Maria Luísa BaptistaNa verdade, a fé, que noutras circunstâncias pode assumir-se comouma atitude conformista, é em Lopes um efectivo móbil de progresso,nos antípodas da resignação (como já acima se frisou), um elemento deconfiança expressa no homem e na sua acção, de preferência concertadanuma solidariedade eficaz, ética e materialmente.«Era a luta. A luta braba que começava. Contra os elementos negativos.Contra os inimigos do homem. A luta silenciosa, de vida ou de morte.Introduzia-se primeiro no entendimento. Depois, entrava no sanguee no peito. O homem tornava-se a força contrária às forças da Natureza.Por um mandato de Deus, o homem lutava contra os próprios desígniosde Deus. Dava toda a sua vontade e a sua força. Não podia fazer maisnada. O que está acima da força do homem não pertence aos seus domínios.O homem tinha uma medida. Chuva, vento e sol estavam foradessa medida, e o homem não se podia incriminar pelo que sucedia forada sua medida. Os desígnios de Deus eram superiores à vontade dos homens,mas o dever do homem era lutar mesmo contra esses desígnios.»(FVL, p. 96).190Esta fé não projecta num Além a consecução da felicidade, antes aconcebe como possível, teluricamente, hic et nunc,... se todos quisessemficar. (É necessário que muitas vontades se juntem para que o balão deBartolomeu, Blimunda e Baltasar (um dia) voe). Este sentido eclesial dasvontades implica a adesão a um corpo de ‘artigos’ de uma fé essencialmenteteluricista. É «fincando os pés na terra» que a terra se identificarácom o sonho, a utopia, a Ilha; que a terra aproveitará do advento da chuvaquando ela, messiânica, um dia vier para redimir a míngua crónica.Lourencinhos e Josés da Cruz é que são os verdadeiros sacerdotesde uma religiosidade quase sem hierarquias, sem rituais nem específicoslocais de culto. E a terra, a natureza — em certo sentido a montanha — ogrande templo.De facto, na obra narrativa de Lopes, quase sempre (se não sempre)se ignora a religião socialmente institucionalizada. Mesmo a referênciaà festa do casamenteiro Santo André (FVL, pp. 122-123) se inscreve nacomemoração das águas [fertilidades várias], celebração que, em temposde fartura, vive da culinária tradicional, da música e da dança («morna»E-book CEAUP 2007
Vertentes da insularidade na novelística de Manuel Lopese «contradança») em que participam novos e velhos. É uma celebraçãolaica e profundamente religiosa no sentido de agregadora, comunicante.As águas abençoadas, as chuvas, é que de facto rompem o silêncio:a necessidade comunicativa satisfaz-se com um vaivém de pessoas cujaalegria extravasa (cf. FVL, p. 35) na tagarelice colorida do quotidiano ouem particular nos serões «de viola e cantiga».Como vemos, a vivência das populações inscreve-se pendularmenteentre as contingências bipolarizadas do vento (ao dizer «vento», é decertoa lestada que aqui temos em mente) e da chuva, isto é, entre o universoda fome e o de uma ventura mediana.Lestada e chuva ultrapassam, por isso, a sua denotativa importânciaprimeira de entidades geofísicas, para se avocarem, cada uma a seumodo, uma estatura mítica.O vento leste é, sim, a besta mítica, pelo facies agoirento, pela formaimplacavelmente agressiva como sopra. Por essa ‘actuação’ prepotente eimprevisível, ele é a contingência ameaçadora, domínio volúvel do incontrolável,portador de males terríveis, exterminador de humanos, animais,culturas, bens em geral. A lestada traz, avassaladora, o alastramentoletal do deserto: silêncio, vazio, morte. Também pelo calor excessivo,a lestada é o «Inferno» (FVL, p. 93), o «vento maligno» (FVL, p. 117). Porisso, na pág. 103 do presente trabalho concluíamos a caracterização destevento com a afirmação de que «A lestada consagrará o caos».No outro extremo do balouçar em que se joga o viver do ilhéu caboverdianositua-se a chuva, entidade antagónica da lestada. Como tal, elatambém mitizada, em tons obviamente promissores. A água há-de vir,louca, tumultuosa e irreprimível, «chuva braba»; há-de vir pôr fim às labaredas,mitigar todas as sedes, fazer rebentar nascentes, trazer o «papiarcrioulo, dançar morna e comer cachupa» (CB, p. 123), de que têmsaudades os que disso andaram longe. É a água o grito natural insubmissoda consagração do telurismo, factor primeiro da congregação doshomens, da sua ascensão plural à dignidade da cidadania, hossana daressurreição). A chuva, aditamos agora, consagrará a bem-aventurança.Todavia, entre uma realidade mais frequente — a seca — e uma realidademenos frequente do que desejada (a insegurança de uma probabilidade)— a chuva —, se insinuará o dilema: partir ou ficar; e com ele,1912007 E-BOOK CEAUP
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