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CORAÇÃO CABEÇA E ESTÔMAGO

Untitled - Luso Livros

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médico. Fiz, pois, de mim uma cara entre o sentimental de Antony e o trágicode Fausto. Seria, no entanto, mais completa a minha satisfação se à raiz docabelo, no ponto em que eu barbeava a cabeça para aumentar a testa, me nãoaparecesse um diadema azulado. Era a natureza a vingar-se. Cada vez que meeu via com aquele disco na testa, experimentava a dor do poeta de Dom Joãocontemplando o seu pé coxo, por causa do qual, e com o qual, tanto pontapédeu o raivoso lorde no gênero humano.Assim amanhado de aspeto, saia de casa, à hora em que o Sol dardejava aprumo, ou quando as nuvens se rompiam em torrentes. O meu cavalo eranegro, negro o meu trajar, tudo em mim e de mim refletia a negridão da alma.Cheguei a enganar-me comigo mesmo, e a remirar-me a mim próprio, comcerto compadecimento e simpatia! Os grupos dos meus conhecidos viam-mepassar abstraído e diziam: “Foi uma mulher que o reduziu àquilo!” Eu sabiaque era corrente nos círculos da juventude a seguinte história ao meu respeito:“Que eu tinha amado uma neta de reis, filha de um titular, cujos avós játinham os retratos de vinte gerações, antes de se inventar a pintura. Que amenina, fascinada pela minha mesma temeridade, descera, na hora da sesta, aojardim, e me lançara uma flor, chamada ai!, na copa do chapéu. Que ojardineiro observava o ato e o delatara ao fidalgo. Que o fidalgo chamara afilha e, ouvida a resposta balbuciante dela, a fizera entrar no Mosteiro dasComendadeiras da Encarnação, onde se finava lentamente, e eu cá de fora lheandava, a horas mortas, falando, mediante as estrelas do céu e os murmúriosmisteriosos da noite, resolvido a morrer, logo que o anjo batesse as suas asasimortais no caminho da glória eterna. Amém.”Era isso o que se dizia; mas a verdade é outra.***É certo que eu, num dos meus passeios desabridos, quando o céu afuzilavarelâmpagos, fui a caminho de Sintra, e vi na balaustrada de uma varanda, comos olhos postos no ocidente tempestuoso, uma mulher, que se me afigurou apomba da boa nova ao quadragésimo dia do dilúvio. Retive as rédeas docavalo, sofreei a respiração, contemplei-a com petulante ternura, e ela foi-seembora.

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