Na(rra)ção satÃrica e humorÃstica: Uma leitura da obra narrativa de ...
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<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satíricae humorística<strong>Uma</strong> <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong>na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RUI
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satíricae humorística<strong>Uma</strong> <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong>na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RUIMarta <strong>de</strong> Oliveira
ÍNDICEIntrodução 1701. ParteOs sons <strong>da</strong> esfinge angolana 25Ficção na<strong>rra</strong>tiva angolana 34Visão satírica e humorística 41A escola do real 5202. ParteBurguesismos 65Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong> 65Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo 761 Morto & Os Vivos (“De Um Comba”) 89As personagens e a sua significação 100Diogo versus Feijó 104Carnaval <strong>da</strong> Vitória 112As crianças – realização <strong>da</strong> utopia 118A figura feminina 126
03. ParteTorre <strong>de</strong> Babel ou Babel apazigua<strong>da</strong> – Notas <strong>de</strong> um estilo 135Da página ao palco e à tela 142Conclusão 150Bibliografia 155Anexo: Entrevista a Manuel Rui 163
“Leituras! Leituras!Como quem diz: <strong>Na</strong>vios... Sair pelo mundo...”Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>
Aos meus pais.Por tudo.
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiAgra<strong>de</strong>cimentos“Entre a multidão há homens quenão se <strong>de</strong>stacam, mas são portadores<strong>de</strong> prodigiosas mensagens. Nem elespróprios o sabem”.Antoine <strong>de</strong> Saint-ExupéryOs livros fazem-se <strong>de</strong> livros, mas acima <strong>de</strong> tudo os livros fazem-se <strong>de</strong>percursos, encontros e personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, acima <strong>de</strong> tudo, <strong>de</strong> pessoas.Pela experiência que tive, é-me gratificante recor<strong>da</strong>r os que, <strong>de</strong> umaforma ou <strong>de</strong> outra, contribuíram para a minha formação, em primeirolugar, quero <strong>de</strong>ixar expresso o apreço a todos os professores, que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>os bancos <strong>da</strong> escola primária até às ca<strong>de</strong>iras universitárias, me aju<strong>da</strong>rama “saborear o som do saber”.Aos orientadores pelo incentivo e acompanhamento: ao ProfessorDoutor José Carlos Venâncio, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Beira Interior, cujavoz reconheço nas amplas referências que constituem este trabalho, peloseu olhar amável, crítico, atento, pon<strong>de</strong>rado e reflexivo, nos horizontes<strong>da</strong> análise permanente; ao Professor Doutor Jacinto Rodrigues, <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Porto, pela amabili<strong>da</strong><strong>de</strong> que teveem ace<strong>de</strong>r ao pedido <strong>de</strong> ler e aconselhar o presente trabalho.Aos pais, Adolfo e Fátima, meus pilares inabaláveis, que sempre meauxiliaram nas opções efectua<strong>da</strong>s. À irmã, Susana, pelo conforto e apoioconstantes. À restante família pela ternura sempre manifesta<strong>da</strong>.Para além dos que estão presentes no quotidiano, aos amigos e aoscolegas, nomea<strong>da</strong>mente à Patrice e à Antonina, pela afabili<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>leitura</strong>scríticas, incentivadoras e atentas do nosso trabalho.132007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraAo Manuel Muanza e ao fotógrafo luan<strong>de</strong>nse Pedro Bernardo pelacedência <strong>da</strong> fotografia <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>, que prefigura na capa <strong>de</strong>ste trabalho.Finalmente, ao escritor Manuel Rui, pela bon<strong>da</strong><strong>de</strong>, cordiali<strong>da</strong><strong>de</strong> esimpatia, com que nos conce<strong>de</strong>u a entrevista.14E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiAbreviaturasAA. VV.Autores VáriosArt.ArtigoOp. cit.Confer, imperativo <strong>de</strong> confero, conferirCoord.Coor<strong>de</strong>nadorEd.EdiçãoL<strong>da</strong>.Limita<strong>da</strong>Nº NúmeroOrg.OrganizaçãoOp. cit.Opus citatum (<strong>obra</strong> cita<strong>da</strong>)P. PáginaPp.PáginasS/dSem <strong>da</strong>taSegs.SeguintesVol.VolumeVsVersus152007 E-BOOK CEAUP
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiIntrodução“A na<strong>rra</strong>tiva está presente em todos os tempos,em todos os lugares, em to<strong>da</strong>s as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s,começa com a própria história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>;é fruto do génio do na<strong>rra</strong>dor ou possui emcomum com outras na<strong>rra</strong>tivas uma estruturaacessível à análise”.Roland Barthes“As nações to<strong>da</strong>s são mistérios.Ca<strong>da</strong> uma é todo o mundo a sós”.Fernando PessoaTal como o título aponta, preten<strong>de</strong> o presente trabalho investigar eproblematizar a sátira social na <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva do escritor angolano ManuelRui. Objecto <strong>de</strong> análise que, apesar dos poucos estudos efectuados,tem assumido uma importância crescente na crítica literária.As questões impõem-se à parti<strong>da</strong>: como reunir a simbiose arbórea<strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Rui? Como pautar linhas com sentido numtão vasto universo? Qual o caminho a seguir? Que passos <strong>de</strong>senharemosneste horizonte <strong>de</strong> na(<strong>rra</strong>)ção, por nós, pouco experimenta<strong>da</strong>?O repto a que ace<strong>de</strong>mos é, então, o <strong>de</strong> encontrar uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>scritae <strong>de</strong>scritiva <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, conhecer gentes, personagens, usos, costumes,hábitos, críticas e características.Inicia<strong>da</strong> a viagem, estabelecemos a nossa para<strong>da</strong> obrigatória na sátira,no humor e na ironia, revisamos conceitos e rumos. Certos <strong>de</strong> quea sátira social e o humor assumem no corpus em análise papel relevantee primordial, não <strong>de</strong>ixamos, porém, <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>r outros aspectos como a172007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira18contextualização histórica, a utopia, as personagens, linguagens, discursose simetrias entre artes.Tentamos vali<strong>da</strong>r algumas perspectivas <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>literária, mestiçando também o nosso texto com a visão interna <strong>da</strong> sociologia<strong>da</strong> literatura, nomea<strong>da</strong>mente pela presença do social na <strong>obra</strong><strong>de</strong> Manuel Rui, empregamos, <strong>de</strong>sta forma, a ficção como um <strong>da</strong>do <strong>de</strong>informação sociológica e antropológica (Dirkx: 2000) (1) , aliado, naturalmente,a aspectos <strong>de</strong> natureza formal.Para além <strong>da</strong>s fontes literárias e <strong>da</strong> bibliografia secundária, usamoscomo bússolas orientadoras as entrevistas ao autor, realiza<strong>da</strong>s por nós(entrevista anexa: 155-160) (2) e por Michel Laban (1991:709-738) (3) .Convictos <strong>de</strong> que os trabalhos sobre autores/<strong>obra</strong>s individuais, queenformam sobre a especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> escrita, <strong>de</strong>vem ser conjugadoscom uma percepção global <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> sistema literário nacional, no seuprogresso e sistematização, assim como na história que o <strong>de</strong>fine, elaboramoso enquadramento temporal do escritor.A dimensão histórica, integra<strong>da</strong> numa <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva, or<strong>de</strong>na umatopologia social e um conjunto <strong>de</strong> valores, dos quais tentamos <strong>de</strong>scobriroposições e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong>s, que estabelecem as homologias <strong>da</strong> <strong>obra</strong>.Certos <strong>de</strong> que a vivência histórica e cultural influencia qualquer escritor,inserimos, o texto no contexto. Seria inconcebível abor<strong>da</strong>r a noção<strong>de</strong> texto, sem a consi<strong>de</strong>ração do contexto, e se este contexto for o <strong>da</strong> lutapela in<strong>de</strong>pendência (4) e <strong>de</strong> implementação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia(s), esta matériaassume-se, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, como algo indispensável.De facto, a compreensão <strong>de</strong> uma suposta condição pós-colonial emAngola passa pelo estudo <strong>de</strong> tal contexto, sincrónica e diacronicamente.Daí termos reservado o primeiro ponto, intitulado “Sons <strong>da</strong> esfinge angolana”,para esta temática.No ponto dois do primeiro capítulo, com a mesma consciência <strong>de</strong> queum escritor não possui sozinho o seu significado completo, e para melhorcompreen<strong>de</strong>rmos e interpretarmos a sua <strong>obra</strong>, tentamos encontrar umDirkx, Paul, Sociologie <strong>de</strong> la litérature, Paris, Armand Colin, 2000.Realiza<strong>da</strong> a 17 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 2006, na Póvoa <strong>de</strong> Varzim.Laban, Michel, Angola – encontro com escritores, vol. II, Porto, Fun<strong>da</strong>ção Engenheiro António <strong>de</strong>Almei<strong>da</strong>, 1991.Manuel Rui foi membro activo do MPLA.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruieixo diacrónico <strong>da</strong> literatura angolana, percebendo, <strong>de</strong>sta forma, a raiz<strong>da</strong> árvore <strong>da</strong> qual fluirão os inúmeros frutos, <strong>de</strong> que a <strong>obra</strong> <strong>de</strong> ManuelRui constitui elemento saudável.Proce<strong>de</strong>mos, então, a uma breve reflexão sobre alguns dos aspectosque a<strong>de</strong>stram a literatura angolana na sua generali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e tendo comohorizonte temático a na<strong>rra</strong>tiva, intitulamos este aspecto <strong>de</strong> “Ficção na<strong>rra</strong>tivaangolana”.Por sua vez, “Visão satírica e humorística” consiste naqueles que julgamosserem os aspectos incisivos e críticos do autor à socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, através<strong>da</strong> sátira e do humor.Ao escolhermos o termo sátira, não nos estamos a referir ao géneroliterário, totalmente latino, mas àquilo que se enten<strong>de</strong> como “espíritosatírico”, e que, <strong>de</strong>sviando-nos <strong>da</strong>s controvérsias teóricas que po<strong>de</strong>rásuscitar, po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar como o lado crítico <strong>da</strong> literatura, isto é, aintenção que o escritor manifesta, em última instância, para mo<strong>de</strong>lar ealterar o mundo real e extraliterário.Ora, torna-se perfeitamente visível a crítica dos costumes sociais queas diferentes personagens retratam, quer seja indivíduo particular, querseja um tipo <strong>de</strong> governo ou estruturas e i<strong>de</strong>ais. O humor surge entãocomo forma <strong>de</strong> construção <strong>da</strong> sátira.Em “Escola do Real” não preten<strong>de</strong>mos com a nomenclatura adopta<strong>da</strong>restringir a nossa análise a uma corrente literária, mas antes ampliaros diferentes aspectos <strong>da</strong> <strong>obra</strong> do autor. O conceito escola não é, <strong>de</strong>staforma, entendido como a imitação sistemática dos processos <strong>de</strong> um mestre/teoria,mas antes como o pressuposto <strong>de</strong> um movimento geral <strong>da</strong>Arte, em que a crónica dos costumes, a sátira, o humor e a ironia se <strong>de</strong>senhamna representação crítica e analista <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma <strong>da</strong><strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>,neste caso a angolana. O chamado escritor-contexto-povo e o intuito <strong>de</strong>representar o real, (5) caricaturando as personagens, dissecando comportamentos,gestos e atitu<strong>de</strong>s, inserem Manuel Rui na linha do Realismo e<strong>de</strong> escritores como Eça <strong>de</strong> Queirós.19Hilário <strong>de</strong>staca em Manuel Rui a “plastici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> linguagem e sua aclimatização do literário, ouficção literária, o real, a que a <strong>obra</strong> reporta, surge objecto <strong>de</strong> cosmética ou mascarado suficientementequalitativo para que a <strong>leitura</strong> seja fruí<strong>da</strong> e haja uma envolvente e dúbia (subjectiva) chega<strong>da</strong> ao(s)sentido(s)”. Hilário, Fernando, <strong>Uma</strong> <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> novela Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong> <strong>de</strong> Manuel Rui, Porto, EdiçõesUniversi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fernando Pessoa, 2006, p. 123.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira“Burguesismos” foi o título escolhido para o primeiro ponto do segundocapítulo, optamos por esta <strong>de</strong>signação, em virtu<strong>de</strong> do alvo <strong>da</strong>s<strong>obra</strong>s em estudo ser a pequena-burguesia urbana, o sufixo –ismos em itálicovisa chamar a atenção para to<strong>da</strong> uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, on<strong>de</strong> o capitalismo eo socialismo (6) surgem através <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> metáforas.As razões que nos levam a seleccionar os textos (Quem me <strong>de</strong>ra seron<strong>da</strong>; Crónica <strong>de</strong> um Mujimbo e 1 Morto & os Vivos, “De 1 comba”) pren<strong>de</strong>m-secom a dicotomia nação/na<strong>rra</strong>ção. A opção pelo corpus supracitadoobe<strong>de</strong>ce ao critério <strong>de</strong> aproximação temática, assim como ao <strong>de</strong>sequência temporal (7) . Assim, tentamos analisar as <strong>obra</strong>s tendo em contaum contexto social e comportamental. Numa espécie <strong>de</strong> sátira <strong>de</strong> costumes,que tal como Manuel Rui afirma (8) , não é uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira sátira <strong>de</strong>costumes no sentido lato <strong>da</strong> expressão, mas antes uma “previsão <strong>de</strong>smarca<strong>da</strong>”(9) , <strong>de</strong> uma juntura rápi<strong>da</strong> do ponto <strong>de</strong> vista i<strong>de</strong>ológico, relaciona<strong>da</strong>com <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s concepções, atitu<strong>de</strong>s e comportamentos.Para ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s <strong>obra</strong>s analisa<strong>da</strong>s é nosso objectivo estabelecer aslinhas <strong>de</strong> força que caracterizam a análise crítica e satírica <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>e averiguar o seu grau humorístico.Do vasto elenco <strong>de</strong> personagens, <strong>de</strong>stacamos aquelas que consi<strong>de</strong>ramosparadigmáticas. Desta forma, o capítulo “Personagens e sua significação”,dividido em subcapítulos, preten<strong>de</strong> abor<strong>da</strong>r semelhanças e<strong>de</strong>ssimetrias entre as diferentes personagens, assim como distinguir tra-20p. 59.Vários são os vocábulos on<strong>de</strong> figura o sufixo (Imperialismo; Colonialismo; Marxismo, etc.). Cf.Não abordámos profun<strong>da</strong>mente a <strong>obra</strong> Regresso Adiado, embora a ela nos tenhamos referido em<strong>de</strong>terminados pontos do nosso estudo, em virtu<strong>de</strong> do corpus em análise versar o período pós-in<strong>de</strong>pendênciae, como tal, estar provido <strong>de</strong> um enquadramento histórico diferente. <strong>Na</strong>turalmente que a sátirae crítica social são uma constante ao longo <strong>de</strong>sta <strong>obra</strong> [assim como outras] e os pontos <strong>de</strong> convergêncianotórios em <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s personagens, nomea<strong>da</strong>mente entre Alvim e Feijó, por exemplo, assim comonos recursos literários utilizados. Apesar <strong>de</strong> concor<strong>da</strong>rmos com Carlos Jorge (2001:148), quando esteargumenta que o termo “pós” “usado como conceito operatório forte, permite pensar todo o campo literáriobem como o campo cultural que o envolve, no quadro amplo <strong>de</strong> um processo histórico complexo,on<strong>de</strong> o passado não é forçosamente pretérito, ence<strong>rra</strong>ndo a causa permanente, mas po<strong>de</strong>, tambémser construção do que se lhe suce<strong>de</strong>”, achamos pertinente analisar apenas as três <strong>obra</strong>s na<strong>rra</strong>tivas, queapesar <strong>de</strong> distintas e diferencia<strong>da</strong>s se aproximam quer cronológica quer tematicamente. Jorge, Carlos J.F., “Literaturas africanas, colonialismo e pós-colonialismo. Repensar o problema <strong>da</strong> relação: inevitáveiscontactos ou dominação cultural”, in Seruya, Teresa e Moniz, Maria Lin, Histórias Literárias Compara<strong>da</strong>s,Lisboa, Edições Colibri, 2001.Op. cit. Entrevista em anexo, p. 166.I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruiços <strong>da</strong> sua idiossincrasia individual e colectiva. Por conseguinte, salientamosas personagens – Diogo e Feijó; Carnaval <strong>da</strong> Vitória; as crianças efinalmente as figuras femininas abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s no corpus em estudo.No penúltimo capítulo, cujo título programático “Torre <strong>de</strong> Babel ouBabel apazigua<strong>da</strong> – Notas <strong>de</strong> um estilo” preten<strong>de</strong> metaforizar essa miscelânea<strong>de</strong> sintagmas, paradigmas e expressões, é nossa intenção <strong>de</strong>stacaro carácter inovador <strong>da</strong> linguagem utiliza<strong>da</strong> pelo escritor, oferecendouma análise dos termos linguísticos, dos vocábulos, <strong>da</strong> frase e dos sintagmas.Assim como, inferir <strong>de</strong> relações com o português-padrão.Finalmente, o capítulo “<strong>da</strong> página ao palco e à tela” almeja <strong>de</strong>senharas relações que o corpus em análise ence<strong>rra</strong> com as outras artes,nomea<strong>da</strong>mente o teatro e o cinema (10) . Preten<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>monstrar como aprópria <strong>obra</strong> do escritor incita este entrecruzamento interartes. Ou seja,a visão <strong>de</strong> cineasta e <strong>de</strong> encenador do artista <strong>da</strong> palavra, quer na <strong>de</strong>scriçãoe na<strong>rra</strong>ção, que nos permitem entrelaçar num mesmo horizontetemático som, cor e movimento, quer ain<strong>da</strong> no uso <strong>da</strong> própria linguagem,na sucessão <strong>de</strong> frases curtas e no discurso coloquial, promotores <strong>da</strong>representação.O repto fora lançado, as questões coloca<strong>da</strong>s, algumas respostas (outentativas!) estão sintetiza<strong>da</strong>s neste trabalho.2110Convém referir que, apesar <strong>da</strong> nossa referência simultânea ao teatro e ao cinema, as duas artessão, naturalmente, distintas, tal como afirma Kowzan (1975:36) “un film n´est pas crée comme un spectaclethéâtral, il ne se presente jamais comme un tout au cours du travail, il y a <strong>de</strong>s dribes <strong>de</strong> scènes, <strong>de</strong>sbouts <strong>de</strong> pellicule, et c´est le montage qui en fait une ouevre accomplie”. Kowzan, Ta<strong>de</strong>usz, Littérature etspectacle, Paris, Mouton, 1975.Não obstante o seu carácter autónomo, quer entre si, quer com as diferentes expressões artísticas,preten<strong>de</strong>mos estabelecer analogias que pensamos a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s e pertinentes.2007 E-BOOK CEAUP
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiPARTE .01232007 E-BOOK CEAUP
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiOS SONS DAESFINGE ANGOLANA“Munkundi mumbutukilianga mu mivassa I wombo,Kasi mitassa muke nu lisina limueka” (11) .Provérbio vili“Tudo no espiritual como no natural é significativo,recíproco, correspon<strong>de</strong>nte... tudo é hieroglífico... eo poeta é apenas o tradutor, o que <strong>de</strong>cifra...”Charles Bau<strong>de</strong>laire“O vento que sopra sobre África não é umvento vulgar, é um furacão”.SenghorTo<strong>da</strong> a história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong> se faz em redor <strong>de</strong> sons e palavras;somos o que os nossos antepassados nos sussu<strong>rra</strong>m através dos tempos.Nos primórdios do mundo, e ain<strong>da</strong> durante a Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>, o Homemconstruía-se pela orali<strong>da</strong><strong>de</strong>. A sua dimensão ontológica e ontogenéticapassava, intrinsecamente, por aí; quando ouvia as palavras cifra<strong>da</strong>s <strong>da</strong>esfinge, ou mesmo quando mitificava, o Homem era, porque ouvia e porqueefabulava.Ouvindo e falando, as gerações comunicavam todos os conhecimentosconquistados. Novas palavras nasciam ao ritmo alucinante dos tempos,novas áreas se expandiam, <strong>de</strong>ixando outras jazer asfixia<strong>da</strong>s.Não nos <strong>de</strong>moraremos sobre este “som” ancestral <strong>da</strong> História dopaís, que será Angola. Assim, aten<strong>de</strong>remos apenas à idiossincrasia2511“As frutas crescem sob ramos diferentes, mas estes ramos provêm duma só árvore”.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveiraproporciona<strong>da</strong> aquando <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> dos europeus, nomea<strong>da</strong>mentedos portugueses.Com efeito, os portugueses efabularam, <strong>de</strong>sejaram, alcançaram “pormares nunca <strong>da</strong>ntes navegados”, aportando em horizontes até então<strong>de</strong>sconhecidos <strong>da</strong> “velha Europa”.Os sons, o ritmo e a(s) i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>(s) <strong>de</strong>stes povos ecoavam um gritomagnético.Contudo, as palavras e o som <strong>da</strong> esfinge do africano foram subjugadospela opressão e pelas armas. Durante déca<strong>da</strong>s, os povos foram arruinados,<strong>de</strong>srespeitados, subjugados e ignorados como indivíduos.Luan<strong>da</strong> foi a primeira ci<strong>da</strong><strong>de</strong> a ser fun<strong>da</strong><strong>da</strong> pelos europeus no oci<strong>de</strong>nteafricano, Venâncio (1996a:27) esclarece-nos sobre este assunto:“primeiramente <strong>de</strong>signa<strong>da</strong> <strong>de</strong> vila e, mais tar<strong>de</strong>, em 1605, eleva<strong>da</strong>a foros <strong>de</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. A sua fun<strong>da</strong>ção <strong>de</strong>veu-se sobretudo, sem menosprezaro interesse suscitado no po<strong>de</strong>r central (Lisboa) pela hipotéticaexistência <strong>de</strong> prata no seu interior (em Cambambe), à necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>assegurar o fornecimento <strong>de</strong> escravos, tanto mais que era conhecido otráfico que comerciantes e agricultores são-tomenses exerciam nestacosta” (12) .Assim, os portugueses foram estabelecendo e alargando os “contactos”com os povos existentes (13) .Neste contexto, <strong>de</strong>vemos salientar o papel prepon<strong>de</strong>rante exercidopela Conferência <strong>de</strong> Berlim (1884-1885) (14) , que fomenta a implementaçãoefectiva dos exércitos <strong>da</strong> ocupação colonial, que conquistaram “aferro e fogo” os diferentes povos africanos.2612Venâncio, José Carlos, A Economia <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong> e Hinterland no século XVIII. Um Estudo <strong>de</strong> SociologiaHistórica, Lisboa, Editorial Estampa, 1996a.13“É assim que surgem os contactos com o Ngola, o chefe político mbundu mais importante nestaregião. Os portugueses precisaram <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um século para fazerem do Ngola um vassalo do rei doKongo, potentado localizado a norte <strong>de</strong> Ngola. Mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrotado, preservaram os portuguesesto<strong>da</strong>via o nome Ngola para <strong>de</strong>signar a região conquista<strong>da</strong>, a região luso-africana, que ficou a ser conheci<strong>da</strong>pelo reino <strong>de</strong> Angola ou ain<strong>da</strong> e paralelamente pela colónia <strong>de</strong> Angola” (i<strong>de</strong>m:27. Omitimos aparagrafação).14Gonçalves (2002:109) <strong>de</strong>staca “a Conferência <strong>de</strong> Berlim foi <strong>de</strong>terminante quanto à ocupação efectivados territórios <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> potência europeia e, consequentemente, quanto à exploração colonial, sobretudono respeitante ao recrutamento <strong>da</strong> mão-<strong>de</strong>-<strong>obra</strong>, don<strong>de</strong> resultaram os gran<strong>de</strong>s conflitos sociais”.Gonçalves, António Custódio, “Estado, Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e <strong>Na</strong>cionalismos: O caso <strong>de</strong> Angola”, in África Subsariana.Globalização e Contextos Locais, Porto, Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Porto, 2002.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiNo entanto, as vozes e o canto do povo angolano insurgiram-se, “ogrito negro” <strong>de</strong>sejava a “alforria”. Neste sentido, eram porta-vozes dopovo angolano os movimentos <strong>de</strong> libertação nacional, nomea<strong>da</strong>mente, aFNLA (Frente <strong>Na</strong>cional <strong>de</strong> Libertação <strong>de</strong> Angola), o MPLA (MovimentoPopular <strong>de</strong> Libertação <strong>de</strong> Angola) e a UNITA (União <strong>Na</strong>cional para a In<strong>de</strong>pendênciaTotal <strong>de</strong> Angola).A luta <strong>de</strong> libertação foi árdua, laboriosa e não consensual. Paraalém <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as consequências materiais e humanas, implica<strong>da</strong>s pelague<strong>rra</strong> colonial, a agravante <strong>da</strong>r-se-ia no próprio <strong>de</strong>sentendimentoentre os angolanos (15) .Ora, “o retirar âncora” do opressor assinalar-se-ia, para a posteri<strong>da</strong><strong>de</strong>,a 11 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1975, o “berço”/a te<strong>rra</strong> “mater” acolheriao seu “rebento” num caos <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição e abandono, envolto na ausência<strong>de</strong> condições e capitais, transbor<strong>da</strong>ndo instabili<strong>da</strong><strong>de</strong> económica epolítica, dispondo <strong>de</strong> estruturas sociais <strong>de</strong>ficientes – assim nascia umpaís: Angola.A in<strong>de</strong>pendência <strong>da</strong> República Popular <strong>de</strong> Angola (RPA) foi proclama<strong>da</strong>pelo MPLA (16) que passava a dirigir o novo Estado angolano, passando<strong>de</strong> movimento <strong>de</strong> libertação a partido-Estado, <strong>de</strong>tendo os po<strong>de</strong>reslegislativo, executivo e judicial (17) .No entanto, passa<strong>da</strong>s algumas déca<strong>da</strong>s, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a in<strong>de</strong>pendência, o paísviveu um legado <strong>de</strong> dor, gue<strong>rra</strong>, fome, carência, angústia e corrupção.Apesar <strong>de</strong> terem assinado os “Acordos <strong>de</strong> Alvor” (18) (Janeiro <strong>de</strong> 1975),a in<strong>de</strong>pendência seria proclama<strong>da</strong> em plena gue<strong>rra</strong> civil e com a presençaefectiva <strong>de</strong> dois exércitos estrangeiros: o sul-africano (com ligações à15“A luta pelo po<strong>de</strong>r travava-se também entre os diversos movimentos, que <strong>de</strong>fendiam a libertação<strong>de</strong> Angola, até internamente, no seio dos próprios movimentos, disputava-se o po<strong>de</strong>r”. Schubert, Benedict,A gue<strong>rra</strong> e as Igrejas – Angola 1961-1991, Basel P. Schelettwein Publishing Switerland, 2000, p. 73.16“As tropas do MPLA expulsam as <strong>de</strong>mais <strong>da</strong> capital do país, passando a haver ingerência estrangeirano conflito angolano, a partir <strong>de</strong> Setembro <strong>de</strong> 1975: tropas zairenses inva<strong>de</strong>m Angola a partir doNorte e tropas sul-africanas a partir do Sul (...). O MPLA recorre ao auxílio <strong>da</strong>s tropas cubanas, a partir <strong>de</strong>Outubro <strong>de</strong> 1975”. Carvalho, Paulo, Angola, Quanto Tempo Falta Para Amanhã? – reflexões sobre as CrisesPolítica, Económica e Social, Oeiras, Celta Editores, 2002, p. 27.17A FNLA e a UNITA proclamaram a in<strong>de</strong>pendência <strong>da</strong> República Democrática <strong>de</strong> Angola (RDA) noHuambo, contudo enquanto o governo do MPLA foi reconhecido internacionalmente, o governo FNLA/UNITA não sobreviveria mais do que um dia e não receberia consagração internacional. A UNITA, logo nodia imediato, <strong>de</strong>marcava-se <strong>da</strong> posição anterior. I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m.18Acordo <strong>de</strong> cessar fogo estabelecido entre as tropas portuguesas e os três movimentos <strong>de</strong> libertação,com vista à in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> Angola.272007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira28UNITA) e o zairense (apoiante <strong>da</strong> FNLA), que alvejavam o país ao ladodos respectivos movimentos <strong>de</strong> libertação.O sistema <strong>de</strong> Partido Único caracterizaria a Angola pós-in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte(19) . A instauração <strong>de</strong>ste mesmo sistema, “bebendo” <strong>da</strong> fonte marxistaleninista, vigorava num país que se via envolto em tensões internas enuma gue<strong>rra</strong> que parecia interminável.Paulo <strong>de</strong> Carvalho (2002) <strong>de</strong>staca os dois períodos marcantes, após ain<strong>de</strong>pendência do país, ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les com sistemas político-económicosdistintos: aquele que vigora <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1975 a Setembro <strong>de</strong> 1992 (IRepública) e o que se estabelece a partir <strong>de</strong>ssa <strong>da</strong>ta (II República), comum sistema multipartidário e ténues mu<strong>da</strong>nças no sistema económicocom vista à sua liberalização.Neste sentido, convém <strong>de</strong>stacar a importância <strong>da</strong> que<strong>da</strong> do muro <strong>de</strong>Berlim, em Novembro <strong>de</strong> 1989, anunciando o final <strong>da</strong> Gue<strong>rra</strong> Fria. EmAngola, iniciavam-se, <strong>de</strong>sta forma, as conversações, que culminariam a31 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 1991 com a assinatura dos Acordos <strong>de</strong> Bicesse, <strong>de</strong>finindoprincípios para o cessar-fogo e a realização <strong>de</strong> eleições livres.Concomitantemente, em Setembro <strong>de</strong> 1992 realizar-se-iam as primeiraseleições legislativas e presi<strong>de</strong>nciais em Angola. As portas paraa <strong>de</strong>mocracia abriam-se neste momento. To<strong>da</strong>via, a nova adopção <strong>da</strong>constituição multipartidária (20) e <strong>de</strong> eleições livres fracassaria. A UNITA,per<strong>de</strong>ndo a eleição nas urnas, não aceitou o voto dos angolanos, retomandoa gue<strong>rra</strong>.Entra-se assim na segun<strong>da</strong> etapa do conflito angolano, que se caracterizapela oposição <strong>de</strong> um partido, por via <strong>da</strong>s armas (a UNITA), aogoverno eleito <strong>de</strong> Angola (MPLA/PT).O país suportaria (?) ciclos <strong>de</strong> gue<strong>rra</strong>s e <strong>de</strong> colapsos sucessivos <strong>de</strong>tentativas <strong>de</strong> reconciliação.Refira-se que apesar do conflito não ser mais “internacional”, talfacto não significa que tenha <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> haver interesses no mesmo. Tal19A 10 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1975 o Comité Central do Movimento Popular <strong>de</strong> Angola aprovara a LeiConstitucional <strong>da</strong> República Popular <strong>de</strong> Angola (artº. 1: RPA é um estado soberano, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong>mocrático;artº. 2: Ao MPLA seu legítimo representante cabe a direcção política, económica e social <strong>da</strong><strong>Na</strong>ção; art.º 3: A RPA é um Estado unitário e indivisível ...).20O parlamento angolano havia aprovado uma nova Constituição, que consagrava Angola como umsistema <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia multipartidária.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruicomo Carvalho (2002:35) aponta: “mantêm-se interesses estrangeirosno prolongar do conflito, nomea<strong>da</strong>mente interesses económicos (petróleo,diamantes, para além <strong>de</strong> armamento e material logístico) e políticos(as eleições angolanas foram ganhas pelo partido que anteriormenteperfilhava a i<strong>de</strong>ologia marxista)”.As consequências do conflito foram ate<strong>rra</strong>doras, só <strong>de</strong> 1992 a 1994as estatísticas contam: “mais <strong>de</strong> 300 mil mortos, pessoas <strong>de</strong>sloca<strong>da</strong>s<strong>da</strong>s suas zonas tradicionais <strong>de</strong> produção, 300 mil refugiados em paísesvizinhos, cerca <strong>de</strong> 200 mil mutilados <strong>de</strong> gue<strong>rra</strong>, milhares <strong>de</strong> famílias<strong>de</strong>sagrega<strong>da</strong>s, <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> cinco capitais <strong>de</strong> província, <strong>de</strong> inúmerasinfra-estruturas tais como pontes, estra<strong>da</strong>s, fábricas, hospitais, escolas,etc.” (Baptista: 1996:10) (21) .Diversos foram os acordos que se estabeleceram entre a UNITA e oMPLA, nomea<strong>da</strong>mente em 1994, quando, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> prolonga<strong>da</strong>s negociações,tendo como mediador a ONU, as duas partes (UNITA e MPLA)chegam a acordo em Lusaca (22) , Zâmbia, admitindo uma partilha <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r político, assim como um futuro Governo <strong>de</strong> União e Reconciliação<strong>Na</strong>cional (GURN). A esperança <strong>de</strong> paz e construção nacional reencontrava-senos olhares dos angolanos.To<strong>da</strong>via, em 1998 o diálogo seria interrompido e a gue<strong>rra</strong> voltaria aeclodir.Pepetela (1995:141) (23) fala-nos <strong>de</strong> um amanhã que teima em nãochegar: “ontem era a noite escura do colonialismo, hoje é o sofrimento<strong>da</strong> gue<strong>rra</strong>, mas amanhã será o paraíso. Um amanhã que nunca vem, umhoje eterno. Tão eterno que o povo esquece o passado e diz ontem eramelhor que hoje”.Opressões, pressões, gue<strong>rra</strong> civil, <strong>de</strong>sintegração social e física, sofrimento,<strong>de</strong>slocações <strong>da</strong> população, <strong>da</strong>nificação <strong>de</strong> infra-estruturas eproprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s pintavam o cenário do país.2921AA. VV., Les perspectives <strong>de</strong> reconstruction <strong>de</strong> l´economie <strong>de</strong> l´Angola, Colloque <strong>de</strong> Paris : 6 et 7 <strong>de</strong>Juin 1996, Paris, Éditions du Centre Culturel Angolais, 1996, p. 10.22“O texto acor<strong>da</strong>do em Lusaca seguia, na sua concepção global, os <strong>de</strong> Alvor e Bicesse, isto é, tratava-se,no fundo, <strong>da</strong> formalização <strong>de</strong> um cessar-fogo, como condição <strong>de</strong> uma plataforma política <strong>de</strong> reconciliaçãonacional entre os anteriores beligerantes”. Correia, Pedro <strong>de</strong> Pezarat, Angola: do Alvor a Lusaka,Lisboa, Hugin Editores L<strong>da</strong>, 1996, p. 150.23Pepetela, Geração <strong>da</strong> Utopia, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1995.