>de</strong> seus experimentos será proporcional a sua habilida<strong>de</strong> em persuadir seusparceiros do rigor <strong>de</strong> suas conclusões (Ibid., p. 29), ou seja, muita coisa <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> dacapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> convencimento (e mesmo <strong>de</strong> retórica) do pesquisador.Dialogando com Karl Popper, o autor caminha no sentido <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nciar queos enunciados <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada fração da ciência, para serem legítimos, <strong>de</strong>vemestar abertos a toda sorte <strong>de</strong> crítica, <strong>de</strong> modo a se submeterem à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>falseação. Ainda que não se possa aplicar o pensamento popperiano por inteiro a(s)ciência(s) da(s) religião(ões), já que as ciências humanas não se prestam por sua<strong>pró</strong>pria natureza a uma falseação <strong>de</strong>finitiva como os saberes matematizáveis, resta<strong>de</strong>sta proposição o fato <strong>de</strong> se ter como “inválido para o contrato epistemológico” (p.37) tudo o que se presta ao crivo das críticas. Noutros termos, <strong>de</strong>scarta todos osdogmatismos, <strong>de</strong>spojando-os <strong>de</strong> sua pretensão <strong>de</strong> valida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>.Assim, restaria aos pesquisadores se consolarem na “inconsistênciaepistemológica” apontada por Isaiah Berlim, passando a levarem ao conhecimento<strong>de</strong> toda a socieda<strong>de</strong> a precarieda<strong>de</strong> dramática da ciência, numa tentativa <strong>de</strong> seadvertir o homem a mulher da rua dos perigos <strong>de</strong> uma cega confiança nas palavrasdo cientista, pretensamente neutro e seguro <strong>de</strong> suas afirmações “verda<strong>de</strong>iras”.Frank Usuarski (In Teixeira, 2001) abordando o caminho que a ciência dareligião seguiu na Alemanha enten<strong>de</strong> que esta possui predisposições“metarreflexivas”. Para ele, uma linha ancorada na tradição racionalista conceberia areligião como um produto humano, não possuindo especificida<strong>de</strong> sua e sim umavariável <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte passível <strong>de</strong> ser explicada tomando-se como referência fatoresda vida social não-religiosos.Por outro lado, um outro segmento buscou localizar os fundamentos dareligião no sentimento, tomando-a como uma constante antropológica anteriores aoprocesso mental <strong>de</strong> racionalização e que não se sujeitaria a nenhuma manifestaçãosocial. Colocam-se, pois, pontos <strong>de</strong> vista antagônicos: a primeira <strong>de</strong> caráterreducionista e a segunda apostando num mo<strong>de</strong>lo fenomenológico. A tensão entre asduas correntes alimentou a disputa <strong>de</strong> se saber qual a forma correta <strong>de</strong> se investigaro dado religioso.


75Outro item bastante disputado resi<strong>de</strong> em classificar a Ciência da Religiãocomo uma disciplina autônoma que se vale <strong>de</strong> uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> métodos ou, sepela estrutura aberta e dinâmica combinada com as diversas técnicas <strong>de</strong> pesquisa,não se <strong>de</strong>veria tomá-la como um campo disciplinar, e aí então ter-se-ia Ciências dasReligiões.O fato é que na Alemanha a autonomia e maiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa disciplina <strong>de</strong>u-seao se estabelecer um afastamento tanto da proposta redutora, quanto do enfoquemeramente fenomenológico, com a progressiva aproximação das Ciências Sociais, oque, em parte aponta para uma maior afinida<strong>de</strong> com a chamada linha iluminista.Em relação a <strong>de</strong>signação da disciplina, fixou-se na Alemanha a <strong>de</strong>signaçãono singular, Ciência da Religião, visando salientar a “integrida<strong>de</strong> substancial” dadisciplina. Ursarski vê a Ciência da Religião como um ponto <strong>de</strong> interação, umcruzamento <strong>de</strong> diversos ramos da ciência, assim como a é a Pedagogia:O mesmo vale para a ciência da religião que sempre tem aproveitadoos conhecimentos e métodos <strong>de</strong> suas subdisciplinas e disciplinasauxiliares mais importantes, isto é, da filologia, da história, dasociologia da religião e da psicologia da religião, mas também <strong>de</strong>outros conjuntos acadêmicos, por exemplo, da etnologia, daantropologia ou da geografia. Esta multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> referências não éum conjunto amorfo <strong>de</strong> métodos e abordagens, mas – análogo aocaso da pedagogia – o perfil a<strong>de</strong>quado <strong>de</strong> um empreendimentointelectual que se <strong>de</strong>vota a enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> modo o mais abrangente eprofundo possível o complexo mundo religioso em suasmanifestações históricas e expressões contemporâneas. (Usarski,2001, p. 95-96)A crescente valorização das chamadas ciências hermenêuticas, on<strong>de</strong> sesituariam as ciências humanas requer, para a boa interpretação dos objetossubmetidos a observação e ao estudo, uma confluência cada vez maior <strong>de</strong> saberese <strong>de</strong> aportes teóricos diversos, tendo em vista o reconhecimento da complexida<strong>de</strong>dos intrincados fenômenos, com reflexos no mundo social, mas também implicaçõespsíquicas e mesmo metafísicas que não po<strong>de</strong>m ser subestimadas.Enquanto hermenêutica, a Ciência da Religião ocupa-se também dainterpretação dos signos, em geral e dos símbolos, em particular. A religião seexpressa num acervo <strong>de</strong> significados e sua linguagem possui um vivo simbolismo.Estabelece-se entre a religião e o ser humano religioso, uma relação dialética, queevoca o evento fundante <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado credo, a fé pessoal do crente e osentido impelido ao mesmo.


76A explicação, outrora proprieda<strong>de</strong> privada da ciência e a compreensão queanteriormente era atribuída à hermenêutica, hoje não vistas como pertencente a ummesmo “arco hermenêutico” (Ricoeur, 1987). Este arco hermenêutico po<strong>de</strong> sercompreendido como um círculo, sendo o instrumento <strong>de</strong> trabalho mais proveitosoquando se quer empregar à pesquisa um cunho inter ou transdisciplinar. Apreocupação aqui encontra-se em inscrever num mesmo ambiente ou processo – oarco hermenêutico – a explicação e a compreensão. Ricoeur estabelece trêsestágios nesta jornada: a pré-compreensão; a explicação e a compreensão final. Nomomento explicativo as várias disciplinas científicas fariam sua intervenção,mediação indispensável para se chegar a uma satisfatória compreensão daquilo queestá sendo analisado.O gran<strong>de</strong> incremento <strong>de</strong>ste chamado “arco hermenêutico” seria a conciliação<strong>de</strong> perspectiva díspares, sem que haja o abandono dos fundamentos elementares<strong>pró</strong>prios <strong>de</strong> cada ciência participante <strong>de</strong>ste processo.Aragão, trabalhando a questão do diálogo religioso, observa que as religiõespretensamente universais se armam <strong>de</strong> uma lógica totalizante, enquanto, por outrolado, é cada vez maior a influência dos <strong>de</strong>fensores <strong>de</strong> um localismo radical:A disputa entre um suposto universalismo da razão inata(normativida<strong>de</strong> da razão única, lei natural, direitos humanosuniversais) e o contextualismo, com seus parâmetros interculturaisincomensuráveis, faz com que o diálogo intercultural pareça ou semproblemas ou sem chance. Precisa-se pensar em um axioma além dalógica clássica – i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, não-contradição e terceiro excluído –on<strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong> não seja adversária da outra e a síntese na nasçado túmulo do terceiro excluído. (Aragão, 2004, p. 63)É aí então, que passa a fazer uma gran<strong>de</strong> diferença na busca doconhecimento a adoção <strong>de</strong> uma perspectiva transdisciplinar e transcultural.A transdisciplinarida<strong>de</strong> engendra, pois, uma atitu<strong>de</strong> trans-cultural etrans-religiosa. A atitu<strong>de</strong> trans-cultural <strong>de</strong>signa a abertura <strong>de</strong> todas asculturas para aquilo que as atravessa e as ultrapassa. Ela indica quenenhuma cultura se constitui em um lugar privilegiado a partir do qualpo<strong>de</strong>mos julgar universalmente as outras culturas, como nenhumareligião po<strong>de</strong> ser a única verda<strong>de</strong>ira – mesmo que cada uma possa seexperimentar como absolutamente verda<strong>de</strong>ira e universal. Em ummesmo nível <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> elas seriam possivelmente antagônicas eexclu<strong>de</strong>ntes, mas se consi<strong>de</strong>rarmos um outro nível ao menos, surgeum “terceiro” que, incluído, as po<strong>de</strong> reconciliar. Trata-se do“psiquismo” que nos constitui a todos e exige uma nova ética, oudaquilo que é mais humano no humano e também no cósmico – e porisso sagrado ou divino.


77[...]A pluralida<strong>de</strong> complexa das culturas e a unida<strong>de</strong> aberta do transculturalcoexistem na visão transdisciplinar. Para Basarab Nicolescu,as diferentes culturas são as diferentes facetas do ser humano. Omulticultural permite a interpretação <strong>de</strong> uma cultura pela outra, e otranscultural assegura a tradução <strong>de</strong> uma cultura para várias outras,<strong>de</strong>cifrando o significado que as une, embora igualmente asultrapasse. Não se quer chegar ao estabelecimento <strong>de</strong> umatranscultura ou metacultura, mas sim que as diferentes culturaspossam ser mais completas em todas as suas dimensões. (Ibid., p.67)As Ciências da Religião se constituem em lugar privilegiado para seempreen<strong>de</strong>r investigações sob mo<strong>de</strong>los novos e promissores. Em primeiro lugar porconta <strong>de</strong> seu(s) objeto(s): a(s) religião(ões). É necessário que as diversasreligiosida<strong>de</strong>s e maneiras <strong>de</strong> se exprimir conteúdos <strong>de</strong> fé possam usufruir <strong>de</strong>mecanismos hábeis para captar o sentido daquilo que elas querem efetivamentedizer, sobretudo num mundo on<strong>de</strong> a religião se torna pivô e combustível <strong>de</strong> diversasdisputas. Em segundo lugar, pela persistente inaptidão da ciência convencional ementen<strong>de</strong>r a religião; pela continuida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>sconfiança em se aceitar a religião comoum discurso válido, resistência que a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> sempre soube oferecer. Porúltimo, a religião é um saber que abrange imanência: na sua forma <strong>de</strong> se expressar,no contágio que tem sobre as <strong>de</strong>mais esferas da vida do indivíduo etc. – etranscendência, – na maneira do indivíduo se ultrapassar e se lançar em algo quecompreen<strong>de</strong> como maior que si <strong>pró</strong>prio.As metodologias <strong>de</strong> trabalho hoje à disposição da ciência tradicional nãoconseguiram trabalhar sem pôr em suspense aquilo que é mais caro e valioso tantopara a religião como para o fiel. Acabam, portanto, fazendo abordagens muitofragmentadas e parciais, <strong>de</strong>sperdiçando a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> elevar o nível <strong>de</strong>conhecimento sobre o tema.Edgar Morin diz que já é chegada a hora das ciências se abrirem para osprocessos <strong>de</strong> “complexificação” das áreas <strong>de</strong> pesquisa, visando a constituição <strong>de</strong>“um objeto e <strong>de</strong> um projeto, ao mesmo tempo inter e transdisciplinar” (2003, p. 110)que permita ao sujeito acessar níveis <strong>de</strong> “policompetência”. A proposta <strong>de</strong> Morin éousada: o nascimento <strong>de</strong> um novo esquema cognitivo. Para tanto, é mister mais quea idéia da transdisciplinarida<strong>de</strong>. Urge uma atitu<strong>de</strong> transdisciplinar, <strong>de</strong> uma ciênciacom mentalida<strong>de</strong> radicalmente diagonal. Isto equivaleria a se afirmar a pertinência


78dos contextos, a “ecologização” das disciplinas e o surgimento <strong>de</strong> uma“metadisciplinarieda<strong>de</strong>”:O importante não é apenas a idéia <strong>de</strong> inter e <strong>de</strong> transdisciplinarida<strong>de</strong>.Devemos “ecologizar” as disciplinas, isto é, levar em conta tudo quelhes é contextual, inclusive as condições culturais e sociais, ou seja,vem em que meio elas nascem, levantam problemas, ficamesclerosados e transformam-se. É necessário também o“metadisciplinar”; o termo “meta” significando ultrapassar e conservar.Não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>molir o que as disciplinas criaram; não se po<strong>de</strong>romper todo o fechamento: há o problema da disciplina, o problemada ciência, bem com o problema da vida; é preciso que uma disciplinaseja, ao mesmo tempo, aberta e fechada. (Ibid., p. 115)Como se vê a proposta transdisciplinar como linha <strong>de</strong> pesquisa não é ummodismo, ou uma invencionice <strong>de</strong> insatisfeitos contumazes com o modoconvencional <strong>de</strong> se produzir conhecimento cientifico. É uma exigência <strong>de</strong> um mundocomplexo, on<strong>de</strong> os problemas têm diversas facetas. A(s) ciência(s) da(s)religião(ões) por sua <strong>pró</strong>pria natureza, po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhar esse papel <strong>de</strong> vanguardana ampliação dos horizontes epistemológicos e <strong>de</strong> métodos. Essa pesquisaespecifica é a<strong>de</strong>pta <strong>de</strong>ste novo cenário.O conhecimento em movimento, em circularida<strong>de</strong>, com incríveis pretensões eatitu<strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>stas, na linha do que vai dizer Morin se reportando à Blaise Pascal, dámostras <strong>de</strong> ser a opção mais plausível <strong>de</strong> se respeitar tanto o específico, queinteressa a poucos, quanto o geral que atinge a todos:Afinal, <strong>de</strong> que serviriam todos os saberes parciais senão para formaruma configuração que responda a nossas expectativas, nossos<strong>de</strong>sejos, nossas interrogações cognitivas? Deve-se pensar tambémque o que está além da disciplina é necessário à disciplina para quenão seja automatizada e esterilizada; o que nos remete a umimperativo cognitivo, já formulado há três séculos por Blaise Pascal,que justifica as disciplinas e conserva, ao mesmo tempo, um ponto <strong>de</strong>vista metadisciplinar: “uma vez que todas as coisas são causadas ecausadoras, ajudados e ajudantes, mediatos e imediatos, e todosestão presos por um elo natural e imperceptível, que liga as maisdistantes e as mais diferentes, consi<strong>de</strong>ro impossível conhecer aspartes sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo semconhecer, particularmente, as partes”. (Ibid., p. 116)AS CONTRIBUIÇÕES DE BARUCH ESPINOSA E GASTON BACHELARDUm dos mais instigantes e controvertidos pensadores <strong>de</strong>ntro da história dafilosofia foi por certo Baruch Espinosa (1623-1677). É possível enxergar na sua obra


79algumas antecipações, ainda que precárias em alguns aspectos, no que diz respeitoà epistemologia, e ao conhecimento da realida<strong>de</strong>. Um dos gran<strong>de</strong>s eixos <strong>de</strong> suaobra é a <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> que a mente e a realida<strong>de</strong> são unas e <strong>de</strong> que a finalida<strong>de</strong>última da filosofia capta a unida<strong>de</strong> que permeia a diversida<strong>de</strong>, buscando assimconciliar os opostos.Para Espinosa, Deus é onipresente e, portanto não se po<strong>de</strong>ria concebê-lofora do mundo, numa imanência que irá englobar Natureza e humanida<strong>de</strong>, poisDeus faz parte <strong>de</strong> tudo o que existe no mundo. A Natureza ou Deus possuiriaatributos. A humanida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria perceber sua participação em pelo menos dois<strong>de</strong>les: por meio do corpo, que é a expressão do atributo extensão, ou seja, aconcretu<strong>de</strong>, o lado material; pela mente, que é a forma <strong>de</strong> se manifestar em porçãofinita a qualida<strong>de</strong> da inteligibilida<strong>de</strong>.O corpo e a mente possibilitam ao ser humano conhecer. O conhecimentooutorga a liberda<strong>de</strong>. Em Espinosa, sendo Deus a causa <strong>de</strong> si mesmo, uma vez queele não está fora da Natureza, mas incluso <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la, rompendo <strong>de</strong>sta forma odualismo sagrado/profano, mundo espiritual/mundo material, duas importantesconseqüências vão aparecer: primeiro, a lógica dualista, sustentada pela oposiçãobinária do tipo A é A, e A não é não – A, será <strong>de</strong>safiada; <strong>de</strong>pois, se Deus é a causaque produz seus efeitos, não se separando <strong>de</strong>les já que Deus é a Natureza, entãoEle é um ser que se autoproduz em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> causa a si <strong>pró</strong>prio. É clara aligação do pensamento espinosano com idéias contemporâneas surgidas na biologiacomo a autopoiesis, <strong>de</strong>fendidos por autores da área das ciências biológicas comoHumberto Maturama.Ora, a relação entre causa e efeito não obe<strong>de</strong>ceria mais ao esquema firmadocom base na anteriorida<strong>de</strong> da causa em relação ao efeito, nem tampoucoobe<strong>de</strong>ceria a um mo<strong>de</strong>lo linear. Causa e efeito se dariam num processo circular noqual seria impossível empreen<strong>de</strong>r qualquer tentativa <strong>de</strong> separação.Em relação ao dualismo autoritário, a obra espinosana irá propor uma maiorhorizontalida<strong>de</strong> por meio do conhecimento libertador, em <strong>de</strong>trimento da verticalida<strong>de</strong>que hierarquiza os valores, tornando o ser humano refém dos <strong>de</strong>tentores do po<strong>de</strong>r.Se levar-se em consi<strong>de</strong>ração que os dogmatismos herméticos, quer religiosos,políticos ou científicos se alimentam do raciocínio binário (ou isto ou aquilo) e só porele se viabilizam, então é amplamente possível estabelecer uma conexão entreBaruch Espinosa e as lógicas inclusivistas.


80Na obra Tratado teológico-político, Espinosa trabalha com maestria a críticabíblica e teoria política. Marilena Chauí na introdução dos textos da coleção Ospensadores (1983), mostra como o filosofo holandês <strong>de</strong> origem judaica realiza acomparação entre o pensamento cristão na pessoa <strong>de</strong> Jesus, e o judaico emMoisés. Na lei mosaica é evi<strong>de</strong>nte aspectos binários do tipo “olho por olho”, “<strong>de</strong>ntepor <strong>de</strong>nte” enquanto nos preceitos cristãos é ressaltado a resignação do tipo “dê aoutra face”. Espinosa esclarece que Moisés teve uma experiência externa comDeus. Ele teria apenas ouvido a voz divina, enquanto Cristo teria provado <strong>de</strong> umarelação interna com a divinda<strong>de</strong>.Já Gilles Deleuze (2002) comentando a Ética observa como Espinosa tinha acorreta percepção <strong>de</strong> que a vida estava contaminada por categorias binárias do tipoBem e Mal, isso em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> nos <strong>de</strong>ixarmos guiar por leis morais. A propostaapresentada em Ética visa o estabelecimento <strong>de</strong> uma existência não-redutora, masrelacional que prime por <strong>de</strong>stacar a diferença qualitativa dos modos <strong>de</strong> existência.Abandona-se o Bem e o Mal (obediência) e assume-se o bom e o mau (análise).Deleuze assevera que o resultado a que se chega por essa prática dualista cínica éo “ódio à vida, a aversão à felicida<strong>de</strong>” e por fim o “culto à morte”. (p. 31)No apêndice do Livro I da Ética, Espinosa mostra o perigo <strong>de</strong> se impor aosseres humanos as classificações binárias:Depois <strong>de</strong> se terem persuadido <strong>de</strong> que tudo o que acontece em vista<strong>de</strong>les, os homens foram levados a julgar que o principal, fosse no quefosse, é o que têm por mais útil e a darem apreço como maisprestante ao que mais agradavelmente os afetasse. Daí o seremobrigados a formar noções com que explicassem a natureza dascoisas, tais como Bem, Mal, Or<strong>de</strong>m, Confusão, Quente, Frio, Beleza eLealda<strong>de</strong>; e porque se reputam livres, isso <strong>de</strong>u origem a noções taiscomo Louvor e Vitupério, Pecado e Mérito.[...]Chamaram Bem a tudo o que importa ao bem-estar e ao culto <strong>de</strong>Deus, e Mal o que é contrário a isto. É que quem não conhece anatureza das coisas nada po<strong>de</strong> afirmar a respeito <strong>de</strong>las e somente asimagina e toma a imaginação pelo entendimento, e por isso acreditafirmemente que existe. Or<strong>de</strong>m nas coisas, ignorante como é danatureza dos seres e da <strong>de</strong> si mesmo.Com efeito, quando as coisas se acham dispostas <strong>de</strong> sorte que, aoserem representadas pelos sentidos, po<strong>de</strong>m facilmente serimaginadas e, por conseqüência, facilmente rememoradas, dizemosque estão bem or<strong>de</strong>nadas; mas, se <strong>de</strong>r o contrário, dizemos queestão mal or<strong>de</strong>nadas ou confusas. E como as coisas que facilmentepo<strong>de</strong>m ser imaginadas são mais agradáveis do que as outras, oshomens preferem a or<strong>de</strong>m à confusão, como se a or<strong>de</strong>m, salvo emrelação à nossa imaginação, fosse algo existente na Natureza. Assim,dizem que Deus criou todas as coisas or<strong>de</strong>nadamente, e <strong>de</strong>sta


81maneira, sem saber o que dizem, atribuem imaginação a Deus, amenos que, porventura, não preten<strong>de</strong>m que se representar com amaior facilida<strong>de</strong>, sem provavelmente se embaraçarem com o fato <strong>de</strong><strong>de</strong>pararem com uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coisas que exce<strong>de</strong>m em muito anossa imaginação e com gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> outras que a <strong>de</strong>ixamconfusa pela <strong>pró</strong>pria <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>. Isto basta sobre este ponto.(Espinosa, 1973, p. 127-128)Uma preocupação dos filósofos do período renascentista imediatamenteanteriores ao Iluminismo, como Espinosa e Descartes, dizia respeito a reforma dosmo<strong>de</strong>los epistemológicos e cognitivos. Com o advento do Iluminismo essa meta foijulgada alcançada e passou a ser consi<strong>de</strong>rada <strong>de</strong>snecessário qualquer esforçonesse sentido uma vez que já se teria chegado a perfeição em matéria <strong>de</strong> método.Espinosa chegou a <strong>de</strong>dicar uma obra à essa empreitada, o Tratado dacorreção intelectual, no qual se empenhou em mostrar que o mundo é construídopor nossa interação mental com ele, não sendo a priori nem bom nem mau, masassumindo essas formas no correr <strong>de</strong> uma relação. Extraem-se liçõesimportantíssimas: que o conhecimento <strong>de</strong>ve sempre buscar fazer com que o homemse reconheça como parte <strong>de</strong> uma totalida<strong>de</strong>; que não perca <strong>de</strong> vista a necessáriainteração requerida pelo todo às suas partes; que promova um permanente diálogoentre pensamento e sentimento; que possua uma visão global no lugar daparcialida<strong>de</strong> que se dá pela insistência em dividir os fenômenos <strong>de</strong> maneiraestanque na formulação causa e efeito, antes perceba o dinamismo e as trocasmútuas no interior <strong>de</strong>ssa relação.Deve-se, pois, assumir a circularida<strong>de</strong> e o pensamento integrador e sistêmicoque são trazidos pela complexida<strong>de</strong>. Querer conhecer algo sempre por meio dosefeitos seria pensar em termos <strong>de</strong> uma causalida<strong>de</strong> linear, negando o mundoenquanto estrutura complexa, autoprodutora. A natureza é, portanto, produtora <strong>de</strong> si<strong>pró</strong>pria.Outro importante inovador das propostas <strong>de</strong> conhecimento foi GastonBachelard (1884-1962). Este filósofo, que anteriormente fora carteiro e trabalhoutambém com ciências rígidas como a química e a física, passa a se <strong>de</strong>dicar emmeados da década <strong>de</strong> 1930 a pesquisar como se davam os processos <strong>de</strong> umaimaginação criadora. Valoriza os elementos da natureza escrevendo estudos quetomam como ponte <strong>de</strong> partida o fogo, a água, a terra e o ar. Também investe emalgo novo ao escrever livros como Poética do espaço e A poética do <strong>de</strong>vaneio, queestão em flagrante <strong>de</strong>sacordo com a forma tradicional <strong>de</strong> fazer pesquisa científica.


