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CORAÇÃO CABEÇA E ESTÔMAGO

Untitled - Luso Livros

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Uma tarde de julho estava eu no Passeio Público, quando as duas francesasentraram. De longe e reverenciosamente as cortejei. Elisa respondeu-me comum gesto de imensa melancolia, como quem diz: “Oh!, não reveles a esseshomens de pedra a desgraçada que aqui vai!”Atrás de mim estava um grupo de homens, que falaram e riam, quando asmodistas passaram. Apurei o ouvido e escutei, com preferência, a voz de umsujeito, entre os dizeres zombeteiros dos outros. Dizia assim:“[...] Parece incrível! Quando eu a conheci, há quatro anos, estava ela com umestudante brasileiro, que estudava o Curso Superior de Letras. Encontrei-a nasguinguettes, a dançar o cancã com admirável mestria. Depois, o brasileiroendossou-a a um italiano; o italiano deu-a de mão beijada a um tenor; o tenorpassou-a ao corifeu dos coristas; e daí começou a descer, e perdi-a de vista.Eis senão quando, dou com ela no armazém da *** com a mais pudica dascaras e a mais mesurada das linguagens. Recordei-lhe em termos hábeis opassado, as guinguettes, o cancã, o brasileiro e a caterva magna das dinastiasque lhe avassalaram o coração; e ela, com as mais marmóreas das caras, dissemeque eu, se não estava enganado, era um infame. Mas o melhor de tudo éela ter-se encampado a um provinciano, que por aí anda, conhecido do CibrãoTaveira, a título de menina seduzida por um duque, e diz chamar-se, em Paris,Elise de la Sallete!”Riram todos, e eu pus a mão no lado esquerdo, a rebater o coração que partiaas costelas e rasgava as membranas. Fitei o homem, que falava ainda, e dissementalmente: “Se mentes, pagarás a infâmia com a vida!”Procurei o meu amigo Cibrão Taveira e contei-lhe o que ouvira. Cibrão, semescarnecer a minha dor, respondeu com ar sisudo:— É verdade o que esse homem disse. Não quis desmentir as tuaspresunções, porque sabia que te fazia mal. Eu sei-o da outra, que ela tem naconta de amiga íntima. Ambas são da mesma farinha. Nenhuma delas servepara poetas, que andam no encalço dos anjos. Se te serve assim, dá louvoresao Céu por ela ser quem é. Se queres mulheres para romances e prosas, pedeasà tua imaginação e deixa o mundo real como ele está, que não pode sermelhor.Nesse mesmo dia fui para Mafra com tenção de morrer de tédio: o sítio eraazado; mas a minha robusta organização resistiu.

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