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira30Os problemas <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser problemas para serem normas: <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong>,<strong>de</strong>pendência dos rendimentos do petróleo, que<strong>da</strong> do Produto<strong>Na</strong>cional Bruto (PNB), mercado paralelo, dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> agricultura,transportes, comunicações, electrici<strong>da</strong><strong>de</strong> e infra-estruturas diversas,aumento <strong>da</strong> concentração urbana, do fosso entre ricos e pobres, doanalfabetismo, dilapi<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s riquezas, eleva<strong>da</strong>s taxas <strong>de</strong> mortali<strong>da</strong><strong>de</strong>,precarie<strong>da</strong><strong>de</strong> no sistema educativo e <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>, diminuição <strong>da</strong> produçãoalimentar, dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> no acesso a água potável, pobreza, fome, <strong>de</strong>struiçãoambiental e <strong>de</strong>semprego.Um outro aspecto preocupante seria o <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> do sector primário.A <strong>de</strong>sarticulação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> rural, em consequência <strong>da</strong>s diferentesconvulsões que assolaram o país, administrou estas populações parauma situação <strong>de</strong> atraso e dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>.No que concerne às explorações dos recursos naturais, nomea<strong>da</strong>mentedo sector petrolífero, verificamos que, após a in<strong>de</strong>pendência, aárea mereceu uma maior consi<strong>de</strong>ração “para que constituísse o suporte<strong>da</strong> economia nacional”. <strong>Na</strong>s teses do 2º Congresso do MPLA, refere-seser “principal fonte <strong>de</strong> financiamento e <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> economiado País, o qual <strong>de</strong>veria ser objecto <strong>de</strong> atenção e priori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>vido aopapel <strong>de</strong>cisivo que lhe cabe no contexto nacional” (24) .E assim foi, “o sector petrolífero contribui com 80% <strong>da</strong> receita do governonos anos 90” (Steinberg et Bowen:s/d) (25) . Empresas americanas,belgas, francesas, italianas e brasileiras assinaram contratos <strong>de</strong> extracçãoe produção com a empresa petrolífera estatal “Sonangol”, instalandouma “economia <strong>de</strong> enclave”, distinguindo-se esta no contexto económico(Schubert: 2000:176) (26) .Contudo, os rendimentos provenientes do petróleo não favorecerama economia como um todo. Angola não investiu na produção própria eapresentava uma balança <strong>de</strong> importações bastante “pesa<strong>da</strong>”, o governo24Op. cit. Caley, Cornélio, Os petróleos e a problemática do <strong>de</strong>senvolvimento em Angola: <strong>Uma</strong> visãohistórico-económica (1996) Lisboa, p. 38.25Steinberg, Douglas et Bowen, Nina, “A segurança alimentar e seus <strong>de</strong>safios em Angola pós-conflito”,in www.sarpn.org.za/documents/d0000222/steinberg-p/in<strong>de</strong>x.php. Acesso em Abril <strong>de</strong> 2004.26Em Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo, a <strong>da</strong><strong>da</strong> altura, Feijó, ridicularizado por uma cena <strong>de</strong> trânsito, afirma“O tipo <strong>de</strong>ve ser francês <strong>da</strong>s petrolíferas (...) <strong>Na</strong> te<strong>rra</strong> <strong>de</strong>le não faz isto. Levam-nos os dólares e humilham--nos utilizando as nossas miú<strong>da</strong>s” (p. 13).E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruialegava que a gue<strong>rra</strong> não permitia as condições necessárias para a produção.Desta forma, Angola fica quase <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>da</strong>s divisas resultantes<strong>de</strong>ste recurso.A necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver, paralelamente, as outras áreas,como os serviços nacionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, transportes, habitação, alimentaçãoe outros, evitando “efeitos perversos” (Caley: 1996), não foipreconiza<strong>da</strong>.Segundo Valente (2000:233) (27) , a opção socialista conduziu o país“a um lento processo <strong>de</strong> toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões e <strong>de</strong> implementação <strong>da</strong>spolíticas, introduziu gran<strong>de</strong> rigi<strong>de</strong>z, complexi<strong>da</strong><strong>de</strong>, e distorções nagestão económica”.Assim, a entra<strong>da</strong> no sistema <strong>da</strong> II República (28) <strong>da</strong>r-se-á em condiçõesbastante frágeis, com uma eleva<strong>da</strong> dívi<strong>da</strong> externa: “para além <strong>da</strong> <strong>de</strong>pressão,<strong>de</strong> uma inflação prematura e <strong>de</strong> um excesso <strong>de</strong> procura, criou-seo costume <strong>de</strong> financiar o défice orçamental através <strong>de</strong> um instrumentoinflacionário – a emissão <strong>de</strong> moe<strong>da</strong>” (Carvalho: 2002:72).O valor <strong>da</strong>s importações exce<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ravelmente as exportaçõese, concomitantemente, ocorre um agravamento <strong>da</strong>s pressões inflacionáriase a diminuição do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> compra <strong>da</strong> moe<strong>da</strong>.Por sua vez, o aumento <strong>da</strong> população urbana, tema amplamentetratado pelos estudiosos (Rela: 1992; Rivero: 2001; Venâncio: 2000),atinge valores elevadíssimos: “em 1970, as áreas urbanas tinham 15%<strong>da</strong> população; nos anos 90 essa percentagem subiu a estimados 50%”(Steinberg et Bowen), sendo que a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong> se assume como o<strong>de</strong>stino <strong>de</strong> eleição.Assim, sob a pressão do fluxo migratório gerado pela gue<strong>rra</strong> e pelasua própria dinâmica <strong>de</strong> crescimento populacional, num cenário assinaladopelo uso <strong>de</strong>ficiente e pela sobre-utilização do equipamento socialcitadino “e perante a ausência <strong>de</strong> uma política urbana orienta<strong>da</strong> paraa manutenção e crescimento <strong>da</strong>s infra-estruturas urbanas, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>Luan<strong>da</strong> cresceu explosivamente, crescimento acelerado que transformoua capital angolana num centro urbano com características muito3127Valente, Maria I<strong>da</strong>lina <strong>de</strong> Oliveira, “Expectativas e reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s: que futuro?” in Carvalho, Adélia [etalli] Angola a festa e o luto, 25 anos <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência, Aliparça, Vega, 2000.28Passa-se <strong>de</strong> uma economia socialista para uma economia <strong>de</strong> mercado.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveirasemelhantes às que i<strong>de</strong>ntificam as gran<strong>de</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> África ao Sul doSara” (29) (Lopes:2000:104) (30) .Embora se tenha registado, a partir <strong>de</strong> 2002, um regresso <strong>da</strong>s pessoasinternamente <strong>de</strong>sloca<strong>da</strong>s (IDPs) (31) aos seus lugares <strong>de</strong> origem, estesfazem-no sem as condições básicas necessárias. <strong>Na</strong> maioria <strong>da</strong>s áreas, osserviços quase não existem, inclusive água, serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, escolas ouadministração civil.De facto, a condição sine qua non para o <strong>de</strong>senvolvimento só seriaalcança<strong>da</strong> a 4 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 2002, nesta altura o país conhece o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>irosignificado do vocábulo paz, fruto dos entendimentos <strong>de</strong> Luena.Com efeito, <strong>de</strong> 1975 a 2002, o território viveu o seu dia-a-dia com osom interminável <strong>da</strong> gue<strong>rra</strong>: <strong>de</strong> angolanos contra angolanos e <strong>de</strong> interessesestrangeiros diversos.Depois <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> colonização, trinta anos <strong>de</strong> gue<strong>rra</strong> civilpós-colonial, uma corrupção vigente, <strong>de</strong>ver-se-á aten<strong>de</strong>r às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>sbásicas, reais e necessárias <strong>da</strong>s populações, escrever no livro <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong><strong>de</strong>uma nova História/estória <strong>de</strong> esperança.Sabemos muito bem que a História Africana não começou no séculoXV, nem muito menos em 1884, o mosaico já existia, o arco-íris africanojá possuía as suas tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>s próprias, que, infelizmente, os europeusnão souberam respeitar.Durante anos, as algemas <strong>da</strong> opressão impeliram o país para o lugar<strong>de</strong> fundo no <strong>de</strong>senvolvimento mundial.Actualmente, as questões que se colocam são diversas: será a utopialibertária <strong>de</strong> que Manuel Rui (1992) nos fala em Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>3229Macharia (Op. cit. Lopes: 2000: 104) i<strong>de</strong>ntifica os traços problemáticos <strong>de</strong>stas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s: “eleva<strong>da</strong>staxas <strong>de</strong> crescimento populacional, informalização, sobre-urbanização, estagnação económica, níveiselevados <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego e subemprego, proliferação dos assentamentos informais não planeados, ausênciae <strong>de</strong>ficiência <strong>de</strong> infra-estruturas e equipamentos sociais, sistemas <strong>de</strong> transportes e comunicaçõesinsuficientes e ineficientes, congestionamento do tráfego, níveis acentuados <strong>de</strong> poluição, ruralização dosmodos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> suburbanos, etc”. Lopes, Carlos Manuel Mira Godinho F., “Luan<strong>da</strong>, Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> Informal? Estudo<strong>de</strong> caso sobre o bairro Rocha Pinto”, in Actas do VI Congresso Luso-Afro-Brasileiro <strong>de</strong> Ciências Sociais.As Ciências Sociais nos Espaços <strong>de</strong> Língua Portuguesa: Balanços e <strong>de</strong>safios, Vol. I, Porto, Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Porto, 2000.30Lopes, Carlos Manuel Mira Godinho F., “Luan<strong>da</strong>, Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> Informal? Estudo <strong>de</strong> caso sobre o bairroRocha Pinto”, in Actas do VI Congresso Luso-Afro-Brasileiro <strong>de</strong> Ciências Sociais. As Ciências Sociais nosEspaços <strong>de</strong> Língua Portuguesa: Balanços e <strong>de</strong>safios, Vol. I, Porto, Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> doPorto, 2000.31Op. cit. Steinberg et Bowen (s/d).E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruiexequível? Ou será esta mera espuma esvaneci<strong>da</strong>? El Dorado procurado,mas não alcançado? Sonho ilusório? Reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pesa<strong>de</strong>lo? Po<strong>de</strong>mosver a Sara e o Sábio, <strong>de</strong>scritos por Pepetela (1992), na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana?Conseguirão os angolanos alcançar a utopia do <strong>de</strong>senvolvimento?Ou este constituir-se-á como um mito ilusório?A História respon<strong>de</strong>r-nos-á!332007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraFICÇÃO NARRATIVAANGOLANA“Hay hombres que luchan un diay son buenos.Hay otros que luchan un añoy son mejores.Hay quienes luchan muchos anõsy son muy buenos.Pero hay los que luchan to<strong>da</strong> la vi<strong>da</strong>:esos son los imprescindibles.”Bertolt Brecht“Um conjunto <strong>de</strong> <strong>obra</strong>s literárias <strong>da</strong> mesma línguasó se institucionaliza em conceito <strong>de</strong> literatura,quando liga<strong>da</strong>s pelo mesmo <strong>de</strong>nominador comumque é o sentimento nacional.”Eugénio Ferreira“O tigre não tem que provar a sua tigritu<strong>de</strong>tem é que saltar.”Wole Soyinka34A literatura angolana po<strong>de</strong> orgulhar-se <strong>de</strong> ter produzido valores imprescindíveisque se tornam referências inevitáveis aquando <strong>da</strong> análise<strong>da</strong>s literaturas africanas. Maravilhosos portos se <strong>de</strong>scobrem no imaginárioafricano e na expansão <strong>da</strong> língua e <strong>da</strong> cultura.Não nos <strong>de</strong>moraremos em polémica sobre a sua origem, se esta começoucom a publicação <strong>de</strong> História geral <strong>da</strong>s gue<strong>rra</strong>s angolanas (1681)<strong>de</strong> Oliveira Cadornega (32) , ou em 1849, com a publicação <strong>de</strong> Espontanei-32Cf. Venâncio, José Carlos, <strong>Uma</strong> perspectiva etnológica <strong>da</strong> literatura angolana, Lisboa, Ulmeiro,1993 [1987].E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Rui<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> Minha Alma (33) , ou ain<strong>da</strong> em 1950, com a Mensagem. Tal nãonos parece significativo para o nosso estudo. Surge, porém, a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> constatarmos, neste momento do nosso trabalho, o evoluir <strong>da</strong>literatura angolana, a fim <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>rmos aquele que é o mar actual <strong>de</strong>um historial autónomo, vivo, crítico e dinâmico.Neste contexto, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> mencionar o papel exercidopelos jornais (34) e revistas, nomea<strong>da</strong>mente pela sua contribuição para o<strong>de</strong>senvolvimento intelectual <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e criação <strong>de</strong> uma literaturaprópria. Joaquim Dias Cor<strong>de</strong>iro <strong>da</strong> Matta foi, com efeito, um dos nomesmais sonantes.A literatura angolana construiu-se, progressivamente, sob o signo doanseio <strong>de</strong> libertação, do qual o processo <strong>de</strong> consciencialização literáriafoi voz imperante, naturalmente que este processo se foi intensificando,a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 40, com a Geração <strong>da</strong> Mensagem (35) , e, posteriormente,com a Geração <strong>da</strong> Cultura (36) . Influenciados pelo mo<strong>de</strong>rnism<strong>obra</strong>sileiro (37) , pelo movimento <strong>da</strong> “Clari<strong>da</strong><strong>de</strong>” em Cabo Ver<strong>de</strong> e pela33Escrito por José <strong>da</strong> Aguiar e Silva Maia Ferreira, mestiço luan<strong>de</strong>nse.34Através <strong>da</strong> criação do Boletim Oficial, em 1845, foram difundi<strong>da</strong>s as primeiras criações <strong>de</strong> europeusradicados e intelectuais negros. A este seguiu-se uma série <strong>de</strong> Semanários, embora <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> efémera,A Civilização <strong>da</strong> África Portuguesa (1866); O Comércio <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong> (1867); o Mercantil (1870); O Cruzeirodo Sul (1873); Jornal <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong> (1878). Retenha-se ain<strong>da</strong> a <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> 1881 como aquela que dá conta doaparecimento do primeiro jornal <strong>de</strong> africanos, O Echo <strong>de</strong> Angola, outros seguem o exemplo, escritos tantoem quimbundo como em português: O Futuro <strong>de</strong> Angola (1882), O Farol do Povo (1883), Serão (1986) OArauto Africano (1889), etc. Em 1902, sob a direcção <strong>de</strong> Paixão Franco seria publicado o primeiro dosapenas dois números <strong>de</strong> Luz e Crença – colectânea <strong>de</strong> ensaios literários; em 1907 surge o Angolense. Cf.Oliveira, Mário António Fernan<strong>de</strong>s, A Formação <strong>da</strong> Literatura Angolana (1851-1950), Lisboa, Imprensa<strong>Na</strong>cional Casa <strong>da</strong> Moe<strong>da</strong>, 1997.Como revistas <strong>de</strong>stacamos A Ilustração <strong>de</strong> Angola; Angola; Costa Negra (apesar <strong>da</strong> sua curta existência<strong>de</strong> três meses, foi a primeira <strong>de</strong> cariz assumi<strong>da</strong>mente neo-realista que se publicou em Angola); Culturae Mensagem. Cf. Soares, Francisco, Notícia <strong>da</strong> Literatura angolana, Lisboa, Imprensa <strong>Na</strong>cional Casa <strong>da</strong>Moe<strong>da</strong>, 2001.Segundo Nenhone (2002) “estamos aqui em presença <strong>de</strong> um jornalismo que revela já uma profun<strong>da</strong>preocupação com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> social do país e as injustiças cometi<strong>da</strong>s pelos colonialistas. É nessa alturae nesses órgãos <strong>de</strong> imprensa que são publicados os primeiros trabalhos sobre questões etnográficas, linguísticas,antropológicas e históricas”. Nehone, Ro<strong>de</strong>rick, “Literatura e po<strong>de</strong>r político”, in http://www.uea-angola.org, 2002. Acesso em Março <strong>de</strong> 2006.35Soares (2000:186) argumenta que “a influência do regionalismo nor<strong>de</strong>stino, a par <strong>da</strong> influência doneo-realismo português, <strong>de</strong>terminam bem mais do que a negritu<strong>de</strong>, a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural <strong>da</strong> Mensagem”.36As revistas Mensagem e Cultura, bem como o boletim Mensagem <strong>da</strong> CEI (Casa <strong>de</strong> Estu<strong>da</strong>ntes do Império),revelaram poetas e contistas, <strong>de</strong>fensores <strong>de</strong> um programa cultural e literário em prol do nacional.37Mário António F. Oliveira (1979) refere-se às influências <strong>da</strong> “Literatura Brasileira sobre as LiteraturasPortuguesas do Atlântico Tropical”. Oliveira, Mário António, Reler África, Coimbra, Instituto <strong>de</strong>Antropologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra, 1979, pp. 233-291.352007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraNegritu<strong>de</strong> em França (38) , utilizam a função poética <strong>da</strong> escrita, <strong>de</strong> índolesocial, confluindo-a com a cultural i<strong>de</strong>ológica. Tendo como ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong>a linguagem celebrativa, numa “Voz igual” a poesia ia construindoa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que “a pátria se vinculava à natureza e à cultura” (InocênciaMata: 1997: 306) (39) .Neste universo <strong>de</strong> escrita, urge mencionar o carácter <strong>de</strong>slumbranteque as inúmeras folhas, que constituem esta literatura, assumem paraqualquer leitor e crítico.Neste sentido, diversos são aqueles que se associam a este mar <strong>de</strong>batalhas pela autonomia <strong>de</strong> uma ficção angolana, em que a voz e o eupresente é a do filho <strong>da</strong> te<strong>rra</strong>. Por uma questão metodológica, cingir-nos--emos àqueles que pintam sinais <strong>da</strong> sua pátria, dos seus anseios, dúvi<strong>da</strong>s,angústias, imaginações e conquistas na e pela ficção na<strong>rra</strong>tiva.Em 1935 (40) , o romance <strong>de</strong> António <strong>de</strong> Assis Júnior, O Segredo <strong>da</strong>Morta –Romance <strong>de</strong> Costumes Angolanos (41) , tendo como temática o sincretismocultural, representando uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> transição entre oséculo XIX e o século XX, numa vivência aculturante, patenteou, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>logo, a autonomia <strong>de</strong> uma ficção literária mo<strong>de</strong>rna. Rico em informaçõesetnológicas, transcrito num estilo híbrido (<strong>de</strong> provérbios e adágiosem quimbundo), a crítica enfatizaria a sua forte angolani<strong>da</strong><strong>de</strong> (42) .3638Influenciados por Senghor e Césaire, ecoaram as vozes <strong>de</strong> Richard Wright, Countee Cullen, LangstonHughes, Nicolas Guillén, os quais influenciam, por sua vez, nomes como o angolano Mário Pinto <strong>de</strong>Andra<strong>de</strong> e o são-tomense Francisco José Tenreiro.39Tal como refere Carlos Ervedosa: “A literatura angolana começa, finalmente, a <strong>da</strong>r os seus primeirosfrutos em liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, tal como o imbon<strong>de</strong>iro secular que, findos os anos <strong>de</strong> seca, se prepara, emplena floração, para <strong>da</strong>r as suas mais belas e saborosas múkuas”. Everdosa, Carlos, Roteiro <strong>da</strong> LiteraturaAngolana. Luan<strong>da</strong>, U.E.A.,s/d, 4ªed.40Embora tenha sido publica<strong>da</strong> em 1929 nos folhetins do jornal A Vanguar<strong>da</strong>, seria reedita<strong>da</strong> emlivro, em 1935.41Segundo as palavras <strong>da</strong> “Advertência” do próprio autor, a <strong>obra</strong> seria <strong>de</strong>lega<strong>da</strong> à <strong>leitura</strong> <strong>de</strong> todosos “pretos e brancos” que se “interessam pelo conhecimento <strong>da</strong>s coisas <strong>da</strong> te<strong>rra</strong>... A vi<strong>da</strong> do angolense quea civilização totalmente não obliterou – aquela civilização que se lhe impôs mais por sugestão e medodo que por persuasão e raciocínio – vivendo, ao seu modo e educando-se conforme os recursos ao seualcance...”. Soares (2001) consi<strong>de</strong>ra a sociabilização do romance pelo “significativo uso <strong>da</strong> linguagem doscrioulos <strong>da</strong> época. Soares, Francisco, op. cit. p. 139.42Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> utiliza o termo numa tentativa que visa opor o genuinamente angolano a umaportugali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> carácter imperialista e colonizador. Francisco Salinas Portugal <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que o vocábulopermite a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e a sua expressão, englobando as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s integrativas <strong>da</strong>socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana naquilo que Malinowski <strong>de</strong>signa por cultura. Op. cit. Venâncio, 1993[1987].E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiCastro Soromenho (43) escreve, fruto <strong>da</strong> sua coexistência e aprendizagemno sertão angolano, Raja<strong>da</strong> e outras histórias e Calen<strong>da</strong>. Aos contos enovelas seguem-se os romances Noite <strong>de</strong> angústia, Homens sem caminho,Te<strong>rra</strong> morta, Viragem e A Chaga (44) . Em inúmeras páginas, confrontam--se o negro e o branco, colonizados e colonizadores. On<strong>de</strong> o testemunhoprincipal será o <strong>de</strong> cativeiro existencial do homem negro.Um outro nome ganha relevo no panorama literário angolano – ÓscarRibas (45) , com a publicação <strong>de</strong> Nuvens que passam (1927), Uanga (1950),embora os louvores mais críticos versem Ecos <strong>da</strong> Minha Te<strong>rra</strong> (1952).Os afluentes <strong>de</strong>ste rio ficcional conheciam ain<strong>da</strong> Domingos Van--Dúnem, A Praga (1947) (46) , Agostinho Neto, Náusea (1952) e AntónioJacinto, Vovô Bartolomeu (1979) (47) .Se António Jacinto, com o seu conto Vovô Bartolomeu, manifesta a pardo respeito aos “mais velhos”, típico <strong>da</strong> tradição africana, a importância<strong>da</strong> juventu<strong>de</strong>, para alterar o estado <strong>de</strong> coisas que tem <strong>de</strong> ser suplantado, afavor <strong>de</strong> novas perspectivas (48) , também Luandino Vieira surge como referêncianesta literatura <strong>de</strong> resistência. A ficção <strong>de</strong> Luandino versa o tempohistórico <strong>da</strong> gue<strong>rra</strong> <strong>da</strong> libertação, num espaço <strong>de</strong> musseques <strong>de</strong> condiçõesprecárias. As suas personagens seriam pessoas do povo, na práticado quotidiano. Com uma escrita transgressiva <strong>da</strong> norma do português,constitui um marco na literatura angolana, pelas mu<strong>da</strong>nças que opera. Arecusa <strong>da</strong> norma <strong>da</strong> língua portuguesa, <strong>da</strong> qual se serve ao lado do quim-43<strong>Na</strong>tural <strong>de</strong> Moçambique, tornou-se angolano <strong>de</strong> vivência.44“Trata o particular que, se interpenetrando em vários planos, vai-se universalizando. Se o interessesociológico <strong>de</strong> Te<strong>rra</strong> Morta e <strong>de</strong> A Chaga talvez seja maior, na medi<strong>da</strong> em que trata com maior atençãodos problemas dos comerciantes, dos mestiços e dos negros, segundo os vários graus <strong>de</strong> integração noseio <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> colonial, em Viragem, com pincela<strong>da</strong>s fortes, nos dá as linhas mestras <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> dos funcionáriosadministrativos”. Mourão, Fernando Augusto Albuquerque, A Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Angolana através <strong>da</strong>Literatura, São Paulo, Editora Ática, 1978, p. 113.45“Ficcionista e colector <strong>de</strong> peças tradicionais”. Soares, Francisco, op. cit. p. 143.46Publicou ain<strong>da</strong> <strong>Uma</strong> História Singular; Milonga, Dibundu e Kuluka.47António Jacinto e Agostinho Neto salientar-se-ão, sobretudo, na poesia, nomea<strong>da</strong>mente no movimentoliterário “Vamos Descobrir Angola!”. Estes dois poetas, assim como Viriato <strong>da</strong> Cruz e LuandinoVieira, teriam influência inegável na escrita <strong>de</strong> Manuel Rui, nomea<strong>da</strong>mente pelo papel que <strong>de</strong>sempenharamo humor e a ironia, através <strong>de</strong> processos que sustentavam estilisticamente a sátira mor<strong>da</strong>z, a caricaturae o jogo <strong>de</strong> palavras <strong>de</strong>nunciadores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> colonial pequeno-burguesa, naturalmente quealgumas temáticas, don<strong>de</strong> salientamos a <strong>da</strong> infância como tempo <strong>de</strong> justiça e igual<strong>da</strong><strong>de</strong>, assim como o uso<strong>de</strong> uma linguagem própria e distinta do português-padrão europeu, seriam retoma<strong>da</strong>s por Manuel Rui.48Tal temática é também visível na <strong>obra</strong> <strong>de</strong> Manuel Rui.372007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveirabundo (49) , personifica a recusa <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo i<strong>de</strong>ológico <strong>de</strong> colonização.A ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e a infância (50) , Luuan<strong>da</strong>, Nós, os do Makulusu, João Vêncio e osseus amores são alguns dos exemplos <strong>da</strong> vasta <strong>obra</strong> <strong>de</strong>ste prosador.Costa Andra<strong>de</strong>, por exemplo, fará literatura <strong>da</strong>s injustiças sociais,privilegiando o tema do trabalho forçado, do contratado, basta atentarna <strong>obra</strong> Estórias <strong>de</strong> contratados.Muitos outros autores completam o quadro posterior <strong>da</strong> na<strong>rra</strong>tivaficcional angolana (51) , registamos apenas alguns dos afluentes <strong>de</strong>ste rio,que culmina numa “foz” <strong>de</strong> histórias. Pelos mares <strong>da</strong> literatura angolanaobservamos a História, as peripécias, as paródias, as expressões idiomáticas,o mundo rural e urbano, a família, a orali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a sátira, a originali<strong>da</strong><strong>de</strong>,as tradições e as caricaturas, estes aspectos logram níveis <strong>de</strong>elaboração estética dos diversos escritores angolanos.Esta excursão pela literatura angolana leva-nos a afirmar com Maimona(2000:39) (52) : “a literatura (angolana) faz-se sob o signo <strong>de</strong> inovaçãoque nos <strong>de</strong>ixa na memória a intenção <strong>de</strong> uma expressão individual,com significativos benefícios para o nosso panorama literário”.Numa fase inicial (53) , encontramos uma na<strong>rra</strong>tiva “engajé” (54) , excessivamenteliga<strong>da</strong> a temas literários marcados pela i<strong>de</strong>ologia política (55) .A recusa <strong>da</strong>s instituições e significações coloniais e pós-coloniais. A palavraé então acção.Contudo, a i<strong>de</strong>ologia libertária revelava-se pouco dinâmica. Atente-seem Mayombe, que, apesar <strong>de</strong> escrito em 1971, só seria publicadoem 1980. Seguem-se Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong> (1982), <strong>de</strong> Manuel Rui, Os3849Através do português dialectizado, funcionando como um código <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação.50“A infância é uma utopia simbolizando o tempo <strong>da</strong> igual<strong>da</strong><strong>de</strong>, do anti-racismo, <strong>da</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>”.Venâncio, 1993 [1987], op. cit. p. 179.51“Um fresco po<strong>de</strong>roso, rico <strong>de</strong> cintilações imagéticas, aparece luxuriante, título após título, enformandoum plural sinérgico”. Mestre, David, Nem tudo é poesia, Estudos, 1989, p. 49.52Maimona, João, “Literatura angolana: situação actual e perspectivas”, in Vértice, Setembro-Outubro,Lisboa, Editorial Caminho, 2000.53Destaque-se o papel exercido pela União do Escritores Angolanos, cria<strong>da</strong> a 10 Dezembro <strong>de</strong> 1975:“é testemunho <strong>de</strong> gerações <strong>de</strong> escritores que souberam, na sua época, dinamizar o processo <strong>da</strong> nossalibertação exprimindo os anseios do nosso povo, particularmente o <strong>da</strong>s suas cama<strong>da</strong>s mais explora<strong>da</strong>s.A literatura angolana escrita surge assim não apenas como simples necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> estética, mas como umaarma <strong>de</strong> combate pela afirmação do homem angolano”. Nehone, Ro<strong>de</strong>rick, op. cit.54Segundo Manuel Rui tratou-se <strong>de</strong> uma fase <strong>de</strong> engajamento assumido, mas um “engaje” com crítica.Laban, Michel, op. cit. p. 721.55Visto que se lutava pela in<strong>de</strong>pendência do país e pela manutenção <strong>da</strong> paz.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiAnões e os Mendigos (1984), <strong>de</strong> Manuel dos Santos Lima, O Cão e os Caluan<strong>da</strong>s(1985) <strong>de</strong> Pepetela, entre outros.Desta forma, os anos <strong>de</strong> 1982 a 1990 são marcados pelo surgimento<strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> <strong>obra</strong>s, cujo o género satírico/irónico assume uma importânciainegável (56) . As i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> reformas políticas e <strong>de</strong> revolução socialexigiam dos escritores uma literatura <strong>de</strong> acção, comprometi<strong>da</strong> com a críticae a reforma <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<strong>Na</strong> <strong>obra</strong> O cão e os Caluan<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Pepetela, o autor conduz o leitor poruma série <strong>de</strong> situações, numa perspectiva crítica <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana.Através do olhar <strong>de</strong> um cão somos levados por uma vasta gama <strong>de</strong> comportamentossociais, profissionais, familiares e políticos. A pena críticaversa tanto o burocrata, como o carreirista político, o pseudo-intelectual,a prostituta, o operário alienado, etc.O uso <strong>da</strong> ironia (57) assume então uma função dinâmica entre a vozdo autor e os conselhos retóricos usados. Os retratos transformam-se emcaricatura (58) , seja na avaliação <strong>de</strong> situações, comportamentos e mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s.O riso explanaria uma visão sociológica do quotidiano, ganhandouma função terapêutica humanista.Assim, se por um lado, a escrita africana mobilizava estratégiasque visavam a crítica dum projecto <strong>de</strong> nação (59) <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia naciona-56Destaque-se algumas <strong>obra</strong>s <strong>de</strong> Manuel dos Santos Lima, Manuel Rui, Pepetela, Agualusa e UanhengaXitu.57Henri Morier (1975) <strong>de</strong>staca o carácter pedágógico e correctivo <strong>da</strong> ironia “l´ironie est l´expressiond´une âme qui, éprise d´or<strong>de</strong> et <strong>de</strong> justice, s´irrite <strong>de</strong> l´inversion d´un rapport qu´elle estime naturel,normal, intelligent, moral, et qui, éprouvant une envie <strong>de</strong> rire dé<strong>da</strong>igneusement à cette manifestationd´erreur ou d´impuissance, la stigmatise d´une manière vengeresse en renversant a son tour le sens <strong>de</strong>smots (antiphrase) ou en décrivant une situation <strong>da</strong>imétralement opposée à la situation réele (anticatastase).Ce qui est une manière <strong>de</strong> remettre les choses à l´endroit”. Morier, Henri, Dictionnaire <strong>de</strong> poétiqueet rhétorique, Paris, Presses Universitaires <strong>de</strong> France, 1975.58Ao longo dos tempos, tem sido comum o uso <strong>da</strong> caricatura para satirizar figuras ou questões <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> social e política. <strong>Na</strong> literatura, o aparecimento <strong>da</strong> caricatura remonta às comédias <strong>de</strong> Aristófanes,na antiga Grécia. A caricatura serviu, frequentemente, como forma <strong>de</strong> intervenção, revelando aspectosgrotescos ou ridículos <strong>de</strong> certas pessoas e situações. Daí que a ela tenham recorrido particularmente escritoresque, como os realistas, pretendiam traçar um quadro sociológico do mundo contemporâneo.59“As fronteiras problemáticas <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> são encena<strong>da</strong>s nestas temporali<strong>da</strong><strong>de</strong>s ambivalentesdo espaço-nação (...). É, <strong>de</strong> facto, apenas no tempo disjuntivo <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> nação – como conhecimentodisjuntivo entre a racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> política e o seu impasse, entre os fa<strong>rra</strong>pos e os remendos <strong>da</strong>significação cultural e as certezas <strong>de</strong> uma pe<strong>da</strong>gogia nacionalista – que as questões <strong>da</strong> nação enquantona<strong>rra</strong>ção acabam por ser coloca<strong>da</strong>s”. Bhabha, Homi, “Disseminação: Tempo, <strong>Na</strong><strong>rra</strong>tiva e as Margens na<strong>Na</strong>ção Mo<strong>de</strong>rna”, in Buescu, Helena [et alli] [org.], Floresta Encanta<strong>da</strong>. Novos Caminhos <strong>da</strong> LiteraturaCompara<strong>da</strong>, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001, p. 537.392007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveiralista (60) , por outro, <strong>obra</strong>s como Mayombe, A Geração <strong>da</strong> Utopia(1992),O Desejo <strong>de</strong> Kian<strong>da</strong> (1955) ou Parábola do Cágado Velho (1996) buscamna História a sua própria existência simbólica, através do renascer <strong>de</strong>vozes e memórias e <strong>da</strong> re<strong>leitura</strong> <strong>de</strong> algumas páginas vivenciais.O Desejo <strong>de</strong> Kian<strong>da</strong> (61) , por exemplo, re-escreve e mitifica páginas <strong>da</strong>História, o ruir <strong>de</strong> prédios em Luan<strong>da</strong> é, metaforicamente, o <strong>de</strong>smantelamento<strong>da</strong>s estruturas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>-tipo europeia. A vingança <strong>de</strong> Kian<strong>da</strong> (62)po<strong>de</strong> ser vista como espécie <strong>de</strong> reivindicação <strong>da</strong>s velhas tradições dopovo Kimbundu (Russell Hamilton) (63) , a ruína dos prédios na silenciosaque<strong>da</strong>. A “gigantesca on<strong>da</strong>” que inun<strong>da</strong> “to<strong>da</strong> a Aveni<strong>da</strong>”, na cena final<strong>de</strong> recomposição imagística <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m antiga, traz “em cima <strong>de</strong>la [...] asfitas <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as cores [...] agora que a Ilha <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong> voltava a ser ilhae Kian<strong>da</strong> ganhava o alto mar, finalmente livre”. O espaço reconquistadoe a paisagem recupera<strong>da</strong> permitem pensar que a esperança não se po<strong>de</strong><strong>de</strong>ixar morrer.Já Estação <strong>da</strong>s Chuvas (1996) <strong>de</strong> Agualusa, apresenta um maior grau<strong>de</strong> fatali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a morte do país é assumi<strong>da</strong> por uma <strong>da</strong>s personagens:“Este país morreu” – o pretérito perfeito inviabiliza a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>revitalização, <strong>da</strong> realização <strong>da</strong> utopia, contrariamente a Quem me <strong>de</strong>raser on<strong>da</strong> (1982) <strong>de</strong> Manuel Rui, on<strong>de</strong> a utopia libertária encontra eco epersonificação nos miúdos.Em suma, a literatura angolana assemelha-se ao imbon<strong>de</strong>iro (64) repleto<strong>de</strong> frutos prontos a serem colhidos e saboreados por todos aquelesque apreciam a tradição, o ser e o sentir <strong>de</strong> um povo.E que melhor forma do que a literatura para obter esse “sabor dosaber” angolano? É também esse o nosso objectivo.4060É nesta linha que <strong>de</strong>vemos ler o nosso corpus <strong>de</strong> estudo, ou seja, numa perspectiva crítica e reflexivado quotidiano angolano, nomea<strong>da</strong>mente <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>. Deter-nos-emos pormenoriza<strong>da</strong>menteneste aspecto, num momento posterior <strong>da</strong> nossa análise.61Pepetela explora, nesta <strong>obra</strong>, o realismo fantástico.62“<strong>Na</strong> mitologia Kimbundo, a Kyan<strong>da</strong> é uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> sobrenatural forma<strong>da</strong> por Deus aquando <strong>da</strong>criação do mundo e que se encontra na natureza, em especial na água”. Gonçalves, António Custódio,Tradição e Mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> na (Re)construção <strong>de</strong> Angola, Porto, Edições Afrontamento, 2003.63Hamilton, Russell, “A literatura dos PALOP e a teoria pós-colonial”, in http://geocities.com/ail_br/aliteraturapalopteoriaposcolonial.htm. Acesso em Maio <strong>de</strong> 2004.64Metáfora já utiliza<strong>da</strong> por Carlos Ervedosa (s/d) e Salvato Trigo (1977).E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiVISÃO SATÍRICA EHUMORÍSTICA“O escritor transforma-se em investigador para<strong>de</strong>screver uma certa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> utilizando osdocumentos e as técnicas <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> campo”.Copans“Nous ne sommes ici-bas pour rire.Nous ne le pourrons plus au purgatoire ou en enfer.Et, au paradis, ce ne serait pas convenable”.Jules RenardIroniser: Caresser à rebrousse-poil”.Jean BorrotSe, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Platão, o fenómeno humorístico é documentado <strong>de</strong> investigaçãocientífica, muitas outras ciências, como a antropologia, apsicologia, a didáctica, a teoria literária, a sociologia, entre outras, contribuírampara uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> científica do estudo do humor (65) .De facto, uma <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> humor tem ence<strong>rra</strong>do diferentes terminologiase tal como Bergson (1993:17) (66) aconselha: “não preten<strong>da</strong>mos ence<strong>rra</strong>rnuma <strong>de</strong>finição o espírito cómico. É que antes <strong>de</strong> tudo <strong>de</strong>vemos vernele qualquer coisa <strong>de</strong> vivo” (67) . Contudo, se o humor não é o mesmo que4165Vários estudiosos já se <strong>de</strong>bruçaram sobre o riso: <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> ficaram os estudos <strong>de</strong> Platão,Aristóteles, Cícero e Quintiliano; dos séculos XVII e XVIII encontramos estudos como os <strong>de</strong> Hobbes, Shaftesburye Hutcheson; Victor Hugo <strong>de</strong>bruça-se sobre o grotesco risível. Schopenhaeur, Bergson, Nietzsche,Bataille e vários outros documentam a preocupação <strong>da</strong> filosofia com o riso. Bau<strong>de</strong>laire estu<strong>da</strong>-o nas artesplásticas, por sua vez, Freud, Lacan, Roustang e Jacques Alain-Miller observam-no <strong>da</strong> perspectiva <strong>da</strong>psicanálise.66Bergson, Henri, O riso ensaio sobre a significação do cómico, Lisboa, Guimarães Editores, 1993.67Eco (1986) <strong>de</strong>staca a ligação do cómico ao tempo, à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e à antropologia cultural. Eco,Umberto, Viagem na irreali<strong>da</strong><strong>de</strong> quotidiana, Lisboa, DIFEL, 1986.