82Wunnenburger, diz que “Bachelard explora as duas vertentes opostas ecomplementares do psiquismo humano, a conceitualização e o <strong>de</strong>vaneio, queculminam respectivamente na ciência e na poesia”. (In Pitta, 2005, p. 41-42)Temática privilegiada por Bachelard, as imagens são a chave para sea<strong>de</strong>ntrar num tipo <strong>de</strong> conhecimento que <strong>de</strong>scarta o emprego <strong>de</strong> métodos e conceitosque não se permitem estabelecer uma relação calorosa com o objeto <strong>de</strong> estudo. Asimagens são exigentes; pe<strong>de</strong>m que se lhes empreguem em seus estudos um gran<strong>de</strong>cabedal <strong>de</strong> informações que facultem ao pesquisador aprofundar-se cada vez maisna <strong>de</strong>nsa teia <strong>de</strong> significação que as mesmas evocam:Esse pensamento polifônico prejudica sem dúvida o rigor e asistematização da pesquisa, mas ilustra também a preocupaçãometodológica <strong>de</strong> uma aproximação global das imagens. Quanto maisas produções conceituais, que são as fragmentações do real, <strong>de</strong>ixamseanalisar abstratamente (em ciências ou em filosofia), mais asimagens, que são as representações totalizantes, resistentes àseparação do sujeito e do objeto, exigem um método <strong>de</strong> aproximaçãoa<strong>de</strong>quado e sutil para não <strong>de</strong>snaturá-las. As imagens <strong>de</strong>vem, <strong>de</strong> fato,ser estudadas por outras imagens, o que implica igualmente umaescrita, um estilo poético adaptado, tão típico <strong>de</strong> suas obras. (Ibid., p.42-43)Aproximando-se do trabalho dos pesquisadores do psiquismo e doinconsciente, como Freud e principalmente Jung, Bachelard firmará a convicção <strong>de</strong>que as imagens são as primeiras e as fundadoras instâncias <strong>de</strong> organização dapsiqué humana, prece<strong>de</strong>ndo aos conceitos que se formariam em oposição asimagens. As imagens se movimentam, se combinam, se <strong>de</strong>formam resultando emimagens novas, tudo isso por meio da imaginação. Esta, em seu processo <strong>de</strong>dinamização exercido sobre as imagens originais acaba por produzir o imaginário. Aimaginação teria uma função importantíssima:A imaginação opõe então à natureza das coisas o real, que a ciênciaprocura conhecer, um mundo estritamente irreal, surreal, mas quetem a mesma consistência, a mesma realida<strong>de</strong> que o real objetivo.Pois a imaginação envolve suas imagens <strong>de</strong> cargas afetivas,atraentes ou repulsivas, que fazem do mundo sonhado um mundo <strong>de</strong>alta <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> emocional. É por isso que a imaginação vai sempreem direção aos <strong>de</strong>vaneios felizes, porque ela é, afinal <strong>de</strong> contas, aresposta do querer-viver à dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver na realida<strong>de</strong> exterior.(Ibid., p. 45)


83Entretanto, seria um grave equívoco perceber a criativida<strong>de</strong> advinda dosprocessos operativos da imaginação indícios <strong>de</strong> fuga ou escapismos. Em Bachelardas imagens são aquilo que rege o comportamento e as aspirações do indivíduo.Nesse ponto, é perceptível todo o entrosamento entre o pensador francês eas idéias jungianas. Pierre Quillet constata:É fácil <strong>de</strong>nunciar na poética bachelardiana o aparelho conceitual dapsicologia das profun<strong>de</strong>zas <strong>de</strong> C. G. Jung.[...]Um arquétipo não é uma imagem, mas o paradigma <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong>imagens que “resumem a experiência ancestral do homem diante <strong>de</strong>uma situação típica”. Assim, é totalmente inútil imaginar qualquertraumatismo infantil na origem do arquétipo do labirinto, que nãocorrespon<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma verossímil a nenhuma experiência pessoal eque, mesmo assim, é angustiante antes <strong>de</strong> qualquer experiência, éum a priori da angústia. (Quillet, 1977, p.84)Para Bachelard essas imagens que Carl Gustav Jung chamou <strong>de</strong> arquétiposuniversais seriam as mais primitivas, estando localizadas no mais profundo doinconsciente humano. Um outro tipo <strong>de</strong> imagens seriam as chamadas naturais,evocadas pelo ente humano em precedência à qualquer reflexão conceitual.Wunenburguer cita a flor, a árvore, a rocha, a casa e a imensidão como exemplos <strong>de</strong>imagens naturais que povoam o pensamento bachelardiano.Um outro tipo <strong>de</strong> imagens seriam as literárias, muito caras a Bachelard porserem <strong>de</strong> uma fecunda expressivida<strong>de</strong>. Nelas sobressaem a metáfora, instrumentoextremamente multívoco.A imagem literária é simultaneamente uma categoria e um evento: édita literária a imagem (como a da cotovia – ou a da serpente) a meiocaminho do sonho e da imagem sábia, que é fonte <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong>número <strong>de</strong> metáforas que constituem um comentário; mas cadaimagem literária, fruto <strong>de</strong> uma criativida<strong>de</strong> verbal, apresenta-setambém como um surgimento imprevisível, um renovamento únicodas imagens preexistentes, cuja forma mais alta é a pura metáfora,reduzida a uma forma verbal concisa. É por isso que ela se beneficiada força das palavras “indutoras” e triunfa na metáfora, em queBachelard vê a dinâmica polifônica. “Fenômeno da alma poética”, “atoliterário o mais simples”, a metáfora serve para multiplicar asvalorizações por meio <strong>de</strong> um jogo rítmico feito <strong>de</strong> exuberância e <strong>de</strong>retenção. Porém, mais do que a imagem pura, a metáfora é frágil,exposta ao uso ou ao empobrecimento por meio <strong>de</strong> superposiçõesinúteis. Imagens literárias e metáforas são em todo caso um fatoressencial <strong>de</strong> dinamização psíquica, capaz <strong>de</strong> tonificar o sujeito.(Wunnenberg op. cit., p. 46-47)


84Era claro para Bachelard que as imagens precisavam se articular com a vida.Caso contrário as implicações trazidas pelas diversas modalida<strong>de</strong>s imagéticas serestringiriam ao universo onírico, não afetando as coisas que se dão em estado <strong>de</strong>vigília:No entanto, para se transformar em imagem consistente, apta acaptar e a atualizar um arquétipo, a imagem precisa ser adicionada aobjetos exteriores, naturais e fabricados, que virem ocasiões parafixar, para projetar imagens e então atualizar interesses e valores. Oimaginário <strong>de</strong>sses objetos, sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ocasionar <strong>de</strong>vaneios,<strong>de</strong>riva <strong>de</strong> três características: “formal, material e dinâmica”. SeBachelard minimiza claramente a importância do imaginário dasformas dos objetos, muito racionalizáveis ele se pren<strong>de</strong> longamente àimaginação material, e, cada vez mais, à imaginação dinâmica, quese casa mais intimamente com a ativida<strong>de</strong> do psiquismo. (Ibid., p. 49)As imagens outorgam ritmo à existência dos indivíduos, o que lhesasseguram um lugar vital no âmbito da vivência. O cotidiano não po<strong>de</strong> escapar dosefeitos <strong>de</strong>correntes das imagens.As idas e vindas das imagens, os movimentos <strong>de</strong> afirmação e <strong>de</strong>negação que subenten<strong>de</strong>m os valores que elas transportam,comprometendo assim o sujeito imaginante em um processo rítmico,feito <strong>de</strong> plenos e <strong>de</strong> vazios, <strong>de</strong> tensão e <strong>de</strong> relaxamento, queconstituem a matéria primeira da vivência, que po<strong>de</strong>mos chamar <strong>de</strong>alegria <strong>de</strong> estar no mundo. (Ibid., p. 51)Destaca-se também o inconformismo <strong>de</strong> Bachelard em relação as formasepistemológicas que predominam na ciência. Pierre Quillet analisa o ponto <strong>de</strong> vistabachelardiano da seguinte forma:Intuitivamente, mas não sem razão, a ciência evoca o laboratório e oquadro-negro (Bachelard <strong>de</strong>spreza visivelmente o observatório) quesão os estabelecimentos simbólicos da objetivida<strong>de</strong>. Teremos odireito <strong>de</strong> incluir a epistemologia bachelardiana nesta ciência rigorosae conquistadora, no sentido em que a lógica mo<strong>de</strong>rna, por exemplo,po<strong>de</strong> validamente se alinhar entre as disciplinas matemáticas? Estaquestão não comporta uma resposta simples: a epistemologia é afilosofia da ciência; a ciência não saberia se passar por filosofia, masela <strong>de</strong>ve, segundo Bachelard, elaborar sua <strong>pró</strong>pria filosofia; estafilosofia da ciência, todavia, não e científica no sentido em quem a<strong>pró</strong>pria ciência o é, ou seja, rigorosa e provada.A epistemologia <strong>de</strong> Bachelard é mais uma estética que uma lógica daciência: ela nos traz o <strong>de</strong>slumbramento. (Quillet, op. cit., p. 46-47)


85O <strong>de</strong>scontentamento <strong>de</strong> Bachelard o faz romper com a lógica aristotélicaaproximando-o da então nascente lógica inclusivista <strong>de</strong>rivada da física quântica.Assim como o <strong>de</strong>senvolvimento natural do cérebro multiplica assegmentações e as ligações entre as células, o crescimentointelectual <strong>de</strong>ve multiplicar segmentação e ligação entre os conceitos.O primeiro obstáculo para a liberda<strong>de</strong> do pensamento é constituídopelo educador “aristotélico” que per<strong>de</strong>u todo o “po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> divisãoespiritual”, obcecado pelo princípio <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. [...]O estado <strong>de</strong> bloqueio psíquico que caracteriza o adulto médio tem porexpressão abstrata e por referência doutrinal o princípio do terceiroexcluído, que rege a or<strong>de</strong>m dos conceitos e dos julgamentos dalógica tradicional. Se a lógica quer ser, segundo a fórmula <strong>de</strong> F.Gonseth, “a física do objeto qualquer”, é um objeto bem especifico oda lógica tradicional: localizável num espaço contínuo e homogêneo,numericamente idêntico, <strong>de</strong> natureza substancial, ele correspon<strong>de</strong> emuma palavra, segundo Olivier L. Reiser, ao objeto da geometriaeuclidiana, da física newtoniana e da lógica transcen<strong>de</strong>ntal kantiana.O aristotelismo em questão não é, portanto, uma entida<strong>de</strong> históricabem <strong>de</strong>finida. Mas este dogmatismo do objeto não é efetivamenteaplicável em microfísica.A estrutura lógica correspon<strong>de</strong>nte ao princípio <strong>de</strong> in<strong>de</strong>terminação <strong>de</strong>Heisenberg seria um sistema trivalente que coloca como formalmenteincomponíveis duas proposições, como aqueles que <strong>de</strong>signam, porum lado, o lugar geométrico <strong>de</strong> um corpúsculo, e por outro o seuestado dinâmico. (Ibid., p. 16-17)Em Filosofia do Novo Espírito Científico Bachelard procura contradizer aepistemologia vigente. O capítulo quinto <strong>de</strong>sta obra começa com o <strong>de</strong>bate das idéias<strong>de</strong> Kant e <strong>de</strong> Schopenhauer. Apoiado nas <strong>de</strong>scobertas quânticas, Bachelard <strong>de</strong>rrubaa noção <strong>de</strong> mundo e <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> vinculadas às idéias <strong>de</strong> fenômeno (Kant) erepresentação (Shopenhauer).Sob a <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> postulado <strong>de</strong> não-análise exploramos o princípio<strong>de</strong> Heinsenberg cuja função generalizada equivale a tornar ilegítima aseparação das qualida<strong>de</strong>s espaciais e das qualida<strong>de</strong>s dinâmicas da<strong>de</strong>terminação do micro-objeto. De acordo com este princípio, o microobjetoapresenta-se então como um objeto duplamente especificado.Correlativamente, a meditação acerca <strong>de</strong> uma tal especificação duplafaz-nos compreen<strong>de</strong>r que o objeto que se localiza estaticamente naintuição ordinária é mal especificado, ou que pelo menos seria malespecificado, se se quisesse ter <strong>de</strong>le um conhecimento <strong>de</strong> segundaaproximação. Ainda por outras palavras, a sua especificação local éuma mutilação da dupla especificação a partir <strong>de</strong> agora indispensávelpara organizar a microfísica. Então, por um paradoxo que paralisarácertamente o espírito filosófico clássico, mas cujos termos temos noentanto que aceitar, é o objeto duplamente especificado damicrofísica que se apresenta como mais geral do que o objetosimplesmente especificado do senso comum. Por outras palavras, oespaço da intuição ordinária em que se encontram os objetos não émais do que uma <strong>de</strong>generescência do espaço funcional em que osfenômenos se produzem. Ora a ciência contemporânea preten<strong>de</strong>


86conhecer fenômenos e não coisas. Ela não é <strong>de</strong> modo algum coisista.A coisa não é mais do que um fenômeno parado. Encontramo-nosentão perante uma inversão <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong>: é preciso conceberessencialmente os objetos em movimento e procurar em quecondições eles po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados em repouso, fixos no espaçointuitivo; já não se po<strong>de</strong>, como outrora, conceber os objetosnaturalmente em repouso – como coisas – e procurar em quecondições eles po<strong>de</strong>m mover-se.Esta invenção impõe uma conversão nos valores metafísicospostulados como primordiais. Sugere-nos uma conclusão metafísicaestritamente inversa da correção que Shopenhauer impôs aokantismo: por interposição da causalida<strong>de</strong>, Schopenhauer queriafazer <strong>de</strong>scer todas as categorias kanteanas do entendimento para asensibilida<strong>de</strong>. Para satisfazer as novas necessida<strong>de</strong>s doentendimento na sua reforma perante os novos fenômenos,pensamos que será pelo contrário necessário fazer ascen<strong>de</strong>r as duasformas da intuição sensível até ao entendimento, <strong>de</strong>ixando àsensibilida<strong>de</strong> o seu papel puramente afetivo, o seu papel <strong>de</strong> auxiliarda ação comum. Chegaremos assim a uma <strong>de</strong>terminação dosfenômenos no espaço pensado, no tempo pensado, em suma emformas estritamente adaptadas às condições nas quais os fenômenossão representados. Chegamos assim a uma conclusão que já se noshavia imposto quando das nossas reflexões sobre o nãosubstancialismo:o plano da representação <strong>de</strong>vidamenteintelectualizado é o plano em que trabalha o pensamento científicocontemporâneo; o mundo dos fenômenos científicos é a nossarepresentação intelectualizada. Vivemos no mundo da representaçãoshopenhauerina. Pensamos no mundo da representaçãointelectualizada. O mundo em que se pensa não é mundo em que sevive. A filosofia do não constituir-se-ia em doutrina generalizada seconseguisse coor<strong>de</strong>nar todos os exemplos em que o pensamentorompe com as obrigações da vida. (Bachelard, 1976, p. 153-155)Debruçando-se nos trabalhos <strong>de</strong> O. L. Reiser, que propugnava a irrestritasolidarieda<strong>de</strong> da física newtoniana com a lógica aristotélica, Bachelard põe emrelevo os postulados <strong>de</strong> tautologia e da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.O postulado <strong>de</strong> tautologia significa simplesmente que, numa mesmapágina a mesma palavra <strong>de</strong>ve manter a mesma significação. Se seempregar a palavra num novo sentido, e se o contexto não ésuficientemente claro para que o sentido metafórico seja evi<strong>de</strong>nte, épreciso assinalar explicitamente a alteração semântica. O princípio <strong>de</strong>tautologia regula tudo, mesmo o imaginário, o fantástico, o irreal. Oprincípio <strong>de</strong> tautologia estabelece o acordo constante entre o autor eo leitor. É o <strong>pró</strong>prio princípio da leitura.Mas não existe nada <strong>de</strong> comum entre a permanência da significação<strong>de</strong> uma palavra e permanência das proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma coisa. Épreciso pois distinguir entre o postulado tautológico que impõe apermanência da palavra e o postulado <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. O postulado <strong>de</strong>i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> impõe a permanência <strong>de</strong> objeto, ou, mais exatamente, apermanência <strong>de</strong> uma caracter ou <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> caracteres <strong>de</strong> umobjeto. É à base <strong>de</strong> uma física. E Reiser conclui justamente: “Na leida i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> vejo apenas uma lei da realida<strong>de</strong> ou da natureza”. Éevi<strong>de</strong>nte que, como qualquer lei da natureza, a lei da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sópo<strong>de</strong> ser aproximada; po<strong>de</strong> regular um nível do real e não um nível


87diferente. Supô-la absoluta para as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma construçãoteórica, é fazê-la passar à categoria <strong>de</strong> postulado. (Ibid., p. 160-161)Depois <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar que o princípio da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> promoveu uma“tautologização” das coisas petrificando a leitura da natureza ao fixar umainterpretação como única possível e aceitável, Bachelard passa a contradizerdiversas sentenças postulatórias filhas do princípio da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, do tipo “aquilo queé, é”, “um objeto é aquilo que é, idêntico a si <strong>pró</strong>prio em todos os seus aspectos”,“um objeto é on<strong>de</strong> está”, “o mesmo objeto não po<strong>de</strong> estar ao mesmo tempo em doislugares diferentes”, “dois objetos diferentes não po<strong>de</strong>m ocupar, ao mesmo tempo, omesmo lugar”, “para passar <strong>de</strong> uma posição a outra, todo objeto tem <strong>de</strong> percorrer oespaço interposto, o que, para se fazer, exige um tempo <strong>de</strong>terminado”, “o mesmoobjeto po<strong>de</strong> ser observado ao mesmo tempo <strong>de</strong> dois pontos <strong>de</strong> vista diferentes” eainda “dois acontecimentos diferentes po<strong>de</strong>m produzir simultaneamente e po<strong>de</strong>mser consi<strong>de</strong>rados como simultâneos do mesmo ponto <strong>de</strong> vista”, estes dois últimospostulados incorporando contribuições da teoria da relativida<strong>de</strong>. (Ibid., p. 162-166)Bachelard fecha as suas observações a respeito do casamento entre lógicaexclusivista e física clássica com as seguintes pon<strong>de</strong>rações:A maior parte das vezes os filósofos estão instalados no domínio dalógica aristotélica e é a partir daí que eles preten<strong>de</strong>m compreen<strong>de</strong>rtoda a geometria, toda a física. Conseguem-no porque se limitam aoselementos, porque apenas exploram os sistemas em queprecisamente o sistema ternário está estabelecido. Outros filósofosfizeram um esforço leal para estudar a fundo o geometrismo em todosos seus aspectos; compreen<strong>de</strong>ram então perfeitamente o novosignificado filosófico <strong>de</strong> um corpo <strong>de</strong> postulados e consequentementea possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formação dialética; mas apenas vêem nisso o jogodo pensamento simbólico e realizam mal o não-euclidismo adotadopela Relativida<strong>de</strong>. É preciso dar o salto e entrar inteiramente no novosistema ternário; é necessário aglomerar um sistema ternário emtorno <strong>de</strong> cada dialética seja qual for o domínio inicialmenteperturbado. O espírito será então <strong>de</strong>volvido à sua função <strong>de</strong> mutação;para se transformar tirará proveito <strong>de</strong> todas as transformações.Verificará que, ao convidá-lo para um novo pensamento, a ciênciacontemporânea lhe conquista um novo tipo <strong>de</strong> representação,portanto um novo mundo. (Ibid., p. 170-171)Bachelard sentia a insuficiência da epistemologia. A física quântica pôs fim aum modo <strong>de</strong> se fazer ciência que se caracterizava pelo excessivo dogmatismo.Contudo, o <strong>de</strong>funto ainda não está sepultado. Nas mentes dos cientistas <strong>de</strong> suaépoca, e em gran<strong>de</strong> parte ainda hoje, o avanço epistemológico ainda não se <strong>de</strong>u.


88As gran<strong>de</strong>s contribuições <strong>de</strong> Bachelard ao introduzir corajosamente oproblema da imagem, valorizando-a em relação ao pensamento, bem como o fato <strong>de</strong>se posicionar favoravelmente na questão <strong>de</strong> uma lógica mais adaptada e sensível àrealida<strong>de</strong> que nos cerca, proporcional a abertura necessária para que outrosestudiosos pu<strong>de</strong>ssem elaborar um conhecimento sistemático e rigoroso sob a égi<strong>de</strong><strong>de</strong> princípios <strong>de</strong> pesquisa mais arejados e que não tivessem pudores <strong>de</strong> romper asbarreiras disciplinares.GILBERT DURAND E A TEORIA DO IMAGINÁRIOO francês Gilbert Durand nascido em 1921 é a principal referência napesquisa e teorização do imaginário. Este ex-combatente da Resistência francesadurante a II Guerra Mundial, discípulo <strong>de</strong> Gaston Bachelard é um inquietoinvestigador que soube se valer do estágio avançado das ciências humanas, como aantropologia, a sociologia e a psicanálise para estabelecer esse novo e empolgantecampo <strong>de</strong> pesquisas que veio a ser o imaginário.A proposta para uma incursão no pensamento <strong>de</strong> Durand é fazer-se algumasobservações em suas influências, seguindo-se uma breve panorâmica do conteúdo<strong>de</strong> três livros seus, As Estruturas antropológicas do Imaginário, sua tese <strong>de</strong>doutoramento e obra <strong>de</strong> maior repercussão, A Imaginação simbólica, também <strong>de</strong>gran<strong>de</strong> importância e por fim uma mirada em O Imaginário, excetuando-se a parteque trata das bacias semânticas já abordadas no capítulo anterior.Po<strong>de</strong>-se afirmar que Durand, grosso modo, foi auxiliado na formação <strong>de</strong> seupensamento teórico por todos os pesquisadores que não se <strong>de</strong>ixaram encurralar-sepor métodos redutores, mas que romperam com o convencionalismo cientifico ealargaram as possibilida<strong>de</strong>s do conhecimento. As hermenêuticas instauradoras, asquais Gilbert Durand se filia, tem por objetivo fazer a convergência <strong>de</strong> diferentesvisões, buscando uma abrangência na compreensão do ser humano e da vida.Dessa forma, é marcante e <strong>de</strong>cisiva na obra <strong>de</strong> Durand a influência <strong>de</strong> seumestre Bachelard, conforme já foi dito. Carl Gustav Jung é também uma referênciafortíssima. A idéia <strong>de</strong> arquétipo como uma figura universal e o patrimônio <strong>de</strong> todasas culturas que seria o inconsciente coletivo dão alicerce para as exploraçõesdurandianas ao imaginário. A noção <strong>de</strong> sincronicida<strong>de</strong> também reforçava os estudoslevados a efeito por Durand. Por sincronicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve-se enten<strong>de</strong>r a ocorrência <strong>de</strong>


89um mesmo acontecimento e a percepção <strong>de</strong>ste pela consciência em temposdiferentes, sem que, contudo, essas nuances e fragmentos cheguem a formular umdiscurso elaborado. Com esses três conceitos junguianos, as dimensões psíquicas,cultural e transcen<strong>de</strong>ntal do ser humano eram levadas em consi<strong>de</strong>ração nos estudose pesquisas, acarretando uma maior compreensivida<strong>de</strong> que veio a se constituir nachamada psicologia das profun<strong>de</strong>zas.Outra <strong>de</strong>cisiva influência foi, sem dúvida, o do mitólogo romeno Mircea Elia<strong>de</strong>,que afirmava ser o mito a experiência existencial do homem, numa dimensãopessoal, e também o relato fundante <strong>de</strong> uma cultura, num plano coletivo. Os mitosteriam sido abandonados pela racionalida<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong>vido ao seu caráter <strong>de</strong>relato fundamentalmente simbólico, não-linear e que se <strong>de</strong>sdobraria em váriasvisões. Em Elia<strong>de</strong> havia a profunda convicção <strong>de</strong> que toda a experiência humana sóseria explicada pela ativida<strong>de</strong> criadora do Espírito humano. Assim, o significado dasfunções simbólicas se tornam mais importantes para a compreensão dos fenômenosdo que as evidências buscadas pelas ciências com sua mania <strong>de</strong> exatidão.Estas aberturas permitiram a Durand atirar-se na aventura <strong>de</strong> organizar umaclassificação do imaginário. A razão nem sempre po<strong>de</strong> explicar as ações dos sereshumanos. Para esses cientistas do Espírito humano essa era uma verda<strong>de</strong>incontestável. Mitos e imagens, em última instância, é que conferiam significado aomundo e a existência.Para que se possa ter a noção mais exata do que Durand enten<strong>de</strong> porimaginário em sua obra, será reproduzida agora as várias idéias manifestas a esserespeito pelo autor, e que foram reunidas pela professora Danielle Pitta em sua obraintrodutória ao pensamento <strong>de</strong> Gilbert Durand:O imaginário – isto é, o conjunto <strong>de</strong> imagens e <strong>de</strong> relações <strong>de</strong>imagens que constitui o capital pensado do “homo sapiens” – nosaparece como o gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>nominador fundamental on<strong>de</strong> vêm searrumar (ranger) todos os procedimentos do espírito humano.O imaginário (...) é a norma fundamental (...) perto da qual a contínuaflutuação do progresso científico aparece como um fenômenoanódino e sem significado.Entre a assimilação pura do reflexo e a adaptação limite daconsciência à objetivida<strong>de</strong>, constatamos que o imaginário constituía aessência do espírito, isto é, o esforço do ser para erguer umaesperança viva diante e contra o mundo objetivo da morte.


