Maria Luísa Baptistaa uma meia dúzia; em todo o caso acho que é quando há mais farturaque há mais negócio. Cada um troca o excesso do produto que tem emcasa pelo excesso de outro que o vizinho guarda. A satisfação é geral, háprogresso, há bem-estar. A oportunidade é para todos...Artur não se deixou comover com a eloquência do Joquinha. Comum gesto seco de mãos e um faiscar de olhos vesgos barrou a correnteimpetuosa. Atalhou calmamente, amassando as palavras num sorrisopróprio para clientes recalcitrantes:— Pode ser para uns. Para outros não. Eu cá... — vacilou. Depoisfalou franco: — Vou dizer-lhe uma coisa. O senhor é forasteiro, nãotemo a sua concorrência, e saberá, certamente, guardar a confidência...Arranjo estes anos uns cobres se não chover. Isso é falar com o coraçãona mão. Pra quê fingir? Toda a gente aliás sabe que tenho os armazénsa abarrotar de milho. Se quer números redondos, lá vão: tenho armazenadoscerca de cinquenta contos de réis em milho. O comércio é umjogo, o senhor sabe muito bem, e quem joga não quer perder. Pelo preçoque comprei o milho, é para obter um lucro de cem por cento. Como vêo Senhor Joquinha, é um dilema...— Então, pelo visto, se estivesse nas suas mãos, o amigo impediaque chovesse este ano, pois não é?— Era bem capaz, era bem capaz disso. Porque não? Pelo menoseste ano, pelo menos este ano — respondeu o comerciante, balanceandoa cabeça pensativamente. Depois com um sorriso confidencial e umolhar assincrónico como se trocasse um olho pelo outro, acrescentou: —O senhor deve calcular como tenho andado com o coração no papo...»(CB, pp. 118-119).176A surpresa da «bela bátega» (16) que inundará a Ilha no final da narrativareflectir-se-á negativamente na criminosa expectativa do comerciante.E o narrador não lhe poupará a desmesurada, quase grotescadesorientação quando, ao referir-se à «figura terrosa do comerciante Artur»(CB, p. 149), anota: «Os olhos espantosamente abertos giravam-lhecomo duas bússolas doidas.» (CB, p. 149).O tópico da especulação, avidez de ganho — como excesso, formade alienação, fuga do equilíbrio — não poderia faltar num quadro subjacenteda fome (17) . Com efeito é a fome, em última análise, que deifica aterra e que, no pólo oposto, potencia a busca, algures, de melhores con-E-book CEAUP 2007
Vertentes da insularidade na novelística de Manuel Lopesdições de vida. E obviamente é nela também que radica a fragmentaçãodo «querer bipartido» (que analisaremos de seguida), a necessidade deoptar pelo mal menor, com suas cicatrizes implícitas.Globalmente considerada, notaremos que em Chuva Braba a evasãomarca de forma sistemática as personagens solitárias: Joquinha, JoãoJoana, Sansão, Artur, Mariano. Notaremos ainda que o cunho psicológicae socialmente positivo da evasão tem a ver com a emigração — a lutaestrénua com as dificuldades económicas, de adaptação, de isolamento— e a vitória do sujeito sobre as contrariedades. Joquinha será a personagemmais representativa deste aspecto. Mariano é um lutador, furavidas,que utiliza, todavia, meios nem sempre claros: serve-se da noitecomo cobertura de actividades clandestinas (contrabando ou passagemde pessoas entre as Ilhas). Mariano estabelece a transição entre a evasãoque (com base na prática do sujeito e resultados) designámos como positiva,e a evasão que, pelo mesmo critério, considerámos como desumanizante.Sansão, João Joana, Artur, figuras carcomidas, alinham-se, comovimos, na vertente corrosiva da evasão. Marcas de