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira42o riso, já que po<strong>de</strong> existir sem ele, cremos que o efeito perlocutório pretendidopelo emissor <strong>da</strong> mensagem humorística é o riso ou, à falta <strong>de</strong>le osorriso, quer seja alegre e espontâneo, ou um sorriso triste e reflexivo (68) .O humor manifesta-se, em qualquer forma <strong>de</strong> comunicação ou expressão,<strong>de</strong> forma diferente. <strong>Na</strong> literatura, supõe o uso <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadosrecursos: ironia, sátira e/ou sarcasmo. Como qualquer tipo <strong>de</strong> comunicaçãoexige um conhecimento que permita <strong>de</strong>cifrar a mensagem. Paraque esta surta o efeito <strong>de</strong>sejado é necessário enten<strong>de</strong>r o transmitido,inserindo-o numa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> contextual e cultural. Estes são alguns dosparâmetros a que <strong>de</strong>vemos aten<strong>de</strong>r quando analisamos a <strong>obra</strong> <strong>de</strong> um escritorcomo Manuel Rui.Analisando as instituições sociais (69) , as organizações, as pessoas eos costumes, Manuel Rui presentear-nos-á, tal como outrora se fazia aCeres (70) , com um prato repleto <strong>de</strong> frutos diversos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana,imbuído <strong>de</strong> uma sátira viva <strong>de</strong> personagens e atitu<strong>de</strong>s. Pinta, relembrandoCesário Ver<strong>de</strong>, um “quadro por letras e sinais”, on<strong>de</strong> as tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>sversam os diferentes padrões <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana, nomea<strong>da</strong>mente napersonificação <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s “atitu<strong>de</strong>s-tipo” que conduzem o leitorpela ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>, espelho <strong>de</strong> Angola pós-in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.<strong>Na</strong> sua na<strong>rra</strong>tiva, Manuel Rui faz incidir a sua pena crítica, analíticae sintética sobre os quadros médios <strong>da</strong> administração pública e do MPLA,isto é, sobre a chama<strong>da</strong> pequena-burguesia urbana.O enunciado surge, então, numa teia <strong>de</strong> relações sociais e históricas,tocando nos milhares <strong>de</strong> “fios dialógicos”, fruto <strong>da</strong> “consciência i<strong>de</strong>ológica”em torno <strong>de</strong> uma <strong>da</strong><strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, consequentemente, o escritortorna-se ser activo do “diálogo social”, assumindo-se como o “seu prolongamento”e “réplica” (Bachtin: 1993) (71) .Prefere <strong>de</strong>slocar o jogo do cómico do indivíduo (embora o possamosverificar em Feijó, Crónica <strong>de</strong> um mujimbo) para o ci<strong>da</strong>dão, ou seja, inci-68Que leve o leitor a uma pon<strong>de</strong>ração crítica dos factos na<strong>rra</strong>dos.69Enten<strong>de</strong>mos por instituições sociais os elementos adquiridos e constituintes do sistema social. Spencer(Op. cit. Bernardi:1988:42) <strong>de</strong>signa-os “órgãos <strong>da</strong>s funções sociais”. Protagonizam, <strong>de</strong>sta forma, a i<strong>de</strong>ia<strong>de</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Bernardi, Bernardo, Introdução aos estudos etno-antropológicos, Lisboa, Edições 70, 1988.70O termo “sátira” advém <strong>de</strong> “satira(m)”, <strong>de</strong> “lanx satura”, prato cheio <strong>de</strong> frutos sortidos que seoferecia à <strong>de</strong>usa <strong>da</strong>s sementeiras – Ceres.71Bachtin, Mikhail, Questões <strong>de</strong> literatura e <strong>de</strong> estética (a teoria do romance), São Paulo, EditoraUNESP, 1993.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruidir a contradição sobre o social, mostrando a disjunção entre o que há <strong>de</strong>mesquinho no indivíduo e a gravi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s funções sociais que exerce.Provido <strong>de</strong> uma “arma feroz” – a ironia (72) , lança na sua <strong>obra</strong> um bálsamo<strong>de</strong> frescura pelo seu humor (73) crítico, que o leitor acaba por fruir.Assim, confluem num mesmo universo: ironia e humor.Não querendo alongar a nossa análise naquilo que ca<strong>da</strong> um dos conceitossupracitados ence<strong>rra</strong>, convém, porém distingui-los.Para alguns estudiosos, como Jankélevitch (74) , o humor é uma espécie<strong>de</strong> ironia, para outros, como Schopenhaeur (75) e Bergson (1993), ohumor é o reverso <strong>de</strong> ironia. O último apresenta uma distinção que nosparece pertinente, argumentando que a oposição mais geral é a que sedá entre o real e o i<strong>de</strong>al, entre o que é e o que <strong>de</strong>veria ser (i<strong>de</strong>m:91-92).O contraste entre ambos os conceitos acontece na medi<strong>da</strong> em quemuitas vezes “abun<strong>da</strong>rá com enunciar o que <strong>de</strong>verá ser, parecendo acreditarque assim é na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> – ironia; ou fazer-se uma <strong>de</strong>scrição minuciosado que é afectando acreditar que efectivamente assim <strong>de</strong>veria ser– humor” (76) .Por outro lado, a sátira (77) , diz Frye, é a ironia militante: “o satíricoutiliza a ironia para fazer com que o leitor se sinta incomo<strong>da</strong>do, para extrair<strong>da</strong> sua benevolência (complacencia) e convertê-lo num aliado contraa estupi<strong>de</strong>z humana” (i<strong>de</strong>m:131) (78) . Daí que muitas vezes, como leitores,nos vejamos a con<strong>de</strong>nar esta ou aquela atitu<strong>de</strong> <strong>da</strong>s personagens (79) ,72A ironia a que nos referimos não é a ironia <strong>de</strong> curto alcance, figura textualmente localiza<strong>da</strong>, através<strong>da</strong> qual se diz o contrário do que se quer afirmar. Mas antes aquela que consi<strong>de</strong>ramos <strong>de</strong> maior alcance,entendi<strong>da</strong> como elemento estruturante <strong>de</strong> uma certa cosmovisão <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado tempo cultural.Cf. Muecke, D. C., Irony, London, Methuen, 1978.73Discor<strong>da</strong>mos, tal como Schopenhauer (Op. cit. Vega:2002:44), <strong>da</strong>queles que consi<strong>de</strong>ram o humoruma forma especial <strong>de</strong> ironia. Para Schopenhauer (i<strong>de</strong>m:ibi<strong>de</strong>m) a ironia é a “bruma oculta <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>serie<strong>da</strong><strong>de</strong>”, enquanto o humor <strong>de</strong>finir-se-ia como “a serie<strong>da</strong><strong>de</strong> oculta <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> bruma”. Vega, CelestinoFerán<strong>de</strong>z <strong>de</strong> la, O segredo do humor, Fa<strong>de</strong>sa, La Voz <strong>de</strong> Galicia, 2002.74I<strong>de</strong>m, p. 49.75I<strong>de</strong>m, p. 44.76I<strong>de</strong>m, p. 46.77É, sobretudo, por constituir uma mundividência específica e um factor <strong>de</strong>cisivo <strong>de</strong> análise e representação<strong>da</strong>s coisas e dos homens, que a sátira é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> um elemento artístico fun<strong>da</strong>mental.78Op. cit. Hodgart, Matthew, La sátira, Madrid, Ediciones Gua<strong>da</strong><strong>rra</strong>ma, 1969.79Quem não con<strong>de</strong>na a repressão <strong>de</strong> que a professora é vítima, aquando do episódio <strong>da</strong>s composiçõesdos miúdos? (Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>) Ou então, quem fica indiferente à ambição <strong>de</strong> Adérito?(Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo)432007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveiraou a sorrirmos com esta ou aquela atitu<strong>de</strong> no limite do grotesco (80) edo absurdo (81) .O sátiro acredita em última instância ser o <strong>de</strong>tentor <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, tendocomo tal a aspiração <strong>de</strong> converter aquilo que acredita estar e<strong>rra</strong>do.Já Jean Paul-Sartre (1948) (82) <strong>de</strong>stacava este carácter didáctico/reflexivodo escritor, que fazendo alusão aos aspectos mais nefastos <strong>da</strong>socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, criticando-a, conduzir-nos-ia, enquanto leitores, à revolta eindignação face ao(s) objecto(s) visado(s).Desta forma, ao lado <strong>da</strong> intenção humorística, surge a função pe<strong>da</strong>gógica(83) . Ora, ao assumir uma posição crítica diante <strong>da</strong> fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>sestruturas sociais angolanas, Manuel Rui <strong>de</strong>smascara comportamentos aserem revistos e alterados, quer no período colonial, quer no pós-colonial.O riso <strong>da</strong> sátira apontava para uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sprovi<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadosvalores (84) . Propp (1992) (85) <strong>de</strong>staca a função social <strong>de</strong> <strong>obra</strong>s que teriamcontribuído, através <strong>da</strong> sátira, para a vitória sobre os inimigos internose externos <strong>da</strong> revolução russa. Ora neste sentido, po<strong>de</strong>mos aproximar, comas <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>s distinções, Maiakovski <strong>de</strong> escritores como Manuel Rui. Contu-4480No manifesto hugoliano [1827], o grotesco é proclamado como “a mais rica fonte que a naturezapo<strong>de</strong> abrir à arte” (2002: 31). Ao contrário do belo, “que tem somente um tipo”, o feio é <strong>de</strong>finido por Hugocomo “um gran<strong>de</strong> conjunto que se harmoniza, não só com o homem, mas com to<strong>da</strong> a criação” (i<strong>de</strong>m:33). O grotesco eleva-se, assim, à categoria <strong>de</strong> “suprema beleza do drama” (i<strong>de</strong>m: 45), on<strong>de</strong> “os temposantigos são épicos, os tempos mo<strong>de</strong>rnos são dramáticos” (i<strong>de</strong>m: 37). Hugo queria dizer com isso queas na<strong>rra</strong>ções e <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong>veriam ser substituí<strong>da</strong>s por cenas a <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>arem-se como no real (i<strong>de</strong>m:46-47). Ou seja, a acção do drama não <strong>de</strong>via ser na<strong>rra</strong><strong>da</strong> em tempo passado, mas acontecer no presente,no mesmo fluxo temporal que compõe a maior parte <strong>da</strong>s activi<strong>da</strong><strong>de</strong>s quotidianas, tempo que Pomianconceitua como “psicológico” (1984: 221). É importante observar a maneira como Hugo operou o grotesco.Aí as máscaras eram claras e assumiam tipos genéricos que mais continham uma crítica e um traçosocial do que um <strong>de</strong>senho psicológico individualizado. Hugo, Victor. Do grotesco e do sublime, São Paulo,Perspectiva, 2002.81Cf. A postura do porco no <strong>de</strong>senrolar <strong>da</strong> na<strong>rra</strong>tiva Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>.82“L´ecrivain peut vous gui<strong>de</strong>r et s´il vous décrit un taudis y faire voir le symbole <strong>de</strong>s injusticessociales, provoquer votre indignation”. Sartre, Jean-Paul, Qu´est-ce que la littérature?, Éditions Gallimard,1948,p. 15.83Embora não possamos reduzir a <strong>obra</strong> a uma função exclusivamente correctiva, a não ser que a correcçãose dirija, em principal instância, a to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> que cerca as personagens, e, em suas múltiplasinstâncias, a to<strong>da</strong>s as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s on<strong>de</strong> existem oprimidos e opressores.84Uanhenga Xitu, com a sua <strong>obra</strong> “Mestre” Tamo<strong>da</strong>, abor<strong>da</strong>, através do riso, esta situação do comportamentodo assimilado. Contudo, Tamo<strong>da</strong>, contrariamente a Alvim, não foge às suas origens, voltaà al<strong>de</strong>ia natal, on<strong>de</strong> se preten<strong>de</strong> afirmar, faz sucesso entre os mais jovens e <strong>de</strong>sagra<strong>da</strong> aos mais velhos,assim como à administração colonial. Aqui o conflito acaba por ser entre o velho e o novo, entre a tradiçãoe a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.85Propp, Vladimir, Comici<strong>da</strong><strong>de</strong> e riso, São Paulo, Ática, 1992.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruido, se na <strong>obra</strong> do escritor angolano se problematiza o contexto social, vai--se para além <strong>de</strong>le, através <strong>da</strong> função pe<strong>da</strong>gógica a que já nos referimos.Manuel Rui não se lança intempestivamente na vis comic, a memóriaemotiva, a imaginação e os <strong>da</strong>dos <strong>de</strong> observação conspiram numsentido preciso, repudiando tudo quanto não seja caracterizante e estritamenteindispensável.Em Regresso Adiado (86) , por exemplo, a na<strong>rra</strong>tiva que oscila entreÁfrica e Lisboa, num tom sarcástico, versa situações diversas <strong>da</strong> era colonial,as personagens são várias, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o mulato Luís Alvim, que ansiavaser assimilado, passando por Jaime (negro), este acaba na prisão, <strong>de</strong>pois<strong>de</strong> ser seduzido pela patroa, que, <strong>de</strong>scoberta pelo marido, alega que foraviola<strong>da</strong>. Armando Bernardo enfrentará uma Lisboa diferente <strong>da</strong>quela queimaginara; Ribeiro Vinte-Sete manifesta uma gue<strong>rra</strong> injusta, traduzindoum dos episódios mais humorísticos do conto, “Em Tempo <strong>de</strong> Gue<strong>rra</strong> nãose Limpam Armas” (87) , quando replicando a ameaça do polícia, para sei<strong>de</strong>ntificar, entoa o hino português; e finalmente os protagonistas <strong>de</strong> “OChu<strong>rra</strong>sco” apren<strong>de</strong>m como se fabrica um colonialista (88) .Gostaríamos <strong>de</strong> reter um pouco a nossa atenção naquele que consi<strong>de</strong>ramosser o mais incisivo dos contos – “Mulato <strong>de</strong> sangue azul” – pelo seucarácter híbrido <strong>de</strong> tragici<strong>da</strong><strong>de</strong> e comici<strong>da</strong><strong>de</strong>. A ironia, o riso, a caricatura,o humor e o grotesco encontram voz nas diferentes páginas do conto.O título, por si próprio, direcciona para o riso, obtido através <strong>da</strong>contradição irónica, apontando para signos pertencentes a duas esferasdistintas: a racial e a social.O conto dramatiza o surgimento do complexo <strong>de</strong> inferiori<strong>da</strong><strong>de</strong>, analisadopor Frantz Fannon (89) (1975), no protagonista.86Publicado dois anos antes <strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência.87O conto patenteia, em última instância, a ingratidão do sistema colonial para com aqueles que aele se <strong>de</strong>dicam sem, no entanto, reunirem as condições “rácicas” para o fazerem.88Manuel Rui argumenta que ao escrever Regresso Adiado tinha a “resistência cultural” como preocupação,num livro não só dirigido para o angolano, mas, muito principalmente, para o colono. Destacandoa bifaciali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>quele que quando está em Portugal diz que é <strong>de</strong> África e quando está em África dizque é <strong>de</strong> Portugal, assim como os reflexos <strong>de</strong>sta situação na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> envolvente. Desta forma, e segundoo autor, os níveis <strong>de</strong> alienação também se realizam no colonizador. Laban, Michel, op. cit. p. 720.89O texto po<strong>de</strong> ser interpretado na óptica do processo <strong>de</strong> neurose criado pelo colonialismo – a inferiorizaçãodo negro ocorre, inicialmente, no plano económico e em segui<strong>da</strong> há uma interiorização ouepi<strong>de</strong>rmização <strong>de</strong>ssa inferiori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>ndo origem à alienação. Cf. Frantz, Fannon, Pele Negra, MáscarasBrancas, Porto, Paisagem, 1975.452007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraAlvim (90) , personagem contraditória <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a escolha irónica donome, cujo significado ence<strong>rra</strong> a obsessão pela brancura que ele tanto<strong>de</strong>sejava. A caricatura (91) reflecte um tipo ina<strong>de</strong>quado ao lugar on<strong>de</strong> seencontra: os trajes à mo<strong>da</strong> europeia, o cabelo esticado, o uso rebuscado<strong>da</strong> língua portuguesa (92) .Alvim, auto-confiante e ingénuo, <strong>de</strong>seja pertencer ao universo docolonizado, afirmando-se como <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma família nobre portuguesa(93) , mas acaba por per<strong>de</strong>r a sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, fruto <strong>de</strong> um contextosocial opressivo e alienante, não se enquadrando nem no mundo do colonizado,nem do colonizador (94) . A ironia <strong>da</strong> sua posição como mensageiroe <strong>de</strong>fensor <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m que o rejeita atinge o seu ápice na missão<strong>de</strong> “catequisar o povo” nas “povoações, sanzalas e quimbos”. O seu fimserá trágico: acaba assassinado.A na<strong>rra</strong>tiva revela a expressão do profundo <strong>de</strong>sajuste do homem angolanono seu próprio espaço.Assim, <strong>de</strong>senha-se uma gran<strong>de</strong> e dolorosa comédia, em que todosparticipam: “não rindo, mas sofrendo. Sangrando. Por vezes <strong>de</strong> mãoscrispa<strong>da</strong>s. Em silêncio. E com vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> protestar. Sim, algo <strong>de</strong> chaplinescovibra na transparência <strong>de</strong>ste caos organizado. E essa participação4690Müller-Bochat (1996:324) <strong>de</strong>staca os tipos <strong>de</strong> “simbiose cultural falha<strong>da</strong>” referindo: “o problema<strong>da</strong> indigestão intelectual <strong>de</strong> um indivíduo entre dois mundos culturais produziu tipos inesquecíveis tambémna literatura angolana. Limito-me a duas espécies <strong>de</strong> Dom Quixote, loucos ca<strong>da</strong> um à sua maneira, porterem servido a um i<strong>de</strong>al ridículo, a uma ilusão híbri<strong>da</strong>, em vez <strong>de</strong> uma tarefa séria e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira”. A <strong>de</strong>finiçãopo<strong>de</strong>r-se-á aplicar, tal como o autor supracitado faz, a Alvim. Muller-Bochat, Eberhard, “Tipos literários<strong>da</strong> simbiose cultural falha<strong>da</strong> na na<strong>rra</strong>tiva africana <strong>de</strong> expressão francesa e portuguesa”, in Cristovão,Fernando [et alli], <strong>Na</strong>cionalismo e regionalismo nas literaturas lusófonas, Lisboa, Edições Cosmos, 1997.91Ao longo dos tempos, tem sido comum o uso <strong>da</strong> caricatura para satirizar figuras ou questões <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> social e política. <strong>Na</strong> literatura, o aparecimento <strong>da</strong> caricatura remonta às comédias <strong>de</strong> Aristófanes, naantiga Grécia. Daí que a ela tenham recorrido os escritores que pretendiam traçar um quadro sociológicodo mundo contemporâneo.92O “palavrório” <strong>de</strong> Alvim em diálogo com o seu amigo Xavier dá origem a trocadilhos engraçados.93“Ai vai ele em passos <strong>de</strong> onça, cauteloso, para não pisar uma poça d´água e surgir em casa do parente,o doutor Costa Alvim, com polimento dos sapatos e a calça <strong>de</strong> fantasia respigados <strong>de</strong> lama. Trauteiaa discursata que ensaiou e faz man<strong>obra</strong>s <strong>de</strong> esgrima com a bengala. Ouvido atento não quer que ninguémo veja naquele propósito <strong>de</strong> luxo no Chinguar. Procura a escuridão. Até que enfim! Amanhã, há <strong>de</strong> passearcom o médico em ameno cavaqueiro, abancar no “Europa”, topar to<strong>da</strong> a gente em respeitosas boas-noites,e perguntar ao parente: “O que é que toma?” (p. 38).94O cómico <strong>de</strong> situação é obtido, por exemplo, quando Alvim procura ansioso o suposto <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte,recém chegado, <strong>da</strong> nobre família “Alvim”, mas na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> o pretenso parente <strong>da</strong> família <strong>de</strong> “gran<strong>de</strong>snomes <strong>de</strong> Portugal” respon<strong>de</strong>-lhe que vem do Alentejo, uma <strong>da</strong>s regiões mais pobres do país. Ou então,quando exibe a bengala ao amigo Xavier, dizendo tratar-se <strong>de</strong> um símbolo <strong>de</strong> nobreza, ao que o amigoreplica tratar-se apenas <strong>de</strong> um pau torto.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruiindirecta do autor-na<strong>rra</strong>dor que dir-se-ia obscuro quando afinal se nosrevela por inteiro comprometido com o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong>ste mundo que incomo<strong>da</strong>”(Manuel Ferreira, Prefácio à 2ª edição <strong>de</strong> Regresso Adiado).Manuel Rui admitiria isso mesmo, dizendo que a sua sátira é “umaescrita chaplinesca” (95) , pois quando as pessoas estão a rir têm, necessariamente,que chorar.A corrupção, a ineficácia do sistema, a <strong>de</strong>sa<strong>de</strong>quação <strong>de</strong> terminologia(s),a <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> autoritarismos encontrará voz nas diferentes personagens<strong>de</strong> Manuel Rui.Massaud Moisés (1977:296) (96) <strong>de</strong>staca precisamente a “atitu<strong>de</strong>ofensiva” <strong>da</strong> sátira, que, tendo a crítica como “marca in<strong>de</strong>lével”, apresentaa insatisfação perante o estabelecido como “a sua mola básica”.Neste caso, a crítica aos diversos comportamentos (a)típicos <strong>da</strong> épocaprojectavam essa “insatisfação” perante o “mundo às avessas” (97) .Venâncio (1992b:51) enfatizaria duas tendências entre as manifestaçõescríticas: a primeira, visando “o exercício burocrático <strong>da</strong> actuação<strong>da</strong>queles que, vendo-se com algumas responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r”, usam--no abusivamente, e o “nascimento <strong>de</strong> uma nova burguesia”; a segun<strong>da</strong>tendência “crítica expressamente o sistema político-social implantadopelo MPLA” (98) .Em Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong> (1982), Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo (1989) e1 Morto & Os Vivos (1993), através duma ironia implícita, que nos relembraem diversas passagens Eça <strong>de</strong> Queirós, Manuel Rui crítica a ineficáciado sistema burocrático do po<strong>de</strong>r inserindo-se precisamente na primeiratendência (99) .95Op. cit. Entrevista em anexo, p. 165.96Massaud, Moisés, Dicionário <strong>de</strong> termos literários, São Paulo, Editora Cultrix, 1977.97<strong>Na</strong> literatura portuguesa, Camões (1598) refere-se à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> do seu tempo como um “mundoàs avessas” e <strong>de</strong>sconcertado: “Os bons vi sempre passar/ no mundo gran<strong>de</strong>s tormentos; / e, para mais meespantar, /os maus vi sempre na<strong>da</strong>r/ em mar <strong>de</strong> contentamentos”. Gil Vicente reconstrói uma visão satírico-dramática<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> portuguesa do século XVI. Eça <strong>de</strong> Queirós, provido <strong>da</strong> ironia e crítica social,<strong>de</strong>screve minuciosamente os ambientes que retratam a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> do século XIX.98Venâncio, José Carlos, Literatura e po<strong>de</strong>r na África lusófona, Lisboa, Ministério <strong>da</strong> Educação / Instituto<strong>de</strong> Cultura e Língua Portuguesa, 1992b.99Contrariamente a autores como Manuel dos Santos Lima, que através <strong>de</strong> <strong>obra</strong>s como Os Anões e osMendigos, acaba por se enquadrar na segun<strong>da</strong> tendência enuncia<strong>da</strong> por José Carlos Venâncio (1992b), <strong>de</strong>nunciandoa situação <strong>de</strong> Angola, a crítica às <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> mundiais, nomea<strong>da</strong>mente na duali<strong>da</strong><strong>de</strong>: paísesricos vs países pobres, num claro <strong>de</strong>sequilíbrio on<strong>de</strong> o Terceiro Mundo sai per<strong>de</strong>dor, pela prepotência política<strong>da</strong>queles. Mas culpabiliza sobretudo as forças internas do MPLA pelo estado precário vivido no país.472007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraDa Palma <strong>da</strong> Mão (1998), por exemplo, compila textos diversos,todos eles próximos <strong>da</strong> crónica.A actuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong> são <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo <strong>de</strong>staca<strong>da</strong>spelo autor que epigrafa a advertência às avessas “Isso é a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> equalquer semelhança com a ficção é mera coincidência” (Rui:1998) (100) ,neste caso, as estórias são, ironicamente, <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s a um escalão etárioque exclui as crianças: “estórias infantis para adultos” (subtítulo),apesar <strong>de</strong> muitos dos protagonistas <strong>de</strong>stas mesmas “estórias” serem ascrianças (101) . A crítica social e incisiva nos diferentes parâmetros <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong>stitui a sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e inocência <strong>da</strong>s crianças que pauta<strong>da</strong>spela ingenui<strong>da</strong><strong>de</strong> e ver<strong>da</strong><strong>de</strong> marcam a oposição a um mundo <strong>de</strong> adultose <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s nefastas (102) .Remeti<strong>da</strong> a na<strong>rra</strong>tiva ao estatuto <strong>de</strong> infantil, Da palma <strong>da</strong> mão contrapõeo ambíguo e o francamente caricatural <strong>de</strong> uma literatura nacional,que, como quase to<strong>da</strong> a <strong>obra</strong> <strong>de</strong> Manuel Rui, manifesta uma relação difícilentre os dois elementos do tropo enunciado por Bhabha (1990) (103) :nação e na<strong>rra</strong>ção.A criança é, neste sentido, a presença recorrente, contrária ao adultoe às suas práticas sociais negativas, consistindo na riqueza <strong>de</strong>stanação (104) , também ela jovem (105) .48100O autor surpreen<strong>de</strong> o leitor jogando ironicamente com as palavras. O alerta introdutório surgecomo artifício literário, contrariamente àquilo que seria <strong>de</strong> esperar, como quem diz, atenção! Eu estoua falar <strong>de</strong> pessoas reais, <strong>de</strong> uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que não vive só neste livro. Como tal, os leitores têm o direito<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s pessoas na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. São personagens, no fundo, mais ricas porquefiguras sociais.101Sobre este assunto ver o capítulo do nosso trabalho: “As crianças – realização <strong>da</strong> utopia”.102Tal como em Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>.103Bhabha, Homi, <strong>Na</strong>tion and na<strong>rra</strong>tion, London. Routledge, 1990.104Weber (1982:202) <strong>de</strong>fine nação nos seguintes termos: “o conceito indubitavelmente significa,acima <strong>de</strong> tudo, que po<strong>de</strong>mos a<strong>rra</strong>ncar <strong>de</strong> certos grupos <strong>de</strong> homens um sentimento específico <strong>de</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong>frente a outros grupos. Assim, o conceito pertence à esfera dos valores”. Weber, Max, Elementos<strong>de</strong> Sociologia, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Záhar Editores, 1982. Por sua vez, Fonseca (2001:168) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que o conceito<strong>de</strong> nação “tem vindo a ser aproximado <strong>da</strong> noção <strong>de</strong> “lugar simbólico” ou, para usar a expressão <strong>de</strong>Benedict An<strong>de</strong>rson “uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> imaginária”. Salienta-se assim que, para além <strong>de</strong> uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong>material verificável, por exemplo, através <strong>da</strong> existência <strong>de</strong> instituições e <strong>de</strong> um território limitado porfronteiras, a nação existe porque há uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> que, embora heteróclita, possui uma mesma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>nacional”. Fonseca, Ana Margari<strong>da</strong>, “Processos <strong>de</strong> Construção <strong>da</strong> I<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>Na</strong>cional e Culturalna Ficção Angolana e Portuguesa Pós-colonial – Um Contributo”, in Seruya, Teresa et Moniz, Maria Lin,Histórias Literárias Compara<strong>da</strong>s, Lisboa, Edições Colibri, 2001.105Enquanto Estado-<strong>Na</strong>ção.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiAs <strong>de</strong>núncias feitas pelo escritor, tal como aquelas que se registaramem <strong>obra</strong>s contemporâneas ao autor, inscritas na vertente <strong>da</strong> sátira social,<strong>de</strong>monstram, embora procurem poupar a direcção política do país, que aopção socialista pouco ou na<strong>da</strong> <strong>de</strong>terminou no sentido <strong>da</strong> sua neo-patrimonização(106) (Venâncio:2000).A mestria do na<strong>rra</strong>dor revela-se na agregação do grotesco com ohumor, aquele humor que po<strong>de</strong>remos avaliar o humor sorriso – “sorrisodo espírito” (Guérard:1998), mas um sorriso simultaneamentetriste e reflexivo.Parece-nos que Manuel Rui vai <strong>de</strong> encontro à <strong>de</strong>finição apresenta<strong>da</strong>por Alfredo Bosi (2000:191-192): “na luta contra a i<strong>de</strong>ologia e o estilo vigentes,o satírico e o parodista <strong>de</strong>vem imergir resolutamente na própriacultura. É <strong>de</strong>la que falam, é a ela que se dirigem. Tal imersão não se fazsem riscos e arrepios: não há nenhum outro género que <strong>de</strong>nuncie mais<strong>de</strong>pressa o partido do escritor, as suas antipatias, mas também as suasambigui<strong>da</strong><strong>de</strong>s morais e literárias” (107) .A actuali<strong>da</strong><strong>de</strong> é ain<strong>da</strong> trata<strong>da</strong> na <strong>obra</strong> O Manequim e o Piano(2005) (108) . Neste romance, Manuel Rui serve-se <strong>de</strong> um na<strong>rra</strong>dor particular(109) . A na<strong>rra</strong>tiva vai sendo construí<strong>da</strong>, quase exclusivamente,pelos diálogos entre Van<strong>de</strong>r, Alfredo e restantes personagens, num continuumfluente.Logo no início <strong>da</strong> <strong>obra</strong>, o leitor <strong>de</strong>para-se com uma <strong>de</strong>scrição “espacialelabora<strong>da</strong> por uma voz que se pensa logo ser a do na<strong>rra</strong>dor letrado,cúmplice <strong>da</strong> natureza que faz emergir pela falta compulsiva, sem pontuação,e em que nos faz imergir poeticamente. De repente, interrompendoesta fala indoma<strong>da</strong>, surge interparenteticamente uma espécie <strong>de</strong>marcação, ao mesmo tempo como se fosse rubrica e réplica dramática(<strong>de</strong>sta matéria falava a fala <strong>de</strong> Alfredo). Sua função, como a <strong>leitura</strong> <strong>de</strong>monstrará,será, com frequência, a <strong>de</strong> localizar os falantes e/ou na<strong>rra</strong>-49106O conceito <strong>de</strong> neo-patrimonialismo traduz situações em que o po<strong>de</strong>r do governante é excessivoe está <strong>de</strong>limitado entre a tradição e o arbítrio, don<strong>de</strong> o partido único é <strong>de</strong>corativo. A separação entre públicoe privado é ténue, havendo uma promiscui<strong>da</strong><strong>de</strong> entre público e privado, vulgarmente <strong>de</strong>signa<strong>da</strong> porcorrupção. Encontra teorias equivalentes na teoria marxista. Cf. Venâncio, José Carlos, O Facto Africano,Elementos para uma Sociologia <strong>de</strong> África, Lisboa, Vega Editores, 2000, p. 89 e segs.107Bosi, Alfredo, O Ser o Tempo <strong>da</strong> Poesia, São Paulo, Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2000.108A <strong>obra</strong> parece-nos uma longa conversa reflexiva, pon<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>, crítica e atenta do real e do espiritual.109<strong>Uma</strong> espécie <strong>de</strong> anotador.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveiradores e suas falas em directo, como se dá com a inaugural <strong>de</strong> Alfredo”(Laura Padilha:s/d) (110) . O efeito acaba por ser a intersecção do romancecom a teatrali<strong>da</strong><strong>de</strong> (111) que envolve os textos orais.A na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong>screve a chega<strong>da</strong> e permanência na província doHuambo (112) <strong>de</strong> dois ex-coronéis angolanos – Alfredo e Van<strong>de</strong>r –, <strong>de</strong>pois<strong>de</strong> termina<strong>da</strong> a gue<strong>rra</strong> civil, com o objectivo <strong>de</strong> começarem umavi<strong>da</strong> nova. A visão, logo à chega<strong>da</strong>, <strong>de</strong> um manequim nu, na montra<strong>de</strong> uma loja, revelar-se-á <strong>de</strong>terminante para o <strong>de</strong>senrolar <strong>da</strong> intriga.Assim, há to<strong>da</strong> uma série <strong>de</strong> relações que vão sendo estabeleci<strong>da</strong>sentre o “manequim” (<strong>da</strong> loja <strong>de</strong> um “mais velho”, e que se encontravanuma montra com o vidro estilhaçado em pe<strong>da</strong>ços) (113) , o “piano” (<strong>de</strong>dona Lour<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Melo, que os protagonistas ouviam, apreciavam ecomo que sentiam a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se <strong>de</strong>ixarem envolver pela música)e a casa (que todos diziam ser assombra<strong>da</strong>), <strong>da</strong> qual preten<strong>de</strong>mser proprietários (114) .Os ex-combatentes reencontram a família <strong>de</strong> Alfredo (115) , travamnovas relações e integram uma equipa (116) , liga<strong>da</strong> à construção <strong>de</strong> umcondomínio.As questões que se colocam são <strong>de</strong> diversa índole: problemas sociais(117) , falta <strong>de</strong> infra-estruturas (118) e <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-<strong>obra</strong> (119) , “corri<strong>da</strong>50<strong>de</strong> 2006.110Padilha, Laura, “O manequim e o piano, 2005”, in http://www.uea-angola.org. Acesso em Julho111Sobre este assunto ver o capítulo: “Da página à cena e à tela”.112Tal como em Rioseco o espaço <strong>da</strong> acção <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser Luan<strong>da</strong>.113Vidro esse que Alfredo e Van<strong>de</strong>r substituem, como que unindo metaforicamente os pe<strong>da</strong>ços fragmentados,em consequência <strong>da</strong> gue<strong>rra</strong>. Por sua vez, o manequim acaba por ser associado ao misticismo:“Van<strong>de</strong>r olhava o manequim como um aliado antigo. <strong>Uma</strong> espécie <strong>de</strong> feiticeira macho que se ocultava norespeito <strong>de</strong> quem lhe vestira a roupa” (O manequim e o piano, p. 272).114“Nunca fomos proprietários <strong>de</strong> uma casa como esta sem corrupção nem chutar ou man<strong>da</strong>r fugiros ocupantes, na<strong>da</strong>! Somos os proprietários ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros e <strong>de</strong> lei <strong>de</strong> casa assombra<strong>da</strong>” (i<strong>de</strong>m: 43).115A tia <strong>de</strong> Alfredo procura-o no programa <strong>de</strong> televisão “Ponto <strong>de</strong> Reencontro”. Kalufebe é uma figura extremamenterespeita<strong>da</strong> e admira<strong>da</strong> por todos, acaba por personificar o po<strong>de</strong>r dos “mais velhos” na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>:“é uma espécie <strong>de</strong> soba, uma rainha, tem muita gente à volta <strong>de</strong>la e move muita influência” (i<strong>de</strong>m, p. 148).116Chefia<strong>da</strong> por portugueses.117Referência à prostituição.118“O senhor tem razão é preciso a<strong>rra</strong>njar estra<strong>da</strong>s para fazer sair os produtos <strong>da</strong> agricultura senãofica tudo enga<strong>rra</strong>fado para <strong>de</strong>itar fora como o milho os morangos os loengos a batata (...) O governo queaumente a produção <strong>de</strong> petróleo e comece a <strong>de</strong>senvolver pelo menos as estra<strong>da</strong>s que ligam as provínciasmeu! Para on<strong>de</strong> é que vai a bala do petróleo <strong>de</strong> agora se acabou a gue<strong>rra</strong>” (i<strong>de</strong>m: 42).119“Ain<strong>da</strong> bem que vocês chegaram aqui. Há tanta coisa para fazer só que as pessoas não queremregressar à te<strong>rra</strong>. Só há camponeses que fugiram <strong>da</strong> gue<strong>rra</strong> que passava nas al<strong>de</strong>ias <strong>de</strong>les” (i<strong>de</strong>m:58).E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruiaos dólares” (120) , aspectos ambientais (121) , entre outros (122) .O leitor visualiza todo um conjunto <strong>de</strong> relações entre as árvores (“oseucaliptos pareciam fantasmas bons” (O manequim e o piano, p. 50));os animais (“<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que terminou a gue<strong>rra</strong> os animais estavam a voltaraos seus lugares” (i<strong>de</strong>m:55)); as flores e os frutos (numa sinestesia <strong>de</strong>cor e cheiro surgem os morangos (i<strong>de</strong>m:119), os malmequeres e buganvílias(i<strong>de</strong>m: 48), as acácias (i<strong>de</strong>m:53), as violetas (i<strong>de</strong>m: 140 e 379),a gipsófila (i<strong>de</strong>m:143), as rosas (i<strong>de</strong>m:379)); o tempo, nomea<strong>da</strong>mentea chuva (123) e as diferentes personagens, numa espécie <strong>de</strong> peça <strong>de</strong> teatro(124) representa<strong>da</strong> no palco on<strong>de</strong> aparentemente tudo está ligado porum fio invisível que começa no manequim e termina na casa (125) .Concluindo, Manuel Rui recorre ao humor e à ironia como métodos<strong>de</strong> análise, enquanto perspectiva crítica <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, relevando <strong>da</strong>complementari<strong>da</strong><strong>de</strong> traduzi<strong>da</strong> pela alternância e pela reversibili<strong>da</strong><strong>de</strong> doalvo <strong>da</strong> crítica.120A ironia está patente nos diálogos estabelecidos entre Alfredo e Van<strong>de</strong>r: “os camara<strong>da</strong>s que eramtodos comunistas e agora só pensam nos dólares eram virgens que agora são putas!”