90Para po<strong>de</strong>r falar com competência do imaginário não se <strong>de</strong>ve confiarnas exigüida<strong>de</strong>s e nos caprichos <strong>de</strong> sua <strong>pró</strong>pria imaginação, maspossuir um repertório quase exaustivo do imaginário normal epatológico em todas as camadas culturais que nos propõem ahistória, as mitologias, a etnologia, a lingüística e as literaturas. (InPitta, 2005, p. 15)Durand apela para diversas disciplinas em seu trabalho, possuindo uma baserica e múltipla para a formulação teórica. Um <strong>de</strong> seus apoios mais interessantes estáno que ele retira a partir da escola <strong>de</strong> reflexologia russa: as dominantes posturais, oudominantes reflexas. Delas serão extraídas as informações necessárias para aelaboração da idéia <strong>de</strong> gestos dominantes.Só a reflexologia nos parece apresentar uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estudaresse “sistema funcional” que é o aparelho nervoso do recém-nascidoe em particular o cérebro, “esse velho instrumento adaptado a finsbem <strong>de</strong>terminados”. A reflexologia do recém-nascido parece-nosevi<strong>de</strong>nciar a trama metodológica sobre a qual a experiência da vida,os traumatismos fisiológicos, a adaptação positiva ou negativa aomeio virão inscrever os seus motivos e especificar o “polimorfismo”tanto pulsional como social da infância. As “dominantes reflexas” queVe<strong>de</strong>nski e <strong>de</strong>pois Betcherev e a sua escola iriam estudar <strong>de</strong> maneirasistemática são exatamente os mais primitivos conjuntos sensóriomotoresque constituem os sistemas <strong>de</strong> “acomodações” maisoriginários na ontogênese e aos quais, segundo a teoria <strong>de</strong> Piaget, se<strong>de</strong>veria referir toda a representação em baixa tensão nos processos<strong>de</strong> assimilação constitutivos do simbolismo. (Durand, 2002, p. 47-48)Haveria, então, três subdivisões que contemplariam o todo dos dominantesreflexos. A primeira é a <strong>de</strong> posição. Esta faz com que as crianças <strong>de</strong> berçopercebam com clareza a verticalida<strong>de</strong> e a horizontalida<strong>de</strong>. Desse modo, abandonamo engatinhar passando a uma postura ereta. Este tipo <strong>de</strong> dominante se enquadrarianuma visão do mundo em que as diferenças são entendidas como oposições. Alógica é dicotômica. Relacionam-se com o que Durand trata por regime diurno eestrutura heróica, que serão expostos mais adiante. A indicação feita peloreflexiologista russo Betcherev <strong>de</strong> que existe uma ligação entre a opção posturalvertical e os reflexos ópticos levam a perceber nessa dominante postural ainclinação por dividir, classificar, esclarecer, o que é característico <strong>de</strong> uma formabinária <strong>de</strong> enxergar o mundo.A segunda dominante reflexa seria a da <strong>de</strong>glutição, também trabalhando porBetcherev. Localizada na região abdominal é também <strong>de</strong>signada por dominante <strong>de</strong>nutrição. Por fim, aparece a terceira dominante natural, que é a copulativa, ousexual, que possuiria um caráter cíclico representado nos vertebrados superiores


91pelo acasalamento e fase preliminar que a antece<strong>de</strong> com todos os pormenores <strong>de</strong>sedução e conquista.“A dominante age sempre com um certo imperialismo, po<strong>de</strong> já serconsi<strong>de</strong>rada como um princípio <strong>de</strong> organização, como uma estrutura sensóriomotora”,diz Durand (Ibid., p. 49). Dar-se-ia uma integração <strong>de</strong>stes reflexos maissimples com outros mais elaborados, dando origem a esquemas perceptivos. ParaDurand é aí, “é a este nível que os gran<strong>de</strong>s símbolos vão se formar” (p. 51). Asestruturas do imaginário tem, portanto, um alicerce corporal, instintivo po<strong>de</strong>ria sedizer. Antes <strong>de</strong> se a<strong>de</strong>ntrar nas estruturas antropológicas do imaginário,propriamente dito e nos regimes das imagens, é preciso expor certos temas ecircunscrevê-los ao que Gilbert Durand quer com elas exprimir.O primeiro termo que precisa ser assimilado <strong>de</strong>ntro da gramática doimaginário é Schème que carece <strong>de</strong> uma tradução mais precisa em português.Aproxima-se <strong>de</strong> esquema, embora em francês haja uma palavra específica para<strong>de</strong>signá-lo Schémas, a qual o <strong>pró</strong>prio Durand recorre durante a exposição do seupensamento. A idéia que Schème quer exprimir gira em torno <strong>de</strong> uma generalizaçãodinâmica e afetiva da imagem. Uma abstração não estanque; sua função consistiriaem fazer o elo entre os gestos inconscientes da sensório-motricida<strong>de</strong> e asrepresentações. O Schème está enraizado em nossas dominantes reflexas, seusgestos básicos seriam o do aconchego ilustrado na posição fetal, típicas do medo edo carinho e do pôr-se em guarda, gestual <strong>de</strong> enfrentamento como o <strong>de</strong> um pugilistacom os punhos cerrados em atitu<strong>de</strong> hostil. A partir <strong>de</strong>stes dois gestos básicos há um<strong>de</strong>sdobramento <strong>de</strong> múltiplas variações, o Schème tem a ver com as intenções dogesto.Arquétipo, termo junguiano, guardaria a idéia <strong>de</strong> imagem universal. Cabendolheser a junção entre os imaginários e os processos racionais. O arquétipo serelaciona com o mundo exterior, <strong>de</strong>terminando cosmovisões e organizando asocieda<strong>de</strong>. Gilbert Durand concebe os arquétipos em constante ativida<strong>de</strong>.O símbolo configuraria o arquétipo substantificado. Ao contrário do Schème edo arquétipo que são abstratos, o símbolo é sempre concreto. Além da concretu<strong>de</strong>outra característica do símbolo é a sua multivocalida<strong>de</strong>, quer dizer, ele possui váriasdimensões significativas. Por isso, está sempre em estado <strong>de</strong> abertura ereceptivida<strong>de</strong>. O símbolo surge e se <strong>de</strong>senvolve sem estabelecer relações <strong>de</strong> causae efeito como o signo acaba por fazer. A reinterpretação contínua é <strong>pró</strong>pria do


92símbolo pois toda vez que um símbolo é percebido, tanto o observador quanto osímbolo se modificam.O mito, enquanto relato cultural fundante, põe em ação personagens ecenários que estariam muito além da realida<strong>de</strong>. Este tipo <strong>de</strong> explicação <strong>de</strong>mandacrença, fé. Para Durand, no mito se encontra a primeira tentativa <strong>de</strong> se racionalizar oemocional antes contidos nos Schèmes, arquétipos e símbolos. Durand percebemitos diretores agindo no seio das socieda<strong>de</strong>s. Essa ação acaba por ditar costumes,comportamentos, moda, formas <strong>de</strong> pensar e <strong>de</strong> agir. Enquanto estes mitosprotagonistas atuam, outros mitos ficam à margem, sombreados. Por estaremsempre em diálogo com a socieda<strong>de</strong>, os mitos participam <strong>de</strong> um certo movimento <strong>de</strong>altos e baixos; uma mudança no mito regente <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, implicasubstanciais alterações na forma como a socieda<strong>de</strong> se porta.O último termo do vocabulário durandiano é estrutura. Trata-se <strong>de</strong> algoassemelhado a um protocolo normativo das representações imaginárias agrupadasem torno dos Schèmes originais. O dinamismo dos Schèmes faz com que aestrutura esteja sempre em movimento transformador.As estruturas antropológicas do imaginário, segundo como concebidas porGilbert Durand tem como premissa basilar a idéia <strong>de</strong> que os símbolos convergeriamem função <strong>de</strong> temas centrais nas palavras do <strong>pró</strong>prio autor “os símbolos constelam”.Essas aglomerações <strong>de</strong> imagens aconteceriam pelo isomorfismo dos símbolos, uma“constelação” representa o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um mesmo motivo arquetipal.Haveria, <strong>de</strong>ssa forma, um núcleo organizado que atrai, organiza e congrega asimagens.Durand propõe dois regimes diversos para as imagens. As imagensagrupadas nos distintos regimes seriam bem <strong>de</strong>finidas e conservariam formasrelativamente estáveis. Pitta dirá que são percebidas duas intenções perfeitamentedistinguíveis na organização das imagens: “o primeiro é o regime diurno,caracterizado pela luz que permite as distinções pelo <strong>de</strong>bate, o segundo é o regimenoturno, caracterizado pela noite que unifica, pela conciliação”. (op. cit., p. 23)No bojo dos regimes da imagem são encontrados três estruturas doimaginário, cada uma <strong>de</strong>stas estruturas procura respon<strong>de</strong>r ao problema da finitu<strong>de</strong>humana. Angústia existencial, a passagem do tempo, a morte são inquietações queprecisam <strong>de</strong> um esboço <strong>de</strong> solução.


93O regime diurno da imagem “<strong>de</strong>fine-se, portanto, <strong>de</strong> uma maneira geral, comoo regime da antítese” (Durand, op. cit., p. 67). A polarização e o dualismo serão astônicas <strong>de</strong>ste regime. Há uma visceral ligação à verticalida<strong>de</strong>. Luz, armas, símbolos<strong>de</strong> purificação fazem parte <strong>de</strong> seu universo, bem como, os símbolos <strong>de</strong> ascensão eaqueles que ajudam no processo <strong>de</strong> separação e classificação. Aqui a estrutura doimaginário é a chamada <strong>de</strong> heróica ou, esquizomórfica. Po<strong>de</strong>m também serencontrados fortes traços <strong>de</strong> geometrismo, simetria e gigantismo. Os princípios <strong>de</strong>exclusão, <strong>de</strong> contradição e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> tem uma forte presença, sendo adominante reflexiva gestual uma presença habitual <strong>de</strong>ste regime. Oposições do tiposubir-cair, céu-inferno, puro-impuro aparecem com freqüência.Opondo-se ao regime diurno aparece o regime noturno, empenhando naharmonização e conciliação <strong>de</strong> coisas aparentemente contraditórias. “O regimenoturno da imagem estará constantemente sob o signo da conversão e doeufemismo (Ibid., p. 197). Neste regime se localizam duas estruturas, a mística e asintética. Quais as diferenças entre elas? É o <strong>pró</strong>prio Durand que estabelecerá asdistinções:O Regime Noturno da imagem estará constantemente sob o signo daconversão e do eufemismo. O primeiro grupo <strong>de</strong> símbolos que vamosestudar é constituído por uma pura e simples inversão do valor afetivoatribuído às faces do tempo. O processo <strong>de</strong> eufemismo esboçado jáao nível <strong>de</strong> uma representação do <strong>de</strong>stino e da morte, que, noentanto não tinha ilusões, vai-se acentuando para chegar a umaverda<strong>de</strong>ira prática da antífrase por inversão radical do sentido afetivodas imagens. O segundo grupo vai ser axializado em torna da procurae da <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> um fator <strong>de</strong> constância no <strong>pró</strong>prio seio da flui<strong>de</strong>ztemporal e esforça-se por sintetizar as aspirações da transcendênciaao além e das intuições imanentes do <strong>de</strong>vir. Num e noutro grupo hávalorização do Regime Noturno das imagens, mas num dos casos avalorização é fundamental e inverte o conteúdo afetivo das imagens:é então que, no seio da <strong>pró</strong>pria noite, o espírito procura a luz e aqueda se eufemiza em <strong>de</strong>scida e o abismo minimiza-se em taça,enquanto, no outro caso, a noite na passa <strong>de</strong> propedêuticanecessária do dia, promessa indubitável da aurora. (Ibid., p.197-198)A estrutura mística do imaginário trabalha no intento <strong>de</strong> conjugar eharmonizar. Por isso, busca valer-se dos mecanismos <strong>de</strong> inversão e do eufemismo.O conteúdo pesaroso, dramático ou angustiante <strong>de</strong> um símbolo tem o seusignificado amenizado ou mesmo invertido. Nota-se a prevalência <strong>de</strong> umisoformismo feminino. O tema das Gran<strong>de</strong>s Mães remete as formas mater e matéria,


94símbolos <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong> também aparecem em gran<strong>de</strong>s quantida<strong>de</strong>s fazendomenção ao repouso, a moradia e a relação berço/túmulo entrelaçando início e fim.Diferentemente da estrutura esquizomórfica on<strong>de</strong> a noite é motivo <strong>de</strong>preocupação e medo pelos perigos que nela se escon<strong>de</strong>m, a noite da estruturamística é uma noite <strong>de</strong> paz. As figuras <strong>de</strong> encaixamento também fazem alusão acomunhão, <strong>de</strong>staca-se pela valorização da mulher, a fecundida<strong>de</strong>, enquantoperpetuadora da vida. Tem-se ainda um rol <strong>de</strong> alimentos arquetípicos como leite,mel, certas bebidas e o sal. A resposta que a estrutura mística dá ao problema damorte é a negação da sua realida<strong>de</strong>, já que o mundo é um lugar harmônico. Isto sediferencia e muito da proposta da estrutura heróica, segundo a qual é preciso lutarcontra a morte e subjugá-la ainda que seja pela eternização do nome do herói, dainstituição, do evento.Na estrutura sintética do imaginário, encara-se o tempo <strong>de</strong> uma maneirapositiva, percebendo nele um movimento assemelhado a um aspiral: cíclico ecrescente. Resi<strong>de</strong> nesta estrutura o objetivo <strong>de</strong> equilibrar os contrários. Se por umlado o tempo é cíclico como no calendário em que as estações se revesam sempreretornando, por outro o tempo é progressivo, ten<strong>de</strong>nte a uma evolução, umaprimoramento. O ciclo lunar e o ofidianismo caracterizado pela mudança <strong>de</strong> peledas serpentes, formas circulares como a roda e o mito do progresso são exemplosda simbologia da estrutura sintética.A dialética é a marca distintiva da estrutura sintética do imaginário. Não seprocura eliminar as contradições, mas pô-las em evidência, sendo que da tensãocriada surge para humanida<strong>de</strong> um caminho <strong>de</strong> progresso do qual a história dariaprovas <strong>de</strong>sta evolução.O último conceito <strong>de</strong> Durand que não <strong>de</strong>ve ficar <strong>de</strong> fora em um estudo quequeira tratar do imaginário, é o <strong>de</strong> trajeto antropológico, “ou seja, a incessante trocaque existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e asintimações objetivas que emanam do meio cósmico e social”. Existe uma interaçãoentre indivíduo e cultura, realizando-se <strong>de</strong> forma diferente segundo a estrutura doimaginário prevalecente numa cultura. “O imaginário não é mais que esse trajeto noqual a representação do objeto se <strong>de</strong>ixa assimilar e mo<strong>de</strong>lar pelos imperativospulsionais do sujeito” vai dizendo Durand que continua “reciprocamente asrepresentações subjetivas se explicadas pelas acomodações anteriores do sujeito omeio objetivo”. (Ibid., p. 41)


95Em A imaginação simbólica, outra obra importante <strong>de</strong> Durand, a parteintrodutória cuida das relações entre o significante e o signo, o símbolo e a alegoria.Para Durand, a relação entre significante e signo, tomado em sentido estrito, éarbitrária e estabelecida por uma dada convenção, enquanto que o símbolopossuiria significados em aberto, sendo a alegoria uma ilustração que, embora nãopossua o caráter arbitrário, é geralmente convencional e convencionada. Logo, osigno seria um modo <strong>de</strong> conhecimento a<strong>de</strong>quado, a alegoria parcialmente a<strong>de</strong>quadae o símbolo um modo <strong>de</strong> se conhecer ina<strong>de</strong>quado em relação ao significante. Osímbolo, portanto, acabou por ser <strong>de</strong>svalorizado pela civilização oci<strong>de</strong>ntal. Durandvê o símbolo “enquanto signo que remete para um significado indizível e invisível, epor isso mesmo obrigado a encarar <strong>de</strong> forma concreta essa ina<strong>de</strong>quação que lheescapa, através do jogo das redundâncias míticas, rituais, iconográficas quecorrigem e completam in<strong>de</strong>finidamente a ina<strong>de</strong>quação”. (1979, p. 20)As redundâncias são <strong>de</strong> suma importância na elaboração <strong>de</strong> uma teoria doimaginário, pois através da repetição contínua das imagens e das variaçõessemelhantes é que se po<strong>de</strong> chegar as constantes sempre reelaboradas do espíritohumano, pois o processo imagético, no fundo é isso, dinamismo e repetição,harmonicamente conciliados.Durand irá relatar o escanteamento das imagens pelas diversas formas <strong>de</strong>racionalismo estreito, tratará <strong>de</strong> inovações hermenêuticas como a freudiana, quenão conseguiram, entretanto, romper com a linearida<strong>de</strong> promovendo assim o“apagamento do símbolo pelo sintoma” (Ibid., p. 52) ao privilegiar na biografiahumana a ação libidinal. Outra proposta hermenêutica que acaba por cair numreducionismo é o mo<strong>de</strong>lo funcionalista <strong>de</strong> Dumézil no qual “um símbolo édiretamente inteligível a partir do momento em que se conhece bem a suaetimologia” (p. 57), per<strong>de</strong>ndo-se numa “redução semântica”, ao passo que oestruturalismo lévi-strussiano <strong>de</strong>banda-se por uma “redução translinguística”. Essashermenêuticas, embora tragam contribuições ricas que Durand não <strong>de</strong>spreza – vejaseo título <strong>de</strong> sua obra máxima, As Estruturas Antropológicas do Imaginário, quaseuma paráfrase das Estruturas Antropológicas do Parentesco, <strong>de</strong> Clau<strong>de</strong> Lévi-Strauss– acabam por se tornar incapazes <strong>de</strong> dar conta da vazão do espírito humano, aindaque seja a Lévi-Strauss que se <strong>de</strong>va o apontamento da qualida<strong>de</strong> essencial do mito,a redundância, já citada.