anteriores desistências,rumos de lenta autodestruição subsequente à conscientização dedesfasamento entre a imagem que de si próprio cada um se formou e asexpectativas que alimentou nas suas dimensões individual e social e, poroutro lado, a realização desfigurante da imagem e expectativas (18) . Sofreguidõesmultímodas de sinal contrário, desconfiança, mediocridade,a vida ao invés, enfim, suicídios (19) ou antes talvez, em rigor, homicídiosem que a identificação dos responsáveis apontaria para uma pluralidadede factores, não porém decerto para um fatalismo intransponível.Dir-se-á que, por solitárias, as personagens que procuraram ou procurama evasão em várias das suas facetas são as mais disponíveis: são jáverdadeiras ilhas. Não tendo podido ou querido desenvolver interessesafectivos, de relação, não tendo diversificado formas de intervenção, foramcomo que reduzidas a uma só dimensão, a exclusividade afunilantede uma perspectiva que as desfigura, que compromete ou prejudica obem-estar e o progresso do círculo ambiente.Em contrapartida, André, Lourencinho (em certa medida), Escolástica,Vital e mesmo Zé Viola, mas sobretudo Mané Quim, são personagensdiferenciadas, mas activas e em relação. Entretecem laços1772007 E-BOOK CEAUP
- Page 5 and 6:
VERTENTES DA INSULARIDADE NANOVELÍ
- Page 7 and 8:
ÍNDICEApresentação 9Nota prévi
- Page 9:
Concorri ao Mestrado de Literaturas
- Page 12 and 13:
Maria Luísa BaptistaNOTA PRÉVIAPa
- Page 14 and 15:
Maria Luísa Baptista14go, pude con
- Page 16 and 17:
Maria Luísa Baptista02.MANUEL LOPE
- Page 18 and 19:
Maria Luísa Baptista18seus número
- Page 20 and 21:
Maria Luísa Baptistapara os meteor
- Page 22 and 23:
Maria Luísa Baptistae sofrendo um
- Page 24 and 25:
Maria Luísa Baptista24para a franc
- Page 26 and 27:
Maria Luísa Baptista26A relativa p
- Page 28 and 29:
Maria Luísa Baptistade contextuali
- Page 30 and 31:
Maria Luísa Baptista1. DA ACÇÃO3
- Page 32 and 33:
Maria Luísa Baptistamo entre quere
- Page 34 and 35:
Maria Luísa Baptista34A partir da
- Page 36 and 37:
Maria Luísa Baptista36títulos apo
- Page 38 and 39:
Maria Luísa Baptistaremos a afirma
- Page 40 and 41:
Maria Luísa Baptista40Notemos que
- Page 42 and 43:
Maria Luísa Baptistasilenciaram. C
- Page 44 and 45:
Maria Luísa Baptista44distintivos
- Page 46 and 47:
Maria Luísa Baptista46insuficiente
- Page 48 and 49:
Maria Luísa Baptista48(CB, p. 57).
- Page 50 and 51:
Maria Luísa BaptistaA despeito dis
- Page 52 and 53:
Maria Luísa Baptista52de interven
- Page 54 and 55:
Maria Luísa Baptista4. DO ESPAÇO4
- Page 56 and 57:
Maria Luísa Baptista56Porto Novo,
- Page 58 and 59:
Maria Luísa Baptista58os elementos
- Page 60 and 61:
Maria Luísa Baptista60lhe mina o s
- Page 62 and 63:
Maria Luísa Baptista62Não encontr
- Page 64 and 65:
Maria Luísa Baptistacontribuem par
- Page 66 and 67:
Maria Luísa BaptistaAcontecimentos
- Page 68 and 69:
Maria Luísa BaptistaAcontecimentos
- Page 70 and 71:
Maria Luísa BaptistaAcontecimentos
- Page 72 and 73:
Maria Luísa Baptista05.ANÁLISE DE
- Page 74 and 75:
Maria Luísa BaptistaO «combate»
- Page 76 and 77:
Maria Luísa Baptistaandro que, a d
- Page 78 and 79:
Maria Luísa Baptistaconsigna-se, p
- Page 80 and 81:
Maria Luísa Baptista80marido, uma
- Page 82 and 83:
Maria Luísa BaptistaO acentuar dos
- Page 84 and 85:
Maria Luísa BaptistaO milharal, re
- Page 86 and 87:
Maria Luísa Baptista86do «Romance
- Page 88 and 89:
Maria Luísa Baptista88Como, pois,
- Page 90 and 91:
Maria Luísa Baptista- a acção do