/ “<strong>Na</strong><strong>da</strong>. Deixa-mesó tomar nota. Parece-me que já eram putas que agora se querem passar por virgens. Entraram pela impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong>,pá!/ Não entendo!/ Caramba! <strong>Uma</strong> virgem po<strong>de</strong> vir a ser puta mas uma puta não po<strong>de</strong> vira ser virgem” (i<strong>de</strong>m:96).121Van<strong>de</strong>r confessa, na construção do condomínio e consequente <strong>de</strong>struição do habitat envolvente,“dói-me por <strong>de</strong>ntro ver a<strong>rra</strong>sar to<strong>da</strong>s essas árvores e plantas on<strong>de</strong> até há bocado já me passou um medicamentotradicional para a dor <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes e é assim que vamos ficar civilizados, é assim, tudo careca e vivaa tecnologia” (i<strong>de</strong>m: 297).122Apercebemo-nos, por exemplo, do processo <strong>de</strong> aquisição <strong>de</strong> uma casa <strong>de</strong>sabita<strong>da</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os papéis<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação até à “minuta do requerimento para confisco on<strong>de</strong> se diz que a casa está ocupa<strong>da</strong><strong>de</strong> forma pacífica e pública por ter sido abandona<strong>da</strong> há mais <strong>de</strong> vinte anos <strong>de</strong>sconhecendo-se os antigosproprietários que abandonaram o país. Depois vão fazer uma avaliação mas isso a avó controla. A seguirven<strong>de</strong>m ao ocupante <strong>de</strong> quitação. A seguir é tudo com o tio Lázaro. O pagamento <strong>da</strong> sisa e <strong>de</strong>pois fazer aescritura e registo predial” (i<strong>de</strong>m:380).123Sobre este assunto ver o capítulo do nosso trabalho: “Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo”, pp. 86-87.124Em que as anotações <strong>de</strong> Van<strong>de</strong>r parecem exercer a função <strong>de</strong> Coro.125“Existia qualquer nexo visível e lógico mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que haviam chegado ali, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro dia elogo-logo o manequim <strong>de</strong>spido, a loja do Matias, o bar restaurante “Ficacá”, os cupapatas para angariarempretas e até os nomes <strong>da</strong>s pessoas, a televisão e as <strong>de</strong>clarações <strong>da</strong> velha Kalufele, o doutor dos registosou o padre Ta<strong>de</strong>u, os dois nomes <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> pessoa, os telefones celulares e os rádios <strong>de</strong> comunicação, configuravam-secomo uma equação <strong>de</strong> um qualquer matemático que Van<strong>de</strong>r resistia a não aceitar fora <strong>da</strong> suateimosia lógica sempre no pressuposto <strong>de</strong> “que enquanto um gajo não <strong>de</strong>scobre é um mistério e assim que<strong>de</strong>scobre passa a ser um <strong>da</strong>do científico explicável como os trovões, po<strong>rra</strong>!”” (i<strong>de</strong>m: 312-313).512007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraA ESCOLA DO REAL“A ironia é o disfarce que conduz à essência<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>”.Aristóteles“A aceitação progressiva <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> é umatarefa sem fim”.Winicott“Le romancier se soucie <strong>de</strong> la realité socialevécue essentiellement comme une expériencecollective”.Sun<strong>da</strong>y Anozie52Manuel Rui Alves Monteiro nasce em 1941 em Nova Lisboa/Angola.Licencia-se em Direito, em Coimbra (126) , on<strong>de</strong> vive por alguns anos.Em Portugal contacta com outros estu<strong>da</strong>ntes ultramarinos, colaborandona Casa dos Estu<strong>da</strong>ntes do Império em Coimbra, coopera ain<strong>da</strong> narevista Vértice, on<strong>de</strong> publica as suas primeiras crónicas.Membro do MPLA, tem uma vi<strong>da</strong> bastante activa em termos <strong>de</strong> intervençãosocial, exercendo cargos diversos: professor universitário, reitor<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Huambo, funcionário superior <strong>da</strong> Diamang, jurista,126Para o autor, Coimbra seria um óptima influência, uma espécie <strong>de</strong> segun<strong>da</strong> pátria: “apanhei osgran<strong>de</strong>s movimentos académicos: as greves e a luta contra o fascismo. Num tempo em que os estu<strong>da</strong>ntestinham i<strong>de</strong>ologia. Portanto, lutávamos contra o fascismo e contra o colonialismo. Não lutávamos parapagar menos propinas, nem para termos mais férias, ou ain<strong>da</strong> para em vez <strong>de</strong> passar com <strong>de</strong>z, passar comnove... Porque, também era essa a luta <strong>da</strong> própria classe operária: era a luta com i<strong>de</strong>ologia. Obviamenteque para além disso, tive a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar numa revista, “Vértice”, que era uma revista <strong>de</strong> esquer<strong>da</strong>,e que faz parte <strong>da</strong> história cultural <strong>de</strong>ste país, nomea<strong>da</strong>mente, no que concerne ao neo-realismo. Tudoisso contribuiu para a minha formação...”Op. cit. Entrevista em anexo, pp. 164-165.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruicronista <strong>de</strong> rádio e televisão, autor <strong>de</strong> hinos e canções, poeta, contista(127) e autor <strong>de</strong> literatura infantil.Dividi<strong>da</strong> a activi<strong>da</strong><strong>de</strong> pelos domínios <strong>da</strong> ficção, do ensaio e <strong>da</strong> críticaliterária, o resultado será uma vastíssima <strong>obra</strong> (128) .Curiosamente, Manuel Rui tem parte <strong>da</strong> sua <strong>obra</strong> traduzi<strong>da</strong> em espanhol,francês, inglês, sueco, finlandês e outras línguas.A ligação constante com a cultura brasileira, nomea<strong>da</strong>mente através<strong>da</strong> figura <strong>de</strong> Jorge Amado, assim como a <strong>obra</strong> <strong>de</strong> Luandino Vieira (129) sãoaspectos relevantes na sua formação.O riso e a reflexão crítica que provoca no leitor atento são possibilitadospelo humor e ironia. Manuel Rui tentaria “pelo humor, penetrar emáreas que a censura normalmente cortava” (Laban:1991:719).Po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar na sua <strong>obra</strong> duas fases distintas fruto <strong>da</strong> suaprópria história <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. Assim sendo, a primeira fase seria aquela produzi<strong>da</strong>em Portugal antes <strong>de</strong> 1974, on<strong>de</strong> há uma busca do “eu” cultural eliterário marcado pela pré-angolani<strong>da</strong><strong>de</strong>, e uma segun<strong>da</strong> fase domina<strong>da</strong>pela extrospecção e por um certo di<strong>da</strong>ctismo, registando os principaiseventos por que passava a revolução (Venâncio: 1996b) (130) .É precisamente sobre esta segun<strong>da</strong> fase que <strong>de</strong>bruçaremos anossa atenção, <strong>da</strong>ndo uma visão particular ao nosso corpus <strong>de</strong> análise127Manuel Rui consi<strong>de</strong>ra-se um contador <strong>de</strong> histórias. Confi<strong>de</strong>nciou-nos, na entrevista que gentilmentenos ce<strong>de</strong>u, que se sente como tal. Relembrou com sau<strong>da</strong><strong>de</strong> o tempo em que, em Portugal, diziapoesia <strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia em al<strong>de</strong>ia: “poemas como o “<strong>Na</strong>moro” <strong>de</strong> Viriato <strong>da</strong> Cruz Man<strong>de</strong>i-lhe uma carta em papelperfumado/ e com letra bonita eu disse ela tinha/ um sorrir luminoso tão quente e gaiato/ como o sol <strong>de</strong> Novembrobrincando.... Era uma coisa esplendorosa, acrescenta”. I<strong>de</strong>m, p. 164.128[Poesia] Poesia sem notícias, 1967, Porto; A On<strong>da</strong>, 1973, Coimbra, Centelha; 11 Poemas em Novembro(Ano 1), 1976, Luan<strong>da</strong>, UEA; 11 Poemas em Novembro (Ano 2), 1977, Luan<strong>da</strong>, UEA; 11 Poemasem Novembro (Ano 3), 1978, Luan<strong>da</strong>, UEA. Agricultura. Poemas, 1978. Luan<strong>da</strong>. Ed. Conselho <strong>Na</strong>cional<strong>de</strong> Cultura/Instituto Angolano do Livro. Poemas em Novembro (Ano 4), 1979, Luan<strong>da</strong>, UEA. Poemas emNovembro (Ano 5), 1980, Luan<strong>da</strong>, UEA. Poemas em Novembro (Ano 6), 1981, Luan<strong>da</strong>, UEA. Poemas emNovembro (Ano Sete), 1984, Luan<strong>da</strong>, UEA. Cinco Vezes Onze Poemas em Novembro, 1988, Luan<strong>da</strong>. UEA.[Prosa] Regresso Adiado. 1974. Lisboa. Plátano Editora. Sim Camara<strong>da</strong>! 1977. Lisboa. Edições 70. CincoDias <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência. 1979. Lisboa. Edições 70. Memória <strong>de</strong> Mar. 1980. Luan<strong>da</strong>. UEA. Quem me<strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>. 1982. Luan<strong>da</strong>, INALD. Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo. 1989. Luan<strong>da</strong>. UEA. Um Morto & os Vivos.1993. Lisboa. Cotovia. Rioseco. 1997. Lisboa. Cotovia. [livro infantil] A Caixa. 1977. Luan<strong>da</strong>. [O manequime o piano, Lisboa, Cotovia, 2005]. Gomes, Aldónio et Cavacas, Fernan<strong>da</strong>, Dicionário <strong>de</strong> Autores <strong>de</strong> LiteraturasAfricanas <strong>de</strong> língua portuguesa, Lisboa, Caminho, 1997, p. 243-244.129O escritor <strong>de</strong>staca a influência dos dois escritores como algo natural, na “construção do texto e <strong>da</strong>história”. Op. cit. Entrevista em anexo, p. 156.130Venâncio, José Carlos, Colonialismo, Antropologia e Lusofonias – Repensando a presença portuguesanos trópicos, Lisboa, Vega, 1996b.532007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira– Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>, Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo e 1 Morto & Os Vivos(“De Um Comba”).As situações <strong>de</strong>scritas pelo autor dão voz e forma à <strong>de</strong>núncia social eà crítica do real (131) . O realismo é então o registo <strong>de</strong> análise <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>,no seu quotidiano. A <strong>obra</strong> literária torna-se veículo <strong>de</strong> crítica às instituições,à burguesia e a <strong>de</strong>terminados comportamentos.O discurso, no que <strong>de</strong>nota e no que pressupõe, dá conta <strong>da</strong> históriasocial e política que mol<strong>da</strong> os caracteres geográficos e económicos econstrói grupos <strong>de</strong> personagens em função <strong>de</strong> predicados comuns querepresentam <strong>de</strong>terminados sistemas <strong>de</strong> valores.Não nos é difícil, através <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> sua <strong>obra</strong>, reconstruir umavisão <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana. Manuel Rui <strong>de</strong>sven<strong>da</strong> to<strong>da</strong>s as mazelas que<strong>de</strong>formam a burguesia e critica-as.Convém ter presente que o escritor se serve do humor, <strong>da</strong> sátira e <strong>da</strong>ironia para <strong>de</strong>screver e causticar o real (132) .Para Pires Laranjeira (1994a: 223) a interpretação <strong>da</strong>quilo que enten<strong>de</strong>mospor real é mutável se aten<strong>de</strong>rmos à situação geográfica <strong>de</strong> umqualquer escritor: “a representação do real implica uma sua percepção,que, para os africanos, povos <strong>de</strong> um continente específico, po<strong>de</strong>rá significarum modo especial <strong>de</strong> sentir e perceber o mundo” (133) .<strong>Na</strong>turalmente que há aspectos que o escritor africano nos retrataque são comuns às diversas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s, contudo, a singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>-54131Roland Barthes (1953[1964]:24) <strong>de</strong>staca essa interligação arte-real: “a escrita é uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong>ambígua: por um lado, nasce incontestavelmente <strong>de</strong> um confronto entre o escritor e a sua socie<strong>da</strong><strong>de</strong>,por outro lado, por uma espécie <strong>de</strong> transferência mágica, remete o escritor, <strong>de</strong>ssa finali<strong>da</strong><strong>de</strong> social paraas fontes instrumentais <strong>da</strong> sua criação”. Barthes, Roland, O grau zero <strong>da</strong> escrita, Paris, Éditions du Seuil,1953[1964].<strong>Na</strong>turalmente que tal como documenta Ricoeur (1991:55): “a vi<strong>da</strong> humana é simbolicamente mediatiza<strong>da</strong>,qualquer conceito <strong>de</strong> real é interpretativo”. Ricoeur, Paul, I<strong>de</strong>ologia e utopia, Lisboa, Edições70, 1991.132O romance social torna-se meio <strong>de</strong> crítica a instituições, à hipocrisia burguesa (avareza, inveja,usura), à vi<strong>da</strong> urbana (tensões sociais, económicas, políticas), à religião e à socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, interessando-sepela sua análise, pela representação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> circun<strong>da</strong>nte, do sofrimento, <strong>da</strong> corrupção e do vício.Goldmann refere a importância do real na construção <strong>da</strong> catarse: “la création culturelle compense ainsi lemélange et les compromis que la réalité impose aux sujets et facilite leur insertion <strong>da</strong>ns le mon<strong>de</strong> réel, cequi est peut-être la fon<strong>de</strong>ment psychologique <strong>de</strong> la catharsis”. Goldmann, Lucien, Pour une sociologie duroman, Éditions Gallimard, 1964, p. 364.133Laranjeira, Pires, A negritu<strong>de</strong> africana <strong>de</strong> língua portuguesa, Coimbra, Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras,1994a.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruiterminados escritores, tal é o caso <strong>de</strong> Manuel Rui, permite-nos enquadrá-losnum <strong>da</strong>do momento e contexto vivenciais, não queremos dizercom isto que as suas <strong>obra</strong>s não perdurem pelos horizontes <strong>da</strong> <strong>leitura</strong> enão sejam intemporais e comuns em termos <strong>de</strong> temáticas a diversos escritoreseuropeus, por exemplo, contudo, não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> se enquadrarnuma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> vivência e perspectivas peculiares.Aqui a tarefa do leitor e crítico será aquela a que faz alusãoÓscar Lopes (1996:10): “son<strong>da</strong>r o que há <strong>de</strong> progressista numa <strong>obra</strong>e perguntar-se em que medi<strong>da</strong> essa <strong>obra</strong> sob aspecto factual e i<strong>de</strong>al,correspon<strong>de</strong>, ou não, à época”. Isto porque “uma <strong>obra</strong> <strong>de</strong> arte entrafatalmente, aqui ou além, em contradição com outras visões que temos<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>” (134) .Esta situação <strong>de</strong> enquadramento temporal e geográfico permite-nos<strong>de</strong>senhar aquele que seria o fio <strong>de</strong> Ariadne do autor, ou seja, o Realismo(135) . Um realismo “sem nenhuma palavra à frente” (Laban:1991:730),garantido à literatura angolana pelo “próprio processo dos escritores, <strong>da</strong>ssuas marcas culturais, dos seus vínculos i<strong>de</strong>ológicos ” (i<strong>de</strong>m:ibi<strong>de</strong>m).A literatura ocupa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, uma posição privilegia<strong>da</strong> no quadro<strong>da</strong> construção <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s, do (re)estabelecimento <strong>da</strong>s estruturasou supra-estruturas sociais e culturais, bem como <strong>da</strong>s relaçõesentre elas.Manuel Rui argumentaria (i<strong>de</strong>m: 731) que o escritor angolano estáinserido numa socie<strong>da</strong><strong>de</strong> que constitui a sua “família”, consequentementea sua produção literária, porque membro integrante <strong>de</strong>sse “agregadofamiliar”, tem “uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> do que se escreve. Umescritor inserido noutra socie<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>leitar-se só em <strong>de</strong>bicar osaspectos negativos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Aqui, o escritor estando inserido, temque pon<strong>de</strong>rar a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> no seu todo” (i<strong>de</strong>m:ibi<strong>de</strong>m).551996.134Lopes, Óscar, “Em torno do realismo social”, Vértice nº 75, Dezembro, Lisboa, Editorial Caminho135Philippe Hamon (1979: 142-143) <strong>de</strong>staca uma espécie <strong>de</strong> “speach-act” [Austin Searl] como aessência do Realismo, isto é, o realismo <strong>de</strong>finir-se-ia pela postura e situação específicas <strong>de</strong> comunicação.Sendo que, “elaborar uma tipologia do discurso realista supõe uma constituição <strong>de</strong> um novo conceito<strong>de</strong> realismo que não seja nem o sentido I (realismo textual) nem sentido II (realismo simbólico), on<strong>de</strong> aproblemática <strong>de</strong>termina que a linguagem só po<strong>de</strong>ria imitar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>” (i<strong>de</strong>m:135). Hamon, Philippe,“Para Um Estatuto Sociológico <strong>da</strong> personagem”, in Rossum-Guyon, Françoise Van, Hamon, Philippe etSallenave, Daniele, Categorias <strong>da</strong> <strong>Na</strong><strong>rra</strong>tiva, Lisboa, Arcádia, 1979.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraSe o disse, melhor o fez. De facto, basta recorrermos às páginas <strong>da</strong>sua <strong>obra</strong> para confrontarmos a veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sta afirmação. A socie<strong>da</strong><strong>de</strong>seria analisa<strong>da</strong> numa perspectiva simultaneamente crítica e exegeta,pon<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> e reflexiva.Inocência Mata (1992:37) aponta nesta mesma direcção quandoafirma: “o primeiro convite que a <strong>leitura</strong> <strong>de</strong> Manuel Rui nos sugereé uma análise sociológica: a <strong>leitura</strong> <strong>de</strong> uma teia textual em que quasenuma visão caleidoscópia, Angola actual – através <strong>da</strong> sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong>-cérebro– se nos apresenta, é li<strong>da</strong>, é analisa<strong>da</strong> na sua trama social, na sua Históriae na sua Cultura social” (136) .Desta forma, a <strong>obra</strong> <strong>de</strong>ste escritor constituir-se-á como porto <strong>de</strong> paragemobrigatória para visitar consi<strong>de</strong>rações, rumos, vivências, costumese usos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana, nomea<strong>da</strong>mente <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong> (137) ,palco privilegiado <strong>da</strong>(s) na<strong>rra</strong>tiva(s). As personagens e a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, queacabam por personificar, são vistas sob a lupa atenta do na<strong>rra</strong>dor.Da sua pena irónica transparece uma vasta gama <strong>de</strong> figuras. Usandoficção e crítica social, o autor colhe as coor<strong>de</strong>na<strong>da</strong>s “culturais, históricas,políticas e linguísticas do seu povo bem como a matriz referencialista eironizante do processo realista” (138) .Manuel Rui procura aten<strong>de</strong>r ao contexto histórico-social, servindo-se<strong>da</strong> crítica (139) à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> burguesa e à falsi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos seus valores, assimcomo <strong>da</strong> introspecção psicológica <strong>da</strong>s personagens (Cf. Feijó, Crónica <strong>de</strong>Um Mujimbo).A representação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> burguesa, através do recurso a personagens-tipo(140) , naquilo que ela possa ter <strong>de</strong> mais <strong>de</strong>sagradável ou negati-56136Mata, Inocência, Pelos trilhos <strong>da</strong> Literatura africana <strong>de</strong> Língua portuguesa, Pontevedra/Braga, Irman<strong>da</strong><strong>de</strong>s<strong>da</strong> fala <strong>da</strong> Galiza e Portugal, 1992.137Luan<strong>da</strong> é, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras <strong>obra</strong>s, o espaço privilegiado na na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Rui. Exemplifiquemoscom Sim Camara<strong>da</strong> (1977), livro “<strong>de</strong> grupos, dirigido àqueles que po<strong>de</strong>m receber em cheio oimpacte do relato <strong>de</strong> episódios <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> nacional – principalmente <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong> – no momento emque eles se tornam história. Destaca-se a geografia <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong> on<strong>de</strong> se travaram as escaramuças <strong>de</strong>cisivas<strong>da</strong> gue<strong>rra</strong> civil –a Segun<strong>da</strong> Gue<strong>rra</strong> <strong>da</strong> Libertação”. Hamilton, Russell, Literatura africana. Literatura necessária.Vol I, Lisboa, Edições 70, 1983, p. 192.138Men<strong>de</strong>s, José Manuel, Manuel Rui: uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> construí<strong>da</strong> <strong>da</strong> resistência à libertação, Paris,Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian, 1985, p. 103.139“Ele [Manuel Rui] é mesmo crítico, não no sentido <strong>de</strong> ensaísta mas <strong>de</strong> filósofo. Prosopopeia, sátira<strong>de</strong> realismo <strong>de</strong>scarado ele usa em Quem me <strong>de</strong>ra ser On<strong>da</strong> com à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> dono <strong>de</strong> argumentação e <strong>de</strong>re<strong>da</strong>cção”. Macedo, Jorge, Literatura angolana e texto literário, Estudos contemporâneos, 1989, p. 105.140Tal como afirma Lukács: “a categoria realista é o tipo, ou seja, a síntese particular que, tanto noE-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruivo (a usura, a ambição, a avareza, a cobiça, a corrupção, entre outros);a representação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> urbana; a análise <strong>da</strong>s relações e dos conflitossociais, em suma, a <strong>de</strong>núncia e a análise crítica dos vícios <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>,corporizados em personagens-tipo (141) constituem objecto privilegiadodos realistas e, naturalmente, <strong>de</strong> Manuel Rui.Refira-se que a par <strong>da</strong>s <strong>de</strong>scrições realistas, verídicas, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do quotidiano,surge também o conto alegórico –Memória <strong>de</strong> mar (142) –, emboraeste <strong>de</strong>sempenhe um papel mais limitado na na<strong>rra</strong>tiva do autor. O problema<strong>da</strong> colonização é tratado nestas na<strong>rra</strong>tivas indirectamente, <strong>de</strong>staforma, entrecruza-se realismo crítico, com a <strong>de</strong>scrição dos costumes, <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> quotidiana, assim como, elementos do “realismo mágico”.Manuel Ferreira (143) argumenta que “o universo que ele [Manuel Rui]estrutura tem como suporte referências que o enriquecem <strong>de</strong> uma perspectivadinâmica. E fá-lo a partir <strong>de</strong> um conhecimento real e efectivo”.Apesar <strong>de</strong> ficção na<strong>rra</strong>tiva e reali<strong>da</strong><strong>de</strong> serem parâmetros distintos, afronteira que os une e separa é aliciante para qualquer crítico, não sendonossa intenção limitar a ficção a uma transposição <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> (144) é,contudo possível, e tendo em conta o contexto histórico em que as <strong>obra</strong>sse inserem, verificar que a situação realmente vivi<strong>da</strong> pelos habitantes<strong>de</strong> Luan<strong>da</strong> confere a verosimilhança necessária ao texto, não limitando,contudo, a intemporali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> na<strong>rra</strong>ção, e, concomitantemente, dos vacampodos caracteres como no <strong>da</strong>s situações, una organicamente o genérico e o individual, ain<strong>da</strong> queaprofun<strong>da</strong>do, não pelo facto <strong>de</strong> nele confluírem e se fundirem todos os momentos <strong>de</strong>terminados, humanae socialmente num período histórico”. Op. cit. Salinari, Carlos, “A arte como reflexo e problema do realismo”,in Vértice 440/441,Jan.-Abr, Lisboa, Editorial Caminho, 1981.141As mais funcionais para a representação <strong>de</strong> <strong>de</strong>feitos <strong>de</strong> grupos ou <strong>de</strong> sectores <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.142Quatro participantes <strong>da</strong> gue<strong>rra</strong> <strong>da</strong> libertação – o protagonista-na<strong>rra</strong>dor; um Major <strong>da</strong>s FAPLA,um sociólogo e um historiador param numa ilha <strong>de</strong>serta, no futuro, dois anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>scolonização,antes a ilha pertencia aos padres, representantes do sistema colonial, com os seus preconceitos raciaise sociais. A ironia assume-se como recurso expressivo, quando, por exemplo, num barco sem rumo, aosabor <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s, o Prior, cheio <strong>de</strong> fervor faz sacrifícios a Quian<strong>da</strong>, como qualquer pagão.Aqui o escritor teve como objectivo “não atacar o real como ele se afigura, mas sempre mais peloimaginário”. Laban, Michel, op. cit. p. 730.143Ferreira, Manuel, Prefácio à 2ª edição <strong>de</strong> Regresso Adiado.144Sobre esta temática retenham-se as palavras <strong>de</strong> Ian Walt: “se o romance fosse realista apenas porver os “bastidores” <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, não seria mais do que um “romance” (no sentido antigo) invertido; mas é evi<strong>de</strong>nteque tenta, <strong>de</strong> facto, <strong>de</strong>screver to<strong>da</strong>s as varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> experiência humana, e não só as que são maisconvenientes num ponto <strong>de</strong> vista literário específico: o realismo do romance não resi<strong>de</strong> no género <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>que representa, mas sim na forma como o faz”. Op. cit. Barthes, Roland [et alli], Literatura e reali<strong>da</strong><strong>de</strong>:Que é o realismo?, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1984, p. 16.572007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira58lores veiculados (145) . Alguns estudiosos chamariam a este particularismoestético: realismo africano (146) .Conforme o preconizado pelo ensaísta brasileiro António Candido(1987:163-164) “a ligação entre a literatura e a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> é percebi<strong>da</strong> <strong>de</strong>maneira viva quando tentamos <strong>de</strong>scobrir como as sugestões e influênciasdo meio se incorporam à estrutura <strong>da</strong> <strong>obra</strong> – <strong>de</strong> modo tão visceralque <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser propriamente sociais, para se tornarem a substânciado acto criador” (147) . Ora tal relação é compreendi<strong>da</strong> através <strong>da</strong> análise<strong>de</strong> textos significativos. Parece-nos que a <strong>obra</strong> <strong>de</strong> Manuel Rui se inserenestas observações sobre a forma como a ficção respon<strong>de</strong> <strong>de</strong> “maneiraviva” à referenciali<strong>da</strong><strong>de</strong>.O autor traça parodicamente a ineficácia do sistema político e socialimplantado pelo MPLA, o nascimento <strong>de</strong> uma nova burguesia e a corrupçãorelaciona<strong>da</strong> com a má distribuição dos bens <strong>de</strong> primeira necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>no período a seguir à in<strong>de</strong>pendência (Cf. Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>), umasocie<strong>da</strong><strong>de</strong> tradicional em que a informação é indispensável, uma organizaçãopolítica burocratiza<strong>da</strong> que preten<strong>de</strong> sonegar aquela (Cf. Crónica<strong>de</strong> um Mujimbo), o adultério e a relação <strong>da</strong> burguesia com as instânciasdo po<strong>de</strong>r (“De Um Comba”).Numa linha realista, <strong>de</strong> escrita <strong>de</strong> testemunho real, a percepção própriado mundo circun<strong>da</strong>nte e a presença <strong>de</strong> registos diversos na enunciaçãoenriquecem a literatura <strong>de</strong> Manuel Rui, a voz do autor implícito reflectesobre as circunstâncias histórico-sociais, levando-nos a questionar, in<strong>da</strong>gar,problematizar e <strong>de</strong>bater o arco-íris temático que a sua <strong>obra</strong> ence<strong>rra</strong>.Já Helena Riaúzova (s/d) salientava a importância <strong>da</strong> ligação dos prosadoresangolanos com a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional “em formação”, que a consi<strong>de</strong>ravamuma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> separa<strong>da</strong> do carácter especificamente nacional,145“O objectivo estético, se bem que produto <strong>de</strong> uma época e enquadrando-se num contexto, transcen<strong>de</strong>as limitações do imediato, pela sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> autonomia, projectando-se na utopia <strong>da</strong> intemporali<strong>da</strong><strong>de</strong>e do absoluto”. Laranjeira, Pires, De letra em riste – i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, autonomia e outras questões na literatura<strong>de</strong> Angola, Cabo-Ver<strong>de</strong>, Moçambique e S. Tomé e Príncipe, Porto, Edições Afrontamento, 1992, p. 98.146“À circunstância <strong>de</strong> a ficção ser geralmente construí<strong>da</strong> sobre um fundo histórico ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro (co--existindo como que duas histórias paralelas, sendo uma ficção e outra reali<strong>da</strong><strong>de</strong>) constitui matéria bastantepara que críticos literários, africanistas, tivessem visto aí um particularismo estético que passarama <strong>de</strong>signar <strong>de</strong> realismo africano (...) por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong>le está um outro fenómeno, o do dualismo cultural”.Venâncio, José Carlos, Literatura versus socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. <strong>Uma</strong> visão antropológica do <strong>de</strong>stino angolano, Lisboa,Lisboa, Vega, 1992a, p. 49.147Candido, António, A educação pela noite & outros ensaios, São Paulo, Editora Ática, 1987.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruios escritores ascendiam, <strong>de</strong>sta forma, “a um nível mais alto, sublinhandoa essência <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a humani<strong>da</strong><strong>de</strong> que representam” (i<strong>de</strong>m: 88-89).Esta visão eminentemente crítica <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> do seu tempo resultaduma gran<strong>de</strong> preocupação em modificar as formas <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, renovar asmentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s e transformar a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.O riso é, antes <strong>de</strong> tudo, uma correcção: “através <strong>de</strong>le se vinga a socie<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>da</strong>s liber<strong>da</strong><strong>de</strong>s pratica<strong>da</strong>s para com ela. Não atingiria o seu fim setrouxesse a marca <strong>da</strong> simpatia ou <strong>da</strong> bon<strong>da</strong><strong>de</strong>”(Bergson:1993:134).Manuel Rui é, em suma, escritor <strong>de</strong> atmosferas, on<strong>de</strong> o seu sentidosociológico (148) e reflexão crítica sobre a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna tornam-nonum dos nomes <strong>de</strong> relevo <strong>da</strong> literatura angolana.Neste sentido, o contexto assume importância acresci<strong>da</strong>, tal comorefere Aguiar e Silva (1997:296): “a dimensão contextual, atinente àsrelações externas do texto, representa a abertura do texto literário à historici<strong>da</strong><strong>de</strong>do homem, <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e do mundo, quer no momento <strong>da</strong>sua produção, quer no momento <strong>da</strong> sua recepção” (149) .Assim, a ca<strong>da</strong> passo vemos o na<strong>rra</strong>dor a surpreen<strong>de</strong>r em flagrantepequenos pormenores, gestos, vemo-lo ain<strong>da</strong> a estabelecer o contrasteentre as intimi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, observamo-lo a conduzir o diálogo entre as personagens-tipo<strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.A sátira, a ironia e o humor constituirão uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira mundividência,<strong>de</strong>cisivos factores <strong>de</strong> análise e <strong>de</strong> representação <strong>da</strong>s coisas, doshomens e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> (150) .É <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong> que faz as <strong>leitura</strong>s críticas e traz os conflitos, que as tornarãoprofícuas.148Anozie (1970) <strong>de</strong>staca, no romance, o seu carácter aberto, cosmopolita e realista, na sua forma<strong>de</strong> expressão: “il [roman] s´accomo<strong>de</strong> d´ailleurs <strong>de</strong> tous les hasards <strong>de</strong>s changements sociaux, particulièrementà une époque où augmentent les facilités <strong>de</strong> l´education populaire et où règne un état <strong>de</strong> mobilitépsychique et sociale. Alors paraît évi<strong>de</strong>nt la fonction primordiale du roman comme art social, c´-est-à--dire comme une version orchestrée <strong>de</strong> réalité nouvelle ”. Anozie, Sun<strong>da</strong>y O., Sociologie du Roman Africain,Mayenne, Aubier-Montaigne, 1970, p. 15.149Aguiar e Silva, Vitor Manuel, Teoria <strong>da</strong> literatura, Coimbra, Almedina, 1997.150“A literatura e a cultura são valores ou subsistemas sociais que funcionam interligados, como umperfeito sistema <strong>de</strong> vasos comunicantes, interagindo uns com os outros sempre em busca <strong>de</strong> equilíbriosdinâmicos, assentes em rupturas no statu quo, criando o caos, como forma <strong>de</strong> revitalização, <strong>de</strong> renovação.Esse é o po<strong>de</strong>r do diálogo na e com a cultura que, a par <strong>da</strong> literatura, constitui um autêntico contra-po<strong>de</strong>r;o verso e o anverso <strong>de</strong>sse ser vivo chamado socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, tantas vezes alimentado até à sacie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Com tudo,menos cultura” Cristóvão, Conceição, “po<strong>de</strong>r, literatura e cultura”, in http://www.uea-angola.org, 2001.Acesso em Abril 2005.592007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira60O crítico social que em Manuel Rui se manifesta e que tanta importânciatem na génese <strong>da</strong> sua personali<strong>da</strong><strong>de</strong> irónica não limita a sua<strong>obra</strong> a uma transposição do real (aliás isso, segundo o próprio (151) , nãoseria literatura), mas antes uma atenta reflexão crítica e simbólicasobre o mesmo.A escrita <strong>de</strong> Manuel Rui consi<strong>de</strong>ra novas reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s culturais distintasque possibilitam uma nova visão <strong>de</strong> Angola. Tem como ponto <strong>de</strong> referênciaum cenário urbano, palco <strong>de</strong> acções, mu<strong>da</strong>nças e atitu<strong>de</strong>s.É iniludível que Manuel Rui nos pren<strong>de</strong> num olhar <strong>de</strong>nso, reflexivoe pon<strong>de</strong>rante sobre o mundo e aquilo que lhe é intrínseco, <strong>de</strong>sta forma,retrata a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, do seu país e <strong>da</strong> sua nação.É certo que “to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> é já uma “<strong>leitura</strong>” <strong>de</strong>la, por mais elementarque seja, é já a afirmação <strong>de</strong> uma “subjectiva” escolha a<strong>de</strong>ntro<strong>da</strong>s propostas que se con<strong>de</strong>nsaram em “objectivi<strong>da</strong><strong>de</strong>” na <strong>leitura</strong> dos quenos prece<strong>de</strong>ram” (Ferreira:1977:10) (152) .O que se escon<strong>de</strong> em ca<strong>da</strong> lugar <strong>de</strong>scrito e ca<strong>da</strong> personagem <strong>de</strong>sven<strong>da</strong><strong>da</strong>é uma parte <strong>de</strong> uma sabedoria estrategicamente estrutura<strong>da</strong> e emdoses sabiamente calcula<strong>da</strong>s.Por <strong>de</strong>trás <strong>da</strong>s personagens, dos lugares, <strong>da</strong>s gentes e dos acontecimentosrevelam-se comportamentos, modos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, i<strong>de</strong>ias sobre omundo, o homem e as coisas, valores que se insinuam e sobre os quais apena crítica inci<strong>de</strong> e nos leva a reflectir.Transpõe um universo on<strong>de</strong> se movem personagens representativas<strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> em mutação e on<strong>de</strong> se evi<strong>de</strong>nciam encontros e<strong>de</strong>sencontros.As personagens-tipo, as analogias simbólicas, as concepções retrata<strong>da</strong>s,as sátiras e o esforço pela concisão, pelo lance único e insubstituível,permitem que como leitores apren<strong>da</strong>mos o mais íntimo pensamentodo autor.O enunciado orienta-se numa perspectiva analista e crítica, relativamenteà política, aos valores, ao egoísmo, ao individualismo, à corrupção(...) <strong>de</strong> uma classe social – a burguesia.151Op. cit. Entrevista em anexo, p. 164.152Ferreira, Manuel, Literaturas africanas <strong>de</strong> expressão portuguesa, Vol. II, Ven<strong>da</strong> Nova / Amadora,Biblioteca Leve, 1977.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiFernando Hilário (2006:21) consi<strong>de</strong>ra, referindo-se a Quem me <strong>de</strong>raser On<strong>da</strong>, a articulação entre real e verossímil (153) , “numa implicaçãotemporal <strong>de</strong> passado-presente-futuro, são trazidos pelo autor para a na<strong>rra</strong>tivae habilmente manipulados por um na<strong>rra</strong>dor que, não <strong>de</strong>ixando<strong>de</strong> participar na diegese, <strong>de</strong>ixa que a estória seja, essencialmente, umahistória <strong>de</strong> personagens com suas tramas, per<strong>da</strong>s e ganhos, sonhos e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s,criando uma verosimilhança que se aceita próxima <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>”.Parece-nos que a citação é aplicável, não só à novela supra, como tambémao corpus que analisaremos.61153Pedro Barbosa esclarece-nos sobre este conceito: “consi<strong>de</strong>rando o imaginário como a criaçãodiscursiva <strong>de</strong> um universo possível proporemos apeli<strong>da</strong>r <strong>de</strong> “verosímil” a concordância entre os acontecimentos“ocorridos” nesse universo fictício e as leis por que se rege esse “mundo possível”. Barbosa, Pedro,Metamorfoses do Real; Arte, Imaginário e Conhecimento Estético, Porto, Edições Afrontamento, ColecçãoGrand´Angular, 1995, p. 125.2007 E-BOOK CEAUP