96Segue-se uma <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> conhecimento hermeneuticamenteconsi<strong>de</strong>rados como “instaurativos” por Gilbert Durand, como a crítica <strong>de</strong> ErnestCassirer ao kantismo e os já abordados em páginas anteriores Bachelard e Jung.No capítulo IV e nas conclusões, o autor trata <strong>de</strong> algo relevante: o problemado equilíbrio. Para Durand “uma teoria geral do imaginário” <strong>de</strong>veria ser concebida“como uma função geral <strong>de</strong> equilíbrio antropológico” (p. 90). Ele localizava a tensãoentre forcas antagônicas, dois regimes que disputavam entre si. Estes pólosdivergentes conservariam suas individualida<strong>de</strong>s ligando-se no tempo “muito mais pormeio <strong>de</strong> um sistema do que uma síntese”. (p. 92)Vale a pena registrar as dimensões do que Durand percebe como sistemático,corrigindo o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> Jung que julgava o imaginário um âmbito sintético:Este ponto é <strong>de</strong> extrema importância para compreen<strong>de</strong>r os váriosaspectos, “normal” e “patológico”, do imaginário. As imagens, seja aqual for o regime a que pertençam, em contato com a duraçãopragmática e com os acontecimentos, organizam-se no tempo, oumelhor, organizam os instantes psíquicos numa “história”. Emergementão <strong>de</strong>stas estruturas discursivas do imaginário, certos hábitosretóricos inerentes à narração, tais como a hipotipose, e certosprincípios, tais como o da causalida<strong>de</strong> que liga em suce<strong>de</strong>nte a umconseqüente cujo conteúdo é “outro”. A narração, histórica ou mítica,como Lévi-Strauss constatara, é, tal como a seriação causal umsistema <strong>de</strong> imagens antagônicas. E a narração que permitecoor<strong>de</strong>nar, no mito <strong>de</strong> Édipo, episódios antagônicos tais como ahostilida<strong>de</strong> entre parentes e a sobrevalorização da consangüinida<strong>de</strong>.(Ibid., p. 92-93)Para um dinamismo dialético, mantém-se a estabilida<strong>de</strong> das coisas. “Asimagens simbólicas equilibram-se umas às outras, mais ou menos globalmente,regendo a coesão das socieda<strong>de</strong>s e igualmente segundo o grau <strong>de</strong> integração dosindivíduos nos grupos” (p. 111), afirma Durand. Reconhece-se um pluralismodinâmico e uma constância bipolar do imaginário. Gerenciar esse vastíssimo campoque se organiza em forças contraditórias só é possível pela movimentação e pelaalternância, que será exemplificada na questão do conflito geracional:Mas a par <strong>de</strong>sta dialética <strong>de</strong> certo modo estática, necessária aoequilíbrio presente da consciência, a história da cultura, eespecialmente a história dos temas literários e artísticos e a dosestilos e das formas, revela uma dialética por assim dizer cinemática,passível da mesma função <strong>de</strong> reequilíbrio, vital para uma socieda<strong>de</strong>.Não vamos <strong>de</strong>morar-nos mais uma vez a <strong>de</strong>bater o problema das“gerações” culturais, mas não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> vincar que adialética dos “dias” e das “noites” da história da cultura <strong>de</strong>senvolveum movimento duplo na sua constante procura do equilíbrio: cada“geração <strong>de</strong> 36 anos”, a dos “filhos”, vem opor-se à prece<strong>de</strong>nte, a dos


97“pais”, dos mais velhos, e os regimes simbólicos reforçam-se assimenquanto os adultos educam as crianças, e <strong>de</strong>pois mudambruscamente quando as crianças se tornam adultos, ávidos <strong>de</strong>mudança, <strong>de</strong> “evasão”. Como já o escrevemos noutra altura, “umapedagogia elimina a outra, e a duração <strong>de</strong> uma pedagogia não élimitada senão pela vida do pedagogo”. O equilíbrio sócio-histórico <strong>de</strong>uma dada socieda<strong>de</strong> não passaria <strong>de</strong> uma constante “realizaçãosimbólica”, e a vida <strong>de</strong> uma cultura seria feita <strong>de</strong> sístoles e diástoles,mais ou menos lentas, ou mais ou menos rápidas conforme a <strong>pró</strong>priaconcepção que as socieda<strong>de</strong>s tiveram da história. (Ibid., p. 125-126)Durand diz que se “estabelece um equilíbrio antropológico que constitui ohumanismo ou ecumenismo da alma humana” (p. 120), sendo a precípua funçãosimbólica a oposição da vida à morte biológica. Ele irá perceber que pelo símboloentra no mundo a transcendência, uma “vida do espírito” que não tem nada a vercom a morte biológica. Os regimes, quer diurnos quer noturnos organizaram ossímbolos <strong>de</strong> tal forma em nossa imaginação que eles terão sempre que reconduzir ohumano à transcendência.Em matéria religiosa, “o <strong>pró</strong>prio Deus da Bíblia, o Deus do Corão, tal como oDeus da Cabala, tem uma face <strong>de</strong> rigor e outra <strong>de</strong> misericórdia”. (p. 132). Ocristianismo, aponta Durand como exemplo concreto, caminha entre contraditórios,alternando momentos <strong>de</strong> sobrieda<strong>de</strong> e esplendor, quietu<strong>de</strong> e intensida<strong>de</strong>.Finalizando, Durand recoloca a questão existencial mostrando que é nosímbolo e na imagem, tentativas <strong>de</strong> captação, que resi<strong>de</strong> a busca <strong>de</strong> um conteúdoque por mais perto que se chegue <strong>de</strong>le, sempre escapará:Em última análise a simbólica confun<strong>de</strong>-se com o avanço <strong>de</strong> toda acultura humana. No irremediável corte entre a fugalida<strong>de</strong> da imageme a perenida<strong>de</strong> do sentido que constitui o símbolo, submerge todacultura humana como perpetua mediação entre a Esperança doshomens e a sua condição temporal. (Ibid., p. 134)Já em O Imaginário, Durand faz um resumo do que ele chama <strong>de</strong> tópicasócio-cultural do imaginário, cujo termo tópica ele toma emprestado <strong>de</strong> Freud.Assim, ter-se-ia “ego” e “super-ego”, <strong>de</strong> um lado e “id” ou “isso” na outra, formandoas extremida<strong>de</strong>s do trajeto antropológico. Continuando, propõe que:Se <strong>de</strong>senharmos um círculo para representar o conjunto imagináriocobrindo uma <strong>de</strong>terminada época <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>mos dividiloem duas “fatias”, na horizontal, as quais correspon<strong>de</strong>m, <strong>de</strong> baixopara cima, às três instancias freudianas e que aqui serão aplicadasmetaforicamente a uma socieda<strong>de</strong>. A fatia inferior, a mais “profunda”,representa um “isso” antropológico, o lugar que Jung <strong>de</strong>nomina o


98“inconsciente coletivo”, mas que nós preferimos <strong>de</strong>nominar <strong>de</strong> “oinconsciente específico” e que está ligado à estrutura psicopatológicado animal social, o Sapiens sapiens. É neste campo que osesquemas arquetípicos provocam as imagens arquetípicas. (1998, p.93)Neste “inconsciente específico” seriam formados as imagens simbólicas quevão emergir sob as formas <strong>de</strong> papéis sociais, mo<strong>de</strong>lados conforme as estratificaçõessociais, na meta<strong>de</strong> superior horizontal da tópica.MITODOLOGIA: MITOCRÍTICA E MITANÁLISEAs tópicas <strong>de</strong> Gilbert Durand, <strong>de</strong> certo modo, já introduzem a discussão dasmitodologias, que como o vocábulo indica, são os métodos aos quais se <strong>de</strong>veapegar o pesquisador para promover as formas <strong>de</strong> estudo dos mitos, que naqualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> arranjo organizativo <strong>de</strong> símbolos e arquétipos guardam as imagens,revelando-os nos mitemas.Como já se assinalou, o autor herdou <strong>de</strong> Mircea Elia<strong>de</strong> a percepção <strong>de</strong> que omito seria a forma mais original <strong>de</strong> se embasar uma explicação a respeito <strong>de</strong> umassunto que para a vida do ser humano possui importância. A utilização <strong>de</strong> ummétodo apoiado em princípios <strong>de</strong> hermenêutica subtrai a <strong>de</strong>sconfiança <strong>de</strong> algunsque afirmam ser o imaginário um mero conglomerado <strong>de</strong> abstrações, outorgandogran<strong>de</strong> respeitabilida<strong>de</strong> a noção <strong>de</strong> força diretiva dos mitos.Vale lembrar que o doutoramento <strong>de</strong> Gilbert Durand, ocorrido em 1960, foi emLetras, possibilitando ao autor trabalhar com um extenso material do qual extraiu ossubsídios <strong>de</strong> sua teoria. Posteriormente, na década seguinte, Durand po<strong>de</strong> construiruma metodologia crítica para se abordar o mito. A mitodologia assume o imagináriocomo referência primordial <strong>de</strong> toda a produção humana. O imaginário se articuladiscursivamente na forma do mito. O quadro mítico é o plano on<strong>de</strong> o pensamentohumano irá se movimentar, havendo em todas as épocas da História humana mitossubjacentes que dirigem e mo<strong>de</strong>lam os comportamentos e mentalida<strong>de</strong>s. Assim, ametodologia se presta a evi<strong>de</strong>nciar os gran<strong>de</strong>s mitos diretivos que acabaram porguiar a dinâmica social em um dado lapso espaço-temporal.Os mitos diretivos expressam-se por meio <strong>de</strong> redundâncias, que às vezes seapresentam como vicarieda<strong>de</strong>, isto é, substituições e em outras oportunida<strong>de</strong>s se


99mostram por ubiqüida<strong>de</strong>s, algo que está em toda parte, como exemplificados porDurand em relação a Virgem Maria (1998, p. 89).A primeira das mitodologias é a mitocrítica que aparece em 1970. Tem umaabrangência mais limitada, procurando interpretar o objeto por meio do estudo damitologia pessoal ou do grupo. A mitocrítica teria sido <strong>de</strong>senvolvida para empregarum método <strong>de</strong> crítica literária e do discurso que focasse na compreensão do carátermítico que po<strong>de</strong> ser encontrado em todo e qualquer relato. Para se fazer umamitocrítica é preciso haver um texto. A este texto se <strong>de</strong>nomina “texto cultural”.A mitocrítica rastreia os mitemas, que são as menores unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um textomítico, em busca das redundâncias obsessivas. A repetição dos mitemas vãotornando-os cada vez mais significativos. De gran<strong>de</strong> potencial <strong>de</strong>svelador, amitocrítica vai pondo a <strong>de</strong>scoberto o núcleo mítico <strong>de</strong> um texto cultural, <strong>de</strong>ixandotransparente as inclinações do autor ou do grupo que compartilha daquelacosmovisão, bem como atribui uma maior compreensivida<strong>de</strong> ao texto, fazendo aponte com os gran<strong>de</strong>s mitos clássicos. O mito diretivo é i<strong>de</strong>ntificado pelasocorrências no texto. Nele se concentram as partes da narrativa. Ou seja, ossímbolos constelam em sua função.Os mitemas po<strong>de</strong>m estar dispostos, semanticamente falando, <strong>de</strong> modopatente por meio da repetição e <strong>de</strong> conteúdo homólogo, ou <strong>de</strong> modo latente, porrepetições implícitas e na percepção da intencionalida<strong>de</strong>. É preciso or<strong>de</strong>nar otrabalho proce<strong>de</strong>ndo um inventário que obe<strong>de</strong>ce o seguinte roteiro: em primeirolugar, <strong>de</strong>ve-se levantar os elementos que se repetem (elementos significativos) notexto. Essas são as sincronias míticas; <strong>de</strong>pois, é necessário examinar-se o contextoem que eles aparecem; finalmente, <strong>de</strong>tectar as diferentes lições do mito e fazer-seas <strong>de</strong>vidas correlações entre lição do texto cultural com os outros mitos do contextoda época.Por ser preciso essa comparação com o ambiente em torno do texto, amitocrítica ten<strong>de</strong> a extrapolar os limites do texto cultural pesquisando, migrando dosmitos pessoais ou grupais rumo aos mitos sociais, ampliando consi<strong>de</strong>ravelmentesuas preocupações. Nasce então a mitanálise em 1972, que tem como suporte omo<strong>de</strong>lo da Psicanálise. O enfoque se <strong>de</strong>sloca <strong>de</strong> um texto para um contexto, <strong>de</strong> umaobra para um momento histórico. Por meio da mitanálise é possível seguir osmovimentos <strong>de</strong> uma instituição ou <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, por exemplo. Os núcleossemânticos são agrupados <strong>de</strong> forma ampliada.


100Reaparece a questão do patente e da latência, já que numa socieda<strong>de</strong> hámitos que regem os procedimentos e outros que, embora presentes, não tem a suacirculação tolerada, atuando numa região <strong>de</strong> sombra. A dinâmica cultural faz comque os mitos clássicos apareçam e <strong>de</strong>sapareçam um sem número <strong>de</strong> vezes nocorrer dos tempos, sendo possível captar as suas investidas e retiradas numasocieda<strong>de</strong>. Entretanto, não se criam novos mitos diretores; Eles ressurgem comnuances e variações em relação às suas aparições anteriores.Em resumo, tanto a mitocrítica quanto a mitanálise se ocupam <strong>de</strong> averiguarquais os mitos dirigentes em atuação. Acontece que a mitocrítica se restringe a ummaterial específico, geralmente individual. A mitanálise, por sua vez, tem umhorizonte <strong>de</strong> trabalho maior e na inquirição dos mitos regentes acaba por se <strong>de</strong>pararcom a influência <strong>de</strong>stes sob os fatos históricos.No ensaio Mitanálise: uma mitodologia do imaginário?, Alberto Filipe Araújo eArmando Malheiro da Silva (2003) fazem oportunas colocações numa explicitaçãomais completa da metodologia aplicada ao imaginário. A primeira observação é <strong>de</strong>que há um único imaginário que por sua vez é bidimensional. Sua primeiradimensão, mais na superfície é o imaginário sócio-cultural. Este abrangeria asi<strong>de</strong>ologias e utopias, po<strong>de</strong>ndo ser pensado como o histórico. A segunda dimensãoseria a do imaginário arquetipal que conteria as imagens míticas e os símbolosarquetípicos, equivalendo ao meta-histórico. Trata-se, portanto, <strong>de</strong> um fenômeno <strong>de</strong>duas dimensões, uma vez que a face mais profunda, que é a do imaginárioarquetipal, subsidia a faceta não semântica.Os autores enumeraram alguns pressupostos que apoiariam a hermenêuticamítica. Retratar-se-á sucintamente alguns <strong>de</strong>les. Primeiramente tendo em vista oque foi dito no parágrafo acima, é bom não per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista que o inconscientecoletivo faz-se cultural, encontrando sempre uma saída para a<strong>de</strong>ntrar no planosócio-histórico. Depois, <strong>de</strong>ve-se sempre tomar o mito como uma narrativaverda<strong>de</strong>ira, exemplar e significativa, ocorrida num tempo fora do tempo e numespaço sacralizado.Não se po<strong>de</strong>ria jamais confundir o arquétipo com a imagem arquetípica, muitoembora essas duas entida<strong>de</strong>s sejam inseparáveis, tal qual a matéria da forma.Assim, “a natureza do arquétipo é plural, então este manifesta-se pelo intermédio <strong>de</strong>uma bateria <strong>de</strong> imagens e não apenas, como se pensa, através <strong>de</strong> uma”. (Ibid., p.343)


101Há ainda um alerta que diz respeito a localização fronteiriça dos arquétiposque se situam entre o biológico e psíquico necessitando das imagens arquetípicaspara ligarem o genético ao cultural. Outra advertência resi<strong>de</strong> na dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seencontrar traços míticos patentes; <strong>de</strong>ve-se estar atento aos indícios latentes que sedissimulam naquilo que Araújo e Silva intitulam como idéias-imagens. Chama-seainda, a atenção às implicações bidimensionais do símbolo e da relação que esteinstaura com a metáfora. Os estudiosos portugueses recorrem aos argumentos <strong>de</strong>Paul Ricouer:Há mais na metáfora do que no símbolo, no sentido <strong>de</strong> que ela traz àlinguagem a semântica implícita do símbolo, o que permanececonfuso no símbolo – a assemelhação (similitu<strong>de</strong>) <strong>de</strong> uma coisa aoutra e <strong>de</strong> nós às coisas; a infinda correspondência entre oselementos – é clarificado na tensão da enunciação metafórica. Mashá mais no símbolo do que na metáfora. A metáfora é o procedimentolingüístico-forma bizarra <strong>de</strong> predicação-<strong>de</strong>ntro do qual se <strong>de</strong>posita opo<strong>de</strong>r simbólico. O simbólico permanece um fenômeno bidimensional,na medida em que a face semântica se refere à não semântica. Osímbolo está ligado <strong>de</strong> um modo não presente na metáfora. Ossímbolos tem raízes. Os símbolos mergulham na experiênciaumbrosa do po<strong>de</strong>r. As metáforas são precisamente a superfícielingüística dos símbolos e <strong>de</strong>vem o seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> relacionar asuperfície semântica com a superfície pré-semântica nas profun<strong>de</strong>zasda experiência humana à estrutura bidimensional do símbolo.(Ricoeur Apud Araújo e Silva, 2003, p. 345)Araújo e Silva acreditam não ser possível, ou pelo menos metodologicamenteprejudicial e comprometedor, separar a mitocrítica da mitanálise, uma vez que ocontexto sócio cultural influência o imaginário particular expresso num registroliterário e também, simultaneamente as obras saídas <strong>de</strong> uma imaginário individualcon<strong>de</strong>nsada em forma <strong>de</strong> artes, sejam elas plásticas, pictórias, literárias ou musicais,integram os dados sócio-culturais. O posicionamento <strong>de</strong>sses autores encaminha-seentão para uma análise conjunta.Esta pesquisa assume este ponto <strong>de</strong> vista não estabelecendo uma mitocríticaou uma mitanálise estritamente falando, mas opta por operar um mecanismo híbrido,já que as musicas e hinos cantados pelos pentecostais, embora composições saídas<strong>de</strong> poucas mentes são compartilhadas por um grupo maior <strong>de</strong> pessoas. Na verda<strong>de</strong>,a mentalida<strong>de</strong> do grupo foi retratada na canção e, além disso, é plenamentecaptável as emanações culturais e i<strong>de</strong>ológicas provenientes do entorno, isto é, dasocieda<strong>de</strong> a qual os grupos pertencem.


102É verda<strong>de</strong> que, em última estância, o mo<strong>de</strong>lo adotado pelos hermeneutasportugueses que inspira essa pesquisa acaba por privilegiar a mitanálise em<strong>de</strong>trimento à mitocrítica por entendê-la mais completa. No estudo ora realizada sefilia livremente a esta conduta metodológica, visando um resultado heuristicamenteprodutivo.


103CAPÍTULO IIINos capítulos prece<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>ste trabalho foi esboçado o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>mudanças no ambiente cultural, isto é, os axiomas da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> começam asubstituir os valores da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte. Na esfera da ciência umquestionamento muito bem formulado das formas <strong>de</strong> se conhecer e <strong>de</strong> seestabelecer o que é, na verda<strong>de</strong>, “científico”. E ainda no plano religioso as mutaçõese o estabelecimento <strong>de</strong> um novo jeito <strong>de</strong> acessar o sagrado.Embora sentido, por aqueles que se ocupam e estudar os fenômenosreligioso e sociais, este período <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>s não se firmará da noite para o dia.São necessários muitos anos para que um contorno nítido seja <strong>de</strong>finido. Durand<strong>de</strong>ixa isso muito claro na sua magnífica ilustração-conceito das bacias semânticas.O novo tempo ainda está emergido, não se po<strong>de</strong>ndo prever com segurança queconfiguração assumirá ao final. De um modo geral, na cultura, na ciência e nareligião, está se pensando e trabalhando em termos <strong>de</strong> dois “paradigmas”, oemergente e o <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte.Este momento nebuloso, in<strong>de</strong>finido e gerador <strong>de</strong> incertezas (teóricas eexistenciais) indica uma fase <strong>de</strong> transição. Na hinologia pentecostal é possívelconstatar uma certa continuida<strong>de</strong> em alguns dos temas cantados. Por outro lado, hátambém o abandono <strong>de</strong> cânticos que parecem ter entrado num estado <strong>de</strong>obsolescência em relação aos novos tempos, aparecendo um novo repertóriotemático. Mais a frente isso será aprofundado.O que há <strong>de</strong> novo e empolgante trazido no bojo da corrente reformadora dasmentalida<strong>de</strong>s que é o pós-mo<strong>de</strong>rno, é justamente a reabilitação <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong>termos e <strong>de</strong> seus conteúdos.Metáfora, símbolo, ritual, sinal e mito, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> longa data caluniadospelas pessoas que se interessam unicamente por expressões“exatas” da racionalida<strong>de</strong>, hoje em dia estão sendo reabilitados; elescriam formas que sintetizam e evocam a integração <strong>de</strong> mente evonta<strong>de</strong>; não só tocam a mente e suas concepções e evocam açãocom um propósito, mas também compelem o coração. Assim, vemosrebrotar o interesse, especialmente em igrejas do Terceiro Mundo,pela “teologia narrativa”, pela “teologia como estória” e por outrasformas não-conceituais <strong>de</strong> teologizar. (Bosch, op. cit., p. 424)Os <strong>de</strong>sdobramentos e as implicações <strong>de</strong>ste ressurgimento fizeram com queuma nova forma <strong>de</strong> expressão musical, chamada <strong>de</strong> gospel, fosse sendo


104<strong>de</strong>senvolvida nas igrejas e comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fé evangélica. Criou-se um gran<strong>de</strong>mercado, aparelhado <strong>de</strong> gravadoras especializadas, emissoras <strong>de</strong> rádio <strong>de</strong>dicadas aeste tipo <strong>de</strong> programação, além, é claro, <strong>de</strong> uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cantores, cantoras egrupos musicais, alguns elevados à categoria <strong>de</strong> astros e estrelas, com excelente<strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> vendas, emplacamento <strong>de</strong> hits e ótimos cachês.Antes <strong>de</strong> se passar para o estudo da velha produção contida nos hinários eda nova safra hinódica provinda do meio gospel, é necessário algumas préviasconsi<strong>de</strong>rações.PROTESTANTISMO E ICONOGRAFIAAo se entrar num espaço <strong>de</strong> culto protestante, chama a atenção do visitante asingeleza do ambiente. Não irá se encontrar imagens ou gravuras, crucifixos ourepresentações pictórias <strong>de</strong> eventos sacros. Essa evidência acabou por generalizara idéia <strong>de</strong> que os protestantes ou evangélicos, como se tornou comum <strong>de</strong>signá-losno Brasil, seriam iconoclastas. A veracida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta observação é parcial. RubemAlves fala a esse respeito:O Protestantismo acolheu e produziu a arte <strong>de</strong> maneira seletiva. Apujança <strong>de</strong> sua música, representada por um Bach, contrapõe-se umimenso vazio no setor das artes plásticas. Basta que se entre numaigreja protestante para que isto se torne evi<strong>de</strong>nte. Não há quadros,não há representações do divino. Os templos se parecem mais comsalas <strong>de</strong> aulas. O seu centro é o púlpito: o lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se fala. OProtestantismo privilegia a palavra em oposição à contemplação. Istonão é aci<strong>de</strong>ntal. Tem raízes teológicas. Em contraposição aoscatólicos, que enfatizam a dimensão contemplativa e visual daexperiência religiosa, os protestantes viram no segundo mandamentoum interdito que lhes impôs um rigoroso ascetismo artístico. “Nãofarás para ti imagem <strong>de</strong> escultura”: o divino não po<strong>de</strong> serrepresentado. Representar o divino é idolatria. Já que o divino nãopo<strong>de</strong>r ser representado pela forma, pela cor e pelo movimento, restouao Protestantismo indicá-lo por meio da linguagem. Esta é a razãoporque o meio por excelência pelo qual os protestantes vivem areligião é a linguagem: eles pregam, eles ouvem, eles cantam. (Alves,1982, p. 131-132)Tomando a linguagem como locus por excelência on<strong>de</strong> o Protestantismo iráapoiar-se para a empreitada <strong>de</strong> organização do real, Alves não se equivoca. Em seutrabalho ele está se referindo a um tipo i<strong>de</strong>al, no modo weberiano, <strong>de</strong>Protestantismo: O PRD, ou Protestantismo da Reta Doutrina, que é caracterizadopor “privilegiar a concordância com uma série <strong>de</strong> formulações doutrinárias, tidas


105como expressões da verda<strong>de</strong>, e que <strong>de</strong>vem ser afirmados sem nenhuma sombra <strong>de</strong>dúvida” (Ibid., p. 35). Este tipo <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação do real à fórmulas pré-estabelecidasfaz parte <strong>de</strong> uma visão binária do mundo:A linguagem que o Protestantismo cristalizou como doutrina, comoliturgia e como conversação se nos apresenta como uma estruturaçãoda realida<strong>de</strong>. Ela faz um inventário do real, dá nome às e indica comoelas se articulam lógica e funcionalmente. A vida e a morte, opassado, o presente e o futuro, o aqui e o além, o corpo e a alma, otempo e a eternida<strong>de</strong>, o proibido e o permitido, os amigos e osinimigos, tudo é rigorosamente <strong>de</strong>finido. A linguagem é um mapa darealida<strong>de</strong>: ela reduz a imensa pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> experiência a uma sérielimitada <strong>de</strong> categorias e conceitos que tornam possível a suamanipulação teórica e prática. (Ibid., p. 52)O Protestantismo da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> foi com certeza dogmaticamente binário.Entretanto, embora não percebessem, os a<strong>de</strong>ptos do PRD estavam tambémconectados ao universo do mito. Alves prossegue:Desejo <strong>de</strong>stacar que as explicações protestantes são mitológicas.Não estou usando a palavra mitológico como sinônimo <strong>de</strong> falsida<strong>de</strong>.Dou-lhe o sentido que a antropologia atribui aos mitos. Existe umaradical <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> entre as categorias usadas pela explicaçãoprotestante e aquelas que vieram a ser adotadas pela ciênciamo<strong>de</strong>rna. A ciência ten<strong>de</strong> a fazer uso <strong>de</strong> explicações mecânicas efuncionais, que po<strong>de</strong>m ser traduzidas numa linguagem matemática. Oseu objetivo é eliminar as emoções tanto do processo doconhecimento como do <strong>pró</strong>prio objeto <strong>de</strong> conhecimento. A lógica darealida<strong>de</strong> não é idêntica à lógica dos nossos processos psíquicos. Asexplicações míticas, ao contrário, contemplam a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formasimpática e vêem nela uma causalida<strong>de</strong> emocional. (Ibid., p. 76)Ocorre que o PRD não soube fazer a distinção qualitativa que a simbologiarequeria. Ficaram presos ao literalismo, captando no texto um sentido único euniversal.No campo dos signos, a condição para o seu sentido é a suapreferência a conteúdos empíricos. Entretanto, no campo dossímbolos, este critério não mais funciona. Na verda<strong>de</strong>, a essência dosímbolo está em que a sua significação real é distinta <strong>de</strong> suasignificação obvia. Quando o Protestantismo faz a verda<strong>de</strong> espiritual<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da verda<strong>de</strong> histórica do texto, ele coloca o signo e osímbolo no mesmo nível ou, mais precisamente, reduz todos ossímbolos a signos. A linguagem das coisas espirituais é a mesmalinguagem das coisas materiais. O modo <strong>de</strong> significar um fatohistórico é o mesmo modo <strong>de</strong> significar o sagrado. A cada signocorrespon<strong>de</strong>, <strong>de</strong> forma direta e unívoca, um fato. Trata-se, portanto,<strong>de</strong> uma teoria positivista <strong>de</strong> linguagem. (Ibid., p. 103-104)


