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Marcolina saiu de Lisboa comigo e entrou na minha casa na província. Estavajá morta, a minha mãe. Os meus vizinhos escandalizaram-se de me verem emconcubinagem, e o pároco da freguesia deixou de me visitar, e o boticárioproibiu as filhas de me falarem, e o regedor recomendou à mulher que nãofizesse conhecimento com a lisboeta, que tinha cara de pecado.A minha aldeia é penhascosa, feia e triste. Marcolina amava os rochedos, e assombras das matas, e ajoelhava às cruzes que encontrava nas veredas por ondeandava sozinha, e dobrava-se rente com o chão para beber das fontes térreasem que borbulhava a água. Retingiram-se-lhe as faces e cessou algum tempo atosse. Já subia comigo aos píncaros das serras, quando eu caçava; trazia aotiracolo a saca de malha com a merenda, e por lá, naqueles vales, onde osmedronheiros e avelãzeiras vinham a terra com frutos, era de ver as delíciascom que ela comia, por igual comigo, as grosseiras iguarias que levávamos.Entrou o Outono, e logo notei a desmedrança e abatimento de Marcolina. Adecomposição parece que se via, como se os vermes lhe andassem roendo jáperto da epiderme. Quis voltar com ela a Lisboa; mas achei-a pertinaz em nãosair da aldeia. Dizia-me que fosse eu distrair-me e que a deixasse ali acabar osseus dias.Poucos tinha ela já de vida, quando a mais velha das irmãs lhes escreveucontando que o pai voltara rico de África e pusera anúncios nos jornaisindagando notícias da sua mulher e filhas. Dizia mais que ele fora aorecolhimento e chorara de alegria vendo-as; mas logo se enfurecera quandoelas lhe falaram da mãe. Acrescentava que ele, sabendo que devia à enteada orefúgio das suas irmãs, estava ansioso por vê-la, e pedia-lhe que voltasseimediatamente a Lisboa.Esta carta deu delírios de júbilo a Marcolina. Fez por vigorizar-se para ajornada, não tanto para testemunhar a felicidade das irmãs como para pedir aopadrasto que não desamparasse sua mulher. A esperança apagou-se súbita,quando preparávamos a partida. Fui, uma tarde, à vila próxima compraralguns aprestos para a jornada, e quando voltei estava Marcolina nos últimosarrancos. Agitou-se vertiginosamente quando me viu apertou-meansiosamente contra o coração e murmurou:— Agora... e só agora me atrevo a dizer-te que te amei... Deixo-te a eternalembrança da desgraçada que só à hora da morte se julga digna de ti...Morreu.