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiPARTE .02632007 E-BOOK CEAUP
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiBURGUESISMOS“O humor é a subtileza dum sentimentoprofundo”.Dostoiewski“O escritor é um pe<strong>da</strong>gogo, mesmo se nãosuspeita disso, pe<strong>da</strong>gogo ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro queeduca to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>”.Pepetela“Quando me perguntam se estou empenhadono segredo <strong>de</strong> justiça, costumo dizer que lutoé contra o segredo <strong>da</strong> injustiça”.Manuel RuiQuem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>O texto constitui-se como um conjunto <strong>de</strong> signos cuja aparência superficialescon<strong>de</strong> o sentido pretendido pelo autor, a ser <strong>de</strong>scoberto. Através<strong>da</strong> sátira causticam-se os “<strong>de</strong>svios” <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong> (154) , enquanto a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>se<strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r instituído.Num olhar crítico e sagaz, com uma feição satírica própria <strong>de</strong> umcerto surrealismo que engendra o distanciamento face à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e65154Luan<strong>da</strong> será o espaço por excelência <strong>da</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> crítica social <strong>de</strong> Manuel Rui. Lembremos UmAnel na Areia, on<strong>de</strong>, a par <strong>da</strong> <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong>s vivências <strong>de</strong> Marina e Lau, jovens enamorados, surge a críticasocial, como elemento interno do texto, quer como impedimento à realização dos sonhos, quer a partir<strong>da</strong> falta <strong>de</strong> emprego e <strong>de</strong> oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, a carência <strong>de</strong> moradia, a mobilização para a tropa, ou ain<strong>da</strong> acorrupção. As palavras <strong>de</strong> Marina, personagem principal são conclusivas: “nem Kian<strong>da</strong>, nem Deus, nemnenhum partido político ou uma gue<strong>rra</strong> po<strong>de</strong> passar por cima <strong>da</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> juventu<strong>de</strong>” (p. 88).2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira66procura equacioná-la à luz <strong>de</strong> um “caos” invisível, a assunção <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>mcabe ao escritor e ao seu olhar que nota os momentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>quotidiana angolana, o sentido risível dos factos e transforma a própriareali<strong>da</strong><strong>de</strong> numa paródia <strong>de</strong> tons marca<strong>da</strong>mente “pícaros” (155) .Luan<strong>da</strong> concentra e dirige a vi<strong>da</strong> do país. A capital mais do que espaçofísico é espaço social. É neste espaço que cabe a “crítica social”, aspectomaior <strong>da</strong> crónica <strong>de</strong> costumes.Com efeito, a <strong>obra</strong> explora como aduz Carlos Pazos (2005): “o discursosatírico <strong>de</strong> carácter realista, on<strong>de</strong> o humor e por vezes a ironia se<strong>de</strong>stacam, introduzindo uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> sociopolítica até então não literaturiza<strong>da</strong>;mais concretamente, introduz a Luan<strong>da</strong> <strong>da</strong> escassez alimentare <strong>da</strong> corrupção” (156) .Assim, a crónica <strong>de</strong> costumes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> angolana <strong>de</strong>senvolve-se numcerto tempo e projecta-se num <strong>de</strong>terminado espaço.Concomitantemente, Luan<strong>da</strong> é o espaço privilegiado <strong>da</strong>s na<strong>rra</strong>tivas.O seu carácter central <strong>de</strong>ve-se ao facto <strong>de</strong> esta ci<strong>da</strong><strong>de</strong> concentrar, dirigire simbolizar estilo(s) <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. Mais do que um espaço físico, é um espaçosocial. É neste ambiente que Manuel Rui proce<strong>de</strong> à crítica social,on<strong>de</strong> a ironia (corporiza<strong>da</strong> em certos tipos sociais, representantes estereotipados<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias, mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, costumes, políticas, concepções domundo (157) , etc) <strong>de</strong>sempenha o papel maior.É justamente uma época e um meio, que o na<strong>rra</strong>dor nos faculta.Consegue-o, fun<strong>da</strong>mentalmente, à custa <strong>de</strong> dois recursos específicos: a<strong>de</strong>lineação <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s personagens-tipo e a representação <strong>de</strong> ambientes<strong>de</strong> conjunto.O livro conta como Diogo, atormentado pela escassez <strong>de</strong> alimentosem Luan<strong>da</strong> e pelo “peixefritismo” (158) , traz um leitão para criar no séti-155Pascoal, António,“O Universo Kusturica em Quem Me Dera Ser On<strong>da</strong> <strong>de</strong> Manuel Rui. <strong>Uma</strong> Proposta<strong>de</strong> Leitura Paralela Interartes”, in www.uea-angola.org . Acesso em Janeiro <strong>de</strong> 2005.156Justo, Carlos, “Manuel Rui e Quem me Dera Ser On<strong>da</strong> Exemplo <strong>de</strong> Novas Toma<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Posição Dentrodo Campo Literário Angolano”, in http://www.2ilch.uminho.pt, 2005. Acesso em Julho <strong>de</strong> 2006157Luís Kandjimbo (s/d) <strong>de</strong>fine a <strong>obra</strong> como “uma sátira mor<strong>da</strong>z a respeito <strong>de</strong> fenómenos <strong>de</strong> mobili<strong>da</strong><strong>de</strong>social <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s categorias, do mimetismo dos novos ricos, e do populismo político”.Kandjimbo, Luís, “História <strong>da</strong> ficção na<strong>rra</strong>tiva angolana nos últimos 50 anos”, in http://www.ebonet.net/arte_cultura/literatura. Acesso em Maio <strong>de</strong> 2004.158Termo utilizado por Diogo para se referir à falta <strong>de</strong> carne em Luan<strong>da</strong>, e consequente abundância<strong>de</strong> peixe na alimentação. Sobre este assunto ver p. 70.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruimo an<strong>da</strong>r <strong>de</strong> um conjunto habitacional. Des<strong>de</strong> logo, a domesticação <strong>de</strong>um animal no espaço resi<strong>de</strong>ncial, para a satisfação <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>consumo <strong>de</strong> carne, arrebata uma transposição <strong>da</strong> tradição, <strong>da</strong>s regras evalores do mundo rural para o urbano. Desta forma, a pecuária interferena urbani<strong>da</strong><strong>de</strong>.Classificado pelo autor como uma novela (159) , <strong>de</strong> acordo com AnaMaria Martinho, “equaciona a ca<strong>da</strong> momento o posicionamento dosintervenientes em relação ao processo político em curso, na medi<strong>da</strong> <strong>da</strong>interpretação que ca<strong>da</strong> um faz <strong>da</strong> revolução. Da imobili<strong>da</strong><strong>de</strong> legalista <strong>de</strong>Faustino “assessor popular no tribunal”, ao dinamismo <strong>da</strong>s respostas <strong>da</strong>scrianças, variado é o leque <strong>de</strong> referências que ca<strong>da</strong> personagem prefigura”(Martinho,1986:36) (160) .Também Fernando Hilário (2006:22-23) <strong>de</strong>staca a importância domovimento/atitu<strong>de</strong> <strong>da</strong>s personagens no processo <strong>da</strong> Revolução: “Quemme <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong> é sonho que aguar<strong>da</strong> sentado num <strong>de</strong>grau <strong>de</strong> esca<strong>da</strong>,numa espera algo impotente, to<strong>da</strong>via, <strong>de</strong> costas volta<strong>da</strong>s para os adultos–os assessores do partido e os outros que, afinal, têm um objectivocomum e último: comer, isto é, saciar a míngua em que vivem, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<strong>da</strong>s convicções, <strong>da</strong>s i<strong>de</strong>ologias e dos papéis que <strong>de</strong>sempenhamna Revolução”.Diogo <strong>de</strong>ixaria enten<strong>de</strong>r, nas entrelinhas do seu discurso, a existência<strong>de</strong> privilégios, ou seja, <strong>da</strong>queles que escapam a este “peixefritismo” (161) ,como Faustino, favorecido pela sua condição <strong>de</strong> assessor popular. O quetransparece é um cenário <strong>de</strong> corrupção generaliza<strong>da</strong>.O núcleo <strong>de</strong>sta família correspon<strong>de</strong> “a outros tantos núcleos quecompõem <strong>de</strong>pois uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> que se chama Luan<strong>da</strong>” (162) .A personagem <strong>de</strong>monstra o seu egoísmo citadino, quando afirma,por exemplo, que a inexistência <strong>de</strong> comi<strong>da</strong> no interior não era seu problema,preocupando-se mais com o facto <strong>de</strong> não haver cerveja em Luan-67159“A novela faz um retrato <strong>da</strong>s coisas conforme se passam, conferindo maior verosimilhança e maisrealismo, do que o romance, este será escrito numa linguagem mais excelsa e eleva<strong>da</strong> do que aquela.”Aguiar e Silva, Vitor Manuel, 1997, op. cit. p. 681.160Martinho, Ana Maria “I<strong>de</strong>ologia e expressão literária em Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong> <strong>de</strong> Manuel Rui”,in África, Arte e Cultura, 2ª série, nº13, Lisboa, ALAC, 1986.161Para Fernando Hilário (2006:71) o peixe é visto como “metonímia e metáfora, símbolo <strong>da</strong> negativi<strong>da</strong><strong>de</strong>que a Revolução conota ou <strong>de</strong>nota”.162Laban, Michel, op. cit. p. 721.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira<strong>da</strong>. Verificamos, <strong>de</strong>sta forma, aquela que é uma <strong>da</strong>s características doEstado pós-colonial, a que Venâncio (2004) faz alusão na sua análise <strong>de</strong>Jaime Bun<strong>da</strong> Agente Secreto <strong>de</strong> Pepetela, ou seja, o “sindroma do centralismoluan<strong>de</strong>nse”, a “arrogância” <strong>de</strong> alguns habitantes <strong>da</strong> capital sobre orestante território, idiossincrasia que Diogo partilha (163) .A estrutura enunciativa orienta-se, <strong>de</strong>sta forma, numa perspectivacrítica relativamente aos valores materialistas que dão voz ao individualismomo<strong>de</strong>rno urbano, ao egoísmo e à corrupção <strong>de</strong> uma burguesiaemergente, cuja má consciência se revela:“– Pai – interveio Ruca –, mas a camara<strong>da</strong> professora disse que o que épreciso é mais milho e mandioca para o povo <strong>da</strong>s províncias e que lá no matonem chega cerveja.– Diz à tua professora que isso é maka <strong>de</strong> campesinato, eu sou revolucionário<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>”.(p. 56)68Parece-nos que, tal como afirma Inocência Mata (1997:39-40), “asátira <strong>de</strong> Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong> é militante e combativa procurando<strong>de</strong>molir um statu quo, uma i<strong>de</strong>ia e uma cultura: aquela cultura social,prenhe <strong>de</strong> uma mentali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> nepotismo, <strong>da</strong> “cunha” do (ab)uso dopo<strong>de</strong>r e tudo numa circulari<strong>da</strong><strong>de</strong> viciosa: o excesso <strong>de</strong> burocracia originaa “cunha” para ultrapassar a burocracia, esta para evitar a corrupção e onepotismo e este <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> organização do po<strong>de</strong>r político eassim por diante...” (164) .Os problemas focados serão diversos: bichas, lojas vazias, más condições<strong>de</strong> vi<strong>da</strong> – falta <strong>de</strong> electrici<strong>da</strong><strong>de</strong>, elevador, telefone e abastecimento<strong>de</strong> água.163Este tipo <strong>de</strong> discurso verifica-se, sobretudo, nas elites, nas classes média e média-alta, <strong>de</strong>notandouma concepção jacobina, unitária e centralizadora do Estado, numa herança viabiliza<strong>da</strong> pela relação colonial.Preten<strong>de</strong>ndo significar que o Estado pós-colonial continua entregue às chama<strong>da</strong>s elites coloniais,ouseja, as que cresceram no período colonial. Cf. Venâncio, José Carlos, Jaime Bun<strong>da</strong> versus sem medo. <strong>Na</strong>cionalismoe estado pós-colonial em Angola no registo <strong>de</strong> um dos seus escritores”, in IV Congrés d´EstudisAfricans <strong>de</strong>l Món Ibèric. África camina. Barcelona 12 a 15 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 2004. Disponível on-line em www.africa.catalunya.org/congres/pdfs/venancio.pdf. Acesso em Fevereiro <strong>de</strong> 2004.164Mata, Inocência, “A natureza e o núcleo simbólico <strong>da</strong> <strong>Na</strong>ção na literatura angolana”, in Cristovão,Fernando [et alli], <strong>Na</strong>cionalismo e regionalismo nas literaturas lusófonas, Lisboa, Edições Cosmos, 1997.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiConforme Helena Riaúzova (s/d:53) aponta: “a novela angolana<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 70 princípios <strong>de</strong> 80 está subordina<strong>da</strong> a um objectivocomum: reflectir os aspectos <strong>da</strong> prática <strong>da</strong> construção do socialismoem Angola in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”.Desta forma, a na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Rui dá conta <strong>de</strong> um realismosociológico, a que já nos referimos, através <strong>de</strong> um registo irónico, sarcásticoque <strong>de</strong>scortina o <strong>de</strong>sajuste social.A <strong>da</strong><strong>da</strong> altura, quando a mulher suspeita que Diogo se <strong>de</strong>ixa levarpelo tribalismo (165) – Ele respon<strong>de</strong>:“Tribalismo! Deixa lá os ismos, mulher, que isso não enche a barriga.Ismo é peixefritismo, fungismo e outros ismos <strong>da</strong> barriga do povo. E tribalistaé quem combate os ismos <strong>da</strong> barriga do povo, como esse Faustino. É porisso que isto não an<strong>da</strong> para a frente e eu é que <strong>de</strong>via falar na rádio e não essesberenguéis simonescos (166) ”.(p. 9-10)<strong>Na</strong>turalmente que o leitor percebe, por trás dos ismos: socialismo,comunismo, marxismo, nacionalismo, racismo, tribalismo, i<strong>de</strong>alismo165Gonçalves (2003) refere que “todos os sistemas <strong>de</strong> dominação em África exploraram e manipularamas pertenças étnicas, interiorizando os estereótipos <strong>da</strong> etnologia colonial: a “diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> tribal” serve<strong>de</strong> argumento para recusar o plurialismo político com o pretexto que este não seria mais do que expressão<strong>da</strong>quela”. Em Angola, “nas vésperas <strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência, consumou-se a tripolarização, pela competiçãoviolenta entre três movimentos <strong>de</strong> libertação recrutados com base étnica ou regional: os Mbundo, osBakongo e os Ovimbundo, culminando nas convulsões étnicas <strong>de</strong> 1975 antes <strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência”. Gonçalves,Custódio, 2003, op. cit. p. 12.O mesmo autor afirma (2001:15) que a chega<strong>da</strong> do MPLA ao po<strong>de</strong>r coinci<strong>de</strong> com o afastamento dosBakongo e dos Ovimbundo. Consoli<strong>da</strong>va-se, assim, o confronto entre a corrente <strong>da</strong> “revolução” e <strong>da</strong>s elites intelectuaise a corrente tribalista”. Gonçalves, António Custódio, África Subsariana Multiculturalism, Powers andEthnicites in África, Porto, Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras e Centro <strong>de</strong> Estudos Africanos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Porto, 2001.“Destes três movimentos o MPLA é o único <strong>de</strong> raiz marxista e <strong>de</strong> matriz não tribalista –o que está longe<strong>de</strong> evitar as fracturas resultantes <strong>da</strong> consciência tribal”. Teixeira, Rui <strong>de</strong> Azevedo, Batalhas <strong>da</strong> História <strong>de</strong>Portugal – Gue<strong>rra</strong> <strong>de</strong> África – Angola, Lisboa, Aca<strong>de</strong>mia Portuguesa <strong>de</strong> História, 2006, Vol. 22, p. 77.Em Mayombe <strong>de</strong> Pepetela (1993) a questão do tribalismo é, inúmeras vezes, base <strong>de</strong> acesas discussõesentre os elementos <strong>de</strong> etnias distintas. O dirigente <strong>de</strong>fine o conceito nos seguintes termos: “o tribalismo éum fenómeno objectivo e que existe em todo o lado. O curioso é que... sei lá! Pega num grupo que aqui sejatribalista, separa-o e espalha-o noutra Região. Serão os primeiros a gritar contra o tribalismo. / –Estarãoem minoria –disse Sem Medo. –Aqui vemos que camara<strong>da</strong>s que estão isolados, pois são os únicos <strong>da</strong> sua regiãoaqui, esses camara<strong>da</strong>s aparentam ser <strong>de</strong>stribalizados. Digo bem, aparentam, pois não sei se voltando àregião <strong>de</strong> origem, on<strong>de</strong> serão portanto maioritários, eles não voltem ao tribalismo”. I<strong>de</strong>m, p. 178.166Refere-se a Manuel Berenguel e Francisco Simon, dois radialistas muito populares <strong>da</strong> Rádio Oficial,já antes <strong>da</strong> libertação. Hilário, Fernando, op. cit. p. 38.692007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira70ou burguesismo, entre outros (167) . A analogia com a situação vivi<strong>da</strong> emAngola é evi<strong>de</strong>nte. O <strong>de</strong>bate sobre a funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong> do socialismo, tendocomo fonte o marxismo, em <strong>de</strong>trimento do i<strong>de</strong>al capitalista era constante.Contudo a crítica <strong>de</strong> Diogo é mor<strong>da</strong>z: este <strong>de</strong>bate <strong>de</strong> intelectuais não“enche a barriga”, ou seja, não dá resposta às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s primárias <strong>da</strong>população, é em suma, “só paleio”, mero exercício i<strong>de</strong>ológico, benefíciopara alguns, “peixefritismo” para outros.Repare-se que se enten<strong>de</strong>rmos o “peixefritismo” como metáfora,metonímia e sinédoque dos novos tempos (Hilário 2006), a matança doporco, com vista a equacionar este “peixefritismo”, adquire importânciaacresci<strong>da</strong>, afinal Diogo luta contra aqueles que exercem o po<strong>de</strong>r (popular),criando o porco no apartamento, para inserir a carne na alimentação.Transpõe, <strong>de</strong>sta forma, o tradicional (criação dos animais) para umhabitat impróprio e <strong>de</strong>sa<strong>de</strong>quado, visto tratar-se do sétimo an<strong>da</strong>r <strong>de</strong> umapartamento.Muitas são as páginas que <strong>de</strong>monstram esta ina<strong>de</strong>quação social: <strong>de</strong>núncia<strong>da</strong>s carências alimentares (bichas para a carne; falta <strong>de</strong> cervejaem Luan<strong>da</strong>; necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos espaços rurais menciona<strong>da</strong>s pela professorados miúdos – falta <strong>de</strong> milho e mandioca); as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s assumi<strong>da</strong>spela transposição dos mercados paralelos; a corrupção particular (referênciaà ven<strong>da</strong> ilícita <strong>de</strong> bebi<strong>da</strong>s alcoólicas, como a notação dos “ramalhoeanes” (168) ); a inocência e inteligência <strong>da</strong>s crianças; a evocação <strong>de</strong> figuras<strong>de</strong> hierarquia política (primo Cinquenta segurança) e sócio-profissional(ô-dê-pê [Organização <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa popular] “camara<strong>da</strong> chefe”) (169) ; a distinçãoespaço rural e urbano (170) ; o regime e sistema <strong>de</strong> ensino fortementeburocratizados e fechados, reportam-se nas suas mais altas enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s,a um autoritarismo ignóbil.Parece-nos que a <strong>obra</strong> se constrói por duas ópticas diferentes, os<strong>de</strong>fensores do animal, por um lado, e os opositores, por outro (171) . Para167O leitor po<strong>de</strong>rá subenten<strong>de</strong>r “ismos” como – Humanismo; Imperialismo; Colonialismo; I<strong>de</strong>alismo.168“Em casa <strong>de</strong>le passa ovos, <strong>de</strong>ndém, carne e ontem quatro “ramalho eanes”. Quando eu era “morteiro”eu vi três caixas. Se ca<strong>da</strong> pessoa só tem direito a uma, como é que um juiz açambarca <strong>de</strong>ssa maneira?”(Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo, p. 42).169Cf. Episódios <strong>da</strong> visita do fiscal e <strong>da</strong> bicha para a carne, respectivamente. On<strong>de</strong> verificamos asubserviência do burocrata médio perante as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s superiores.170On<strong>de</strong> “essa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> tudo o que é lixo é <strong>de</strong>spachar para as províncias” (p. 47).171Em analogia histórica com a existência dos dois blocos: MPLA e <strong>da</strong> UNITA. Visto que, tambémE-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruias crianças, o porco é apenas um ser <strong>de</strong> afeição <strong>de</strong>sinteressa<strong>da</strong>. Para osadultos, Carnaval <strong>da</strong> Vitória afigura-se como um problema: atrapalha a“disciplina revolucionária”.Repare-se que o porco personifica aqueles que partem do mundorural para o urbano, a sátira <strong>da</strong>s populações que se vêem num mundodiferente <strong>da</strong> sua génese, que imitam comportamentos <strong>de</strong> outros, que“precisam <strong>de</strong> alimento”, que “incomo<strong>da</strong>m” com a sua presença, ou quese “aburguesam”.O animal, como se <strong>de</strong> uma personagem mo<strong>de</strong>la<strong>da</strong> se tratasse, evolui,<strong>de</strong>sta forma, na sua atitu<strong>de</strong>, “aburguesando-se” (172) , no enten<strong>de</strong>r<strong>da</strong>s crianças por culpa do pai, que o trata bem com o objectivo único <strong>de</strong>“obter retribuições <strong>de</strong> futuras bistecas e linguiças”.Este aburguesamento do animal acaba por metaforizar o <strong>da</strong> própriasocie<strong>da</strong><strong>de</strong>, pondo explicitamente em causa, para além dos movimentosmigratórios, os propósitos <strong>da</strong> pequena burguesia citadina e a corrupçãodos quadros burocráticos médios (173) . Diogo dirige-se, <strong>de</strong>sta forma,triunfante, para o porco:“Conquistas <strong>da</strong> Revolução (...) Estás politizado!” (174) (p. 25)Carlos Justo (2005) <strong>de</strong>staca este rejubilo <strong>de</strong> Diogo, salientando aintenção do autor na obtenção do riso, e mais, porque, “para além <strong>de</strong>humorístico, o facto <strong>de</strong> politizar um porco talvez possa ser anti ou contra-revolucionário.Como contra-revolucionário e jocoso é tratar um fiscalpor “senhor fiscal” e não pelo preceptivo “camara<strong>da</strong> fiscal”.Num outro momento <strong>da</strong> na<strong>rra</strong>tiva, Diogo manifesta ain<strong>da</strong> o seu <strong>de</strong>sagradoperante a insatisfação <strong>de</strong> Liloca, pelo facto <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r ouvir onoticiário, a crítica é mor<strong>da</strong>z:71estes criaram dois blocos/facções, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo os respectivos i<strong>de</strong>ais.172Para o manterem calmo é alimentado com bastante comi<strong>da</strong> e torrões <strong>de</strong> açúcar, além <strong>de</strong> ouvirmúsica com fones nos ouvidos.173A corrupção é apresenta<strong>da</strong> em Pepetela como um autêntico polvo. Contra ela Jaime Bun<strong>da</strong> na<strong>da</strong>pô<strong>de</strong> fazer. Cf. José Carlos Venâncio, 2004, op. cit.174Remete-nos para uma doutrinação massiva do Estado. Repare-se na opção, estética e linguística,pelo particípio “politizado” com <strong>de</strong>sempenho adjectival. Desta forma, o acto tem a ver com a natureza <strong>da</strong>acção <strong>de</strong> quem a pratica.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira“Mer<strong>da</strong>s <strong>de</strong> pequena-burguesia. Querem o céu e a te<strong>rra</strong>. O capitalismoe o socialismo” (175) .(p. 25)Desta forma, na prática do quotidiano as personagens vão ganhandovi<strong>da</strong> e cor.É nas crianças e na própria professora que encontramos a recusa <strong>de</strong> umsistema dominante, é através <strong>de</strong>las que a utopia será concretizável (176) .São os “mais novos“ a corrigir os “mais velhos” – quando <strong>Na</strong>záriocoloca um cartaz (177) , proibindo o cultivo <strong>de</strong> porcos na habitação, logoas crianças se apressam a reprová-lo apontando erros ortográficos eestruturais (178) :“suíno é com ésse, disciplina é antes <strong>de</strong> vigilância e antes <strong>da</strong> luta continuatem <strong>de</strong> pôr pelo Po<strong>de</strong>r Popular e no fim acaba ano <strong>da</strong> criação <strong>da</strong> Assembleiado Povo e Congresso Extraordinário do Partido!”(pp. 20-21)72A situação torna-se caricata e humilhante para <strong>Na</strong>zário. A ironia eastúcia dos miúdos sai, mais uma vez, vencedora (179) .Carlos Justo (i<strong>de</strong>m) põe em evidência a função <strong>de</strong>sta metalinguagem,<strong>de</strong>stacando que “o jogo com as palavras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m do discurso oficial”visam “plasmar o vazio <strong>de</strong>ssas palavras e a <strong>de</strong>sestruturação que o povopratica, trazendo para o texto literário as contradições <strong>da</strong> Angola in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nteem construção, em gue<strong>rra</strong>”. Acrescenta ain<strong>da</strong> que este “mo<strong>de</strong>loúnico e institucionalizado <strong>de</strong> discurso” está presente nas intervenções<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as personagens”. Assim “a presença <strong>de</strong>sta metalinguagem tempor objectivo <strong>da</strong>r verosimilhança ao texto e introduzir o esvaziamento <strong>de</strong>175O leitor atento não fica indiferente à conotação que a expressão traduz.176Deter-nos-emos sobre esta temática no capítulo “As crianças – realização <strong>da</strong> utopia”.177Escrito num registo linguístico popular, repleto <strong>de</strong> <strong>de</strong>svios gramaticais (erros ortográficos e <strong>de</strong>pontuação).178Patenteia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, a pouca instrução, os erros e abusos <strong>de</strong> slogans revolucionários na vi<strong>da</strong> quotidiana,nomea<strong>da</strong>mente por aquele que <strong>de</strong>sempenha um cargo importante como o <strong>de</strong> assessor popular.179<strong>Na</strong>zário ain<strong>da</strong> tenta alterar o cartaz, mas acaba por a<strong>rra</strong>ncá-lo em total <strong>de</strong>scontrolo: “quandose apercebe que o adversário é superior e se teme pela <strong>de</strong>rrota, proce<strong>de</strong>-se à ofensiva, grosseira e ultrajosamente;quer dizer, abandona-se o objecto <strong>da</strong> discussão (já que aí se per<strong>de</strong>u a disputa) e ataca-se, <strong>de</strong>qualquer maneira, a pessoa do adversário”. Hilário, Fernando, op. cit. p. 53.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruisignificado do discurso oficial quando utilizado pelo povo e não só, o quenos parece assim um formulado inédito no sistema literário angolano atéà altura” (i<strong>de</strong>m).De facto, há um contraste entre um nível “oficial” e outro directamenteligado ao quotidiano, do qual o primeiro aparece <strong>de</strong>senquadrado.A i<strong>de</strong>ologia é <strong>de</strong>sta forma questiona<strong>da</strong> pela linguagem marca<strong>da</strong>menterevolucionária, mas incongruente e até contra-revolucionária. Repare-sena intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> esvaziar os “ismos” i<strong>de</strong>ológicos com expressõescomo “peixefritismo”. Também as crianças se apropriam <strong>de</strong>sta linguagem,dominando-a melhor que os adultos, contribuindo, <strong>de</strong>sta forma,para a sua <strong>de</strong>smistificação. Note-se até o pormenor dos “sábados vermelhos”,resquício do voluntarismo marxista <strong>de</strong> feição cubana, assim comoa composição <strong>de</strong> Ruca: o miúdo chama o pai <strong>de</strong> reaccionário e o porco <strong>de</strong>revolucionário (pp. 35-36).Segundo Manuel Rui (180) , a novela está relaciona<strong>da</strong> com <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>sconcepções, que leva as pessoas a burocratizarem tudo sem saberporque estão a fazê-lo. As personagens são marxistas sem saber o que talsignifica. Neste sentido, os termos são utilizados sem adquirirem o seuvalor semântico. Diogo, por exemplo, assume-se como revolucionáriosem enten<strong>de</strong>r o significado real <strong>da</strong> palavra.Convém ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>termos a nossa atenção na figura <strong>da</strong> professora,pela antítese resultante do seu i<strong>de</strong>alismo (181) em contraposição à escolarepressora, impositiva e i<strong>de</strong>ológica (182) .A professora é uma pessoa neutra, mas cúmplice dos alunos (“<strong>de</strong>ixafazer re<strong>da</strong>cções que a gente quer e até trouxe na escola o primo <strong>de</strong>la Filipeque veio tocar viola <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> sala” (183) ). No exercício <strong>da</strong>s suas funções,atenta às motivações <strong>da</strong>s crianças, acabando por conciliar a escolacom a vi<strong>da</strong>.O sistema <strong>de</strong> ensino é, contrariamente à docente, que supostamenteseria o seu porta-voz (184) , fortemente burocratizado e fechado, con-73180Op. cit. Entrevista em anexo, p. 166.181Não batia nos alunos o que era pouco frequente na época.182Lembrando-nos a escola <strong>de</strong>scrita nos contos <strong>de</strong> Luandino Vieira, embora os agentes sejam diferentes.183p. 36.184Para o Secretário do Comité Central do MPLA/PT <strong>da</strong> esfera i<strong>de</strong>ológica, Roberto <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>, “seeste elemento (o professor) não for fiel aos princípios e objectivos <strong>da</strong> Revolução, certamente não o será2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveirasi<strong>de</strong>rando a professora um perigo (“um caso <strong>de</strong> alienação do grupo oupsiquiátrico”) (185) . O episódio <strong>da</strong> apreciação <strong>da</strong> re<strong>da</strong>cção pelo centro <strong>de</strong>investigação pe<strong>da</strong>gógica (186) permite-nos analisar o papel <strong>de</strong>sempenhadopela i<strong>de</strong>ologia no julgamento <strong>de</strong> certas atitu<strong>de</strong>s do quotidiano vividoapós a in<strong>de</strong>pendência.O contexto em que ocorreu a avaliação <strong>da</strong>s composições acaba porreproduzir o “código prepotente” usado pelo colono que se via livre dos“subversivos e in<strong>de</strong>sejáveis” (187) , enviando-os para o interior:“Devíamos era fazer a proposta <strong>de</strong> ir para o Cuando-Cubango antes queela se encoste a algum parente. Vocês é que ain<strong>da</strong> não repararam. É <strong>de</strong> família.É vê-dê (188) . Por isso é que se dá a estas arrogantes surrealistices”.(p. 47)O na<strong>rra</strong>dor parece querer chamar a atenção para a importância <strong>de</strong>um ensino livre, mo<strong>de</strong>rno e motivador para o aluno. Não será tambémele condição indispensável à renovação social?A resposta afigura-se como positiva. O <strong>de</strong>stino natural <strong>da</strong> criançapara a educação parece-nos ser temática relevante na <strong>obra</strong> do autor (189) .No final <strong>de</strong> Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong> somos presenteados com umbanquete, on<strong>de</strong> as febras do porco são saborea<strong>da</strong>s por gran<strong>de</strong> parte dos74na transmissão do conteúdo programático, seja qual for o seu nível <strong>de</strong> preparação técnico-profissional ouacadémico”. Op. cit. Ferreira, Manuel Ennes, A indústria em tempo <strong>de</strong> gue<strong>rra</strong> (Angola, 1975-91), Lisboa,Edições Cosmos, Instituto <strong>da</strong> Defesa <strong>Na</strong>cional, 1999, p. 148.185A professora, porque <strong>de</strong>sprovi<strong>da</strong> <strong>da</strong> prática do autoritarismo, vai ser reprova<strong>da</strong>, na sua conduta,por enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s superiores, isto porque a composição eleita na turma <strong>de</strong> Ruca falava <strong>de</strong> um porco, quando<strong>de</strong>veria exaltar “temas sobre a vi<strong>da</strong> do povo, valores nacionais, <strong>da</strong>tas históricas, etc...” (p. 46).186Inspecção escolar.187Sousa, Isménia, “Ironia e i<strong>de</strong>ologia nas <strong>obra</strong>s <strong>de</strong> Manuel Rui e Henri Lopes”, in Lissa, L. Margari<strong>da</strong>[et alli], Literatura Compara<strong>da</strong>: os novos paradigmas, Porto, Associação Portuguesa <strong>de</strong> LiteraturaCompara<strong>da</strong>, 1996.188Referente a Van-Dúnem. Nome <strong>de</strong> família influente nos diversos sectores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana.189Contrariamente aos miúdos <strong>de</strong> Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>, várias são as crianças, <strong>de</strong>scritas pela pena<strong>de</strong>ste escritor angolano, que não têm a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> frequentar a escola, consi<strong>de</strong>re-se os exemplos<strong>de</strong>scritos em Da palma <strong>da</strong> mão: num esgoto a céu aberto flutua um “ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> capas analfabetas” aoléu, revira<strong>da</strong>s, com os versos do “Hino <strong>Na</strong>cional”. A capa e o livro simbolizam o estado “iletrado” <strong>de</strong> umasocie<strong>da</strong><strong>de</strong> também ela, na sua maioria, analfabeta (“O ca<strong>de</strong>rno”, p. 13); A condição infantil <strong>da</strong>s crianças<strong>de</strong> Luan<strong>da</strong> é <strong>de</strong> certa forma uma estranha situação escolar, visível em Tico que segura “na lata <strong>de</strong> sentarna escola e no serviço <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r três anos com ela” (“A lata e o Merce<strong>de</strong>s”, p. 46).O que o <strong>de</strong>staque concebido à infância nos faz perceber é a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> educar e formar umanação.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruimoradores do prédio, entre os quais se encontram “todos os membros <strong>da</strong>comissão <strong>de</strong> moradores” (190) .O fim do romance não <strong>de</strong>ixa um ence<strong>rra</strong>mento <strong>de</strong>finitivo, assumindo-secomo romance aberto (Aguiar e Silva: 1997) (191) . O título retirado<strong>da</strong> metáfora do final <strong>da</strong> <strong>obra</strong> abriria as portas para a linha ficcional.Não nos po<strong>de</strong>mos esquecer que a on<strong>da</strong> assume-se como sinédoquedo mar, esse espaço <strong>de</strong> origem, quer enquanto enraizamento do “eu”,quer enquanto se<strong>de</strong> do “coração do mundo”, o mar é o enigma e angústiainerente à condição do homem. No entanto, na <strong>obra</strong> ele reflecte um espaço<strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong>spreocupação.O predicado <strong>de</strong> base do <strong>de</strong>sejo “Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>” <strong>de</strong>man<strong>da</strong>a partir do eixo semântico as várias combinações que implicam personagense acções.Neste sentido, a expressão “Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>” funciona comocúpula i<strong>de</strong>ológica do romance. Parece-nos que as questões que se colocamsão <strong>de</strong> diversa índole: será a aquisição <strong>de</strong> hábitos, aparentementeestranhos, por aqueles que vêm do campo para a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> solução paraa sua “politização”? Será a morte o <strong>de</strong>stino <strong>da</strong>queles que não se encontramno seu “habitat natural”? E, finalmente, que tipo <strong>de</strong> morte: a social,a moral ou a espiritual?75190Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser caricato que, apesar <strong>de</strong> con<strong>de</strong>narem a criação do porco no apartamento <strong>de</strong>Diogo, todos acabem por ace<strong>de</strong>r ao seu “petisco”. Hilário (2006:128) conclui que <strong>Na</strong>zário e Faustino“aproveitaram o tempo <strong>da</strong> máscara [Carnaval], o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sta, o tempo do metamorfósico do feitiço e doamuleto, que era conferido aos espíritos <strong>da</strong> magia dos antepassados, para eufemizar o “<strong>de</strong>lito””.191“O termo do romance aberto contrasta profun<strong>da</strong>mente com o termo <strong>de</strong> romance fechado: no caso<strong>de</strong>ste, o leitor fica a conhecer a sorte final <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as personagens e as <strong>de</strong><strong>rra</strong><strong>de</strong>iras consequências <strong>da</strong> diegeseromanesca; no caso do romance aberto, o autor não eluci<strong>da</strong> os seus leitores acerca do <strong>de</strong>stino <strong>de</strong>finitivo<strong>da</strong>s personagens ou acerca do epílogo <strong>da</strong> diegese”. Aguiar e Silva, Vitor Manuel, 1997, op. cit. p. 728.2007 E-BOOK CEAUP