106Como se viu na primeira intervenção <strong>de</strong> Alves em nosso estudo, a música foio nicho on<strong>de</strong> o imaginário protestante teve autorização para se manifestar.Diferentemente do conflito bizantino entre os iconoclastas e os partidários daiconofilia, na querela protestantes e católicos a música se tornou uma válvula <strong>de</strong>escape para on<strong>de</strong> o acervo <strong>de</strong> imagens do Protestantismo foi direcionado. Durandi<strong>de</strong>ntifica esta <strong>de</strong>stinação com maestria:A Reforma combaterá a estética da imagem e a extensão dosacrilégio do culto aos santos. O iconoclasmo evi<strong>de</strong>nte traduz-se nas<strong>de</strong>struições das estatuas e dos quadros. Todavia, <strong>de</strong>vemos assinalarque, no meio protestante, este iconoclasmo, no sentido estrito <strong>de</strong>“<strong>de</strong>struição <strong>de</strong> imagens”, diminuiu <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> com o culto àsEscrituras e também à música – Lutero, que também era músico,colocava a Senhora Música imediatamente atrás da teologia![...]Po<strong>de</strong>mos citar a imensa exegese musical – e tão poética – da obra <strong>de</strong>Johann-Sebastian Bach (1685-1750), o maior compositor protestante.Bach, músico e protestante tardio da Reforma, manteve intactas ainspiração e a teoria estética <strong>de</strong> Lutero. Os textos e as músicas <strong>de</strong>suas duzentas cantatas e “Paixões” são testemunhas magníficas daexistência <strong>de</strong> um “imaginário” protestante <strong>de</strong> uma profundida<strong>de</strong>incrível, mas que se <strong>de</strong>staca na pureza iconoclasta <strong>de</strong> um lugar <strong>de</strong>oração, do qual as imagens visuais – os quadros, as estátuas e ossantos – foram expulsos. (op. cit., p. 21-23)Dessa forma, não se po<strong>de</strong> afirmar taxativamente que o Protestantismo está<strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> acervos <strong>de</strong> imagens. Essa assertiva <strong>de</strong>ve incomodar algunsrecalques puristas <strong>de</strong> parte dos evangélicos. Para Durand e um elenco insigne <strong>de</strong>estudiosos da envergadura <strong>de</strong> Mircea Elia<strong>de</strong>, Georges Dumézil e Henry Corbin, ohomo religiosus sempre se constituiu nos confins da imagem e do absoluto dosímbolo, muito embora a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tenha procurado impor um silêncio àperspectiva mítica:No oci<strong>de</strong>nte, a partir do final do século 18, as religiõesinstitucionalizadas passaram a ser consi<strong>de</strong>radas conforme o gostohistoricista e cientista do dia. Estas tentações, que reagrupamos sobo nome <strong>de</strong> “mo<strong>de</strong>rnismo”, almejam, segundo as palavras do filósofoJean Guitton, “fundar a fé sobre o espírito dos tempos”. Don<strong>de</strong>, claro,o esforço dobrado dos teólogos para “<strong>de</strong>smistificar” as verda<strong>de</strong>s da fée fundamentá-las em fatos históricos positivos. Os teólogos oci<strong>de</strong>ntaissó conseguiram exorcizar as tentações mo<strong>de</strong>rnistas e iconoclastasrecentemente. (Ibid., p. 72)


107As fracassadas tentativas <strong>de</strong> soterramento das imagens pela mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>racionalista parecem ter chegado ao fim. Fica claro que não se po<strong>de</strong> ignorar ainfluência das imagens na orientação da vida.Mesmo no PRD Alves foi capaz <strong>de</strong> perceber no famoso quadro Os doiscaminhos a força da imagem. Nesta obra o bucólico e singelo figura como caminhopela qual os escolhidos trilham, enquanto no cenário urbano se movimentamaqueles que rumam para a perdição. (Vi<strong>de</strong> Alves, 1982, p. 133)Repare-se no Pentecostalismo. Ao romper com a sufocante proposta doProtestantismo letrado, apega-se aos livros mais carregados <strong>de</strong> imagens esimbolismo da Bíblia, como o Apocalipse <strong>de</strong> São João e o livro do profeta Daniel, oque faz compreen<strong>de</strong>r em parte o isolacionismo do movimento em seus primórdios.BRASILEIRA OU ALIENÍGENA: O PROBLEMA DAS GERADORASEis algo importante: <strong>de</strong> on<strong>de</strong> proce<strong>de</strong>ria a hinologia pentecostal? Seria elaapenas uma importação? Haveria conteúdos locais que influenciariam a suaconstituição? É sabido que gran<strong>de</strong> parte dos cânticos entoados pelos primeirosevangélicos <strong>de</strong>sembarcou com os missionários. Também não é <strong>de</strong>sconhecido o fato<strong>de</strong> que nas últimas décadas muitos compositores tem surgidos no panorama musicalevangélico. Mas quais seriam as geradoras? Haveria algum intercâmbio ou pontos<strong>de</strong> contato entre a cultura nacional e a hinologia estrangeira?Gran<strong>de</strong>s compilações <strong>de</strong> hinos foram preparadas para suprir a necessida<strong>de</strong>dos fiéis <strong>de</strong> possuir um instrumento que lhes possibilitassem cantar a sua fé, umavez que os cânticos comunitários são parte essencial na liturgia protestante.Surgiram o Cantor Cristão, dos batistas, por exemplo, bem como hinários <strong>pró</strong>priospara acalentar a crença <strong>de</strong> presbiterianos, metodistas e outros. Entretanto, todoseles <strong>de</strong>rivaram <strong>de</strong> um ancestral comum, o Salmos e Hinos.Mendonça nos informa que “nos primeiros tempos não houve, no Brasil,nenhuma ênfase <strong>de</strong>nominacional: a i<strong>de</strong>ologia da empresa missionária nas igrejaseuropéias e americanas tendia a ser teologicamente monolítica” (op. cit., p. 191).Como parte <strong>de</strong>sta estratégia <strong>de</strong> coalizão para enfrentar o <strong>de</strong>safio comum querepresentava o catolicismo para o incipiente movimento evangélico no Brasil adotouseo Salmos e Hinos. Ele “representa o mais significativo repositório da féprotestante no Brasil. É um compêndio <strong>de</strong> teologia para ser cantado” (p. 192).


108No que pertine ao conteúdo teológico que permeia as canções <strong>de</strong> Salmos eHinos, Mendonça i<strong>de</strong>ntifica a temática clássica privilegiada pelo metodismo norteamericano,encontrando traços <strong>de</strong> pietismo e elementos conservadores. Portanto, hámuita pouca ligação com a música produzida durante a Reforma e no seu períodoimediatamente subseqüente: “Salvo uma ou outra fonte ali indicada que sugereligação com produção tradicionais da Reforma, o restante aponta claramente paraaquele momento histórico indicado” (p. 221). O movimento a que Mendonça fazmenção é o dos gran<strong>de</strong>s avivamentos americanos dos séculos XVIII e XIX.Uma valiosa contribuição <strong>de</strong>ste gran<strong>de</strong> estudioso do Protestantismo brasileiroé, sem dúvida, a tipologia dos hinos evangélicos que ele tão competentementeelabora. O Protestantismo brasileiro seria “uma religião <strong>de</strong> Jesus” no qual se <strong>de</strong>u um“extenso sincretismo i<strong>de</strong>ológico e doutrinário dos cânticos” (p. 225). Estes cânticosse classificariam em Pietista, Peregrino, Guerreiro e Milenarista.Falando sobre os hinos pietistas, é preciso lembrar que o movimento li<strong>de</strong>radopela figura do con<strong>de</strong> moraviano Zinzendorf notabilizou-se pela incessante busca <strong>de</strong>um relacionamento pessoal entre o salvo e seu Salvador, seja no cultivo <strong>de</strong> umavida <strong>de</strong>vocional seja na procura <strong>de</strong> uma experiência mística com Jesus Cristo. Aimportância do martírio <strong>de</strong> Jesus leva a consi<strong>de</strong>rar a existência <strong>de</strong> um pontocomunicante com o catolicismo praticado no Brasil <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o <strong>de</strong>sembarque dosportugueses. Mendonça <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> “pedagogia da cruz” essa substituiçãosimbólica das penitências e pagas <strong>de</strong> promessa que os hinos <strong>de</strong> cunho pietistadisponibilizam aos fiéis:A consciência dolorosa do <strong>pró</strong>prio pecado (culpa) proce<strong>de</strong> <strong>de</strong> umsentimento vívido do sofrimento substitutivo <strong>de</strong> Jesus, seu sangue,seus ferimentos, sua morte. A justiça divina se dissolve em amor eperdão na contemplação da cruz. Esta contemplação da cruz éespiritual, não se objetiva na cruz do Crucificado, caso contrário seconfundiria com o misticismo católico. Daí o lirismo com que sereveste na poesia do cântico sagrado; justifica-se assim o elevadonúmero <strong>de</strong> cânticos em que o sofrimento vicário é <strong>de</strong>scrito em<strong>de</strong>talhes e exaltado com gran<strong>de</strong> emoção. (Ibid., p. 225)O fiel percebe este plano terreno como transitório. Não se reconhece comoparte <strong>de</strong>sta realida<strong>de</strong>, mas como alguém que está <strong>de</strong> passagem. É um viajante, umperegrino. A idéia <strong>de</strong> Paraíso e o caminhar cheio <strong>de</strong> sofreguidão em sua direçãocolocam dois mundos opostos numa mesma vivência. A ascensão do caminhantepelas vias tortuosas e íngremes representam as dificulda<strong>de</strong>s que se tem na vida


109pelas quais o verda<strong>de</strong>iro cidadão celestial precisa passar em busca <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>stino.Essa é a matéria-prima do livro <strong>de</strong> John Bunyan O Peregrino, fonte <strong>de</strong> inspiraçãopara as canções <strong>de</strong> caráter escapista. Mais a frente, voltar-se-á a essa“peregrinação”, tecendo um paralelo entre textos bíblicos, como o Êxodo, e ascomposições que estabelecem uma dialética entre os planos celeste e terreno.No concernente aos hinos <strong>de</strong> perfil guerreiro, Mendonça propõe que elesrepresentariam a euforia pelos avanços obtidos pelos missionários e também pelasmodificações na política e socieda<strong>de</strong> brasileira do final do século XIX que po<strong>de</strong>riamindicar tempos favoráveis para a empresa missionária. Mendonça faz umacomparação entre o Exército da Salvação e a Companhia <strong>de</strong> Jesus. Seria a versãoprotestante <strong>de</strong> um modo belicoso <strong>de</strong> enxergar a vida. Propõe-se, na verda<strong>de</strong>, umaespiritualização do combate. Essa tipologia também será aprofundada mais a frente,adiantando-se que há nexos com o catolicismo.Quanto aos cânticos <strong>de</strong> viés milenarista, Mendonça <strong>de</strong>monstra a saída dahistória como opção das comunida<strong>de</strong>s protestantes:[...] embora as primeiras comunida<strong>de</strong>s protestantes constituíssemgrupos milenaristas não houve entre elas nenhum movimento social<strong>de</strong>sse tipo por causa do individualismo, do sobrenaturalismo e,possivelmente, pela falta <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança carismática. Havia umamentalida<strong>de</strong> milenarista assim como uma expectação milenarista.O milenarismo protestante, concluindo, não é análogo ao milenarismodos surtos ocorridos em áreas <strong>católica</strong>s. Estas foram dinâmicas nosentido do esforço <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> novos mo<strong>de</strong>los sociais; <strong>de</strong> certomodo, alegres e festivos dada a experiência presente do novo. Omilenarismo protestante é triste, um misto <strong>de</strong> esperança e <strong>de</strong>nostalgia por um estado perdido. Uma alegoria tristonha. (Ibid., p.239)A que isso se <strong>de</strong>ve? A uma oposição invertida que contrapõe vida e morte,sendo que para o protestante a vida representa a morte, pois essa terra na qual sevive é local <strong>de</strong> pa<strong>de</strong>cimento e, por outro lado, fechando com uma peculiar coerênciainicia o período da verda<strong>de</strong>ira felicida<strong>de</strong>.Embora, até agora, se possa perceber alguns pontos em comum entre o queos missionários legaram como repertório e o meio cultural brasileiro, a questãopersiste: as geradoras são nacionais ou estrangeiras? Ajudaria a esclarecer amatéria a inclusão <strong>de</strong> Bittencourt Filho nesse <strong>de</strong>bate, com sua idéia <strong>de</strong> MatrizReligiosa.


110Para esse estudioso existe uma fôrma comum, ou matriz que imprime suamarca nas condutas e manifestações religiosas. Em que pese a diversida<strong>de</strong> quepermeia a formação do povo brasileiro, a religiosida<strong>de</strong> da maioria dos brasileiros éorientada por um substrato religioso-cultural padrão, a Matriz Religiosa Brasileira:Esta expressão <strong>de</strong>ve ser aprendida em seu sentido lato, isto é, comoalgo que busca traduzir uma complexa interação <strong>de</strong> idéias e símbolosreligiosos que se amalgamaram num <strong>de</strong>curso multissecular, portanto,não se trata stricto sensu <strong>de</strong> uma categoria <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição, mas, <strong>de</strong> umobjeto <strong>de</strong> estudo. Esse processo multissecular teve como<strong>de</strong>sdobramento principal, a gestação <strong>de</strong> uma mentalida<strong>de</strong> religiosamédia dos brasileiros, uma representação coletiva que ultrapassamesmo a situação <strong>de</strong> classe em que se encontrem. É oportunosublinhar que essa mentalida<strong>de</strong> expandiu sua base social por meio <strong>de</strong>injunções incontroláveis, como soi acontecer com os conteúdosculturais, para, num <strong>de</strong>terminado momento histórico, ser incorporadaao inconsciente coletivo nacional, uma vez que já se incorporara,através <strong>de</strong> séculos, à prática religiosa. (Bittencourt Filho, 2003, p. 40-41)A Matriz Religiosa Brasileira seria a resultante do encontro <strong>de</strong> duascosmovisões distintas entre si, que com o passar do tempo foram se aproximando ese combinando mutuamente. A primeira mundividência possui um arcabouço <strong>de</strong>concepções que tendiam a sacralizar o meio ambiente. A corrente que fez essaopção pela imanência é i<strong>de</strong>ntificável nos ameríndios e nos africanos. O cristianismotrouxe a transcendência como contribuição à gênese da Matriz Religiosa Brasileira,muito embora o catolicismo ibérico – e se possível arriscar mais, todo o catolicismomedieval – tivesse uma forte inclinação mística.Para Bittencourt, aceitar essa coisa difusa, po<strong>de</strong>rosa e complexa que é aMatriz Religiosa Brasileira “implica no reconhecimento <strong>de</strong> que ela favorece formasreligiosas e induz condutas <strong>de</strong>vocionais” (p. 77). Procurando <strong>de</strong>finir o papel daMatriz num contexto plural, o autor vai mais além.Num quadro <strong>de</strong> pluralismo religioso e cultural faz-se mister consi<strong>de</strong>raras convergências e divergências presentes no campo religioso a<strong>de</strong>speito da multiplicida<strong>de</strong> e varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressões, muitas <strong>de</strong>lasem conflito <strong>de</strong>clarado. A maior ou menor influência da MatrizReligiosa Brasileira só po<strong>de</strong>rá ser percebida justamente na proporçãoem que pu<strong>de</strong>rmos i<strong>de</strong>ntificar o quanto favorece certoscomportamentos e não quaisquer comportamentos religiosos. (Ibid.,p. 77)


111Assim, o sucesso ou fracasso <strong>de</strong> uma proposta religiosa resi<strong>de</strong> na<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong>sta <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quar-se ao substrato da Matriz Religiosa Brasileira quecomanda a atitu<strong>de</strong> do brasileiro médio no que toca ao religioso. Terá êxito aquelesque bem alinharem sua mensagem e práticas em relação ao conteúdo matricial.Para Bittencourt, o Protestantismo histórico não conseguiu se perfilar à Matriz:No Brasil, as <strong>de</strong>nominações do Protestantismo Histórico consagrarama prática <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar os valores religiosos nativos com o mal, opecado e a heresia. Assim sendo, as missões protestantes <strong>de</strong>s<strong>de</strong>logo rechaçaram qualquer expressões religiosas oriundas da MatrizReligiosa Brasileira e, <strong>de</strong>ssa maneira, contribuírem para recalcá-laainda mais no plano inconsciente. Tal rejeição tornou-se mesmo umelemento constitutivo da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> evangélica brasileira, assim comoenriqueceu o discurso apologético, visceralmente anticatólico. [...] A<strong>de</strong>speito disso, já nos primórdios, as <strong>de</strong>nominações doProtestantismo missionário tiveram problemas com movimentosmísticos, sintomas da influência da Matriz.[...]Referenciado no racionalismo, o Protestantismo <strong>de</strong> Missão adotouuma postura <strong>de</strong> pura e simples rejeição dos conteúdos matriarcais,empenhando-se em ‘engessá-los’ no terreno das meras superstições.Como se isso fosse suficiente e eficaz. (Ibid., p. 43-44)Antes <strong>de</strong> analisar o comprometimento dos pentecostalismos com a MatrizReligiosa Brasileira, <strong>de</strong>ve-se expor em que medida é possível concordar com aanálise <strong>de</strong> Bittencourt Filho no particular da afirmação da inexistência <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong>contato entre o Protestantismo Histórico e a Matriz.Em linhas gerais, Bittencourt está correto. Não se po<strong>de</strong> estabelecer conexõesentre o exacerbado racionalismo protestante e as cosmovisões dos indígenas enegros, apegados ao naturalismo e a espiritualização das coisas concretas.Entretanto, não se po<strong>de</strong> olvidar que o cristianismo até 1517, data da Reforma, foi umsó no Oci<strong>de</strong>nte, persistindo várias amarras e entre o catolicismo e o Protestantismo.E aqui certamente ter-se-ia uma ponta-<strong>de</strong>-lança pela qual o Protestantismomissionário conseguiria se comunicar com o espírito do homem e da mulherbrasileira.Quando os hinos <strong>de</strong> colocarão “guerreira” existentes no cancioneiroprotestante foram <strong>de</strong>scritos, chamou-se a atenção para a proximida<strong>de</strong> comexpressões já estabelecidas em terras brasileiras trazidas pelo catolicismo. Cabe serecorrer ao historiador da Igreja Católica no Brasil e América Latina, EduardoHoornaert, que situa o nascimento da idéia <strong>de</strong> guerra santa no cristianismo naconvivência entre Igreja e Estado, passando aos poucos a ser encarada como uma


112doutrina plenamente justificável quando se trata <strong>de</strong> evangelizar os infiéis ou <strong>de</strong><strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os territórios cristãos.Surgiram os santos guerreiros como São Maurício, São Martinho, SãoSebastião, São Jorge e São Miguel, estes três últimos <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> uma especial<strong>de</strong>voção em nossas plagas. No início eles eram santos (figuras <strong>de</strong> paz) apesar <strong>de</strong><strong>de</strong>dicados ao ofício das armas. Todavia, com o passar do tempo “a mentalida<strong>de</strong>mudou, sobretudo com a criação da imagem <strong>de</strong> São Miguel que foi <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>de</strong>sua tradição apresentado combatendo o dragão (satanás) com armas ofensivas”, oque acabou fazendo com que o povo fosse “se acostumando a ver um santo comespada na mão, capacete na cabeça, couraça no peito” e então os <strong>de</strong>mais santospassaram a ser apresentados “como soldados <strong>de</strong> Cristo e soldados da Cristanda<strong>de</strong>ao mesmo tempo”. (1978, p. 37)Hoornaert enxerga no catolicismo implantado no Brasil uma intensabelicosida<strong>de</strong>. O espírito conciliatório e tolerante que teria permitido o surgimento dosincretismo só teria se manifestado num momento posterior. O ambiente do Brasilcolonial era favorável para a implementação i<strong>de</strong>ológica <strong>de</strong>sta mentalida<strong>de</strong>. A cruzjustificaria o sangue <strong>de</strong>rramado:A colonização do Brasil foi realizada numa época em que a idéia daguerra santa era plenamente aceita pela cristanda<strong>de</strong> ibérica e osíndios foram as primeiras vitimas <strong>de</strong>ste condicionamento. A violênciasagrada usada contra eles nem perturbou – ao que parece – aconsciência dos contemporâneos: as imagens do Brasil colonialatestam abundantemente este condicionamento. As primeiríssimasimagens brasileiras ainda são milagreiras: exprimem a gratidão doscolonos por terem atravessado os perigos do mar sem prejuízo etambém a admiração diante das belezas e dos segredos da novaterra. (Ibid., p. 38-39)Deveras interessante é a <strong>de</strong>scrição das mutações sensoriais ocorridos noBrasil colônia. Santo Antonio, popularíssimo, faz uma incrível carreira militar a partir<strong>de</strong> 1707, galgando a patente <strong>de</strong> tenente-coronel só <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> “receber” o soldocom o advento da República! Eduardo Hoornaert mostra ainda as caminhadas <strong>de</strong>Cosme e Damião e São João no Pernambuco conflagrado contra o domínioholandês, São Sebastião no Rio <strong>de</strong> Janeiro sendo invocado para patrocinar a lutacontra os franceses e tamoios e também <strong>de</strong> São Jorge em Minas Gerais que irátornar-se padroeiro dos policiais militares e também, curiosamente, da bandidagem.