- Page 92 and 93:
Maria Luísa Baptista92Sendo assim,
- Page 94 and 95:
Maria Luísa BaptistaAfigura-se, po
- Page 96 and 97:
Maria Luísa Baptista96ficos, mas a
- Page 98 and 99:
Maria Luísa Baptista(pp. 24-28); e
- Page 100 and 101:
Maria Luísa Baptistaa atmosfera es
- Page 102 and 103:
Maria Luísa Baptistalíngua de fog
- Page 104 and 105:
Maria Luísa Baptista104ção da su
- Page 106 and 107:
Maria Luísa Baptistaquando a árvo
- Page 108 and 109:
Maria Luísa Baptista108Actualizaç
- Page 110 and 111:
Maria Luísa Baptista• «O posto
- Page 112 and 113:
Maria Luísa Baptista112«Tem algum
- Page 114 and 115:
Maria Luísa Baptista114Inerente à
- Page 116 and 117:
Maria Luísa Baptista116Miguel Alve
- Page 118 and 119:
Maria Luísa Baptista118Gente das p
- Page 120 and 121:
Maria Luísa Baptista120a mão-de-o
- Page 122 and 123:
Maria Luísa Baptistalos ventos cor
- Page 124 and 125:
Maria Luísa Baptistadas a pique on
- Page 126 and 127: Maria Luísa Baptista• «A tarde
- Page 128 and 129: Maria Luísa Baptistasente embora,
- Page 130 and 131: Maria Luísa Baptista130directa. Ma
- Page 132 and 133: Maria Luísa Baptista«Fiz bem o qu
- Page 134 and 135: Maria Luísa Baptistata-se devidame
- Page 136 and 137: Maria Luísa Baptistatem-se os valo
- Page 138 and 139: Maria Luísa Baptistanada mais. Zep
- Page 140 and 141: Maria Luísa Baptista140Neste caso,
- Page 142 and 143: Maria Luísa Baptistaos homens. E,
- Page 144 and 145: Maria Luísa Baptista• a antevis
- Page 146 and 147: Maria Luísa Baptistase fosse para
- Page 148 and 149: Maria Luísa Baptista— Nem me lem
- Page 150 and 151: Maria Luísa Baptista- o «querer b
- Page 152 and 153: Maria Luísa Baptistacom bosques, c
- Page 154 and 155: Maria Luísa Baptista— Homem nasc
- Page 156 and 157: Maria Luísa BaptistaSupomos poder
- Page 158 and 159: Maria Luísa Baptistaágua que se s
- Page 160 and 161: Maria Luísa BaptistaO telurismo co
- Page 162 and 163: Maria Luísa Baptista• «Quem olh
- Page 164 and 165: Maria Luísa Baptistacimento da vul
- Page 166 and 167: Maria Luísa BaptistaAssim, em FVL
- Page 168 and 169: Maria Luísa Baptistadividual, de l
- Page 170 and 171: Maria Luísa Baptista• «Mas lá
- Page 172 and 173: Maria Luísa BaptistaTemos por form
- Page 174 and 175: Maria Luísa Baptista«Parece exact
- Page 178 and 179: Maria Luísa Baptistarelacionais (2
- Page 180 and 181: Maria Luísa Baptistapotencialidade
- Page 182 and 183: Maria Luísa Baptista«— Sempre e
- Page 184 and 185: Maria Luísa Baptista184Um como out
- Page 186 and 187: Maria Luísa BaptistaO «querer bip
- Page 188 and 189: Maria Luísa Baptista• «Era o qu
- Page 190 and 191: Maria Luísa BaptistaNa verdade, a
- Page 192 and 193: Maria Luísa Baptistaa partilha do
- Page 194 and 195: Maria Luísa Baptistalocando o home
- Page 196 and 197: Maria Luísa Baptistados longes tra
- Page 198 and 199: Maria Luísa Baptista(solidariedade
- Page 200 and 201: Maria Luísa Baptistaproduções qu
- Page 203 and 204: Vertentes da insularidade na novel
- Page 205 and 206: Vertentes da insularidade na novel
- Page 207 and 208: Vertentes da insularidade na novel
- Page 209 and 210: Vertentes da insularidade na novel
- Page 211 and 212: Vertentes da insularidade na novel
- Page 213 and 214: Vertentes da insularidade na novel
- Page 215 and 216: Vertentes da insularidade na novel
- Page 217 and 218: Vertentes da insularidade na novel
- Page 219 and 220: Vertentes da insularidade na novel
- Page 221 and 222: Vertentes da insularidade na novel