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiA na(<strong>rra</strong>)ção torna-se crónica ou crítica. O enredo é, aparentemente,simples. Encontramos um chefe <strong>de</strong> serviço, Feijó, e os seus doiscolaboradores, Lun<strong>da</strong>mo e Adérito, trabalhadores <strong>de</strong> uma empresa, provavelmenteum ministério (193) , que têm a função <strong>de</strong> guar<strong>da</strong>r um segredo.Neste sentido, o gran<strong>de</strong> perigo que surge é o mujimbo ou o boato. A dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>é que em Luan<strong>da</strong> o mujimbo é um elemento indispensável <strong>da</strong>comunicação e as pessoas são confronta<strong>da</strong>s com ele frequentemente.Tanto a pequena burguesia como o Po<strong>de</strong>r aparecem num panoramaem que o segredo, <strong>de</strong> quem apenas o leitor parece ser o único <strong>de</strong>sconhecedor,circula livremente pela ci<strong>da</strong><strong>de</strong> (194) .A crítica abor<strong>da</strong> os po<strong>de</strong>res e influências do aparelho partidário, <strong>da</strong>srelações hierárquicas no trabalho, dos hábitos <strong>de</strong> lazer (a praia, a bebi<strong>da</strong>,as férias, a Europa, etc), enfim, do comportamento <strong>de</strong> uma pequenaburguesia “muito marca<strong>da</strong> pelas obrigações profissionais e nacionais, <strong>de</strong>imperativos revolucionários, mas voraz nos apetites e ambições pessoais”(Laranjeira: 1994b:251) (195) .O autor contrapõe uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> tradicional (196) em que a informaçãoé vital, a uma organização política burocratiza<strong>da</strong>, a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> urbanaregi<strong>da</strong> pelo documento, on<strong>de</strong> a escrita instaura uma nova or<strong>de</strong>m quepreten<strong>de</strong> reger aquela, em que a ocultação <strong>da</strong> informação é vital.<strong>Na</strong> primeira óptica a informação é partilha<strong>da</strong> pela família; a segun<strong>da</strong>será aquela que Feijó representa como emissário <strong>da</strong> pequena burguesia.Neste contexto, a obsessão <strong>de</strong> Feijó, perante a revelação do segredo,ganhará tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>s satíricas, provocando riso no leitor que se divertecom as diferentes reacções/receios <strong>da</strong>quele, isto porque, como funcionário,é obrigado a guar<strong>da</strong>r para si o segredo que o mujimbo obriga a transmitir.Maria Rosa Monteiro (s/d) (197) chama atenção para este aspecto:77193“Po<strong>de</strong> ser uma empresa, um director <strong>de</strong> uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> económica estatal... O leitor escolhe”. Laban,Michel, op. cit. 735.194“Mesmo que não haja pilhas para rádios, que não haja jornais, as notícias chegam com veloci<strong>da</strong><strong>de</strong>,transmitem-se... O processo oral <strong>da</strong> notícia é o mais veloz na nossa socie<strong>da</strong><strong>de</strong>”. I<strong>de</strong>m, p. 734.195Laranjeira, Pires, “Manuel Rui –Crónica <strong>de</strong> um mujimbo” in, Colóquio/Letras, nº 131 Janeiro-Março,Lisboa, Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian, 1994b.196O espaço <strong>da</strong> memória/transmissão oral constituiu-se, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, como lugar privilegiado <strong>de</strong>valores <strong>de</strong> referência antigos e mo<strong>de</strong>rnos.2004.197Monteiro, Maria Rosa, “Mujimbo, dialéctica e Kitsch”, in www.ciberkiosk.pt, Acesso em Abril <strong>de</strong>2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira“Feijó, vítima do segredo e do mujimbo, enquanto irremediavelmentedo não-pensar, pensando irremediavelmente”. Henrique Feijó vive atormentadopelo mujimbo, não sabendo como se posicionar perante o ditoe o não dito.Feijó, como personagem plana (Aguiar e Silva: 1997), não alteraráo seu comportamento, no <strong>de</strong>curso do romance, servindo, <strong>de</strong>sta forma, acaricatura e a sua natureza cómica e humorística.Feijó servirá ain<strong>da</strong> os parâmetros enunciados por Bergson (1993),na linha dos diferentes cómicos: <strong>de</strong> personagem, formas (gestos e movimentos),acções e situações.O cómico <strong>de</strong> personagem resulta <strong>da</strong> maneira <strong>de</strong> ser e <strong>de</strong> se comportar.Assim, pela sua preocupação exagera<strong>da</strong> em manter o segredo acabapor exemplificar, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, este tipo <strong>de</strong> cómico.Também os tiques que possui, ilustram este tipo <strong>de</strong> cómico, nomea<strong>da</strong>menteno “tic antigo <strong>de</strong> se coçar entre as pernas” (198) .O cómico <strong>de</strong> situação surge quando, no <strong>de</strong>correr <strong>da</strong> na<strong>rra</strong>tiva, umapersonagem é coloca<strong>da</strong> numa situação ridícula. Ora, este cómico torna--se visível logo nas primeiras páginas em que Feijó, enlameado, temepela sua integri<strong>da</strong><strong>de</strong>:“E, no momento em que retirava as chaves, a pasta veio <strong>de</strong>mais, ain<strong>da</strong>quis fixar a mão direita sobre a pasta mas esta acabou por cair aberta e Feijóa escorregar e tombar <strong>de</strong> joelhos sobre o charco enlameado[...]-“Ain<strong>da</strong>acabo no tê-pê-erre e ninguém vai acreditar nesta estória”.(p. 11)78A obsessão é <strong>de</strong> tal or<strong>de</strong>m que Feijó acaba vítima <strong>de</strong> um “síndromasituacional”, cuja solução, semelhante à <strong>de</strong> outros que pa<strong>de</strong>cem domesmo “mal” (199) , será uma viagem à Roménia. Aga<strong>rra</strong>-se, <strong>de</strong>sta forma,a referências i<strong>de</strong>ológicas toma<strong>da</strong>s lugares comuns, tais como a viagemreferi<strong>da</strong> e uma certa aversão em relação a Portugal.198Note-se que este tique aumenta, quando Feijó está mais irrequieto e nervoso.199Segundo o médico que observa Feijó.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiEm casa, a mulher, Joaninha, também vive obceca<strong>da</strong>, mas por umadieta, recomen<strong>da</strong><strong>da</strong> pela prima <strong>de</strong> Lisboa (200) , que é, constantemente,quebra<strong>da</strong>, ou por falta <strong>de</strong> “condições” e/ou “vonta<strong>de</strong>”:“Joaninha tendo terminado [<strong>de</strong> comer] em não po<strong>de</strong>r mais se <strong>de</strong>batianum rebate <strong>de</strong> consciência pela afronta cometi<strong>da</strong> contra o rigor <strong>da</strong>s regras<strong>da</strong> dieta, banha<strong>da</strong> em suor e com aquele pequenino senão <strong>de</strong> azia que ovinho produzia sobre o arroto miudinho e comedido <strong>de</strong> <strong>de</strong>ndém”.(p. 52)Segundo Venâncio (1996b: 108), o <strong>de</strong>senrolar <strong>da</strong> acção baseia-se em“três lógicas” do estrato social <strong>da</strong> “pequena burguesia urbana” protagoniza<strong>da</strong>por: Feijó, Dona Joaninha e Adérito, respectivamente.O primeiro com um comportamento idêntico ao <strong>de</strong> Diogo <strong>de</strong> Quemme <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>; a segun<strong>da</strong> “vivia preocupa<strong>da</strong> com a sua figura e, porisso, passava o tempo a suspirar por um médico português que estiveraem Angola e que dispunha <strong>de</strong> um método <strong>de</strong> emagrecimento que se ajustavaao seu caso”; o último “não se cansava <strong>de</strong> repetir a Lun<strong>da</strong>mo, seucolega <strong>de</strong> <strong>de</strong>partamento, que tinha uma formação superior à <strong>de</strong> Feijó. Aeste, porém, na<strong>da</strong> dizia, limitava-se a acatar-lhe as or<strong>de</strong>ns e alimentar o<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> regressar a Paris e aí escrever a tese, não <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> comprar,pelo caminho, um carro, uma aparelhagem estereofónica e um minicomputador”(i<strong>de</strong>m: ibi<strong>de</strong>m).O mesmo autor (1992a: 54) refere-se ain<strong>da</strong> a uma quarta lógica, ados sobrinhos <strong>de</strong> Feijó, mas esta não seria representativa <strong>da</strong> “mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>urbana”. “Pelo contrário. Os garotos, órfãos <strong>de</strong> pai, entretanto mortona gue<strong>rra</strong> civil, divertiam-se pela cala<strong>da</strong> com os valores e o comportamentodo tio”.Assim sendo, a personagem <strong>de</strong> Feijó afigura-se-nos “toca<strong>da</strong> pela superficiali<strong>da</strong><strong>de</strong>:correspon<strong>de</strong> ao estrato social a que pertence. O chefe doescritório, não se diz na<strong>da</strong> se é corrupto... Tem um comportamento familiarmais ou menos cliché... O tracejado do perfil <strong>de</strong>le só está esboçado,fica para ser completado pelo lápis do leitor” (Laban: 1991: 735).79200Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> que preten<strong>de</strong> visitar, para ir à consulta do tão <strong>de</strong>sejado médico nutricionista, aproveitandopara ver a prima. Joaninha representa o protótipo do pequeno burguês.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraA caricatura <strong>de</strong> Feijó suscita um aprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> vis comic. Acaricatura, segundo Propp (1992), “consiste em tomar-se qualquer particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>e aumentá-la até que ela se torne visível para todos”, é nalinguagem, nos gestos e no comportamento que o nosso olhar cómicoé convi<strong>da</strong>do a <strong>de</strong>ter-se. Bergson (1993) <strong>de</strong>stacaria, <strong>da</strong> mesma forma, opapel do exagero para a obtenção do cómico, o exagero é cómico quandoprolongado e sistemático (i<strong>de</strong>m).Desta forma, o autor recorre à caricatura, exagerando alguns traçosespecíficos <strong>da</strong> personagem. Assim, a caricatura <strong>da</strong> personagem Feijó éobti<strong>da</strong>, precisamente, através dos tiques <strong>de</strong> linguagem e gestuais, aliadosà permanente <strong>de</strong>sconfiança em relação a tudo e a todos.É ain<strong>da</strong> através <strong>de</strong> Feijó que i<strong>de</strong>ntificamos algumas <strong>da</strong>s precarie<strong>da</strong><strong>de</strong>s<strong>da</strong> população <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>: falta <strong>de</strong> luz; horas extraordinárias nãoremunera<strong>da</strong>s; “asfaltagem” <strong>da</strong>s ruas mal efectua<strong>da</strong>; marasmo social; ahumilhação resultante do domínio estrangeiro, inclusive no sector petrolífero(201) ; <strong>de</strong>sconhecimento do funcionamento <strong>de</strong> um cartão; a corrupçãoque possibilita a informação publicita<strong>da</strong>, primeiramente, em Lisboa;a falta <strong>de</strong> publicações <strong>de</strong> revistas em português:“To<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> mergulhou na escuridão (...) Fazer horas extraordináriasque o não são porque nenhum <strong>de</strong> nós jamais exigiu pagamento por elas”.(p. 10)“A tal Angote<strong>rra</strong> em vez <strong>de</strong> asfaltar tapou mas é as sarjetas. Depois oasfalto, vai ao ar não tar<strong>da</strong> uns meses. E nova asfaltagem, mais dinheiro.Bom negócio”.(p. 11)80“Nesta ci<strong>da</strong><strong>de</strong> a vi<strong>da</strong> morre cedo. Não vale a pena o semáforo...”(p. 12)“O tipo <strong>de</strong>ve ser francês <strong>da</strong>s petrolíferas. Isto dá para todos. Até nas mulheres.Pra nós é que não s<strong>obra</strong> na<strong>da</strong>. <strong>Na</strong> te<strong>rra</strong> <strong>de</strong>le não faz isso. Levam-nosos dólares e humilham-nos utilizando as nossas miú<strong>da</strong>s”.(p. 13)201No capítulo “Os sons <strong>da</strong> esfinge angolana”, referimo-nos à importância <strong>de</strong>ste sector na economiaangolana, assim como do investimento estrangeiro a ele associado.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Rui“E as duas [mãe <strong>de</strong> Feijó e cunha<strong>da</strong>] ficaram aí nesse olhar profundo,quase <strong>de</strong> adivinhações sobre os mil mistérios <strong>de</strong> um cartão”.(p. 16)“Às vezes nós ain<strong>da</strong> não sabemos e os jornais <strong>de</strong> Lisboa já estão a recitar?Clarito, é um cooperante que ouviu, vai <strong>da</strong>í ao telefone ó menina qualó camara<strong>da</strong> trago-lhe um par <strong>de</strong> sapatos e tem logo linha para Lisboa sem<strong>de</strong>sligar e não admira que lhe facturem lá a seu favor”.(p. 24)“Porque é que o Malley não edita também uma em português? Para quêimportar uma revista em francês? Quem é que a lê? Importar, não. Pagarduas vezes, isto é, anúncios e <strong>de</strong>pois comprar a revista”.(p. 48)Feijó revela-se ain<strong>da</strong> um pai preocupado com a execução <strong>da</strong> disciplinapor parte <strong>de</strong> Kino (202) , seu filho, mostrando-se, <strong>da</strong> mesma forma, ummarido afectuoso a Joaninha e um filho <strong>de</strong>dicado (203) .Henrique Feijó e Joaninha comentam brevemente a vi<strong>da</strong> política internacional,nomea<strong>da</strong>mente um golpe <strong>de</strong> estado na Guiné, após a morte<strong>de</strong> Sékou Toré, mas à semelhança <strong>de</strong> Diogo que não se interessa pela vi<strong>da</strong>nas províncias, também Feijó acaba por revelar o <strong>de</strong>sinteresse do tema:“(...)Também é difícil nesses lugares uma pessoa agra<strong>da</strong>r a gerações sucessivas.É muito tempo. Mas isto são makas mesmo <strong>de</strong> África”.(p. 22)O que transparece do seu discurso é a preocupação em efectuar oseu trabalho <strong>de</strong> forma íntegra, cumprindo o <strong>de</strong>ver que a profissão exige,interrompendo as diferentes abor<strong>da</strong>gens que po<strong>de</strong>riam “obrigá-lo” a<strong>de</strong>sven<strong>da</strong>r o segredo. Afinal:81“O fun<strong>da</strong>mental é cumprir o meu <strong>de</strong>ver (...) no segredo é que está onegócio”.(p. 16)202Personagem que <strong>de</strong>sempenha, <strong>de</strong> certa forma, um papel amorfo.203A mãe acaba por simbolizar o amor preocupado, <strong>de</strong>sinteressado e protector. Repare-se que Feijóvisita-a em momentos “chave” <strong>da</strong> na<strong>rra</strong>tiva.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira“Só a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é revolucionária e eu não posso trair esse princípio. Entãoquando me perguntaram se sabia eu menti? Também não é bem. Perguntaram.Cortei. Portanto, sem saber a pergunta não posso <strong>da</strong>r a resposta, ouseja, a resposta ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira”.(p. 41)A “maquinali<strong>da</strong><strong>de</strong>” dos gestos, a inópia do discurso, a reprodução <strong>de</strong>uma rotina e as atitu<strong>de</strong>s parodiam este ser caricaturado pela “palma <strong>da</strong>mão” do autor.Contrariamente a Feijó, surge um outro tipo <strong>de</strong> personagem, Adérito,“o personagem típico <strong>de</strong>sta socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, o ambicioso que tem uma formaçãouniversitária, todo o projecto <strong>de</strong>le, além <strong>de</strong> uma certa alienaçãoao mundo europeu, é um projecto <strong>de</strong> tomar o lugar do chefe, etc. Mascom to<strong>da</strong> essa formação que ele tem, quando vai ficar, interinamente,a substituir o chefe, ele faz uma volta à sua personali<strong>da</strong><strong>de</strong> e quer é ficarcom os fetiches que simbolizam o po<strong>de</strong>r: o carro, a secretária, as fotografias...,porque, sem isso, está convencido <strong>de</strong> que não vai po<strong>de</strong>r funcionar.Portanto, <strong>de</strong>ixou logo cair todo o seu saber académico, europeu, parautilizar outro tipo <strong>de</strong> premissas – transitórias, numa socie<strong>da</strong><strong>de</strong> comoesta – mas que ele preten<strong>de</strong> aga<strong>rra</strong>r para trepar. Sim, esse personagemnão está torcido – está <strong>de</strong> roupa lava<strong>da</strong> e tal –, mas o perfil não está atracejado, está a traço grosso” (Laban: 1991:735-736).Será ain<strong>da</strong> através <strong>de</strong>ste que o autor expõe a etimologia e “dialécticado mujimbo”:82“Mujimbo é uma palavra cokwé que significa mensagem (...) A nossamalta <strong>da</strong> primeira gue<strong>rra</strong> <strong>da</strong> libertação, na frente leste, principalmente opessoal <strong>de</strong> origem urbana, <strong>de</strong>slumbrou-se com o vocábulo. Mujimbo passoua ser notícia. Um camara<strong>da</strong> ia <strong>de</strong> uma base a outra e, mal chegava,chovia a pergunta: quais os mujimbos que você traz? Ele na<strong>rra</strong>va. E passavammensagens, notícias, intrigas, tudo(...). A palavra foi-se <strong>de</strong>turpandoaté que mujimbo passou a coincidir com a novi<strong>da</strong><strong>de</strong> ain<strong>da</strong> não oficial ouaté o boato.(...) O povo em geral tem que an<strong>da</strong>r no passa palavra. No fundo é ocontinuar dos mecanismos <strong>de</strong> tradição oral. Auto-<strong>de</strong>fesa, porque não estarinformado é quase morrer. E é bem bonita a forma como se põe o mujimboa circular, os elos, a ca<strong>de</strong>ia do circuito. E, por <strong>de</strong>trás, sempre uma espécie <strong>de</strong>E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruisentimento colectivo. E a gaita é que os mujimbos vão quase sempre <strong>da</strong>r àver<strong>da</strong><strong>de</strong> (...).Ca<strong>da</strong> sujeito receptor do mujimbo enten<strong>de</strong>-o primeiro como um quase<strong>de</strong>terminismo, vai mesmo acontecer! Essa é a primeira fase (...) <strong>Na</strong> segun<strong>da</strong>fase <strong>da</strong> dialéctica do mujimbo, a generali<strong>da</strong><strong>de</strong> do sujeito receptor assume-oa partir <strong>de</strong> tal <strong>de</strong>terminismo. Então passa a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os conteúdos veiculadospelo mujimbo. (...) a melhor gue<strong>rra</strong> contra o mujimbo é forjar outromujimbo(...).(...) A <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> altura é uma exigência. Porque é uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>.Há já uma consciência social”.(pp. 100-102)<strong>Na</strong> trama ficcional, a semântica do segredo, conhecedor <strong>de</strong> diferentesterminologias e atributos: “secreto”, “sigilo”, “confi<strong>de</strong>ncial” (Feijó);“disso”, “<strong>da</strong>quilo” (204) (sobrinho <strong>de</strong> Feijó); “novi<strong>da</strong><strong>de</strong>”, “algo que aconteceumesmo” (Joaninha); “aquilo que eu li nos jornais” (Kitas); “gran<strong>de</strong>mujimbo” (Kino); “aquilo”, “isso” (operador do bê-bê-xis); “mujimbo”(Leninegrado); “segredo orgásmico”, “dialéctico” (Adérito); “trampado segredo” (Lun<strong>da</strong>mo) assumido como segredo, termina <strong>de</strong>sta forma(nunca, leitores, saberemos <strong>de</strong> que segredo se trata!). Confirma-se,assim, a contradição contrariando-a:“Contradição? Nem mais, na contradição é que se anuncia a síntese”.(p. 56)Adérito aponta a semântica do segredo como circular. O discursoserá resumido, assim, pelo seu interlocutor, Lun<strong>da</strong>mo:“Pela tua equação elabora-se um círculo on<strong>de</strong> todos sabem, mas ninguémdiz a ninguém e uns já disseram aos outros. Absurdo”.(p. 34)83Ao que Adérito retorque:“Absurdo não Dialético. Repara: saber e não saber porque se sabe”.(p. 34)204Os vocábulos utilizados (“isto”; “isso”; “aquilo”...) transmitem o distanciamento do sujeito enunciador.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraMaria Rosa Monteiro (s/d) aponta para o mundo “kitsch” e dialécticoevi<strong>de</strong>nciado na <strong>obra</strong>, encontrando o seu expoente máximo nas palavras<strong>de</strong> Adérito: “<strong>da</strong> afini<strong>da</strong><strong>de</strong> formal com a dialéctica, conclui Adérito ocarácter dialéctico do que dissera. E é justamente a forma que interessa(Adérito é um intelectual “formalista”). Mas o seu interesse nela é ain<strong>da</strong>“estético”: o que disse é uma tira<strong>da</strong> – uma forma verbal automatiza<strong>da</strong> eauto-suficiente. Não é por acaso, é o que justamente a dialéctica costumaser, on<strong>de</strong> a referência a ela é obrigatória. A sua completu<strong>de</strong> pseudo-explicativadispensa a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> intotalizável e frequentemente <strong>de</strong>sagradável(aquela que o mujimbo veicularia). O raciocínio dialéctico antecipa aperfeição e o bonito (é o amanhã que hoje canta)”.Lun<strong>da</strong>mo consi<strong>de</strong>ra que o segredo é factor <strong>de</strong> união entre aquelesque o partilham, assumindo-se como um elo <strong>de</strong> ligação entre aquelesque amam o partido:“Se calhar um segredo une mesmo as pessoas. Se calhar mesmo quehaja pessoas a bocar o segredo, como pensou Feijó, essas pessoas, no fundoestão uni<strong>da</strong>s, passas <strong>de</strong> umas para as outras mas tudo gente séria. Gente como coração no Éme. Estou a ver o lado positivo do segredo”.(p. 87)Convém ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>termos a nossa atenção em Leninegrado (205) . Estepersonifica os “frutos não colhidos” por aqueles que lutaram pela revoluçãosocialista (206) :84“O pior é que o tempo passa por nós e aquilo que sonhámos parece,como hei-<strong>de</strong> dizer, assim como se quando a gente chega a um rio e, em vez<strong>de</strong> atravessar para buscar banana do outro lado, fica só nesta margem a apanharpeixes com uma re<strong>de</strong> velha.”(p. 29)205A posse <strong>de</strong> um nome assegura a especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> do eu. Neste sentido, a adopção <strong>de</strong> um novo nomeconsagra o <strong>de</strong>saparecimento <strong>da</strong> antiga personali<strong>da</strong><strong>de</strong> em prol <strong>de</strong> um novo ser social. Desta forma, não<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser bastante simbólica a adopção do nome “Leninegrado”, região administrativa <strong>da</strong> Rússia, umdos gran<strong>de</strong>s centros industriais do país. Cf. Louis-Vincent, Thomas et Luneau, René, La terre Africaine etses Religions, Paris, L´Harmattan, 1980.206O MPLA, <strong>de</strong> formação marxista-leninista, teria a missão <strong>de</strong> organizar a nação pela perspectiva domo<strong>de</strong>lo oci<strong>de</strong>ntal, utilizando, como tal, a teoria socialista a fim <strong>de</strong> impulsionar a superação <strong>da</strong>s diferenças,em nome <strong>da</strong> igual<strong>da</strong><strong>de</strong> e liber<strong>da</strong><strong>de</strong>.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiMais tar<strong>de</strong> confessaria o seu afastamento dos amigos influentes, istoporque:“Alguns podiam pensar que um gajo an<strong>da</strong> a rastejar, outros estão semprereunidos, outros man<strong>da</strong>m dizer que não estão e a gente a vê-los, outrosman<strong>da</strong>m esperar três horas. Eu não estou pra isso e é melhor, assim nãoestrago a amiza<strong>de</strong>”.(pp. 30-31)Somos ain<strong>da</strong> confrontados com o marasmo no trabalho <strong>de</strong> escritório:“Lun<strong>da</strong>mo sentado à secretária. Ca<strong>de</strong>ira giratória. Marcadores azul,ver<strong>de</strong>, roxo, amarelo e castanho. Sempre a <strong>de</strong>senhar i<strong>de</strong>ias no papel e a afastar,<strong>de</strong> vez em quando, as bafora<strong>da</strong>s dos cigarros <strong>de</strong> Adérito. Fecha o roxo.Abre o amarelo. Adérito a esmagar beata no cinzeiro”.(p. 35)“Adérito a ensaiar bolinhas <strong>de</strong> fumo e a <strong>de</strong>sconseguir no treme treme einsegurança nos lábios”.(p. 40)Manuel Rui consi<strong>de</strong>ra Feijó: “um alienado a tudo, não só ao mundoeuropeu, mas também aquilo que implica as viagens, o ser burguês, odinheiro (...)” (207) .Desta forma, vamos <strong>de</strong>senhando um quadro <strong>de</strong> personagens que levantamquestões liga<strong>da</strong>s à idiossincrasia <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana, pauta<strong>da</strong>por um regime <strong>de</strong> partido único, on<strong>de</strong> a corrupção e o novo riquismoganham forma/expressão. Os vários ambientes e episódios ilustram omodo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana.A <strong>obra</strong> parece-nos indicar que a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil angolana mantémain<strong>da</strong> uma capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> autonomia e abertura, que é a que <strong>de</strong>corre <strong>da</strong>orali<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> memória, enfim, dos seus estratos tradicionais.Com efeito, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> referir a importância <strong>da</strong> palavrano contexto africano. Neste caso, o “mujimbo” reitera este aspecto.85207Op. cit. Entrevista em anexo, p. 167.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraAna Sá (2004:47) (208) aponta a trilogia “antepassados/ tradicionalistas/palavra” como característica <strong>da</strong> <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> tradição africana.Parece-nos <strong>de</strong> todo pertinente esta associação na <strong>obra</strong> Crónica <strong>de</strong> UmMujimbo (209) . É o mujimbo, o oral, em suma, a palavra que se sobrepõea tudo o resto.Atentemos, como tal, no final <strong>da</strong> <strong>obra</strong>. Ora à semelhança <strong>de</strong> Quemme <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>, também este se reveste <strong>de</strong> inevitável carácter simbólico(210) . Des<strong>de</strong> logo, a presença <strong>da</strong> “mais velha”, mãe <strong>de</strong> Feijó, que “ficouestática olhos para lá <strong>da</strong> nascente <strong>de</strong> uma cachoeira, <strong>de</strong>dos <strong>da</strong>s mãosna mesma embrulhados, tentativa <strong>de</strong> controlar soluços no abafo dobarulhar <strong>da</strong> chuva (211) como choro <strong>de</strong> avó antiga” (p. 158), evi<strong>de</strong>ncia areali<strong>da</strong><strong>de</strong> envolvente.Não será por acaso que a na<strong>rra</strong>tiva começa e termina com uma tempesta<strong>de</strong>(212) em aproximação, cujas relações metafóricas com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>vivencia<strong>da</strong> por Feijó são evi<strong>de</strong>ntes. Aliás, será a figura sábia <strong>da</strong> maisvelha Catarina (213) , a quem foi outorga<strong>da</strong> a ancestrali<strong>da</strong><strong>de</strong> própria do86208Sá, Ana Lúcia Lopes <strong>de</strong>, A Confluência do Tradicional e do Mo<strong>de</strong>rno na Obra <strong>de</strong> Uanhenga Xitu,Luan<strong>da</strong>, União <strong>de</strong> Escritores Angolanos, 2004.209Assim como em muitas outras <strong>obra</strong>s angolanas.210Po<strong>de</strong>mos também estabelecer a analogia com o final <strong>de</strong> O manequim e o piano, neste caso, surgeum figura misteriosa, “cega” e “mais velha” que parecia ser o guardião <strong>da</strong> casa, que Alfredo e Van<strong>de</strong>rtentavam registar: “o homem, <strong>de</strong> cabelo todo branco que apareceu ali no meio do capinzal não tinha osdois olhos, cego e aterrorizava Alfredo pelo vermelho <strong>da</strong>s cavernas oculares. Segurava com a mão direitaum pau para se guiar por um miúdo” (O manequim e o piano, p. 385). Desta forma, as páginas <strong>da</strong> <strong>obra</strong>são ence<strong>rra</strong><strong>da</strong>s envoltas no mistério <strong>de</strong>sta personagem [Repare-se que o facto <strong>de</strong> ser cego, reveste a personagem<strong>de</strong> simbolismo acrescido, pois o cego é “aquele que ignora as aparências enganosas do mundoe, graças a isso, tem o privilégio <strong>de</strong> conhecer a sua reali<strong>da</strong><strong>de</strong> secreta, profun<strong>da</strong>, interdita ao comum dosmortais” (Chevalier et Gheerbrant: 1994: 180)]. O romance termina ain<strong>da</strong> com chuva. Chevalier, Jean etGheerbrant, Alain Dicionário dos simbolos, Lisboa, Teorema, 1994.211A água era na cosmogonia <strong>de</strong> Tales o primeiro elemento cosmogónico e o mais activo enquantocausa. Também na tradição oral africana, to<strong>da</strong>s as relações remontam à uni<strong>da</strong><strong>de</strong> primordial. I<strong>de</strong>m.212Em O Manequim e o Piano a chuva adquire enorme importância. Tanto Alfredo como Van<strong>de</strong>r iniciama sua esta<strong>da</strong>, na casa e na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, tomando banho <strong>de</strong> chuva, que po<strong>de</strong>mos interpretar como espécie<strong>de</strong> baptismo, o início <strong>de</strong> um novo ciclo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. A chuva é ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>staca<strong>da</strong> ao longo <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a na<strong>rra</strong>tivacomo elemento essencial aos dois protagonistas, estes referem o seu “cheiro”: “eu gosto do cheiro <strong>da</strong> chuvaaqui na tua te<strong>rra</strong> parece cheiro <strong>de</strong> mulher grávi<strong>da</strong>” (O manequim e o piano: 2005: 127). Repare-se nanoção <strong>de</strong> fertili<strong>da</strong><strong>de</strong> (espiritual e material) e origem proveniente <strong>da</strong> chuva (“mulher grávi<strong>da</strong>”). Para alémdisso, Van<strong>de</strong>r, à semelhança <strong>de</strong> Noíto <strong>de</strong> Rioseco, tem a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> aproveitar a água <strong>da</strong> chuva para preveniruma eventual falta <strong>de</strong> água (i<strong>de</strong>m:187). Para Alfredo a chuva era factor <strong>de</strong> segurança e confiança: “arazão do seu medo. Era porque não havia chuva” (i<strong>de</strong>m:90).213Símbolo <strong>da</strong> tradição e superstição angolanas, relembra-nos Noíto <strong>de</strong> Rioseco ou ain<strong>da</strong> a tia <strong>de</strong>Alfredo <strong>de</strong> O manequim e o piano. Recor<strong>de</strong>-se a importância que os “mais velhos” <strong>de</strong>sempenham na sabedoriaancestral africana. Tal como Ki-Zerbo afirma, a tradição oral constituía [e nalguns casos ain<strong>da</strong>E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruiafricano, a apontar neste sentido:“O kibhungu kyoso ki kiza ngó mbé kuzula o mayoso” (214) .(p. 142)Consi<strong>de</strong>re-se a simbologia <strong>da</strong> chuva, presente na parte inicial e final<strong>da</strong> <strong>obra</strong>. (215) , como elemento fertilizador e purificador, colocando a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>a “nu”. É o mujimbo/ segredo que é finalmente revelado.Provi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> enorme significado são ain<strong>da</strong> as palavras <strong>da</strong> “maisvelha”, Dona Bia, que em diálogo com os netos (216) , refere que os costumese as supertições mu<strong>da</strong>ram, o “cão que uiva” já na<strong>da</strong> significa:“Vó. A vó não disse o cão quando uiva dá azar, não é vó?”“Isso era antigamente, meu filho. Hoje está tudo mu<strong>da</strong>do. Apren<strong>da</strong>mcom o vosso tio.”“Mas a vó gostava tanto <strong>de</strong> chuva!” – observou Zefe.”(p. 159)O final não <strong>de</strong>ixa dúvi<strong>da</strong>s, pelas palavras <strong>da</strong> “mais velha” o mo<strong>de</strong>rnopareceria sobrepôr-se ao tradicional. A chuva que põe tudo a “nu”, nãotraz boas novas. O mujimbo fora revelado e passara a notícia. Aquilo queera superstição parece não ter mais valor. A “mais-velha” refere que ascrianças <strong>de</strong>vem “mu<strong>da</strong>r”, “apren<strong>de</strong>r com o tio”, Feijó personifica, <strong>de</strong>staforma, “o novo” (217) .constitui: veja-se a importância do mujimbo] o “repositório e o vector do capital <strong>de</strong> criações sócio-culturaisacumulados pelos povos sem escrita: um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro museu vivo cujos “guardiões são os velhos <strong>de</strong>cabelo branco, voz cansa<strong>da</strong> e memória um pouco obscura, rotulados às vezes <strong>de</strong> teimosos e meticulosos:ancestrais em potencial...”Ki-Zerbo, Joseph, História Geral <strong>de</strong> África, S. Paulo e Paris, 1982, p. 38.214“A tempesta<strong>de</strong> quando vem é sempre para pôr as coisas a nu”.215“A chuva diz I Ching é originária do princípio k´ien, o princípio activo celeste, <strong>de</strong> que to<strong>da</strong> amanifestação tira a sua existência (...). A chuva filha <strong>da</strong>s nuvens e <strong>da</strong> tempesta<strong>de</strong>, reúne os símbolos dofogo (relâmpago) e <strong>da</strong> água. Apresenta também o duplo significado <strong>de</strong> fertilização espiritual e material”.Chevalier et Gheerbrant, op. cit. pp. 192-193. O po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> chuva é inegável, a própria língua portuguesanos dá conta <strong>de</strong>sta importância <strong>da</strong> chuva, por exemplo, quando nos referimos a alguém que é responsávelpor algo, fazemos alusão ao “man<strong>da</strong>-chuva”.216Não nos parece que tenha sido ocasional que o na<strong>rra</strong>dor tenha optado por concluir a acção com aconjunção <strong>da</strong> inocente voz infantil associa<strong>da</strong> à sábia voz <strong>da</strong> “mais velha”.217Henrique Abranches consi<strong>de</strong>ra que a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana “foi campo <strong>de</strong> luta <strong>de</strong> uma contradiçãosempre presente entre o velho e o novo”. Abranches, Henrique, Reflexões sobre Cultura <strong>Na</strong>cional, Lisboa,Edições 70, 1980, p. 11.872007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraNo entanto, o na<strong>rra</strong>dor acaba por contrariar as palavras <strong>de</strong> Dona Bia,uma vez que reitera ironicamente a importância <strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ou seja,<strong>da</strong> tradição, na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois “o segredo já to<strong>da</strong> a gente o sabe antes<strong>de</strong>le ser revelado oficialmente” (218) , é a autonomia dos estratos sociais,<strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong>, como tal, a tradição, enten<strong>da</strong>-se o “mujimbo”, antecipa-seao mo<strong>de</strong>rno, enten<strong>da</strong>-se a notícia oficial (219) .88218Op. cit. Entrevista em anexo, p. 166.219Bhabha (1994) refere que “the enunciation of cultural difference problematizes the binary divisionof past and present, tradition and mo<strong>de</strong>rnity at the level of cultural representation and its authoritativeaddress”. Homi, Bhabha, The location of culture, London, Routledge, 1994, p. 35.