113A i<strong>de</strong>ologia bíblico-religiosa alastrou-se, contagiando ameríndios e africanos.“Os efeitos do espírito guerreiro católico não <strong>de</strong>moraram a se manifestar”, afirma oestudioso belga radicado no Brasil. “Índios e africanos respon<strong>de</strong>ram logo ao <strong>de</strong>safioda violência sagrado, transformando seus espíritos e orixás em <strong>de</strong>uses vingativos[...]. Olho por olho, <strong>de</strong>nte por <strong>de</strong>nte”. (p. 53)Em tempos <strong>de</strong> governos ditatoriais durante o qual a obra Formação doCatolicismo Brasileiro foi escrita, o autor entendia haver uma persistência damentalida<strong>de</strong> guerreira no Brasil, não mais caracterizada no embate católicos versushereges ou pagãos, mas localizada na luta <strong>de</strong> classes. Essa discussão não temlugar no contexto <strong>de</strong>ste trabalho. No entanto, a maneira operativa do catolicismoguerreiro que Hoornaert <strong>de</strong>screve neste trecho <strong>de</strong> seu livro permanece válida.Assim, seria “necessário sacralizar a a<strong>de</strong>são do povo” e isso <strong>de</strong>veria ser conseguidopelo emprego “<strong>de</strong> dois processos comprovados pela tradição religiosa: o entusiasmoe o medo” (p. 56). A utilização do primeiro método faria com que o povo vibrasse.Em caso <strong>de</strong> falha, põe-se em prática a técnica <strong>de</strong> intimidação.Do que se viu, fica <strong>de</strong>monstrado que o Protestantismo missionário-proselitista<strong>de</strong> fato possuía um elo que lhe possibilitou fazer-se inteligível aos brasileiros. OPentecostalismo é participante <strong>de</strong>sta herança, também se revestindo da farda e dasarmas.Bittencourt Filho sugere que a Matriz Religiosa Brasileira ensejaria umaconcordância ainda que não explicitada a uma série <strong>de</strong> crenças <strong>de</strong> fundo religioso.Acreditar em espíritos e entida<strong>de</strong>s, as relações contratuais <strong>de</strong> promessa aos santosou a seres superiores, o contato direto com o divino, crer na possibilida<strong>de</strong> damanifestação miraculosa ou espetacular do sagrado; tudo isso integra a uma“Religiosida<strong>de</strong> Matricial”:[...] propomos aqui a existência <strong>de</strong> uma Matriz Religiosa Brasileira e<strong>de</strong> uma religiosida<strong>de</strong> que lhe é inerente, a que <strong>de</strong>nominadosReligiosida<strong>de</strong> Matricial. É preciso dar por assentado que areligiosida<strong>de</strong> refere-se ao domínio religioso do não-institucionalizado,ou seja, um estado que carece <strong>de</strong> legitimação social formal. Trata-sedo domínio da prática religiosa, em que não existe a sistematizaçãoespecializada <strong>de</strong> crenças, nem a reprodução especifica <strong>de</strong> práticas erituais. Nesse domínio é perfeitamente plausível a reapropriação, areinterpretação e, por que não dizer, a ‘reinvenção’ <strong>de</strong> conteúdospertencentes aos sistemas religiosos institucionalizados.Historicamente, essa tem sido a maneira por meio da qual ascamadas populares têm assimilado e reproduzido as religiõesinstitucionalizadas e vice-versa. (Bittencourt Filho, op. cit., p. 71)


114On<strong>de</strong> o Protestantismo Histórico naufragou, seja por <strong>de</strong>masiada assepsia oupor inflacionar as suas convicções racionalistas, o Pentecostalismo obteve êxitopassando a falar uma linguagem plenamente respaldada pela religiosida<strong>de</strong>brasileira. Não subestimando esse conjunto <strong>de</strong> elementos que acabaram por setornar um patrimônio do homo religiosus brasileiro, o pentecostalismo começou apromover o diálogo entre a brasilida<strong>de</strong> e a mensagem protestante ainda naperspectiva da lógica binária:Os pentecostalismos, por exemplo, reprocessaram a religiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong>origem matricial, apondo-lhes sinais valorativos. Em outras palavrasao invés <strong>de</strong> rejeitar esse sistema <strong>de</strong> crenças do senso comum,discriminaram e classificaram aquilo que pertenceria ao domínio <strong>de</strong>Deus e aquilo que se situaria na jurisdição do Diabo. A rigor, comesse procedimento, os pentecostalismos ensejam que a MatrizReligiosa Brasileira permaneça intacta. Esta seria apenascuidadosamente recolocada num novo esquema religioso. (Ibid., p.44)Como um bolo bem fermentado que na temperatura a<strong>de</strong>quada e no <strong>de</strong>vidomomento se põe a crescer, o pentecostalismo, possuidor <strong>de</strong> uma privilegiadaentrada na Matriz Religiosa Brasileira, se aproveitou muito bem da mudança <strong>de</strong>mentalida<strong>de</strong> ocorrida em função das transformações do capitalismo e <strong>de</strong> contextospluralizados nas quais o trânsito religioso passou a ser uma constante. Enquanto asreligiões tradicionais permaneciam em seus esquemas rígidos e <strong>de</strong>spreparadas parapreencher <strong>de</strong> sentido seus fiéis, os novos movimentos religiosos, com <strong>de</strong>staque paraos mais recentes formatos do pentecostalismo encontravam-se aptos a oferecer oreconhecimento social buscado por indivíduos angustiados assim como possibilitarum ambiente no qual a pessoa tem a ‘experiência’, ou ao menos a impressão, <strong>de</strong> serprotagonista na produção dos bens simbólicos, já que o dom <strong>de</strong> línguas, a cura, aprofecia, a prosperida<strong>de</strong> é, em tese, disponível a “todo aquele que crer”.Bittencourt classifica numa mesma categoria, o Pentecostalismo Autônomo,os tipos Deuteropentecostal e Pós-pentecostal. Para ele, os novos pentecostalismossão mais agressivos em suas incursões à Religiosida<strong>de</strong> Matricial.As <strong>de</strong>nominações e movimentos que integram o PentecostalismoAutônomo oferecem uma proposta religiosa formulada em trêsvertentes inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes: cura, exorcismo e prosperida<strong>de</strong>. Alémdisso, apostam numa oferta incessante <strong>de</strong> bens simbólicos e nãoinvestem na formação da comunida<strong>de</strong>. Em vez <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>, oPentecostalismo Autônomo investe no coletivismo, bem ao modo da


115cultura <strong>de</strong> consumo do “mercado total”. Tal característica ensejamaior flexibilida<strong>de</strong> no tocante a hábitos e costumes, sobretudoquando cotejada, por exemplo, com o rigor moral do PentecostalismoClássico. Outro traço marcante é a exploração sistemática dapolissemia dos símbolos da Religiosida<strong>de</strong> Matricial, muito além doslimites <strong>de</strong>marcados pela ‘ortodoxia’ pentecostal. Disso <strong>de</strong>corre umaampla e diversificada oferta <strong>de</strong> bens simbólicos, subordinada apreferências e conveniências individuais. (Ibid., p. 195-196)Do que foi visto, po<strong>de</strong>-se afirmar que o Pentecostalismo tem um pé numageradora estrangeira cuja referência é o Protestantismo Histórico. E mesmo esteúltimo possui conexões com a cultura nacional via mentalida<strong>de</strong> guerreira comum atodo o cristianismo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua aliança com os po<strong>de</strong>res seculares. O outro pé estariafincado na Matriz Religiosa Brasileira à qual os pentecostais recorrem a fim <strong>de</strong>acessarem uma maior contextualização. Assim sendo, são <strong>de</strong>tectáveis elementospré-mo<strong>de</strong>rnos oriundos da temática da guerra, traços <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> na aceitaçãoda lógica binária e ingredientes pós-mo<strong>de</strong>rnos inseridos pelo mercado que solapa oinstitucional e provoca a contínua utilização comercial <strong>de</strong> bens religiosos.Enfim, o Pentecostalismo é um fenômeno multifacetado, que é pontuado porgeradoras locais e externas, que recebe influência <strong>de</strong> períodos <strong>de</strong> tempo bastanteconflitantes entre si. Desse modo, a hinologia pentecostal transparece toda essagama <strong>de</strong> situações e condicionamentos. Não po<strong>de</strong> escapar <strong>de</strong>sta realida<strong>de</strong>. Éperceptível a permanência <strong>de</strong> temas que remontam aos princípios dainstitucionalização do cristianismo. Também se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>tectar o <strong>de</strong>suso <strong>de</strong> assuntosoutrora muito recorrentes. Em seus lugares vão surgindo letras mais adaptadas àsnovas exigências do cenário pós-mo<strong>de</strong>rno.CONTEXTUALIZANDO A AMOSTRA HINOLÓGICAO estudo utilizará hinos e canções oriundas <strong>de</strong> pelo menos três fontesdiferentes. Do Pentecostalismo <strong>de</strong> primeira geração serão analisados hinoscon<strong>de</strong>nsados na Harpa Cristã. Já do pós-pentecostalismo teremos canções <strong>de</strong> umarecordista na venda <strong>de</strong> CD´s, a cantora Cassiane. Por fim, aparecem cânticos <strong>de</strong> umgrupo que vem fazendo um gran<strong>de</strong> sucesso no meio evangélico, trata-se do Toqueno Altar, braço musical do ministério Apascentar.A Assembléia <strong>de</strong> Deus é o ramo mais bem sucedido do Pentecostalismo, emesmo <strong>de</strong> todo o Protestantismo nacional. O último censo realizado pelo IBGE <strong>de</strong>u


116conta <strong>de</strong> existirem no Brasil 8.418.154 milhões <strong>de</strong> assembleianos. Isso representaria47,47% do número total <strong>de</strong> pentecostais. A soma das outras três maiores confissõespentecostais com mais <strong>de</strong> um milhão <strong>de</strong> a<strong>de</strong>ptos (Congregação Cristã do Brasil,Igreja Universal do Reino <strong>de</strong> Deus, Igreja do Evangelho Quadrangular) não chega aalcançar o número <strong>de</strong> fieis da Assembléia <strong>de</strong> Deus.Essa <strong>de</strong>nominação tem na cida<strong>de</strong> do Recife e em sua região metropolitana oterceiro maior contingente <strong>de</strong> membros ultrapassando a marca dos trezentos milfieis. No período compreendido pelo censo, que foi <strong>de</strong> 1991 a 2000, a taxa <strong>de</strong>crescimento anual teve média <strong>de</strong> 14,8%.É uma igreja <strong>de</strong> perfil conservador possuindo uma teologia que Mendonça eVelasques Filho (2002) classificam <strong>de</strong> arminianista/wesleyana e com umaeclesiologia congregacional, muito embora tenda para uma centralização das<strong>de</strong>cisões nas mãos <strong>de</strong> poucos pastores.Características do trabalho missionário sueco permitiram uma maiorliberda<strong>de</strong> litúrgica e organizacional aos assembleianos se comparado às suasequivalentes do Protestantismo histórico. Ainda que possuam diversos institutosbíblicos e alguns seminários, além da po<strong>de</strong>rosa editora CPAD – Casa Publicadoradas Assembléias <strong>de</strong> Deus –, que publica além <strong>de</strong> inúmeros livros e revistas, o jornalO Mensageiro da Paz, não é ainda muito perceptível a incipiente preparaçãoteológica ter resultado em um distanciamento entre li<strong>de</strong>rança e povo, no sentido domonopólio da produção e distribuição <strong>de</strong> bens simbólicos. Freston acredita que omo<strong>de</strong>lo sueco <strong>de</strong> fazer missões, embora valorizasse mais a palavra escrita do que ainspiração direta, acabou possibilitando uma maior inclusão, já que os pentecostaissuecos eram culturalmente marginalizados naquele país <strong>de</strong> maioria luterana. Dessaforma, resistiam à ilustração pensando ser <strong>de</strong>snecessário um clero bem maisinstruído e preparado do que os fiéis (1996, p. 79). O carisma reconhecido pelacomunida<strong>de</strong> letigimava a figura do lí<strong>de</strong>r.Há no seio da Assembléia <strong>de</strong> Deus um <strong>de</strong>flagrado conflito entretradicionalistas e mo<strong>de</strong>rnistas. A ascensão social e o acesso à instrução acabarampromovendo sérios abalos nos meios pentecostais, caminhando essa <strong>de</strong>nominaçãopara aquilo que H. Richard Niebur (1992) chamou <strong>de</strong> aburguesamento, um processono qual o carisma é institucionalizado (Max Weber), levando a uma progressivaintegração acomodativa da nova geração <strong>de</strong> fiéis ao contexto cultural dassocieda<strong>de</strong>s nas quais encontram-se encravadas as comunida<strong>de</strong>s religiosas. Assim a


117Assembléia <strong>de</strong> Deus, acabou por proce<strong>de</strong>r uma revisão no ano <strong>de</strong> 1999 dasdiretrizes estabelecidas durante a famosa vigésima segunda Convenção Geral dasAssembléias <strong>de</strong> Deus no Brasil, ocorrida em Santo André, São Paulo, na década <strong>de</strong>1970, fazendo uma distinção entre doutrina e costume (o costume seria humano,local e passageiro, enquanto a doutrina teria origem divina, alcance geral e seriaimutável no tempo). Os anteriores oito princípios conhecidos como usos e costumes(que proíbem o uso <strong>de</strong> cabelos compridos pelos membros do sexo masculino; uso<strong>de</strong> trajes masculinos por parte dos membros ou congregados do sexo feminino; uso<strong>de</strong> pintura nas unhas, olhos e outras partes da face; corte <strong>de</strong> cabelo por parte dasmulheres, sobrancelhas alteradas; uso <strong>de</strong> mini-saias e outras roupas “contrárias” aobom testemunho da vida cristã; uso do aparelho <strong>de</strong> televisão; ingestão <strong>de</strong> bebidasalcoólicas) foram relativizados e con<strong>de</strong>nsados em seis tópicos, (proibição <strong>de</strong> cabeloscompridos ou cortes extravagantes para os homens, vedação <strong>de</strong> indumentáriapeculiar ao homem, além <strong>de</strong> vestimentas tidas como in<strong>de</strong>centes, in<strong>de</strong>corosas ousem modéstia para as mulheres; uso exagerado <strong>de</strong> pintura e maquiagem, além daproibição total <strong>de</strong> tatuagens; uso <strong>de</strong> cabelos curtos por mulheres; mal uso dos meios<strong>de</strong> comunicação e o uso <strong>de</strong> bebidas embriagantes), numa tentativa <strong>de</strong> atualizaçãomo<strong>de</strong>rada e conciliatória tendo em vista sanar eventuais cismas advindos doscalorosos <strong>de</strong>bates entre conversadores e liberais no tocante aos costumes.Com relação à Harpa Cristã, hinário oficial das Assembléias <strong>de</strong> Deus,utilizado em todos os seus cultos e reuniões congregacionais, com repertório quecontempla hoje 640 hinos, sua primeira versão é <strong>de</strong> 1929, manuscrita e reproduzidapor meio mimeográfico. No ano <strong>de</strong> 1941 o brasileiro Paulo Macalão e os suecosSamuel Nystrom, John Sorheim e Nils Katsberg, editaram uma primeira versãoimpressa. Antes do surgimento da Harpa Cristã, a Assembléia <strong>de</strong> Deus utilizavaalém dos Salmos e Hinos, que também servia a <strong>de</strong>nominações do ProtestantismoHistórico, e o Cantor Pentecostal com 54 cânticos. Um protótipo foi lançado noRecife no ano <strong>de</strong> 1922 por Adriano Nobre. No ano <strong>de</strong> 1937, a Convenção Geral dasAssembléias <strong>de</strong> Deus nomeou uma comissão para harmonizar e musicalizar asdiversas versões <strong>de</strong>ste cancioneiro. Ao longo dos anos hinos foram somados àHarpa, surgindo versões atualizadas e compiladas. Diversas outras igrejas <strong>de</strong>caráter pentecostal e pós-pentecostal se valem da Harpa como referencial hinódico.A respeito da cantora Cassiane que faz muito sucesso no meio evangélico,sendo consi<strong>de</strong>rada uma das cantoras mais bem sucedidas e reconhecidas do meio


118gospel, po<strong>de</strong>-se dizer que ela possui um estilo popular que alcança um públicoapreciador <strong>de</strong> músicas vibrantes e fervorosas. A cantora nascida em um larevangélico no ano <strong>de</strong> 1975 consegue ter uma fácil comunicação e empatia com seusfãs. Uma característica marcante <strong>de</strong> sua discografia é a animação. Cassiane parececonseguir passar isso para o seu público. No ano <strong>de</strong> 2005 ela e o seu esposo,Jairinho Manhais, foram or<strong>de</strong>nados pastores. Com quinze trabalhos lançados, suacarreira começou muito cedo, aos oito anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.Seu sítio eletrônico oficial informa ser ela pertencente à Assembléia <strong>de</strong> Deus.É ainda um tema muito controvertido e espinhoso a or<strong>de</strong>nação feminina nos arraiasassembléianos, o que faz crer que a cantora tenha sua pertença religiosa ligada auma ramificação assembleiana dissi<strong>de</strong>nte. Outro <strong>de</strong>talhe curioso contido nowww.cassiane.com é o relato <strong>de</strong> sua mãe, dona Castália, que informa ter sidoCassiane dada como morta aos onze meses em uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, e que pormeio da oração Deus teria lhe <strong>de</strong>volvido a vida.Uma terceira fonte, esta proveniente do meio pós-pentecostal, é o grupoToque no Altar vinculado ao Ministério Apascentar <strong>de</strong> Nova Iguaçu, Rio <strong>de</strong> Janeiro.Tanto o Ministério <strong>de</strong> Louvor Toque no Altar quanto a Igreja Evangélica MinistérioApascentar, distribuída em quatorze congregações no Rio <strong>de</strong> Janeiro e em SãoPaulo, possuem como presi<strong>de</strong>nte o Pastor Marcus Gregório. A igreja se<strong>de</strong> situadaem Nova Iguaçu iniciou seus trabalhos em 1993 com freqüência <strong>de</strong> cinco pessoas,hoje atingindo a expressiva marca <strong>de</strong> três mil assistentes nas reuniões dominicais.A página na internet www.apascentar.org, informa ser o Pastor MarcusGregório além <strong>de</strong> graduado e pós-graduado em Teologia, é “um empresário bemsucedido, escritor famoso, preletor internacional, consultar financeiro, fundador daONG Pró-viver e vice-presi<strong>de</strong>nte do Conselho <strong>de</strong> Pastores do Estado do Rio <strong>de</strong>Janeiro” (disponível em < http: //www.apascentar.org/realiase.php>. Acesso em: 27nov. 2007). Essa polivalência do Pastor Marcus Gregório serviria para lastrear o seuMinistério, que tem como alguns princípios a “unção <strong>de</strong> prosperida<strong>de</strong>”, a “libertaçãofinanceira”, a “formação <strong>de</strong> caráter”, a “restauração <strong>de</strong> famílias” e o “avivamento como Espírito Santo”, entre outros.Possui um currículo para a escola bíblica que contempla uma “escola <strong>de</strong>encorajamento”, uma “escola <strong>de</strong> servos”, uma “escola <strong>de</strong> prosperida<strong>de</strong>” voltada paraprofissionais liberais e empresários e uma “escola <strong>de</strong> princípios bíblicos” parapúblicos mais amplos. O Ministério Apascentar promove algumas campanhas do tipo


119“po<strong>de</strong>r e consagração”, “52 dias <strong>de</strong> jejum e oração” e a “Deus vai tirar a minhavergonha”. Essas campanhas são promovidas nas igrejas e também divulgadas porprograma midiáticos como o Profetizando Portas Abertas e o ProfetizandoRestituição, os dois com versões para rádio e tv. Há ainda a comercialização <strong>de</strong>DVD´S com mensagens do tipo “Deus vai realizar meus sonhos” ou “Prepare-separa dias melhores”. Chame os seus sonhos <strong>de</strong> volta é um <strong>de</strong> seus livros <strong>de</strong> melhorvendagem. Na página oficial do Ministério Apascentar, o Pastor Marcus Gregório éapresentado como uma “referência mundial”, um “homem <strong>de</strong> visão”, “umconquistador” que possui uma “história <strong>de</strong> sucesso”.O Ministério Toque no Altar possui uma agenda repleta <strong>de</strong> shows eapresentações por todo país. Além <strong>de</strong> composições <strong>pró</strong>prias o grupo faz versões <strong>de</strong>músicas gospel americanas, tendo emplacado muitos sucessos que são cantadospor diversas igrejas no país, sejam do Protestantismo histórico, <strong>de</strong> linha pentecostalclássica ou do pós-pentecostalismo, seu local <strong>de</strong> origem. Traço marcante do Toqueno Altar é a ministração, que viria ser uma prece dramatizada com intenso recursoao emocionalismo no qual se representa simbolicamente uma disputa entre asforças do bem e as do maligno. O fiel busca uma benção tendo o auxílio <strong>de</strong> forçasangélicas, o Espírito Santo e o sangue <strong>de</strong> Jesus Cristo enquanto as hostes do malprocuram <strong>de</strong> toda forma manter a pessoa presa em “ca<strong>de</strong>ias e maldiçoes”. É aespiritualização <strong>de</strong> uma batalha. É a batalha espiritual. O <strong>pró</strong>prio nome Toque noAltar sugere não um conhecimento, mas uma sensação, algo que po<strong>de</strong> serexperimentado por meio do tato, sentido na pele. É pois algo para ser vivenciadoaqui e não no além.ANÁLISE MITOLÓGICA DO CANCIONEIRO PENTECOSTAL E PÓS-PENTECOSTALNo transcurso da tarefa <strong>de</strong> localizar os mitemas, ou os mitologemas, queseriam traços míticos encobertos sob um discurso racional e i<strong>de</strong>ológico, será precisoadotar um parâmetro, dir-se-ia melhor um cenário repleto <strong>de</strong> imagens arquetípicas efiguras míticas. A forte influência grega na formação oci<strong>de</strong>ntal fez com que amitologia helênica se tornasse a fonte privilegiada do trabalho hermenêutico em setratando <strong>de</strong> estudos sobre o imaginário. Entretanto, é necessário não se per<strong>de</strong>r <strong>de</strong>vista a especificida<strong>de</strong> simbólico-religiosa do Pentecostalismo. Parece que os


120pentecostais, assim com os evangélicos <strong>de</strong> um modo geral, sustentam quase queexclusivamente sua visão <strong>de</strong> mundo nos relatos bíblicos. Dessa forma, ela servirá <strong>de</strong>suporte, extraindo-se <strong>de</strong>la os subsídios necessários.O trabalho <strong>de</strong> análise será dividido em dois momentos. No primeiro ospersonagens do Êxodo, ou seja, da saída dos hebreus do Egito e sua caminhada embusca da terra prometida, ajudarão a perceber o arsenal mitológico contido nascanções. No segundo momento será feito um esforço para avaliar os conteúdosmíticos relacionados ao plano onírico. Duas figuras que tiveram “sonhos e visões”em suas trajetórias narradas na Bíblia, José do Egito e o profeta Daniel, serãobastante úteis neste afã.Como se trata <strong>de</strong> um estudo que tem como objeto os pentecostais, seráempregado na análise textos da Bíblia na versão revista e atualizada <strong>de</strong> JoãoFerreira <strong>de</strong> Almeida,a mais usada entre os evangélicos brasileiros.Carlos Ta<strong>de</strong>u Siepierski consi<strong>de</strong>ra o evento Marcha para Jesus, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>visibilida<strong>de</strong> na mídia e repercussão em todo meio protestante, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1993acontece no Brasil, algo emblemático pelo simbolismo que comporta. A inspiraçãopara a Marcha seria o episódio narrado no livro <strong>de</strong> Êxodo capítulo quatorze a partirdo versículo quinze, quando Deus teria libertado o povo <strong>de</strong> Israel do Egito on<strong>de</strong>eram escravos. De um lado o mar vermelho, <strong>de</strong> outro o exército egípcio vindoreprimir a fuga. Deus teria or<strong>de</strong>nado a Moisés que pusesse o povo em marcha: “Dizeaos filhos <strong>de</strong> Israel que marchem” (cf. Êxodo, cap. 14, v. 15). O povo teriaatravessado graças a uma ação miraculosa <strong>de</strong> Deus que teria aberto o mar em duaspartes. Já o exercito egípcio teria se afogado, pois Deus fechou o mar sobre eles.A marcha é uma encenação <strong>de</strong>ssa estória. Ora, qualquer religiãocomporta reserva <strong>de</strong> imagens, uma espécie <strong>de</strong> estoque simbólico quepo<strong>de</strong> ser – e geralmente é – mobilizada como mo<strong>de</strong>lo para a ação.Em outras palavras, ela permite empregar uma história i<strong>de</strong>alizada,construída e reconstruída segundo as necessida<strong>de</strong>s, à serviço das<strong>de</strong>mandas do tempo presente. Ela se legitima colocando em cenauma herança. (Siepierski, op. cit., p. 173)Evi<strong>de</strong>ntemente não é <strong>de</strong> hoje que os primeiros livros da Bíblia, que teriamsido redigidos por Moisés - para esse trabalho pouco importa a historicida<strong>de</strong> ou não<strong>de</strong>sse fato -, mais o livro <strong>de</strong> Josué formando o hexateuco, servem como inspiração<strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada forma <strong>de</strong> pensar e portar-se. É bom que se diga ainda que eles


121tratam das origens do mundo, da escolha e formação do povo eleito, do cativeiro eda libertação <strong>de</strong>sse povo e da conquista da terra prometida.Em outra parte do estudo falou-se um pouco sobre o Destino Manifesto esuas implicações no movimento missionário. Essa mesma teologia será agoraretomada. O povoamento do território norte-americano em muito se <strong>de</strong>veu ao tipohumano forjado pelas imagens que fomentam a teologia do Destino Manifesto. E,como se viu as teologias oriundas do Atlântico Norte são uma das importantesgeradoras dos movimentos pentecostais.Compare-se a história dos hebreus errantes e a dos colonizadoresamericanos. Os <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> Abraão acreditavam serem her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> um pactofirmado pelo patriarca com Javé. Eles estavam oprimidos sob o jugo <strong>de</strong> Faraó queos tornara escravos. Os puritanos e os não-conformistas ingleses do século XVI eXVII também se entendiam como <strong>de</strong>positários <strong>de</strong> uma filiação especial. Acreditavamestar sob o jugo <strong>de</strong> uma escravidão espiritual representada pela coroa britânica. Damesma forma como Deus havia feito o povo hebreu atravessar em segurança o marvermelho também eles, os novos eleitos <strong>de</strong> Deus, iriam cruzar o oceano <strong>de</strong>baixo daproteção divina. Depois da libertação segue-se a conquista. Os hebreus <strong>de</strong>veriamguerrear contra os nativos cananeus a fim <strong>de</strong> possuírem a terra que Deus haviaprometido a Abraão. Bem assim, os anglo-saxões <strong>de</strong>veriam tomar a nova Canaãhabitada por indígenas que não possuíam Javé como Deus, sendo consi<strong>de</strong>radospagãos que precisariam ser eliminados para que o povo escolhido tomasse para si,completamente, a terra que manava leite e mel.Para que fique <strong>de</strong>monstrando ser a Bíblia um livro sempre carente <strong>de</strong> boaaplicação hermenêutica e exegética sobre suas passagens, esse mesmo trecho daBíblia foi utilizado pela ala progressista da Igreja Católica da América Latina, naquiloque ficou conhecido como Teologia da Libertação que alcançou seu auge nasdécadas <strong>de</strong> 70 e 80 do século passado, como fundamento para resistir aos governosditatoriais, reivindicar justiça social e ter na figura do pobre oprimido um especialinteresse. Para a teologia da libertação, a escravidão não era espiritual, maseconômica e o gran<strong>de</strong> opressor não seria o faraó egípcio ou o monarca inglês, maso sistema capitalista que fazia com que o homem <strong>de</strong>tentor dos meios <strong>de</strong> produçãoexplorasse o homem <strong>de</strong>spossuído <strong>de</strong> tais meios.Em A Imaginação Simbólica, Gilbert Durand fornece um quadro <strong>de</strong>classificação isotópica das imagens. Neste quadro vão ser consi<strong>de</strong>rados arquétipos


122substantivos do regime diurno e da estrutura heróica, a luz/as trevas, a arma/o nó, obatismo/a mácula, o herói/o monstro, o céu/o inverso entre outros. A dominantegestual com os seus <strong>de</strong>rivados manuais vigora neste regime. Po<strong>de</strong>m ser facilmentei<strong>de</strong>ntificados esquemas verbais <strong>de</strong> distinção, como nas dicotomias separar/misturar,subir/cair. Há também arquétipos chamados <strong>de</strong> adjetivos on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong>m aspolarizações puro/impuro, claro/escuro, alto/baixo.A proposta <strong>de</strong>ste trabalho percebe em Moisés, Josué, Caleb, Miriã eArão,personagens do Êxodo, figuras que encarnam certos tipos em torno do qualgirariam certos símbolos cuja somatória revela uma <strong>de</strong>terminada pertença em setratando <strong>de</strong> imaginário. Assim, Moisés representa o sábio, o legislador, o condutor.Josué personifica o guerreiro, Caleb aponta para a prosperida<strong>de</strong>, Miriã para festa,Arão para a pureza. Uns estão mais para operarem como mitos regentes doProtestantismo Histórico, outros para o Pentecostalismo <strong>de</strong> primeira geração,havendo ainda aqueles que parecem ser o suporte mítico do pós-pentecostalismo.A partir <strong>de</strong> agora será iniciada o procedimento <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> hinos e cançõespeculiares às ondas do Pentecostalismo. Para fins <strong>de</strong> viabilização do estudo e suacompatibilização com a Teoria do Imaginário proposta por Durand, cada estribilho,estrofe ou frações <strong>de</strong>stas será equiparada a um mitema. No hino Marchai, Soldados<strong>de</strong> Cristo, número nove da Harpa Cristã, tem-se:Marchai, soldados <strong>de</strong> Cristo Jesus,Marchai, marchai e enfrentaiO inimigo do bem e da luz;Soldados, avançai!Sim, avançar, não recuar;Sem temor, com valor,Marchai, lutai, pois Cristo vaiNa vanguarda - Avançai!Marchai, soldados, bem alto ergueiO pavilhão da salvação;A Belial, firmes, ousados, vencei;Vencei a corrupção.


123Vossa armadura <strong>de</strong> guerra tomai,O elmo, sim, da salvaçãoE a espada: a Bíblia levai,E vencereis, então.Avante, avante, confiando em Jesus,Fortes sereis por Seu amor,Marchai invictos, soldados da luz,Jesus é o vencedorA palavra luz (duas vezes) faz oposição a corrupção. Já os vocábulospavilhão, armadura, elmo e espada são variações da Arma Heróica, termodurandiano utilizado para indicar o instrumento hábil e potente para <strong>de</strong>rrotar oinimigo. É bastante evi<strong>de</strong>nte uma postura gestual combativa. Marchai, avançar,avante são palavras que incorrem neste sentido. A antítese polêmica é uma marcadas estruturas esquizomórficas.No hino quarenta e seis, Um Pendão Real, constata-se ênfases similares:Um perdão real vos entregou o ReiA vós, soldados Seus;Corajosos, pois, em tudo o <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>i,Marchando para os céus.Com valor! Sem temor!Por Cristo prontos a sofrer!Bem alto erguei o Seu pendão,Firmes sempre, até morrer!Eis formados já os negros batalhõesDo gran<strong>de</strong> usurpador!Declarei-vos, hoje, bravos campeões;Avante sem temor.Quem receio sente no seu coração,


124E fraco se mostrar,Não receberá o eterno galardão,Que Cristo tem p'ra dar.Pois sejamos, todos, a Jesus leais,E a Seu real pendão;Os que na batalha sempre são fiéis,Com Ele reinarãoA expressão “negros batalhões” faz uma alusão antagônica à pureza <strong>de</strong>Cristo e dos seus.Mais uma vez é i<strong>de</strong>ntificável com facilida<strong>de</strong> a inversão vida/morte,morte/vida, ou seja, lutar um batalha encarniçada aqui e gozar recompensas noalém. Os símbolos <strong>de</strong> verticalida<strong>de</strong>, do mesmo modo, também são largamenteencontrados. Sua estrutura é muitas vezes indutora <strong>de</strong> uma hierarquia, como noshinos 108, 212, 260, 471, 501, 611, cujos trechos são reproduzidos.Lutemos todos contra o mal,E vamos a Jesus seguir;Ele é o nosso GeneralE a glória do porvir!Os guerreiros se preparam para a gran<strong>de</strong> lutaÉ Jesus, o Capitão, que avante os elevará.A milícia dos remidos marcha impoluta;Certa que vitória alcançará!Irmãos avante, avante com nosso Capitão,Seremos triunfantes, não lutareis em vão!Vitória esperamos, vitória Deus dará,Se firmes pelejarmos, sim, contra Goliá.Avante, avante, as trevas dissipaiCom o supremo Capitão, avante! Vitória alcançai!Avançai, fiéis soldados


125A seguir o pavilhão;Ei-lo a frente arvoradoPor Jesus, nosso Capitão;Escutemos o clamorDos que foram abatidos;Vamos, logo sem temor,Em socorro dos feridos.Com todo o fervor, contra o tentadorVencerá então, com o bom Capitão!Sempre avante! Manda o General;Sempre avante! Guerra contra o mal!Firmes, fortes, nunca vacilar!Pois os teus fiéis irão ganhar.As patentes militares General, que vem <strong>de</strong> geral e Capitão, do latim caput quequer dizer cabeça, portanto está acima, é superior, consegue enxergar com maiorperfeição, corroboram a <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> estrutura heróica contida na Harpa Cristã.Representa aquilo que Mendonça qualificou como hinologia protestante guerreiraque o Pentecostalismo assembleiano incorporou.Aqui é bastante forte a figura mitológica <strong>de</strong> Josué, que como váriospersonagens bíblicos em inúmeras situações, a tradição cristã i<strong>de</strong>ntificou como préfiguraçõesdo Cristo. Des<strong>de</strong> o confronto entre os amalequitas com os hebreus, aindano <strong>de</strong>serto, foi posto por Moisés como capitão e chefe dos guerreiros:Êxodo, capítulo 17v. 9 Com isso, or<strong>de</strong>nou Moisésa Josué: escolhe nos homens,e sai, e peleja contra Amaleque (...)v. 10 Fez Josué como Moisés lhedissera e pelejou contra Amaleque (...)v. 13 E Josué <strong>de</strong>sbaratou a Amalequee a seu povo a fio <strong>de</strong> espada.


126É Josué que suce<strong>de</strong> Moisés na li<strong>de</strong>rança do povo. Coube a ele conduzir aconquista da terra que “manava leite e mel”. É famosa a <strong>de</strong>scrição do cerco a Jericó,com a queda miraculosa das muralhas e a célebre passagem da parada do sol, pivôda con<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> Galileu Galilei pela Igreja Católica. Josué aparece como umseguidor escrupuloso das or<strong>de</strong>ns divinas e não <strong>de</strong>ixa escapar nenhum habitante <strong>de</strong>Jericó, a não ser Raabe a prostituta que se aliou aos hebreus.Moisés parece representar um mito <strong>de</strong> tradição mo<strong>de</strong>rnista. Ora, amo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> foi pretensiosa. O pensamento mo<strong>de</strong>rno procurou classificar, catalogare <strong>de</strong>finir tudo o que tocava, a teologia protestante <strong>de</strong> cunho ortodoxo sempreprocurou redigir confissões como as <strong>de</strong> Westminster, Augsburgo, a Fórmula <strong>de</strong>Concórdia, o Sínodo <strong>de</strong> Dort e as diversas <strong>de</strong>clarações doutrinárias das<strong>de</strong>nominações protestantes. Moisés além do Decálogo institui uma vasta legislaçãoreligiosa, social e <strong>de</strong> costumes. Não é a toa que o Protestantismo ficou conhecido noBrasil como “a lei dos crentes” pelo seu caráter meticuloso e proibitivista. Moiséstambém havia concebido um projeto <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> que, se observado, levaria o povoao bem-estar. Isso é muito claro nos discursos contidos no livro <strong>de</strong> Deuteronômio apartir do capítulo quatro até o trinta e um. O iluminismo mo<strong>de</strong>rno também <strong>de</strong>positarafé em uma socieda<strong>de</strong> bem sucedida e harmônica pela observação dos ditames darazão, do governo <strong>de</strong>mocrático e republicano, pelo progresso da ciência, pelaampliação da indústria, melhoria no atendimento á saú<strong>de</strong>, acesso universal a umaeducação laica, incremento dos serviços públicos, etc.Merece <strong>de</strong>staque o fato <strong>de</strong> Josué ter sucedido Moisés, compartilhando parte<strong>de</strong> sua visão, mas operando em um outro nível. Enquanto Moisés pensava, Josuéexecutava, combatia. O Protestantismo gabava-se <strong>de</strong> possuir elementos bemformados intelectual e teologicamente. O Pentecostalismo, por sua vez, privilegiou ovoluntarismo.Outro tema largamente encontrado na Harpa Cristã e o da pureza,simbolizado por alegorias do tipo água, fogo, sangue, que remetem à purificação. Oshinos 39, 60, 122 falam sobre isso.Bendito seja o Cor<strong>de</strong>iro que na cruz por nós pa<strong>de</strong>ceu;Bendito seja o seu sangueQue por nós, pecadores, verteu!Eis nesse sangue lavados com vestes que tão alvas são,


127Os pecadores remidos,Que perante seu Deus hoje estão!Alvo mais que a neve,Alvo mais que a neve!Sim, nesse sangue lavado,Mais alvo que a neve serei.Quão espinhosa a coroa que Jesus por nós suportou;Oh! quão profundas as chagasQue nos provam o quanto ele amou!Eis, nessas chagas, pureza para o mais torpe pecador,Pois que, mais alvos que a neveO teu sangue nos torna, Senhor!Se nós a ti confessarmos, e seguirmos a tua luz,Tu não somente perdoas;Purificas também, ó Jesus;Livres <strong>de</strong> todo pecado! Que maravilha De amor!Pois que, mais alvos que a neveO teu sangue nos torna, Senhor!______O sangue <strong>de</strong> Jesus me lavou, me lavou;O sangue <strong>de</strong> Jesus me lavou, me lavou!Alegre, cantarei louvores ao meu Rei,Ao meu Senhor Jesus que me salvou!______Fogo divino, clamamos por ti;Vem lá do alto, vem, <strong>de</strong>sce aqui;Ó vem <strong>de</strong>spertar-nos com teu fulgor;Vem inflamar-nos com teu calor.Desce do alto, bendito fogo,Desce po<strong>de</strong>r celestial!


128Desce do alto, bendito fogo,Vem, chama pentecostal!Mantendo o esquema <strong>de</strong> análise a partir do êxodo, aparece a figura <strong>de</strong>Arão, irmão <strong>de</strong> Moisés.Este e sua linhagem, conforme Êxodo capítulo 28, versos 1 e2, foram escolhidos para as funções sacerdotais que abrangiam a purificação dospecado do povo, remissão <strong>de</strong> dívidas por meio da oblação, além dos ritos <strong>de</strong>introdução da pessoa na comunida<strong>de</strong> como a circuncisão.O Pentecostalismo dando ênfase ao elemento fogo que representa oEspírito Santo, a pesso da Trinda<strong>de</strong> que conce<strong>de</strong> ao fiel dons como o <strong>de</strong> línguas e o<strong>de</strong> cura, tirando-o do plano ordinário para o extraordinário por meio do êxtase,acabou por preten<strong>de</strong>r-ser mais “puro” do que “os puros”, isto é, mais santos ou maiscrentes que os seus congêneres tradicionais.Os primeiros pentencostais viam nos<strong>de</strong>mais protestantes um certo quê <strong>de</strong> mistura, uma carência <strong>de</strong> integrida<strong>de</strong>, como oju<strong>de</strong>u do pós-exílio caracterizava o samaritano por conta da miscigenação ocorridano Reino do Norte durante o período <strong>de</strong> domínio assírio. O batismo no “fogo doEspírito”, com seu sinal externo do falar em línguas estranhas, servia para distinguiros que eram verda<strong>de</strong>iramente <strong>de</strong> Deus e aqueles que ainda não estavamcompletamente preenchidos pelo Espírito.As canções surgidas no período do pós-pentecostalismo embora com estilosmusicais mais mo<strong>de</strong>rnos e arranjos elaborados guardam a mesma belicosida<strong>de</strong> quemarcou todo cancioneiro protestante. O chão vai tremer do grupo Toque no Altar eComo Deus não há da cantora Cassiane, ilustram bem a continuida<strong>de</strong> da mitologiaguerreia que atravessou todo período mo<strong>de</strong>rno e se mantém ativo na pósmo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.Ele vem cavalgando nos montesCom Seus pés <strong>de</strong> latão reluzenteTem os olhos <strong>de</strong> fogo e voz <strong>de</strong> trovãoVem marchando com Seus cavaleirosArvorando a Sua ban<strong>de</strong>iraTem o cetro <strong>de</strong> ouro e a espada nas mãosEle vem revestido <strong>de</strong> branco


129Ele é santo, ele é santo, ele é santo!Eu já posso ouvir os seus passos aquiEle vem coroado <strong>de</strong> glóriaÉ agora, é agora, é agora!Que o chão vai tremer e o céu vai se abrirO chão vai tremer!O Céu vai se abrir!Os anjos <strong>de</strong> Deus vão <strong>de</strong>scer e subirSenhor dos Exércitos é o Seu nome______Não há, não háNinguém como Deus não háEle é varão <strong>de</strong> guerraNão há quem resista o seu po<strong>de</strong>rDerruba muralhas e quebra correntesE na batalha está com vocêEle é o todo po<strong>de</strong>rosoSeu braço é forte e <strong>de</strong>strói o malPor isso agora cante pra eleTe adoramos nosso generalNa primeira música cavaleiros, ban<strong>de</strong>ira, cetro e espada são indícios dagestual ereta <strong>de</strong> quem vai à luta. General, braço, varão <strong>de</strong> guerra fazem o mesmopapel na segunda. Nos termos branco, ouro, olhos <strong>de</strong> fogo, pés <strong>de</strong> latão sãonotados o tema da purificação. Nas oposições chão e céu, que são arquétiposadjetivos, a polêmica estabelecida <strong>de</strong>ixa claro que não há possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>conciliação. Há um lado completamente bom e outro completamente mau. Aconvivência dos dois é impossível. Deve-se aniquilar o mal, que representa a morte,em nome da vida. O regime diurno das images é ciumento e exigente,não brindomão da exclusivida<strong>de</strong>, que por sua vez ten<strong>de</strong> a eliminar o diverso e odiar o diferente,mesmo que argumente amá-lo e por isso querer transformá-lo. É gran<strong>de</strong> a tendênciaa uniformização. Talvez uma conexão que ligue pós pentecostalismo e o mo<strong>de</strong>lo


130padronizante do Mercado seja possível <strong>de</strong> ser feita também pela chave doimaginário, <strong>de</strong>snudando o entrosamento existente entre eles.Outra matéria muito presente na Harpa Cristã é o tema da peregrinação, doexílio. O fiel sentia-se “cidadão dos céus”, vindo <strong>de</strong> Deus e para Deus retornando,sendo que esta terra, lugar <strong>de</strong> provas e sofrimentos não passaria <strong>de</strong> um estágiorumo a um <strong>de</strong>stino final e glorioso. Alguns hinos colocam este assunto <strong>de</strong> formamuito direta.O EXILADODa linda pátria estou bem longe;Cansado estou;Eu tenho <strong>de</strong> Jesus saudada,Oh, quando é que eu vou?Passarinhos, belas flores,Querem m'encantar;São vãos terrestres esplendores,Mas contemplo o meu lar.Jesus me <strong>de</strong>u a Sua promessa;Me vem buscar;Meu coração está com pressa,Eu quero já voar.Meus pecados foram muitos,Mui culpado sou;Porém, Seu sangue põe-me limpo;Eu para pátria vou.Qual filho <strong>de</strong> seu lar saudoso,Eu quero ir;Qual passarinho para o ninho,Pra os braços Seus fugir;É fiel - Sua vinda é certa,Quando... Eu não sei.


131Mas Ele manda estar alerta;Do exílio voltarei.Sua vinda aguardo eu cantando;Meu lar no céu;Seus passos hei <strong>de</strong> ouvir soandoAlém do escuro véu.Passarinhos, belas flores,Querem m'encantar;São vãos terrestres esplendores,Mas contemplo o meu lar.O PEREGRINO NA TERRASou peregrino na terraE longe estou do meu lar,Mlnh'alma anelante esperaQue Cristo a venha buscar;Aqui só há <strong>de</strong>scrença,As lutas não têm fim,Mas <strong>de</strong> Jesus, a presença,Glória será para mim!No céu <strong>de</strong> luz vou <strong>de</strong>scansar,Com meu Jesus hei <strong>de</strong> morar.EM CANAÃ EU ENTRAREIEm Canaã eu entrarei, no meu país ditoso,E em Sião habitarei; que paz ali tereiCom meu Jesus! Que gozo! Pois me dará repouso,Irei cantar, então, nos céus, um hino ao meu Deus!


132O PEREGRINO E A GLÓRIAPeregrino segue para a glória,Pois no céu em breve entrarás!Ouves já os cantos <strong>de</strong> vitória?Tua voz também lá unirás.Sim, queres entoarO cântico dos salvos, lá na glória,Que nos céus há <strong>de</strong> sempre soar?Sim, queres tu cantar,Os gloriosos hinos <strong>de</strong> vitória?A Jesus mil louvores entoar?Vem do céu um som <strong>de</strong> alegria,Na escura noite te chamar,Mui suave e cheio <strong>de</strong> harmonia.- Ó minh'alma. volta pra teu lar!PEREGRINOS SOMOSPeregrinos somos aquiTé o labor findar;Deste mundo queremos irAo celeste lar.Oh! Pátria mui felizEm ti irei morar;Eu irei morarEu irei morarJerusalém, oh meu paísE meu querido lar!Jerusalém, oh meu paísE meu querido lar!


133Minha gran<strong>de</strong> consolaçãoÉ sempre em ti morar,Oh, querida, bela Sião,Meu eterno lar!Como o povo <strong>de</strong> Abraão,Sempre a viajar,Para a terra da promissão,Santo e doce lar.Ó Senhor, queremos vencer,E <strong>de</strong> Ti alcançarGozo, paz, eterno prazer,No bendito lar!É o meu <strong>de</strong>sejo, Jesus,Sempre peregrinar;Dirigido por lua luzTé que chegue ao lar.A melancolia flagrante <strong>de</strong>stas músicas e o <strong>de</strong>sinteresse pelos assuntos domundo revelam uma dissidência <strong>de</strong> partes do Protestantismo e do Pentecostalismoem relação ao mito dirigente da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, otimista em termos <strong>de</strong> futuro porconta do progresso e da evolução das estruturas políticas, econômicas e sociais.No pós-pentecostalismo ocorre uma situação bastante diferente. Ele rompecom a situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontentamento com a vida na terra e passa a enxergar a si<strong>pró</strong>prio como merecedor <strong>de</strong> prosperida<strong>de</strong> e bênçãos ainda no plano terreno.EU VOU VIVER UMA VIRADA – TOQUE NO ALTAROn<strong>de</strong> era tristeza se veráA dupla honra me ornarCom boas novas proclamar-lheUma nova história celebrar


134É chegada a minha horaMeu silêncio já acabouOuça o som da minha gran<strong>de</strong> festaEu vou Viver uma viradaEm minha vida, eu creioEu vou viver uma viradaO que eu achava estar perdidoE tinha <strong>de</strong>sistido <strong>de</strong> sonharMeu Deus já <strong>de</strong>cretou este é o meu diaMinha virada festejarCAMINHANDO ESTOU – TOQUE NO ALTARQuebraram-se os grilhões das minhas mãosRomperam-se as ca<strong>de</strong>ias dos meus pésUm gran<strong>de</strong> mar se abriu diante <strong>de</strong> mimE os inimigos não me alcançarãoCaminhando estou, para CanaãCaminhando estou pra CanaãHaja o que houver seja o que forNem o <strong>de</strong>serto, nem gigantesConseguirão me intimidarCaminhando estou, para CanaãEu vou viver restituiçãoNa terra que mana leite e melEu vou pra Canaã...