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Rui“Ca<strong>da</strong> livro é uma busca <strong>da</strong> minhai<strong>de</strong>ntificação com o País e comigo próprio”.José Cardoso Pires“Exercer a crítica <strong>da</strong> nação é uma forma <strong>de</strong>optimismo; só o silêncio é pessimista; e acrítica como a cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, começa por casa”.Wole Soyinka1 MORTO & OS VIVOS(“De Um Comba”)Constituído por três contos, o livro adopta uma nova versão do realismo,contrariamente ao processo patente nas <strong>obra</strong>s anteriormente estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s.Referimo-nos ao conto mais significativo do livro, e que lhe dáo nome, “De um comba”, aí o fantástico e o mágico servem como pontos<strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para uma análise <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> luan<strong>de</strong>nse.Antes, porém, <strong>de</strong> nos retermos sobre os diversos aspectos aí <strong>de</strong>senvolvidos,convém aten<strong>de</strong>r aos dois contos anteriores, também eles repletos<strong>de</strong> humor e ironia.Em “O Rei dos papagaios”, Kalakata, o miúdo, apesar <strong>da</strong>s inúmerasdificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s, vê-se reconhecido e valorizado pela sua habili<strong>da</strong><strong>de</strong> emfazer papagaios (220) .<strong>Na</strong> na<strong>rra</strong>tiva, <strong>de</strong>paramo-nos, à semelhança <strong>de</strong> outras <strong>obra</strong>s, com asfrequentes “bichas do pão”, on<strong>de</strong> tudo vale para conseguir um simples89220Também “Mestre Zé” <strong>de</strong> Saxofone e Metáfora (2001), em “Eu também posso cantar”, era habilidoso,na sua arte <strong>de</strong> fazer carros <strong>de</strong> marca em miniatura.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira90bem. Será precisamente na vin<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>ssas bichas que o miúdo éatacado pelos “gregos” (221) , os observadores do episódio ficam indiferentes,inclusivamente o pai dos miúdos com quem Kalakata privara diasantes, na elaboração <strong>de</strong> dois magníficos papagaios.A indiferença do pai, não <strong>de</strong>ixa, por sua vez, o leitor indiferente, poislogo nos apercebemos <strong>de</strong> como uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser cruel e “virar ascostas”, sem na<strong>da</strong> fazer, perante uma situação <strong>de</strong> injustiça.No conto “A gra<strong>de</strong>”, a situação é caricata e ganha contornos humorísticos.Salvador e Lina tentam, a todo o custo, verem-se livres <strong>de</strong> umagra<strong>de</strong> <strong>de</strong> cerveja estraga<strong>da</strong>. Num mercado que “aparecia e <strong>de</strong>sapareciaain<strong>da</strong> só estava o cheiro <strong>da</strong> rusga nas narinas do mujimbo” (p. 28).Esta existência <strong>de</strong>monstra a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> bem presente na economiaangolana: o mercado paralelo.O casal ven<strong>de</strong> a gra<strong>de</strong>, que comprara estraga<strong>da</strong>, mas, ironicamente,esta acaba por voltar às suas mãos. Para solucionar a questão, resolvemenviá-la como contributo para um comba.Contudo, o conto, maior em extensão e significado, acaba por sero último dos três contos <strong>da</strong> <strong>obra</strong>. Aí “o autor prossegue a sua crítica aocomportamento <strong>da</strong> pequena burguesia urbana, só que o faz, <strong>de</strong>sta vez,<strong>de</strong> forma menos direcciona<strong>da</strong> e, por isso, mais profun<strong>da</strong> e dramática”(Venâncio: 1996b:109).“De Um Comba” abor<strong>da</strong> diversas temáticas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o adultério, à corrupçãoe ascensão fácil <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados elementos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana.Tal como outrora fizera em Memória do Mar (1980), o autor serve-sedo fantástico, a fim <strong>de</strong> criticar a pequena burguesia urbana, através <strong>de</strong>um morto que se levanta no seu próprio funeral, há todo um conjunto <strong>de</strong>situações que vão sendo <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>da</strong>s.O comba (222) que Dona Vaca, a amante do suposto morto, leva a cabotorna-se tema central <strong>da</strong> <strong>obra</strong>. As <strong>de</strong>núncias a uma série <strong>de</strong> situações ca-221Nome atribuído aos marginais.222Termo utilizado para <strong>de</strong>signar a cerimónia angolana que dá conta do funeral do morto e aspectosenvolventes. Sobre esta temática é interessante reflectir sobre a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural que este acto <strong>de</strong>tém,<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo obviamente <strong>da</strong> época, do país e <strong>da</strong> religião em que nos inserimos. Os funerais assumem-secomo eventos sociais importantes “servem para exprimir emoções (...) permitem o encontro <strong>da</strong>quelescujas vi<strong>da</strong>s são afecta<strong>da</strong>s por uma morte. Aju<strong>da</strong>m a tornar real o facto <strong>da</strong> morte, a i<strong>de</strong>ntificar os amigos eparentes do morto e a <strong>de</strong>screver um conjunto <strong>de</strong> papéis a serem <strong>de</strong>sempenhados pelos indivíduos <strong>de</strong> lutoque po<strong>de</strong>rão estar a sofrer <strong>de</strong>vido à per<strong>da</strong> dos seus papéis e anteriores funções”. Parkes, Collin Mu<strong>rra</strong>y [etalli], Morte e Luto através <strong>da</strong>s Culturas, Lisboa, Climepsi Editores, 2003, pp. 274-275.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruiricatas são diversas. A <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> luan<strong>de</strong>nse parece revelar a<strong>de</strong>silusão, por parte do autor, no futuro <strong>de</strong> Angola (223) .Des<strong>de</strong> logo, convém realçar o título do conto “De 1 Comba”. Através<strong>de</strong> um acto tradicional “comba” (224) , engendrar-se-ão um conjunto<strong>de</strong> situações. Venâncio (1996b:109) refere que o leitor assiste “à procurado <strong>de</strong>stino, por parte <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> luan<strong>de</strong>nse, urbano e culturalmentemestiço nos seus hábitos. Pela exploração do fantástico, este texto aproxima-se<strong>da</strong> tradição contista sul-americana e quiçá moçambicana, sepensarmos em Mia Couto”.Assim, num realismo concreto e visual, que aproxima inexoravelmenteas palavras <strong>da</strong> linguagem cinematográfica (225) , o na<strong>rra</strong>dor assemelha-sea um cineasta, como bom observador e realista, caracteriza aspersonagens com varia<strong>da</strong> notação <strong>de</strong> pormenores, pintando quadros <strong>de</strong>gentes, o leitor viaja por um mundo <strong>de</strong> cor e sons:“Os grupos distinguiam-se pela homogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> no vestir, nos gestose até no tom <strong>de</strong> voz e na forma como ca<strong>da</strong> um havia chegado, com mais oumenos à vonta<strong>de</strong>”.(p. 35-36)223Venâncio, 1996b, op. cit p. 110.224Achamos pertinente referir a importância <strong>da</strong> cerimónia do óbito na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> africana, concomitantemente,apesar <strong>de</strong> longo, gostaríamos <strong>de</strong> transcrever o esclarecimento do escritor angolano,Uanhenga Xitu, que, em entrevista a Ana Sá (2004:307-308), <strong>de</strong>staca, precisamente, o relevo <strong>de</strong>steacto na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> africana, e, por conseguinte, na angolana, “ouçamos” então o escritor: “para nós,termos um morto, é uma ligação <strong>de</strong> muita tristeza e é preciso prestar homenagem ao <strong>de</strong>funto tal e qual,ou pareci<strong>da</strong>mente, como os nossos antepassados faziam. É por isso que no óbito há preceitos, há ritospara cumprir com muito respeito (...). O falecido, mesmo que em vi<strong>da</strong> fosse um gatuno, bandido, alino enterro faz-se o elogio fúnebre com todos os bons <strong>de</strong>feitos, quando se sabe que ele era um bandido!Qual é o medo que os vivos têm? Qual é o receio? Alguém morreu, foi ente<strong>rra</strong>do hoje. Oito ou novedias <strong>de</strong>pois, temos <strong>de</strong> fazer o chamado “comba” (Kukomba tambi), um outro ritual que obe<strong>de</strong>ce a uma<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> regra, on<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> pessoa tem <strong>de</strong> oferecer um “x” em dinheiro ou em espécie para aju<strong>da</strong>r na<strong>de</strong>spesa <strong>de</strong> óbito. É isso, para nós, o óbito é um símbolo muito importante <strong>da</strong> nossa vi<strong>da</strong> social, e nãopo<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>scurar-nos <strong>de</strong>le. Até po<strong>de</strong>mos estar muito longe, mas quando sabemos “morreu fulano <strong>de</strong>tal”, enfim contribui-se ain<strong>da</strong> que seja com cinco ou três euros. Por mais que queiramos <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r--nos <strong>de</strong>le, não po<strong>de</strong>mos. Estamos ama<strong>rra</strong>dos por on<strong>da</strong>s invisíveis. Vai-se à igreja, o enterro é religioso,mas <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> religião, vai-se lá no tradicional. E todos os ministros e outros, o próprio Presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong>República, vão no tradicional. Isto i<strong>de</strong>ntifica-nos. Não sei se é a isto que se chama angolani<strong>da</strong><strong>de</strong>. Pareceque são estes usos e costumes que fazem a tal angolani<strong>da</strong><strong>de</strong>, não é? Talvez sejam os usos e costumesque nos i<strong>de</strong>ntificam”.225Cf. capítulo “Da palavra ao palco e à tela”.912007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraO limite <strong>de</strong> movimentos e as roupas padroniza<strong>da</strong>s criam atmosferasvivas, ganhando uma inevitável <strong>leitura</strong> alegórica quando observa<strong>da</strong> emseu contexto.A automatici<strong>da</strong><strong>de</strong> dos gestos <strong>da</strong>s personagens, num ritual em que a“morte é uma convenção” (226) , transforma o funeral num jogo <strong>de</strong> aparênciase ilusões:“É essa lista que eu disse. Acho que vai ser um sucesso... quer dizer... <strong>de</strong>organização”.(p. 37)“Encontrarem-se. Tecerem intrigas. Exibirem roupas. A<strong>rra</strong>njar engates.Tanta coisa (...) Vôos internacionais todos os dias. <strong>Uma</strong> vez até pedi flores<strong>de</strong> manhã e à noite estavam cá (...)”.(p. 40)“Porque este homem, que só nos <strong>de</strong>ixa fisicamente, continua connoscoem espírito, como exemplo vivo do cumprimento dos <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> ci<strong>da</strong>dão,chefe <strong>de</strong> família, esposo, pai e militante (...) –O orador levantou os olhosdo papel e ofereceu o rosto, intencionalmente, bem fixado, à câmera <strong>de</strong>televisão”.(p. 49)As mulheres conversam sobre questões <strong>de</strong> herança do morto e os homensdiscutem a utilização <strong>da</strong> associação cívica para velórios (227) .O funeral é ain<strong>da</strong> encontro <strong>de</strong> conveniências e influências:92“Não sei como lhe hei-<strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cer. Meu Deus! Que sorte eu tive emvir a este funeral”.(p. 48)Ao longo do texto, a corrupção é também evi<strong>de</strong>ncia<strong>da</strong> como reali<strong>da</strong><strong>de</strong>nas diferentes esferas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>:226Visão do morto (p. 37).227Acham inconveniente o uso <strong>da</strong> associação para aquele fim, no entanto, salientam que <strong>de</strong>viamexistir algumas excepções, nomea<strong>da</strong>mente para pessoas como eles (p. 39).E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Rui“Não trabalharam o árbitro. Des<strong>de</strong> que eu <strong>de</strong>ixei, sabes que <strong>de</strong>ixei a direcçãoe <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aí, pronto. Não trabalham o árbitro”.(p. 42)“... responsáveis do tuji que a<strong>rra</strong>njaram casa na Habitação para essaDona Vaca”.(p. 44)Só”.“Se baixares os muros que ele subiu no quintal. Vais contar seis carros.(p. 45)“Um corrupto a fazer-me o elogio fúnebre. Eu conheço a conta bancária<strong>de</strong>le na Suíça. Só por isso renunciaria a ir para o céu”.(p. 49)A duali<strong>da</strong><strong>de</strong> conhecimento científico versus conhecimento religiosoencontra aparente contradição nas palavras <strong>de</strong> um interveniente dofuneral:“Mas tu achas bem a organização <strong>de</strong> mulheres do partido cantar umhino maqui, isto está certo, mas, <strong>de</strong> repente, entrar no paleio do padre, on<strong>de</strong>é que está o ateísmo científico que elas apren<strong>de</strong>ram”.(p. 47)Sugere-se ain<strong>da</strong> que a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> é falsa em termos <strong>de</strong> convicções,uma vez que, muitas vezes, se afirma ser aquilo que não se é:“– Mas o gajo não era religioso.Isso é que eu já não sei. Às vezes, uma pessoa se diz que é, não se safa”.(p. 47)93A construção <strong>da</strong> personagem feminina, Dona Vaca, inicia<strong>da</strong> com aausência <strong>de</strong> <strong>de</strong>nominação e <strong>de</strong> outros elementos <strong>de</strong> caracterização directa,liga-se intimamente à figuração <strong>da</strong>s outras personagens, <strong>de</strong> outroselementos cosmológicos que com ela se i<strong>de</strong>ntificam, assim como ao tecido<strong>da</strong>s personagens que o na<strong>rra</strong>dor lhe atribui.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraRepare-se que as duas mulheres do falecido, a legítima e a amante,são <strong>de</strong>scritas <strong>de</strong> forma totalmente distinta. A primeira, Dona Márcia (228) ,assume uma postura cabisbaixa <strong>de</strong> subordinação, chorando <strong>de</strong> corpovergado. Por outro lado, Dona Vaca distingue-se pela sua postura superiore altiva:“O grito <strong>de</strong> gue<strong>rra</strong> para o choro carpi<strong>de</strong>iro, colectivo, lançava-o DonaMárcia, legitima esposa do falecido”.(p. 50)“Dona Vaca mantinha-se serena, altiva e sem uma lágrima, <strong>de</strong> vez emquando reajeitando até uma ou outra flor sobre o corpo do <strong>de</strong>funto”.(p. 50)“Dona Márcia se atirava <strong>de</strong> forma quase i<strong>rra</strong>cional para o caixão e erasocorri<strong>da</strong> pelos braços <strong>de</strong> dois homens”.(p. 50)Refere-se ain<strong>da</strong> a questão <strong>da</strong>s multinacionais petrolíferas, o tom irónicodo na<strong>rra</strong>dor é sublime, quando o orador que profere o discurso <strong>de</strong>elogio fúnebre afirma:“Alguns recorrem a urnas <strong>de</strong> luxo com menosprezo pela indústria nacionalnessa matéria. É pois saudável, exemplar e patriótico, em termos <strong>de</strong>nacionalismo e principalmente <strong>de</strong> humil<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que há pouco vos falava,que este homem venha à sua última mora<strong>da</strong> num caixão simples, <strong>de</strong> fabriconacional”.(pp. 50-51)94Estas palavras causam enorme impacto no morto, que se insurgecontra as mesmas e levanta-se, instaurando a confusão geral:“E o morto colocou ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s mãos nas bor<strong>da</strong>s do caixão e, lenta esolenemente, levantou-se até ficar sentado”.(p. 51)228Des<strong>de</strong> logo, o facto <strong>da</strong> esposa ser apresenta<strong>da</strong> pelo seu nome valoriza-a em relação à amante queapenas conhecerá, ao longo do conto, a nomeação <strong>de</strong> “Dona Vaca”.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Rui“E logo-logo os sol<strong>da</strong>dos preparados para a salva <strong>de</strong>ram em dispararatoamente raja<strong>da</strong>s algumas <strong>de</strong> tangente na cabeça <strong>da</strong>s pessoas”.(p. 51)Atente-se no carácter calmo e lento <strong>da</strong> acção, assim como nos advérbios<strong>de</strong> modo utilizados: “solenemente”, revestindo o acto <strong>de</strong> umcarácter quase cerimonial e “atoamente”, <strong>da</strong>ndo conta do estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sorientaçãoprovocado em todos os assistentes <strong>da</strong> cerimónia fúnebre.Um outro aspecto interessante no conto é a visão <strong>da</strong> morte que nosvai sendo lega<strong>da</strong> pelas diferentes personagens:“(...) a morte vem sempre quando menos se espera”.(p. 37)“(...) ca<strong>da</strong> funeral é uma antecipação <strong>da</strong> minha morte pela contabilização<strong>de</strong> dias a menos na minha vi<strong>da</strong> por causa do funeral”.(p. 41)Manuel Rui transporta-nos por um mundo <strong>de</strong> “caos”, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m eheterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong>s, no qual, um “morto” será julgado por se ter revoltadocontra o rumo do seu próprio funeral.Dona Márcia, adopta, tal como já fizemos referência, uma postura totalmentedistinta <strong>da</strong> <strong>de</strong> Dona Vaca, quando está “<strong>de</strong>sespera<strong>da</strong>”, refugiasena religião e na Igreja. Aliás, o seu confi<strong>de</strong>nte, amigo e conselheiro é opadre, este está a seu lado nos momentos fulcrais <strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong> e incerteza,acalmando-a e aconselhando-a na fé:“Haja o que houver, a melhor forma <strong>de</strong> cumprirmos a palavra do senhor,é a nossa fé. Por isso recolha-se. O recolhimento é sempre uma abertura <strong>de</strong>luz. Deve recolher-se e orar com fervor. Deus saberá receber a sua prece”.(p. 55)95Dona Vaca, por sua vez, aparece envolta em luxo, riqueza eexuberância:“... está senta<strong>da</strong> em sobre uma poltrona pesa<strong>da</strong> <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira Vera panga--panga, preciosa, <strong>de</strong> Cabin<strong>da</strong>...”; “... mu<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>de</strong> vestido. Agora com uma2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveirase<strong>da</strong> sedosa nas bolinhas pequenas brancas sobre o preto acetinado e meiotransparente...”.(p. 57)Manuel Rui <strong>de</strong>staca que nesta <strong>obra</strong> estamos perante uma “burguesiajá instala<strong>da</strong> no po<strong>de</strong>r, com uma segun<strong>da</strong> mulher, um segundo carro...”.A <strong>leitura</strong> que acabamos por fazer <strong>de</strong>sta personagem, dos seus contactose hábitos, é uma <strong>leitura</strong> que sanciona ou reprova as condutas <strong>de</strong>nuncia<strong>da</strong>s.De facto, Dona Vaca assumirá a “legali<strong>da</strong><strong>de</strong>” do comba, implementando-oem sua casa. Será a partir <strong>de</strong>ssa cerimónia que o leitor conhecefiguras caricatas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.O ritual segue a tradição: comi<strong>da</strong>, bebi<strong>da</strong> e “mulheres mais velhas”vesti<strong>da</strong>s <strong>de</strong> preto que “<strong>de</strong>satavam numa chora<strong>de</strong>ira canta<strong>da</strong>, em ro<strong>da</strong>,com uma <strong>de</strong>las no meio a xinguilar” (p. 59).Repare-se que a função do choro é atribuí<strong>da</strong> à mulher. Manuel Ruiretoma a temática em Rioseco, nomea<strong>da</strong>mente através <strong>de</strong> Noíto, quandoesta reivindica, não só para si, mas para a mulher, o choro, como algo <strong>de</strong>intrínseco e tradicional (229) .O autor versa ain<strong>da</strong> os problemas sociais, que dão conta do <strong>de</strong>sajustesocial. Dona Vaca consegue material ilicitamente, através <strong>de</strong> um “amigodo ministério”; obtendo assim o seu nível <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> elevado:“On<strong>de</strong> é que conseguiu logo quatro [ventoinhas]?No mercado é que nem pensar. Um amigo do ministério do comércio”.(p. 66)96“Tenho bomba, filha, não ouviu a bomba a assobiar. Bomba e quatro<strong>de</strong>pósitos. Nunca me faltou água nem luz. O gerador dá para tudo, até osares condicionados”.(p. 67)O “comba” transformar-se-ia num sucesso na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e mesmo no estrangeiro,o luxo, a bebi<strong>da</strong>, a comi<strong>da</strong>, a música, as pessoas anima<strong>da</strong>s e aorganização nas tarefas transformavam esta cerimónia no acontecimentosocial <strong>da</strong> altura:229Noíto afirma: “Casa on<strong>de</strong> há mulher é ela que chora”.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Rui“comba que se transforma em visita <strong>de</strong> internacionais na maior boate– o quintal conhecido e protelado pelos quatro continentes, paralelizadocom os maiores <strong>de</strong>fensores dos direitos do homem”.(p. 116)À semelhança <strong>de</strong> Crónica <strong>de</strong> um Mujimbo, também “De um Comba”abor<strong>da</strong> a questão <strong>de</strong> a informação ser divulga<strong>da</strong> no estrangeiro e só <strong>de</strong>poisno país. Neste caso, as pessoas “mais letra<strong>da</strong>s” sintonizavam emissorasestrangeiras a fim <strong>de</strong> saberem novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> “boate” <strong>de</strong> Dona Vaca.Dona Vaca personifica ain<strong>da</strong> o tráfico <strong>de</strong> influências ao conseguir oacesso <strong>de</strong> uma sobrinha a um curso <strong>de</strong> hospe<strong>de</strong>iras e ao garantir o “empurrão”<strong>da</strong> outra para outro curso, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta última não ter conseguidovaga no seu país.As figuras que frequentam a sua casa são presenças consagra<strong>da</strong>s <strong>da</strong>socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, nomea<strong>da</strong>mente membros do governo e administração:“Quando o empregado já empilhava os pratos, uma senhora gritou:“É ele mesmo!” “Quem?” – in<strong>da</strong>gou outra. – “O ministro <strong>da</strong>s águas..”E era mesmo. Algumas pessoas levantaram-se”.(p. 62)“E haviam aparecido mais três ministros, alguns directores nacionais ehomens fortes <strong>de</strong> empresas”.(p. 64)“O gerente do maior hotel <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, on<strong>de</strong> nem sequer se podia pagarem moe<strong>da</strong> nacional, mas só em divisas, convidou-a para almoçar”.(p. 97)<strong>Uma</strong> outra figura importante é a “do risco ao meio” (230) , a personagemque “sabe ler e escrever e pinta as unhas, ou seja, um gajo que an<strong>da</strong>sempre bem vestido, e que está em vias <strong>de</strong> engatar a viúva. Ele po<strong>de</strong> serconsi<strong>de</strong>rado um neoliberal. É uma figura <strong>de</strong> marca” (231) :97230Novamente, ao não nomear a personagem a crítica é mais sagaz e abrangente. É a personagem--tipo que se move e age <strong>de</strong> acordo com <strong>de</strong>terminados padrões estereotipados.231Op. cit. Entrevista em anexo, p. 168.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira“De princípio, quase ninguém se arrojou na abertura. Até que umhomem magro, vestindo um fato preto, luto a valer, cabelos brancos e riscoao meio, do antigamente, foi à mesa abriu uma ga<strong>rra</strong>fa <strong>de</strong> bagaceira e abasteceu-senum cálice-balão”.(p. 57)“<strong>Na</strong> hora <strong>de</strong> duas <strong>da</strong> tar<strong>de</strong> regressou o <strong>de</strong> risco, <strong>de</strong>sta <strong>de</strong> fato brancoalvíssimo, camisa preta, gravata creme, o sapato <strong>de</strong> verniz preto bicudo e,para espanto <strong>de</strong> todos, num chapéu cinzento, mais uma bolsa <strong>de</strong> cabe<strong>da</strong>lcastanho a tiracolo e todo ele <strong>de</strong> aromas perfumado (...) As senhoras maiscotas ficaram na observação <strong>da</strong>quele <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> cinquenta, elegante, sembarriga, pedir um guar<strong>da</strong>napo para pendurar no colarinho e tirar o chapéuantes <strong>de</strong> atacar no chu<strong>rra</strong>sco. Mais a exigência <strong>de</strong> um pires para o funji emolho à parte”.(p. 69)Progressivamente, o “<strong>de</strong> risco” vai-se assumindo como elemento<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque nos diálogos sobre o morto e na organização do própriocomba:“Ora bem, o <strong>de</strong> risco sempre a tomar a iniciativa, que se estivesse mortoteria voltado a esten<strong>de</strong>r-se, encontrando-se agora ain<strong>da</strong> no caixão aberto(...) O espírito libertou-se <strong>da</strong> carne. O corpo voltou a cair. E o espírito vagueiaagora. Po<strong>de</strong> muito bem estar aqui entre nós”.(p. 64)98“Mas como é que se algema uma pessoa por se ter levantado do caixão?”– exasperava o <strong>de</strong> risco com o colarinho já todo kibuzado, fato pretocheio <strong>de</strong> enxovalho <strong>de</strong> se entregar assim à noite e ao dia e a boca a exalar umbafo <strong>de</strong> fermentações”.(p. 65)“E a partir <strong>de</strong>ssa sufraga<strong>da</strong> hora, em que o <strong>de</strong> risco fez a escolha dosseus colaboradores, proce<strong>de</strong>u a reunião com eles, ali no quintal, <strong>de</strong> papel eesferográfica na mão e tudo, organizando e referindo os assuntos <strong>de</strong> ca<strong>da</strong>um, a que ele chamou <strong>de</strong> itens, tudo se transformou”.(p. 82)E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiAs situações caricatas são diversas, tome-se como exemplo a <strong>de</strong>nominação<strong>de</strong> luto nacional pelo Presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Roménia, alguém <strong>de</strong> todo<strong>de</strong>sconhecido no país.Passados três meses, após a <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> sentença, é <strong>de</strong>clara<strong>da</strong> a amnistia,pelo que se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> a morte “oficial” do <strong>de</strong>funto, que fora ilibado<strong>da</strong>s acusações.O conto termina com a transformação do “comba” em boate, na casa<strong>de</strong> Dona Vaca, e com a abertura <strong>da</strong>s portas <strong>de</strong> Dona Márcia.Dona Márcia, aconselha<strong>da</strong> pelo padre, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> abrir as portas e, ironicamente,quando prepara um chá para ela e para o sacerdote, canta“quem morreu/ain<strong>da</strong> está vivo” (p. 127) (232) . O mote conclusivo é possibilitadopela chega<strong>da</strong> “<strong>de</strong> rompante do conservador do registo civil”(i<strong>de</strong>m).99232Canção entoa<strong>da</strong> em casa <strong>de</strong> Dona Vaca.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraAS PERSONAGENS ESUAS SIGNIFICAÇÕES“A alegria é a coisa mais séria <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>”Alma<strong>da</strong> Negreiros“O que é um personagem senão a <strong>de</strong>terminação<strong>da</strong> acção? O que é a acção senão a ilustração dopersonagem? O que é um quadro ou um romanceque não a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> caracteres? Que outra coisaprocuramos e encontramos neles?”Henry James100As personagens, “integra<strong>da</strong>s num enunciado, servirão essencialmente<strong>de</strong> “ancoragem” referencial remetendo para o gran<strong>de</strong> texto <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ologia,dos “clichés” ou <strong>da</strong> cultura; assegurarão, pois, o que Roland Bartheschama “efeito do real” (Op. cit. Hamon:1979:96-97).Partiremos <strong>da</strong> localização do primeiro estádio <strong>da</strong>s personagens que,conforme preconizado por Philippe Hamon (1979), vão sendo construí<strong>da</strong>s,isto é, revesti<strong>da</strong>s <strong>de</strong> características que, possibilitando as mais varia<strong>da</strong>scorrespondências, acentuam a sua singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> e tecem, não umaacepção unívoca, mas uma multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> significações.De acordo com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o romance é um discurso sobre o mundo(Mitterand: 1980) (233) , a organização textual <strong>de</strong> Manuel Rui conformauma projecção sintagmática <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações paradigmáticasrepresenta<strong>da</strong>s por personagens cuja movência <strong>de</strong>termina a relação dosvários microcosmos presentes ou suscitados pelos espaços geográficos eépocais “in praesentia”.233Mitterand, Henri, Le Discours du Roman, Puf Écriture, 1980.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiÉ pela caracterização <strong>da</strong>s personagens que se fica a conhecer umretrato relativamente <strong>de</strong>finido <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um dos elementos <strong>da</strong> história,retrato esse que diz respeito às características físicas, morais, sociais epsicológicas.O na<strong>rra</strong>dor mostra-se omnisciente, <strong>de</strong>senhando, com minúcia, ambientese pessoas. Fá-lo sobretudo através <strong>da</strong> caracterização indirecta(notação minuciosa e expressiva do falar e do agir), para nos <strong>da</strong>r aconhecer, através <strong>da</strong> acção, o carácter e a idiossincrasia <strong>da</strong>s diferentespersonagens.A sua urdidura <strong>de</strong>senvolve-se pela acumulação <strong>de</strong> traços e pelo engendramento<strong>de</strong> relações que lhes possibilitam uma <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong> significativa,significante e simbólica.Do vasto elenco <strong>de</strong> personagens, <strong>de</strong>stacamos as que nos parecerammais significativas.No primeiro segmento na<strong>rra</strong>tivo têm particular relevo as personagensmasculinas –Diogo e Feijó, num segundo segmento na<strong>rra</strong>tivo DonaVaca, a par <strong>de</strong> outras personagens femininas, <strong>de</strong>tém a mesma função <strong>de</strong>crítica social. Para além <strong>de</strong>stas, surgem as crianças, embora estas sejamalvo <strong>de</strong> uma análise distinta.As personagens indica<strong>da</strong>s têm em comum uma carga semântica quelhes advém dos seus estados e experiências. Mas as significações, que setecem, são acresci<strong>da</strong>s <strong>de</strong> valores suplementares pelas correlações comoutras personagens e elementos funcionais.Através <strong>da</strong> relação entre as personagens, Manuel Rui discute o i<strong>de</strong>ário<strong>da</strong> pequena burguesia, ao mesmo tempo que enfatiza o quotidianoe a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> compreensão <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>; investiga criticamente amoral social burguesa a partir <strong>da</strong> visão <strong>de</strong> famílias <strong>de</strong> classe média e <strong>de</strong>tipos sociais representantes <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r instituído.As personagens, as situações, os sentimentos e os conceitos são múltiplos.Definem-se num quadro <strong>de</strong> valores, por comparação. Trata-se porvezes, <strong>de</strong> expressões solidárias, embora não coinci<strong>de</strong>ntes, duma amplareali<strong>da</strong><strong>de</strong>; outras vezes, <strong>de</strong> elementos que pertencem a esferas distintas,se não opostas. Por exemplo: a educação veicula<strong>da</strong> pela professora eaquela preconiza<strong>da</strong> pela Comissão <strong>de</strong> avaliação <strong>da</strong>s composições dos miúdos;o comportamento dos adultos em confronto com as crianças, etc.1012007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraDesta forma, as personagens encontram-se e <strong>de</strong>sencontram-se consigoe com os outros.De um modo geral, as personagens <strong>de</strong> Manuel Rui são planas ou<strong>de</strong>senha<strong>da</strong>s, isto é, personagens-tipo (234) , representando um grupo e/oumentali<strong>da</strong><strong>de</strong>, movimentando-se em <strong>de</strong>terminados ambientes ou círculos.A sua intervenção e apresentação, as características físicas e psicológicas,assim como os gestos e a linguagem não sofrem gran<strong>de</strong>s alteraçõesao longo <strong>da</strong> na<strong>rra</strong>ção.Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>, Crónica <strong>de</strong> um mujimbo e “De 1 Comba”apresentam um vasto leque <strong>de</strong> personagens, estes constituirão um retrato<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, feito <strong>de</strong> forma irónica e satírica, mas <strong>de</strong> uma ironiape<strong>da</strong>gógica (Mata: 1992) (235) . Porém, se numa primeira <strong>leitura</strong> aparentamenquadrar-se na linha <strong>da</strong> sátira social semelhante à exposta e <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong>por Propp (1992), as reticências impõem-se numa análise maisprofun<strong>da</strong>, pois se existe uma função reparadora, através do humor edo riso, as <strong>obra</strong>s caminham muito além <strong>de</strong>ste aspecto, apesar <strong>de</strong> seanalisar e problematizar o social, os nossos olhares, enquanto leitores,encontram todo um universo que vai para além <strong>da</strong>quele, apesar <strong>de</strong> comele se <strong>de</strong>bater.Com um olhar crítico diante <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>gra<strong>da</strong><strong>da</strong>, o na<strong>rra</strong>dor resgataas vozes <strong>de</strong> um discurso i<strong>de</strong>ológico (236) , expõe os acontecimentos102234Philippe Hamon <strong>de</strong>fine personagens-tipo como “personagens comuns a várias sequências e <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>spor um mesmo número <strong>de</strong> eixos semânticos simples, sem consi<strong>de</strong>rar previamente a sua funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong>diferencial”. Hamon, Philippe, 1979, op. cit. p. 98.Por sua vez, Carlos Reis e Ana Lopes (1998) apresentam a seguinte <strong>de</strong>finição do termo “constituindouma subcategoria <strong>da</strong> personagem, o tipo po<strong>de</strong> ser entendido como personagem-síntese entre o individuale o colectivo, entre o concreto e o abstracto, tendo em vista o intuito <strong>de</strong> ilustrar <strong>de</strong> uma forma representativacertas dominantes do universo diegético on<strong>de</strong> se processa a acção (...). Nele convergem e reencontram-setodos os elementos <strong>de</strong>terminantes, humana e socialmente essenciais, <strong>de</strong> um período histórico,porque criando tipos mostram-se esses elementos no seu grau mais alto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento”. Reis, Carloset Lopes, Ana Cristina, Dicionário <strong>de</strong> <strong>Na</strong><strong>rra</strong>tologia, Coimbra, Almedina, 1998, p. 411.235“Ironia não como figura <strong>de</strong> estilo, mas como modo <strong>de</strong> representação, pela ligeireza como sãoapresenta<strong>da</strong>s situações absur<strong>da</strong>s a raiar o grotesco. Ironia também enquanto efeito <strong>de</strong> recepção pela repetiçãodos slogans revolucionários nas circunstâncias mais prosaicas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> quotidiana”. Mata, Inocência,Pelos trilhos <strong>da</strong> Literatura africana <strong>de</strong> Língua portuguesa, Pontevedra/Braga, Irman<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> Fala <strong>da</strong> Galizae Portugal, 1992, p. 38.236Metalinguagem doutrinária utiliza<strong>da</strong> pelas personagens e ironicamente <strong>de</strong>sprovi<strong>da</strong> do seu significadooriginal. As i<strong>de</strong>ologias são completamente questiona<strong>da</strong>s pela linguagem marca<strong>da</strong>mente revolucionária,observa<strong>da</strong> nas falas <strong>de</strong> Diogo, Faustino e outros e nos cartazes hilariantes, <strong>de</strong> que as crianças seapropriam para aju<strong>da</strong>rem, tal como já referimos, à sua <strong>de</strong>smistificação.