135O MELHOR ESTÁ POR VIR – TOQUE NO ALTARÉ tão bom saber que o Senhor está ao meu ladoE que seguro posso <strong>de</strong>scansar em ver<strong>de</strong>s pastosAs adversida<strong>de</strong>s são reais,Eu posso enfrentar oposiçõesMas se o Senhor agirQuem po<strong>de</strong>rá impedir sua forte mãoEu não quero masi viver só <strong>de</strong> milagresQuero viver as promessas, que Ele preparou para mimNão importa quanto tempo eu esperareiEstou firme e confiante que o melhor está por virÉ tão bom saber que o Senhor está ao meu ladoE que seguro posso <strong>de</strong>scansar em ver<strong>de</strong>s pastosAs adversida<strong>de</strong>s são reais,Eu posso enfrentar oposiçõesMas se o Senhor agirQuem po<strong>de</strong>rá impedir sua forte mãoEu não quero masi viver só <strong>de</strong> milagresQuero viver as promessas, que Ele preparou para mimNão importa quanto tempo eu esperareiComo Calebe eu estou certo que o melhor está por virJesus, vem me restituirJesus, eu confio em tiPosso <strong>de</strong>scansarAs canções transcritas acima transcritas do grupo Toque no Altar possuemenorme sintonia com o ambiente pós-mo<strong>de</strong>rno. O tempo não é o futuro doprogresso, nem o passado da tradição, mas o presente. A socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo éuma realida<strong>de</strong> e ninguém quer ficar alijado <strong>de</strong>ste processo. Rompe com gran<strong>de</strong>força a figura <strong>de</strong> Caleb. Juntamente com Josué eles são os únicos remanescentesdo povo que saiu do Egito e pu<strong>de</strong>ram a<strong>de</strong>ntrar na terra prometida. Por ter


136permanecido confiante na palavra <strong>de</strong> Deus a respeito da posse da nova terra, eleteria sido agraciado com a terra <strong>de</strong> Hebron. Caleb foi, portanto, aquele queprosperou, que usufruiu da terra que manava leite e mel.O pós-pentecostalismo é uma forma <strong>de</strong> religiosida<strong>de</strong> gestada no ambienteconsumista e imediatista. Para continuar acompanhando as <strong>de</strong>mandas da pósmo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><strong>de</strong>ve ser guiada por um mito que reinvindique que aquilo que crer serseu por direito. No texto <strong>de</strong> Josué, capítulo 14, do verso 6 ao 14, verifica-se queCaleb vai requerer aquilo que julgava ter direito. Nos dias <strong>de</strong> hoje a emergência <strong>de</strong>novos atores sociais e o pleito por reconhecimento <strong>de</strong> suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e pretensõesreforçam a vigência <strong>de</strong> um mito ao estilo Caleb. Os direitos do consumidor, daterceira ida<strong>de</strong>, da mulher, das crianças, adolescentes e <strong>de</strong> outras minoriasanteriormente inexistentes ou negligenciadas oferecem razões para crer que osentimento pós-pentecostal baseado em conceitos como o <strong>de</strong> restituição eprosperida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rão ser bem absorvidos por nossa socieda<strong>de</strong>, fazendo-os crescernumericamente e tornando-os cada vez mais presentes no espaço público. É bemverda<strong>de</strong> que nestas canções a queixa não é apresentada a um tribunal, mas a Deus,consi<strong>de</strong>rado O justo Juiz.Esta simbolização da disputa repercute sobre uma discussão bastantepresente no Brasil <strong>de</strong> hoje. Trata-se do <strong>de</strong>bate em torno da cidadania. Como emnosso país, cidadania é um conceito quase que restrito a eleições e a participaçãopolítica vem sendo entendida como a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> interesses corporativos, estáocorrendo uma entrada cada vez maior <strong>de</strong> evangélicos no cenário político. Mudousepor completo a antiga prática isolacionista dos primeiros pentecostais queestavam satisfeitos com a sua cidadania celeste.Esta noção <strong>de</strong> cidadania um tanto distorcida leva os pós-pentecostais eevangélicos <strong>de</strong> um modo geral, dado a intensa pentecostalização do campo religiosobrasileiro, a enten<strong>de</strong>r que os seus interesses são mais legítimos do que os <strong>de</strong> outrosgrupos. Quando sentem seus direitos ameaçados <strong>de</strong> violação, se dizer perseguidos.Entretanto, não conseguem reconhecer o direito à alterida<strong>de</strong> alheia, como no casoda união civil <strong>de</strong> pessoas do mesmo sexo, por exemplo. Entra em ação, o mitoguerreiro na santa luta <strong>de</strong> purificação do Brasil, que é “do Senhor Jesus” e osparlamentares da bancada evangélica junto com os lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong>nominacionais <strong>de</strong> fortepresença midiática assumem o papel <strong>de</strong> capitães nesse combate.


137Miriã, diz o capítulo quinze, versículo vinte do livro do Êxodo, “tomou umtamborim, e todas as mulheres saíram atrás <strong>de</strong>la com tamborins e danças”. A festano Pentecostalismo estão certos <strong>de</strong> que já é hora <strong>de</strong> celebrar. O hino 457 da HarpaCristã, O festim <strong>de</strong> glória, mostra o céu como o local da festa.O FESTIM DE GLÓRIAOh! Que festim <strong>de</strong> glória para nós há <strong>de</strong> ser!Quando tiver nas nuvens, Cristo <strong>de</strong> aparecer.Oh! Nesse evento mui felize <strong>de</strong> prazer também,Eu hei <strong>de</strong> ver meu bom Jesus,fonte <strong>de</strong> todo bem.Nesse glorioso dia, o corpo meu mortal,Será como o <strong>de</strong> anjos, no lar celestial.O repertório surgido recentemente diz que a festa é agora e é aqui que se<strong>de</strong>ve celebrar. O pós-pentecostalismo celebra o presente. O imediato é o seuhorizonte escatológico:CELEBRANDO A COLHEITA – TOQUE NO ALTAREu me alegrarei e celebrareiAo Deus que mudou meu lamentoEm festa, festa, gran<strong>de</strong> festaCIDADÃO DOS CÉUS – TOQUE NO ALTAREu vou dançar <strong>de</strong> alegriaAntes <strong>de</strong> ver o milagre acontecerVou celebrar, tirar os pés do chão


138E se o inimigo ousar e vier contra mimPor sete caminhos ele fugiráA festa é o único evento capaz <strong>de</strong> congregar as pessoas nos tempos pósmo<strong>de</strong>rnos.A espetacularização é uma das características da socieda<strong>de</strong>contemporânea. A mídia precisa <strong>de</strong> um produto atraente. As celebrações do póspentecostalismosão a nova roupagem dos cultos e tem a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seremimpactantes. Mais do que um momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção <strong>de</strong>verá ser um tempo <strong>de</strong>efervescência e empolgação, <strong>de</strong> acontecimentos notáveis. Instrumentos musicaiselétricos e percussivos, banidos pelos primeiros pentecostais, agora incrementam olouvor nestes encontros, e os músicos assumem um papel <strong>de</strong>stacado nascelebrações pós-pentecostais.Passando para o segundo momento da análise do conteúdo mítico que dirigea hinologia pentecostal, abordar-se-á a questão do sonho. Este tema sempreinstigou o ser humano <strong>de</strong> todos os tempos. Os comentários <strong>de</strong> autores gregos elatinos sobre este problema são numerosos. Na Bíblia há um farto registro <strong>de</strong>sonhos. A maioria <strong>de</strong>les aparece no Antigo Testamento. Le Goff informa que onúmero varia entre trinta e cinco e quarenta e cinco na parte veterotestamentária,<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo dos critérios do autor. Ele, por sua vez, assinala o número <strong>de</strong> quarentae três (1994, p. 284).Para o historiador francês <strong>de</strong>ve-se fazer a distinção entre sonho propriamentedito e visão que aconteceria em estado <strong>de</strong> vigília. No sonho haveria uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ação dos órgãos da visão e da audição. Nos sonhos relatados na Bíblia não ocorrema aparição nem <strong>de</strong> mortos, nem <strong>de</strong> <strong>de</strong>mônios. Jacques Le Goff aponta que pagãos<strong>de</strong> elevada posição como o faraó do Egito e o rei babilônico Nabucodonosor tiveramsonhos que foram interpretados por personagens que guardavam um estreitorelacionamento com Deus.Como é sabido, José do Egito não só traduzia o sentido dos sonhos <strong>de</strong> faraócomo também, ele <strong>pró</strong>prio, possuía sonhos muito simbólicos. O profeta Daniel além<strong>de</strong> interpretar sonhos dos reis babilônicos como o <strong>de</strong> Nabucodonosor <strong>de</strong>scrito nocapitulo dois do livro <strong>de</strong> Daniel, também recebia em sonhos e visões mensagenspara <strong>de</strong>codificar. Entretanto os sonhos <strong>de</strong> José parecem relacionar-se aacontecimentos <strong>de</strong> sua <strong>pró</strong>pria vida, algo que ele experimentaria muito em breve. Jáos sonhos e visões <strong>de</strong> Daniel parecem querer revelar coisas que se passarão em


139um futuro longínquo. Os estudiosos da Bíblia indicam um forte apocalipsismo contidono livro <strong>de</strong> Daniel. Um <strong>de</strong>talhe curioso é que tanto José quanto Daniel acabaram por<strong>de</strong>sempenhar funções <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na administração daqueles impérios.O primeiro teólogo cristão que se interessou pelo fenômeno dos sonhos foiTertuliano em sua fase montanista pelos anos 210 e 213. Os montanistas, como sesabe, foram consi<strong>de</strong>rados um movimento herético pela igreja. Le Goff escreve arespeito do pensamento <strong>de</strong> Tertuliano sobre o assunto dizendo que o sonho sesituaria entre o sono e a morte e que <strong>de</strong>pendiam dos movimentos da alma mesmocom o corpo em estado <strong>de</strong> repouso. Para Tertuliano, apesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiar dossonhos, haveria sonhos verda<strong>de</strong>iros. Na obra De anima, este pai da igreja propôsuma divisão dos sonhos: a maior parte procedia dos <strong>de</strong>mônios; Deus enviariasonhos proféticos; e ainda, sonhos originados da <strong>pró</strong>pria alma, po<strong>de</strong>ndo neste tipoocorrer uma forma especifica relacionada com o êxtase. (Ibid., p. 304-307)Com o passar do tempo a <strong>de</strong>sconfiança transformou-se em <strong>de</strong>saprovação noseio da Igreja. Con<strong>de</strong>nou-se a interpretação dos sonhos; o futuro só pertenceria aDeus. Os sonhos passaram a ser vistos como um passo à beira da heresia.Diabolizou-se o sonho, ficando cada vez mais caracterizado a sua naturezaenganadora pois viria do “pai da mentira”. Sonhos luxuriosos e com imagensvoluptuosas foram creditados a carne pecaminosa do homem fraco no espírito. LeGoff diz ter sido Santo Agostinho o maior implicado neste enquadramento dossonhos como manifestação maligna.Já que os sonhos po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados como um fenômeno coletivo, poistodo homem sonha e pela importância dos sonhos na vida dos indivíduos como<strong>de</strong>monstram a psicologia freudiana e junguiana, eles se tornam <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevânciana organização e disposição <strong>de</strong> papeis na vida <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>. É uma maneirado individuo se afirmar e também se inserir nos quadros culturais <strong>de</strong> umacoletivida<strong>de</strong>.As experiências estáticas dos pentecostais voltaram a respaldar os sonhosenquanto mecanismo <strong>de</strong> conhecimento. Pelo sonho chega-se a uma revelação. NoPentecostalismo clássico o conteúdo onírico das canções volta-se mais para oapocalipsismo e para o além. Aproxima-se, portanto da figura <strong>de</strong> Daniel. No póspentecostalismoo sonho assume uma função <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> algo maispalpável, po<strong>de</strong>ndo inclusive ter uma conotação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, projeto ou aspiração. Osplanos do fiel estariam sendo bem aceitos por Deus.


140É preciso dizer que no cristianismo existe a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um outro regime, onoturno, principalmente no mo<strong>de</strong>lo estrutural sintético. A historicização e a dialéticados contrários estão ali presentes. Aliás, a <strong>pró</strong>pria idéia <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> história nocristianismo são junções <strong>de</strong> opostos. Embora a história caminhe evolutivamente, otempo se repete, como é tão evi<strong>de</strong>nte no calendário cristão com seus temposlitúrgicos, não po<strong>de</strong>ndo ser representado nem por uma linha reta rumo ao infinito,nem por um círculo fechado que não permita novida<strong>de</strong>s. A espiral, circular eascen<strong>de</strong>nte ao mesmo tempo, representa melhor a perspectiva cristã <strong>de</strong> tempo ehistória.Dentre os arquétipos substantivos apontados por Durand o filho, a árvore, acruz, o Deus plural, tão presentes no novo testamento – Jesus Cristo, filho <strong>de</strong> Deus,Jesus Cristo, a Vi<strong>de</strong>ira, a raiz <strong>de</strong> Davi, a cruz re<strong>de</strong>ntora, a unida<strong>de</strong> Pai-Filho-EspíritoSanto são símbolos <strong>de</strong> ligação e amadurecimento. Logo, o cristianismo e os seus<strong>de</strong>rivados, Protestantismo e Pentecostalismo, não são expressões religiosasnocivas. Há muita riqueza e generosida<strong>de</strong> nestas crenças.O problema está no <strong>de</strong>sequilíbrio. Durand adverte que nas disputas entre osimaginários é preciso sempre se chegar a uma harmoniosa eqüidistância. Ostrajetos antropológicos <strong>de</strong>vem manter uma tal tensão entre as extremida<strong>de</strong>srepresentadas pelas duas pontas, que são os regimes. Ao final, o trajetoantropológico <strong>de</strong>verá conduzir o indivíduo a uma situação <strong>de</strong> vida mo<strong>de</strong>rada,equilibrada.Um maior <strong>de</strong>staque para as músicas <strong>de</strong> temáticas generosas e solidárias, quefalem mais do amor e menos da guerra, po<strong>de</strong>riam fazer do movimento pentecostal,que continua sua vertiginosa expansão pelos países consi<strong>de</strong>rados por alguns comosub<strong>de</strong>senvolvidos, uma fé promotora dos melhores sentimentos e valores humanos.Respeitadora da diversida<strong>de</strong> e da diferença.A complexida<strong>de</strong> opõe-se ao simplismo da oposição entre bons e maus,matéria-prima <strong>de</strong> manipulações maniqueístas e nefastas. Aceitar que em outrosplanos que não o da estrita confissão religiosa, como ensina o pressupostotransdisciplinar dos diferentes níveis <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>ria ajuntar construtivamenteos homens <strong>de</strong> boa vonta<strong>de</strong>, para usar uma expressão bíblica.Um conceito que vem ganhando espaço, cada vez maior, nos círculosteológicos, já com gran<strong>de</strong> ressonância na vanguarda do pensamento social e políticoé inclusivida<strong>de</strong>. A inclusivida<strong>de</strong> carrega consigo o dom da acolhida, da


141compreensão. Não po<strong>de</strong> haver inclusivida<strong>de</strong> parcial. Ou ela é plena, ou já não é elamesma. Inclusivida<strong>de</strong> até certo ponto é, na verda<strong>de</strong>, exclusivida<strong>de</strong>. A lógica doterceiro incluído <strong>de</strong>sarma e <strong>de</strong>sarticula os binarismos e dicotomias que procuram<strong>de</strong>monstrar uma fantasiosa superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguma coisa ou <strong>de</strong> alguns sobre os<strong>de</strong>mais.Conhecendo o imaginário, com seus arquétipos, mitos, posturas e regimes épossível ao mesmo tempo <strong>de</strong>nunciar posições <strong>de</strong>letérias, quanto reparar certos<strong>de</strong>svios ou excessos que comprometam a harmonia <strong>de</strong> vida em uma socieda<strong>de</strong>.


142CONSIDERAÇÕES FINAISQuando se chega ao término <strong>de</strong> uma pesquisa, dúvidas angustiantesassaltam aquele que conduziu a investigação: foi feita justiça ao objeto? Conseguiuse<strong>de</strong>senvolver bem os argumentos? A teoria foi bem empregada? Houve correlaçãoentre teoria e fatos? A amostra selecionada foi a<strong>de</strong>quada e suficiente? Quecontribuições o trabalho <strong>de</strong>ixa?Certamente que a expectativa do pesquisador é dar a todas estas perguntasuma resposta positiva. Toda dissertação apresentada e <strong>de</strong>fendida não <strong>de</strong>ve apenasconferir um grau a quem a produziu. Ela <strong>de</strong>ve ser pertinente, quer dizer, acrescentarum pouco mais <strong>de</strong> clareza ao objeto, facilitar a sua compreensão, ampliando oquadro <strong>de</strong> referências a respeito do tema. Foi o que se procurou fazer no <strong>de</strong>correr<strong>de</strong>ste trabalho.O Pentecostalismo surgido dos anos <strong>de</strong> 1970 para cá, com seu vertiginosocrescimento muito além da média populacional brasileira, tem sido um objeto <strong>de</strong>importantes e muito bem elaboradas análises tocadas por estudiosos gabaritados. Otema já foi discutido pelo prisma antropológico, sociológico, filosófico, político, eainda sob o ponto <strong>de</strong> vista da comunicação <strong>de</strong> massa e do plano econômico, semfalar do <strong>de</strong>bate teológico em torno da matéria.É consenso entre os especialistas que aquilo que aqui foi chamado <strong>de</strong> póspentecostalismo,seguindo a idéia sugerida por Paulo Siepierski, guarda uma série<strong>de</strong> inovações se comparadas com os tipos pentecostais pre<strong>de</strong>cessores quechegaram ao Brasil nas primeiras décadas do século XX. Muitas <strong>de</strong>ssas diferençasjá foram realçadas em outros estudos analíticos e/ou comparativas. Porém, pareceser ainda inédito ou, ao menos, incipiente estudos culturais sobre o Pentecostalismo<strong>de</strong> terceira onda que vá buscar na Teoria do Imaginário o parâmetro teórico para seavaliar a conduta e mentalida<strong>de</strong> daqueles que professam este credo.Ao estabelecer que a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> é uma bacia semântica em estado<strong>de</strong>sfazimento e apontar a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> como a bacia emergente, a pesquisacaminhou no sentido <strong>de</strong> explicitar as especificida<strong>de</strong>s do Protestantismo e doPentecostalismo clássico enquanto manifestações gestadas ainda na vigência dosconteúdos <strong>de</strong> sentido e significação da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, ainda que o Protestantismohistórico fosse a versão otimista e o Pentecostalismo, que <strong>de</strong>sce o começo <strong>de</strong>usinais <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontentamento e <strong>de</strong>sconfiança, preparando assim as condições <strong>de</strong> uma


143religiosida<strong>de</strong> que se pautasse por um referencial sócio-cultural distinto, a versão<strong>de</strong>sconfiada.Viu-se como os projetos i<strong>de</strong>ológicos, <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>, as visões <strong>de</strong> mundo eteologias <strong>de</strong> cada espécie do gênero evangélico estavam comprometidos com e pelabacia semântica da qual <strong>de</strong>rivara. Isto posto, estava aberto o caminho para oaprofundamento na temática do imaginário enquanto instrumento capaz <strong>de</strong> dizeralgo relevante e <strong>de</strong> interesse a respeito das movimentações no campo religiosobrasileiro.Contudo, era impossível a aplicação da Teoria e dos métodos do imaginárionos mol<strong>de</strong>s da ciência tradicional. Era necessário apegar-se a um caminho novo, noenten<strong>de</strong>r do pesquisador mais promissor e profícuo. A bem da verda<strong>de</strong>, a <strong>pró</strong>priaTeoria das Estruturas Antropológicas do Imaginário <strong>de</strong> Gilbert Durand, com suavalorização do simbolismo e da imaginação, só foi possível ser produzida graças aomesmo conjunto <strong>de</strong> eventos que culminaram na proposta transdisciplinar: as<strong>de</strong>scobertas da física quântica.A transdisciplinarida<strong>de</strong> permite uma maior elasticida<strong>de</strong> epistemometodológica.Só se po<strong>de</strong> bem aproveitar o rico potencial da proposta do imagináriose forem levados em consi<strong>de</strong>ração pressupostos como a complexida<strong>de</strong> e osdiferentes níveis <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, por exemplo. Neste sentido, por exemplo, a noção <strong>de</strong>trajeto antropológico, parte integrante e <strong>de</strong>stacado da Teoria do Imaginário,reforçado pela proposição da lógica do terceiro incluído, uma vez que um trajetosaudável se dá pelo equilíbrio e <strong>de</strong>ntro da lógica inclusivista as aparentescontradições po<strong>de</strong>m ser bem resolvidas mantendo um bom balanceamento doembate entre i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e diferença.Na hinologia pentecostal são perceptíveis diversos mitos e mitologemas queatravessam por meio <strong>de</strong> imagens as canções que animam esses grupos. Existe umaespecificida<strong>de</strong> proveniente do fato <strong>de</strong> ser a Bíblia o livro que encerra os conteúdosda fé pentecostal. Desse modo, foi preciso buscar nos personagens da Bíblia e nãonos mitos greco-latinos, fonte mais geral do imaginário oci<strong>de</strong>ntal, os mitos diretorese as figuras míticas que potencializam os arquétipos que estão ativos nos hinos ecanções pentecostais, moldando um <strong>de</strong>terminado modo <strong>de</strong> vida.A escolha do trecho bíblico conhecido como êxodo e a retirada <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>seus personagens justifica-se pela adaptabilida<strong>de</strong> daquele contexto à situaçõesvividas por leitores da Bíblia que, em diversos momentos no <strong>de</strong>correr da história,,


144fizeram daquela narrativa, ou seja, da jornada entre o cativeiro até a terra prometida,uma forma <strong>de</strong> trajeto antropológico. Quer dizer, é uma situação na qual é possívelenxergar a <strong>pró</strong>pria existência individual retratada <strong>de</strong> uma maneira mítica. Poucoimporta a veracida<strong>de</strong> histórica dos eventos narrados. O que interessa é o papel<strong>de</strong>sempenhado pela história do êxodo na fundação <strong>de</strong> uma cultura. Uma miradaatravés dos séculos mostra que o judaísmo provém daí. Jesus Cristo teriavivenciado o seu <strong>pró</strong>prio êxodo, como se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> do episódio da tentação no<strong>de</strong>serto. Enfim toda situação <strong>de</strong> fuga, martírio, necessida<strong>de</strong>, aventura, imigração,conquista, para ficar por aqui, caberia no relato simbólico fundante do êxodo. Porisso, ele po<strong>de</strong> ser avistado como pano <strong>de</strong> fundo das canções pentecostais. Seja nosmotivos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m mo<strong>de</strong>rna, seja nos ligados a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.Os pentecostais retomam o tema dos sonhos e das visões legitimando pormeio <strong>de</strong> textos bíblicos a assertiva <strong>de</strong> receberem novas interpretações. É muitointeressante notar que na mesma época que os pentecostais estavam seconstituindo estudiosos do inconsciente como Freud e Jung estavam começando a<strong>de</strong>monstrar, por meio <strong>de</strong> serias pesquisas, a centralida<strong>de</strong> dos sonhos na vida doshomens e das mulheres.No movimento pentecostal é possível distinguir duas maneiras <strong>de</strong> sonhar queremetem a personagens bíblicos que, por sua vez, evi<strong>de</strong>nciam o que há <strong>de</strong> maisprofundo na mentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> indivíduos e <strong>de</strong> grupos em um <strong>de</strong>terminado tempo. Ossonhos apocalípticos ajudaram a isolar os pentecostais do resto da socieda<strong>de</strong>criando um ambiente ascético severo e sectário. Já os cânticos on<strong>de</strong> os sonhos são<strong>de</strong>scritos como aspirações levam os pós-pentecostais a uma cada vez maiorinteração e integração com a socieda<strong>de</strong>.De tudo o que foi dito, tem-se como certo a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se encontrar umponto <strong>de</strong> equilíbrio que não permita a manipulação dos contingentes pentecostaispela exacerbada e abusiva utilização dos mitos dirigentes.As estruturas do imaginário não são boas ou más em si mesmas. O trajetoantropológico, interação entre a pessoa e o ambiente cultural marcado por umconjunto <strong>de</strong> imagens que dão forma à socieda<strong>de</strong>, permite a ação positiva <strong>de</strong> cadapessoa na construção <strong>de</strong> uma humanida<strong>de</strong> melhor. Mais que uma possibilida<strong>de</strong>,essa tomada efetiva e consciente <strong>de</strong> posição é uma responsabilida<strong>de</strong> da qual não sepo<strong>de</strong> fugir.


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