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruisob o signo <strong>da</strong> comici<strong>da</strong><strong>de</strong> e apresenta caricaturalmente as personagensrepresentantes <strong>da</strong> burguesia. Estas tornam-se vivas, exactas e colori<strong>da</strong>s.1032007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira“É possível inferir <strong>da</strong> literaturauma certa espécie <strong>de</strong> retratos sociais.”René W. et Warren A“Sobre a nu<strong>de</strong>z forte <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>o manto diáfano <strong>da</strong> fantasia.”Eça <strong>de</strong> QueirósDIOGO VERSUS FEIJÓ104Ambos constituem personagens-tipo (237) <strong>de</strong> uma mesma classe social– a burguesia, funcionando como os seus exímios representantes.Como tal, o leitor acaba por i<strong>de</strong>ntificá-los como uma pessoa <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.Para Venâncio (1992b:53), Diogo apresenta-se como “um representantetípico <strong>da</strong> pequena-burguesia luan<strong>de</strong>nse, consi<strong>de</strong>rando-se, elepróprio, um revolucionário, <strong>da</strong> revolução cubana apenas apanhava avestimenta: “quando se viaja <strong>de</strong> carro – dizia encontra-se porco por todoo lado. Então porque é que o tal ministro não man<strong>da</strong> comprar os porcosnas províncias e pôr carne nas bichas <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>? Matadouro o tuga(português) <strong>de</strong>ixou. Vejam só: um povo revolucionário como o <strong>de</strong> Cubatem a mesma opinião, come bué carne <strong>de</strong> porco”.Por outro lado, para a caracterização <strong>de</strong> Feijó contribuem uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s<strong>de</strong> sentido e frases que revelam, entre outros aspectos, os conteúdos <strong>de</strong>237Remetendo para o âmbito social e psicológico que inspiram a sua configuração, as personagensfacilmente <strong>de</strong>monstram a classe que representam, no âmbito <strong>da</strong>s virtuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s sígnicas evi<strong>de</strong>ncia<strong>da</strong>s pelosdiscursos, postura, atitu<strong>de</strong>s e reacções emblemáticas.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruipensamento sobre ela produzidos. A sua apetência pela europeização e aurbanização remete para a típica personagem citadina, a <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhar dosvalores tradicionais.Há, porém, alguns pontos distintos entre as duas personagens, aponte-seque Diogo representa a burguesia em vias <strong>de</strong> afirmação, por suavez, em Feijó, essa mesma burguesia já se encontra institucionaliza<strong>da</strong>.Por outro lado, Diogo adopta uma postura crítica <strong>de</strong> tudo e <strong>de</strong> todos,enquanto Feijó <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r instituído, seguindo à risca as indicaçõesdo MPLA.Diogo <strong>de</strong>safia aquilo que está pré-estabelecido, visto que cria umporco, no apartamento.Assim, no início <strong>da</strong> <strong>obra</strong>, Diogo chama atenção para algo caricato – aquestão <strong>da</strong> <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> e falta <strong>de</strong> recursos é <strong>de</strong>staca<strong>da</strong> no elevador, on<strong>de</strong>não é suposto levar um leitão, no entanto, com o monta-cargas avariado,que segundo Diogo se <strong>de</strong>via ao facto <strong>da</strong> mulher <strong>de</strong> Faustino ter passadoum dia inteiro a transportar mercadoria, as opções estavam limita<strong>da</strong>s.O assessor popular crítica Diogo, apelando à manutenção <strong>da</strong> disciplina.Contudo, a personagem <strong>de</strong>monstra o seu carácter vincado e argumenta asua posição, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo-a com exemplos objectivos e reais.Diogo assume ain<strong>da</strong> uma posição prática e crítica face à reali<strong>da</strong><strong>de</strong>circun<strong>da</strong>nte:“Qual Instituto [<strong>da</strong> Habitação], qual mer<strong>da</strong>, bando <strong>de</strong> corruptos quea<strong>rra</strong>njam casas só para os amigos. Eu sempre paguei ren<strong>da</strong>. E casas que nãotêm porco estão mais porcas do que esta”.(p. 11)“Quem então é que este porco can<strong>de</strong>ngue está a incomo<strong>da</strong>r? Só na lei<strong>de</strong>sse advogado <strong>de</strong> tuga. Não é? Que tratem mas é <strong>de</strong> resolver o problema<strong>da</strong> água”.(p. 11)105Mantém uma cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong> inicial com a família, sendo que ao longo<strong>da</strong> novela pai e filhos distinguem-se pelos i<strong>de</strong>ais que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m, Liloca,que respeita sempre a posição do marido, tentará mediar as posições:2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira“Diogo abraçou a mulher e os filhos, gargalharam todos aquela primeiramanhã clan<strong>de</strong>stina do porco”.(p. 18)“Nessa vez os miúdos amuaram revoltados contra o pai e Diogo passoua noite insone, vira que vira na cama a investigar remédio para satisfazer asexigências pequeno-burguesas <strong>de</strong> “carnaval <strong>da</strong> vitória””.(p. 24)“(...) entendia o sentimento e estacionava nessa in<strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> mãe eesposa, ora a comungar do carinho que os filhos <strong>de</strong>dicavam ao porco oracarnívora também nos <strong>de</strong>sejos expressos no projecto do marido”.(p. 26)Aliás, as duas posições, geração dos pais/ geração dos filhos, erambem distintas, pois viam o porco <strong>de</strong> forma diferencia<strong>da</strong>. Para Diogo “eratudo carne, peso, contabili<strong>da</strong><strong>de</strong> no orçamento familiar” (i<strong>de</strong>m: 26).Severo na sua relação com os filhos, bate-lhes, quando estes levam oporco para a escola:“Diogo não era para essas brinca<strong>de</strong>iras nessas coisas <strong>de</strong><strong>de</strong>sobediência”.(p. 31)“Os miúdos pareciam resistir só com a raiva, chorando e soluçando baixinho,o que zangava ain<strong>da</strong> mais o pai, que red<strong>obra</strong>va os golpes”.(p. 32)106Diogo revela-se, ao longo <strong>da</strong> na<strong>rra</strong>tiva, original e criativo na sua preocupação<strong>de</strong> calar o porco. Apesar <strong>de</strong> não se preocupar com o bem estardo animal, contrariamente aos filhos, preten<strong>de</strong> calá-lo, a fim <strong>de</strong> que osvizinhos não se apercebam <strong>da</strong> presença <strong>da</strong>quele. Encontra várias estratégiaspara equacionar os grunhidos do porco, tentando, <strong>de</strong>sta forma, oseu aburguesamento. Sendo que tem a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> colocar uns auscultadoresna orelha do porco. Dá-lhe torrões <strong>de</strong> açúcar e coloca-lhe os auscultadoresna orelha, rejubilando-se com o resultado obtido:E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Rui“Conquistas <strong>da</strong> revolução! (...) Estás politizado! Isto é que a Comissão<strong>de</strong> moradores <strong>de</strong>via ver”.(p. 25)“Carnaval <strong>da</strong> Vitória passou a ser o ouvinte mais contínuo <strong>da</strong> rádionacional”.(p. 25)Recor<strong>de</strong>-se que o porco acaba por personificar a luta (<strong>de</strong> classes) empreendi<strong>da</strong>por Diogo para “<strong>de</strong>sferir um golpe (contra-revolucionário) narevolução ou, pelo menos, naqueles seus vizinhos que exercem o po<strong>de</strong>r(popular)” (Hilário:2006:71).Apercebe-se e comenta a injustiça social, no entanto, acaba por semostrar indiferente com as cama<strong>da</strong>s mais <strong>de</strong>sfavoreci<strong>da</strong>s. Aliás, a personagempartilha ain<strong>da</strong>, tal como já fizemos menção, do egoísmo citadinoque Venâncio (2004) menciona o “sindroma do centralismo luan<strong>de</strong>nse”(238) . Apesar disso, Diogo aponta algumas injustiças sociais:“Em casa <strong>de</strong>le [Faustino] passa ovos, <strong>de</strong>ndém, carne e ontem quatroramalho eanes. Quando era “morteiro” eu vi três caixas. Se ca<strong>da</strong> pessoa sótem direito a uma, como é que um juiz açambarca <strong>de</strong>ssa maneira?”(p. 42)Rejeita as comparações típicas com o tempo do colono (239) e adoptauma postura resmungona e <strong>de</strong> permanente insatisfação:“Mer<strong>da</strong> para esta vi<strong>da</strong>! Um homem farta-se <strong>de</strong> trabalhar, sábados vermelhosnão falta e nem sequer há um bocado <strong>de</strong> cerveja”.(p. 55)No que concerne à sua profissão, sabemos que trabalha, mas o seu“serviço” não é especificado.No final <strong>da</strong> <strong>obra</strong>, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser irónico e risível que Diogo acabepor convi<strong>da</strong>r todos os moradores do prédio para comer o porco, apelando,<strong>de</strong>sta forma, à uni<strong>da</strong><strong>de</strong> social.107238Cf. capítulo “Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>”, p. 68.239Contrariamente a Feijó.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira“– Então convi<strong>da</strong>-se o Faustino, os membros <strong>da</strong> comissão <strong>de</strong> moradorese todos os camara<strong>da</strong>s que fizeram serviço ontem e hoje à porta do prédio.Foi uma gran<strong>de</strong> iniciativa.– Dou a minha moção sem reservas. É preciso unir os moradores doprédio porque a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ve começar <strong>da</strong> base”.(p. 65)Por sua vez, Feijó é o apogeu do MPLA. Ele reproduz aqueles queviam no MPLA uma espécie <strong>de</strong> religião: “as pessoas, em Angola, passaram<strong>da</strong> religião católica para a “religião do MPLA” é, portanto, umburocrata típico do sistema do po<strong>de</strong>r, a reiteração do rigor e <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>formal” (240) .A “maquinali<strong>da</strong><strong>de</strong>” dos gestos, a escassez do discurso, a repetição <strong>de</strong>uma rotina e as atitu<strong>de</strong>s estão ao serviço <strong>da</strong> caricatura <strong>de</strong>sta personagem.Henrique Feijó vivia angustiado com a possível <strong>de</strong>scoberta do segredoe assumia a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do seu ofício, o qual realizava com afinco.Era exagera<strong>da</strong>mente <strong>de</strong>dicado ao serviço, sendo que foi trabalharvários dias sucessivos com temperaturas eleva<strong>da</strong>s.“E retirava-se com esse secreto e áspero sabor na garganta alivia<strong>da</strong>pelo cumprimento do <strong>de</strong>ver”.(p. 10)108A sua caracterização física é feita <strong>de</strong> forma directa, através <strong>de</strong> uma<strong>da</strong>s personagens <strong>da</strong> <strong>obra</strong>, Leninegrado que o distingue como sendo umhomem “magro, elegante e sem um cabelo branco” (p. 30).Feijó, familiarmente tratado <strong>de</strong> Rico, é, à semelhança <strong>de</strong> <strong>Na</strong>zário(Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>), corrigido pelos mais jovens, neste caso, o sobrinho,questiona o tio na questão <strong>da</strong> utilização <strong>da</strong> linguagem:“Tio Rico. Bocam que você falou é português? / (...) Sim. É e não é.Po<strong>de</strong> ser o verbo bocar. Vem <strong>de</strong> boca. É uma palavra. Bem...”(p. 15)240Op. cit. Entrevista em anexo p.167.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiÀ semelhança <strong>de</strong> outras personagens, Feijó compara o momento presentecom o passado colonial, referindo-se a este com alguma nostalgiae sau<strong>da</strong><strong>de</strong>:“Nesta ci<strong>da</strong><strong>de</strong> a vi<strong>da</strong> morre cedo. Nem vale a pena o semáforo. No tempodo colono <strong>da</strong>qui a bocado eram os aceleras as luzes <strong>da</strong>s boites, cabarés, asesplana<strong>da</strong>s a abarrotar <strong>de</strong> gente, putas por todo o lado, casas com fadistasaté era bonito o fado é porreiro”.(p. 12)A questão <strong>de</strong>bati<strong>da</strong> em 1 Morto & Os Vivos (“De Um Comba”) do“pré-científico” é também equaciona<strong>da</strong> por Feijó. Este <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a cientifici<strong>da</strong><strong>de</strong>(241) contra a religião, assumindo-se como ateu e revolucionário:“Qual Santa Bárbara, mãe! Isso é pré-científico”.(p. 16)“A lineari<strong>da</strong><strong>de</strong> significa empirismo e isso é pré-científico”.(p. 35)“Como é que eu te hei-<strong>de</strong> explicar. Rezar não rezo, sou ateu”.(p. 18)“Só a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é revolucionária. E eu não posso trair esse princípio”.(p. 44)“Fantasmas é o homem que inventa. E o homem é que <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>struir osfantasmas. Ou então não vale a pena socialismo científico”.(p. 61)Julga-se pru<strong>de</strong>nte e criterioso, visto que não queria saber do mujimboque circulava, sempre que alguém falava disso Feijó <strong>de</strong>sviava oassunto:109241Em O manequim e o piano a questão volta a colocar-se entre Alfredo e Van<strong>de</strong>r: “Alfredo aka! Eunão posso aceitar <strong>de</strong>sculpa! Mentali<strong>da</strong><strong>de</strong> pré-científica porque as coisas são porque existem (...) como éque tu po<strong>de</strong>s an<strong>da</strong>r a magicar com o manequim e a fazer ligações espiritualistas” (O manequim e o piano,p. 119).2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira“Fuga <strong>de</strong> informações. As velhas e os garotos sabem sempre tudo equase antecipa<strong>da</strong>mente. Parece que adivinham. Também não posso asseguraro que a mãe ia concluir. Mas foi melhor. Prudência. O fun<strong>da</strong>mental écumprir o meu <strong>de</strong>ver”.(p. 17)É rigoroso na educação dos mais novos e preten<strong>de</strong> que o filho cumprahorários e regras:“Joaninha é preciso rever a disciplina <strong>de</strong>ste senhor. Primeiro os <strong>de</strong>veres<strong>de</strong>pois a brinca<strong>de</strong>ira e tudo a horas. (...) À mesa fala-se com a boca e nãocom os talheres.”(p. 23)Zeloso e preocupado com a família, sustenta mãe e cunha<strong>da</strong>:“Meninos vocês não compreen<strong>de</strong>m que a costura que a mãe e a avófazem só dá para a<strong>rra</strong>njar coisas no matanço e que se não fosse o vosso tio[Feijó] estavam <strong>de</strong>sgraçados?”(p. 16)Demonstra ain<strong>da</strong> ser um marido fiel a Joaninha, distinguindo a vi<strong>da</strong>pessoal <strong>da</strong> profissional, pois quando abor<strong>da</strong>do por Leninegrado sobre abeleza <strong>da</strong> sua secretária, apressa-se logo a esclarecer:“Reconheço. Mas há que separar os assuntos. Serviço é serviço. Não abdico<strong>de</strong>sta regra”.(p. 32)110Como funcionário do Estado, usufruía <strong>de</strong> benefícios, nomea<strong>da</strong>menteo carro que conduzia, o qual tratava com zelo e cui<strong>da</strong>do:“Xino e a mãe lavaram os pés no bal<strong>de</strong> <strong>de</strong> plástico e limparam-se, pésbem secos, sacudidos na areia, antes <strong>de</strong> se instalarem no automóvel. Feijófazia questão “exactamente por ser do Estado e um bem do povo e o povomerece respeito”.(p. 51)E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiQuando Leninegrado lhe envia, conjuntamente com os seus poemas(242) , um ga<strong>rra</strong>fa <strong>de</strong> “nambaruane capuca legítima”(p. 119), recusa apresença <strong>de</strong>sta no seu escritório, porque julga ser <strong>de</strong> fabrico ilegal:“Certo que tem alambique clan<strong>de</strong>stino e coloca-me numa situação <strong>de</strong>cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong>. No meu gabinete uma ga<strong>rra</strong>fa <strong>de</strong> mixor<strong>de</strong>iro. Essas fábricasestão proibi<strong>da</strong>s, ele sabe.E ligando o telefone or<strong>de</strong>na a <strong>Na</strong>lumba para que este <strong>de</strong>ite fora o conteúdo<strong>da</strong> ga<strong>rra</strong>fa”.(p. 119)Após ser observado pelo psiquiatra, é-lhe diagnosticado “sindromasituacional” (p. 128), pelo que o tratamento mais eficaz é o repouso, nomea<strong>da</strong>menteuma viagem.Assim, concluímos que as personagens representantes <strong>da</strong> burguesia,<strong>de</strong>tractores dos valores tradicionais e <strong>de</strong>tentores dos mo<strong>de</strong>rnos valoresnão apresentam soluções váli<strong>da</strong>s na mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.Estas, tal como outras personagens caricatas e envoltas em exageradonon-sense, ridicularizam igualmente as formas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r querepresentam.111242<strong>Na</strong> esperança que Feijó pu<strong>de</strong>sse meter uma “cunha” na União <strong>de</strong> Escritores Angolanos, a fim<strong>de</strong>stes serem publicados.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira“A literatura tem <strong>de</strong> ser expressão <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>”.De Bonald“Le carnaval est un spectacle sans la rampe etsans la séparation en acteurs et spectateurs”.Bakhtine“Isso é a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e qualquer semelhança com aficção é mera coincidência”.Manuel RuiCARNAVAL DA VITÓRIA112De ouvido apurado ou <strong>de</strong> dorso resistente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos mais remotosque os animais, quer as aves, quer os animais <strong>de</strong> carga, serviam<strong>de</strong> imagem para referenciar o comportamento humano, nomea<strong>da</strong>mentenos seus vícios e virtu<strong>de</strong>s.Assim, os animais converteram-se numa diverti<strong>da</strong> lição <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> paraos homens, que muitas vezes se riem <strong>de</strong> si próprios, quando pensam rir--se dos animais.Símbolo <strong>de</strong> pessoas reais, as imagens animais prestam as funçõeslúdica, moral e paródica. Neste sentido, leiam-se <strong>obra</strong>s como o Triunfodos porcos, <strong>de</strong> George Orwell (243) , on<strong>de</strong> a analogia com Quem me <strong>de</strong>ra seron<strong>da</strong> nos parece pertinente.243A fábula orwelliana aflora as implicações do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>spótico e totalitário, capaz <strong>de</strong> cercear to<strong>da</strong>sas liber<strong>da</strong><strong>de</strong>s e <strong>de</strong> se corromper.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiAs pontes <strong>de</strong> convergência (não se procura a influência) entre asduas <strong>obra</strong>s não são <strong>de</strong>cisivamente unidimensionais, uma vez que sedistinguem claramente, nos códigos e estruturas formais, no entanto asanalogias são evi<strong>de</strong>ntes.O recurso ao porco atribui a ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s na<strong>rra</strong>tivas o sentido docómico do non-sense, a <strong>de</strong>sconstrução do status, pela máxima “ri<strong>de</strong>ndocastigat mores” (244) . A personagem porco confere uma duplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sentidos, em Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>, na boca <strong>de</strong> Diogo ele é o burguêsque o estado revolucionário <strong>de</strong>ve suprir (“estás-te a aburguesar”), emboraseja igualmente a metáfora <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte (245) , on<strong>de</strong> as leisjustificam todos os meios.Em termos simbólicos, o porco significa “a sofreguidão, a voraci<strong>da</strong><strong>de</strong>:<strong>de</strong>vora e engole tudo o que se lhe apresente. Em muitos mitos, é estepapel <strong>de</strong> sorvedouro que lhe é atribuído. (...) É geralmente o símbolo <strong>de</strong>tendências obscuras, sob to<strong>da</strong>s as suas formas <strong>de</strong> ignorância, <strong>de</strong> glutonice,<strong>de</strong> luxúria e egoísmo” (Chevalier et Gheerbrant: 1994: 537).Repare-se que o porco, em Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>, é “subordinado”por Diogo com os “torrões <strong>de</strong> açúcar” (“glutonice”), ou então com os“fones” nos ouvidos (“luxúria”).Apesar <strong>da</strong> simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> que ence<strong>rra</strong>, no facto <strong>de</strong> se tratar <strong>de</strong> umanimal, Carnaval <strong>da</strong> Vitória reflecte uma enorme profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> conteúdo.O porco colocar-se-á ao serviço do advertimento, <strong>da</strong> consciênciacrítica, <strong>da</strong> repreensão, <strong>da</strong> correcção dos erros e vícios humanos. A liçãoserá sábia, diverti<strong>da</strong> e didáctica.A sua <strong>de</strong>scrição é dinâmica, associa<strong>da</strong> a gestos e grunhidos, <strong>da</strong>ndo--nos conta <strong>da</strong> sua evolução, <strong>da</strong>s marcas <strong>de</strong> aburguesamento sofri<strong>da</strong>s aolongo do tempo. Estes índices constituem uma espécie <strong>de</strong> código, poispermitem a <strong>leitura</strong> <strong>de</strong> um nível <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> – o burguês.Carnaval <strong>da</strong> Vitória surge como figura aforística e caricatural <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadoscomportamentos humanos (a fuga para a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>; o aburgue-113244Lélia Duarte <strong>de</strong>staca as funções do riso, realçando, neste sentido, a social, educadora e i<strong>de</strong>ológica,para a mesma autora “a comédia ridiculariza, através <strong>da</strong> sátira, a transgressão ou o <strong>de</strong>srespeito àsnormas sociais, porque serve a um po<strong>de</strong>r estabelecido, buscando a cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong> do leitor/espectador:ri<strong>de</strong>ndo castigat mores” (i<strong>de</strong>m:15). Duarte, Lélia Parreira, “Riso e morte: submissão e libertação”, in Românica:O Riso, nº11, Lisboa, Colibri, 2002.245Po<strong>de</strong>mos dizer que metaforicamente, assume feições <strong>de</strong> “pocilga”.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveirasamento), colocando assim o código animal ao serviço <strong>da</strong> interpretaçãoe avaliação do preceito humano.A paródia (246) , o ridículo e o absurdo <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s situações assentamo comportamento do porco ao serviço do cómico e do risível.O porco vai sofrendo uma progressiva alteração, sendo que à ina<strong>da</strong>ptaçãoinicial, seguir-se-á um aburguesamento e contentamento gra<strong>da</strong>tivos.Em última instância po<strong>de</strong>mos aduzir que o i<strong>de</strong>al burguês é visadona sua “sofreguidão”, “voraci<strong>da</strong><strong>de</strong>”, “ignorância”, “glutonice”, “luxúria”e “egoísmo” (247) .O porco passará a “Carnaval (248) ”, quando Ruca o baptiza. Posteriormente,sofrerá a <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> “Carnaval <strong>da</strong> Vitória”, em consequência<strong>da</strong> luta contra o “inimigo”, neste caso, o fiscal.A analepse na<strong>rra</strong>tiva permite-nos conhecer o passado do porco:“Era dos seres vivos que mais benefícios haviam tirado com a revolução.<strong>Na</strong>scido <strong>de</strong> uma ninha<strong>da</strong> <strong>de</strong> sete, sobrevivera na sub<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> chafur<strong>da</strong><strong>da</strong> beira-mar <strong>da</strong> Corimba. Aí se habituara às dietas improvisa<strong>da</strong>s, cujabase fun<strong>da</strong>mental eram espinhas <strong>de</strong> peixe. <strong>Na</strong>s confusões <strong>da</strong> areia, cedo elee seus irmãos se libertaram <strong>da</strong> tutela maternal. Metiam focinho em tudo.Roupa que estava a secar biquinis <strong>de</strong> banhistas nocturnas. E mesmo panelasprontas <strong>de</strong> comi<strong>da</strong> quente eles entornavam e, se vinham as proprietáriasvergastá-los com ramos <strong>de</strong> palmeiras. Eles corriam noutra confusão. Ninha<strong>da</strong>que ficou precoce porque a mãe, no lhes ensinar travessias do asfalto <strong>de</strong>Corimba, fez um aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> trânsito com um batedor ce-pê-pê-à motorizado.(...) “carnaval <strong>da</strong> vitória” valeu uma transferência <strong>de</strong> cinco gra<strong>de</strong>s “cuca”vasilhames fora”.(p. 23)114246Jardon Denise (1988: 187-188) perante a frase <strong>de</strong> Bakhtine, em epigrafe, neste capítulo, <strong>de</strong>stacaquatro aspectos <strong>de</strong>corentes: “toutes les distances sont abolies et les contacts entre les gens <strong>de</strong> tout âge et<strong>de</strong> toute classe sociale <strong>de</strong>viennent libres et familiers”; “l´excentricité est <strong>de</strong> mise”; “c´est le lieu <strong>de</strong>s mésalliances,<strong>de</strong>s alliances saugrenues”; “le lieu par excellence <strong>de</strong> la profanation”. Denise, Jardon, Du comique<strong>da</strong>ns le texte literaire, Bruxelles, De Boeck-Ducolot, 1988.247Cf. A simbologia do animal evi<strong>de</strong>ncia<strong>da</strong> por Jean Chevalier et Alain Gheerbrant, op. cit. p. 537.248De salientar a importância <strong>de</strong>sta festivi<strong>da</strong><strong>de</strong> para os angolanos: “festa muito sua <strong>de</strong> actualização,também do histórico 4 <strong>de</strong> Fevereiro, tempo <strong>de</strong> eleição para <strong>da</strong>r largas à transformação plástica, à máscara,à música, aos cânticos, à <strong>da</strong>nça; exercício <strong>de</strong> exornação, <strong>de</strong> representação ou dramatização <strong>da</strong> ancestrali<strong>da</strong><strong>de</strong>ou <strong>de</strong> uma repercussão mais próxima no tempo, ligação ou actualização ritológica e até mitológica,ou o exorcizar <strong>da</strong>s afectações <strong>de</strong>moníacas mais ou menos distantes ou actuais”. Hilário, Fernando, op.cit. p. 128.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiEm casa <strong>de</strong> Diogo, o porco era um privilegiado:“Porco raro. Agora não chafur<strong>da</strong>va nos areais vadios. Comia <strong>de</strong> umhotel <strong>de</strong> primeira; nos restos vinham panados, sala<strong>da</strong>s mistas, camarões,maioneses, lagosta, bolo inglês, outras coisas sempre a variar. (...) Iniciava--se nos gostos musicais. Se roncava protestos, Diogo man<strong>da</strong>va logo a mulherou um dos filhos levantar o rádio para abafar <strong>de</strong>núncia <strong>da</strong> presença do porco(...). Mas que o porco vivia, isso sim. Pancar, dormir, ouvir música e fazerporcarias malcheirosas <strong>de</strong> porco. (...) Lavado também que era com sabã<strong>obra</strong>sileiro e tudo, tantos éfes e erres que vivia que nem um embaixador! E osmiúdos mimoseavam-lhe festas, acariciavam-lhe a barriga até ele, domesticado,se estatelar quase a dormir e <strong>de</strong>pois respon<strong>de</strong>r pelo nome: “carnaval<strong>da</strong> vitória””.(p. 23-24)O animal era tratado pelos miúdos como um membro <strong>da</strong> família,estes preocupavam-se com o seu bem-estar e ensinavam-lhe as proezasdos animais domésticos:“O suíno estava culto, quase protocolar. Maneirava vénias <strong>de</strong> obséquiocom o focinho e apren<strong>de</strong>ra a acenar com a pata direita, além <strong>de</strong> se pôr<strong>de</strong> papo para o ar à mínima cócega que um dos miúdos lhe oferecesse nabarriga”.(p. 25)Carnaval <strong>da</strong> Vitória funciona, <strong>de</strong> certa forma, como personagem--tipo, uma vez que, tal como já mencionámos, imita os padrões burgueses,vê televisão, ouve rádio, come torrões <strong>de</strong> açúcar e não trabalha.As crianças elegiam-no como herói <strong>da</strong>s suas histórias. É, aliás, temacentral <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as composições escritas e <strong>de</strong>senhos <strong>da</strong> escola e que valeramuma repreensão à professora.É também na escola que ocorre um dos episódios simbólicos <strong>de</strong> Carnaval<strong>da</strong> Vitória. Quando Zeca e Ruca levam o porco para o recreio <strong>da</strong>escola, e em círculo, o animal brinca com as crianças e a professora:115“O porco an<strong>da</strong>ndo <strong>de</strong> um lado para o outro a <strong>da</strong>r encontro nos miúdos,e voltava para o meio do círculo em veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> corri<strong>da</strong>. Fazia pausa para-2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira<strong>da</strong>, abanava as orelhas e voltava a tentar furar a ro<strong>da</strong>. Os garotos enxotavame ele repetia a cena até que numa a<strong>rra</strong>nca<strong>da</strong> veloz passou no meio <strong>da</strong>s pernas<strong>da</strong> professora e fugiu”.(p. 29)Os elementos simbólicos (“cor<strong>da</strong>”, “trela”, “ro<strong>da</strong>”, “círculo” e “centro”)semantizam relações <strong>de</strong> centrali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Desprendido <strong>da</strong> “cor<strong>da</strong>”, que nãolhe permitia ser livre, o porco é visto pelos miúdos como uma atracção.“Sem trela”, e apesar do espaço restrito, este é convi<strong>da</strong>tivo à liber<strong>da</strong><strong>de</strong>.Para obtê-la há que quebrar as forças <strong>de</strong> equilíbrio que se estabelecementre o “centro” e o “círculo”. Assim, o “centro” assume o papel <strong>de</strong>“auscultação-avaliação” <strong>da</strong> acção a realizar: romper com a “ro<strong>da</strong>” quefecha o “círculo” à liber<strong>da</strong><strong>de</strong> (Hilário:2006:56-57).Neste contexto, Carnaval <strong>da</strong> Vitória opta pela liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas acabapor ser recuperado pelos miúdos, <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> confusão geral, numa lojado povo. Em consequência, os miúdos ama<strong>rra</strong>m (249) novamente o animal,<strong>de</strong>sta forma, “(re)estabelece-se o seu simbolismo: o que possui e o que épossuído fecham as extremi<strong>da</strong><strong>de</strong>s” (i<strong>de</strong>m:58).Manuel Rui visa, analogicamente, o próprio i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> burguesa:“Num espaço, num tempo (Fevereiro), nas canções contra África do Sul econtra o po<strong>de</strong>r, tudo isso leva ao Carnaval – o Carnaval <strong>da</strong> Vitória! Contudo,no final, o próprio Carnaval <strong>da</strong> Vitória acaba morto... As analogiassão evi<strong>de</strong>ntes” (250) .Seria pertinente aten<strong>de</strong>r na semântica do vocábulo – Carnaval, se,por um lado, personifica a <strong>da</strong>ta histórica que marca a vitória <strong>da</strong>s forçasdo MPLA (251) , por outro lado, é a própria socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana que acabapor ser “carnavaliza<strong>da</strong>” no corpus em estudo.116249Os miúdos percebem a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Carnaval em roer a cor<strong>da</strong>, Zeca pensa em soltá-lo, mas o medodo pai prevalece sobre esse <strong>de</strong>sejo: “a cor<strong>da</strong> <strong>de</strong>ve ser vista não apenas numa simbólica <strong>de</strong> eixo, fio ou trela,que estabelece uma relação <strong>de</strong> posse-possuído, simultaneamente restrição <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas também esobretudo na complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> cor<strong>da</strong> com nós (...). Carnaval <strong>da</strong> Vitória tenta, persegue a liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, e àscrianças <strong>de</strong>sponta o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfazer os nós criados, isto é, proce<strong>de</strong>r a uma libertação que <strong>de</strong>ve ser concretiza<strong>da</strong>na or<strong>de</strong>m exactamente inversa <strong>da</strong> que permitiu a sua confecção”. I<strong>de</strong>m, op. cit. p. 60.250Op. cit. Entrevista em anexo, p. 165.251Simbolizando a festa que marca a <strong>de</strong>rrota do FNLA, aquando <strong>da</strong> incursão sul-africana ao sul dopaís em 1976, <strong>da</strong>ta significativa na História <strong>de</strong> Angola e comemora<strong>da</strong> a 27 <strong>de</strong> Março. Isménia <strong>de</strong> Sousa(1996) <strong>de</strong>staca ain<strong>da</strong> o facto <strong>de</strong> ter sido proibi<strong>da</strong> na capital angolana, poucos anos antes do 25 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong>1974, a celebração do Carnaval. Seria <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência que a capital teria o seu primeiro carnavallivre, ou seja, o Carnaval <strong>da</strong> Vitória.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiAssim sendo, o Carnaval é uma forma <strong>de</strong> expressão <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>,utiliza<strong>da</strong> muitas vezes para criticá-la, e, tendo como raiz a paródia, acarnavalização, em <strong>obra</strong>s como Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>, Crónica <strong>de</strong> UmMujimbo, ou 1 Morto & Os Vivos <strong>de</strong>staca-se com traços que tocam umavisão do mundo, em que os valores estão invertidos.O Carnaval, enquanto facto social, é, <strong>de</strong>sta forma, aproveitado pelaliteratura, que <strong>de</strong>le se serve não como facto literário, mas como factocultural, visando uma ridicularização <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s situações, comportamentosou personagens (Cerqueira:1997) (252) .Neste caso, os comportamentos representantes <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong>,<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados tipos sociais, particularmente <strong>da</strong> burguesia, será carnavaliza<strong>da</strong>,ou melhor, parodia<strong>da</strong> pela sátira e humor do na<strong>rra</strong>dor.Concomitantemente, o nome Carnaval, assume uma dupla função,pois, por um lado, personifica a festa <strong>da</strong> vitória do MPLA, assim comoa celebração <strong>da</strong> <strong>da</strong>ta <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência, e, por outro, reflecte aparodização <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados comportamentos sociais.Curiosamente, Carnaval <strong>da</strong> Vitória é morto no dia <strong>de</strong> Carnaval!As questões finais impõem-se: será esta a altura <strong>de</strong> se celebrar umnovo Carnaval? Um Carnaval utópico e livre <strong>de</strong> ama<strong>rra</strong>s como o i<strong>de</strong>alque o próprio título <strong>da</strong> <strong>obra</strong> ence<strong>rra</strong>? O que não se ence<strong>rra</strong> são as questõesque este final coloca ao leitor.117252Cerqueira, Dorine Daisy Pereira, “Macunaíma: discurso paródico e carnavalizante <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>brasileira” in Cristovão, Fernando [et alli], <strong>Na</strong>cionalismo e regionalismo nas literaturas lusófonas,Lisboa, Edições Cosmos, 1997.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraAS CRIANÇASPassem os olhos pelos nossos olhosnosso futuro os olhos <strong>da</strong>s criançasleiam nos olhos e nos pése também nos risos e nas lágrimasleiam nestes exércitos <strong>de</strong> esperançasas letras <strong>da</strong> manhãque a revolução <strong>de</strong>sperta:O sol é nosso, Pioneiro!E a vitória é certa!Manuel Rui“Gran<strong>de</strong> é a poesia, a bon<strong>da</strong><strong>de</strong> e as <strong>da</strong>nças...Mas o melhor do mundo são as crianças”.Fernando Pessoa118“L´utopie est ce qui empêche l´horizond´attente <strong>de</strong> fusionner avec le champ <strong>de</strong>l´experience”.RicoeurAS CRIANÇAS – REALIZAÇÃO DA UTOPIASe na boca <strong>da</strong>s crianças o rei vai nu, a criança mítica <strong>de</strong>nuncia osparadoxos sociais, numa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> também ela nua, ou seja, analítica.No fluir <strong>da</strong> na(<strong>rra</strong>)ção crítica e reflexiva, em visível simpatia com estafaixa etária, Manuel Rui <strong>de</strong>lega-lhe um papel extremamente relevante nasE-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruisuas na<strong>rra</strong>tivas. O lirismo, característico do autor (253) , percorre, por exemplo,Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> focalização que recebem as crianças.Em Rioseco, é Kuanza (254) quem inicia a protagonista no processo <strong>de</strong>conhecimento <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Noíto fun<strong>da</strong>menta a sua opção na sabedoriapopular, nomea<strong>da</strong>mente na tradição <strong>da</strong> sua te<strong>rra</strong>, no interior, que reconhecena criança a vonta<strong>de</strong> que a leva a construir mais firmemente ocaminho para a maturi<strong>da</strong><strong>de</strong>:“<strong>Na</strong> minha te<strong>rra</strong> falam que quem quer saber <strong>da</strong>s outras te<strong>rra</strong>s, <strong>de</strong>ve primeiroan<strong>da</strong>r com os miúdos. Se tu quiseres saber como se po<strong>de</strong> amadurecer,nunca perguntes numa fruta já madura. Pergunta primeiro numa noxanova. <strong>Uma</strong> noxa que está a ver as outras se amadurecem, outras caírem <strong>de</strong>árvore ain<strong>da</strong> ver<strong>de</strong>s e ela com vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> amadurecer. Aprendi quase tudocom o meu neto”.Rioseco, p. 187A criança assume, <strong>de</strong>sta forma, a superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> e a função <strong>de</strong> iniciador.Alfredo Margarido (1980:360) (255) <strong>de</strong>staca “a aprendizagem <strong>da</strong> infância”como “a aprendizagem do mundo”. De facto, o levantamentocrítico <strong>da</strong>s situações é realizado pelos miúdos que representam, por suavez, a <strong>de</strong>núncia ao sistema, ao regime e à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> vigente em Angola eque os adultos não são capazes <strong>de</strong> reconhecer. São as crianças que parodiama reali<strong>da</strong><strong>de</strong> envolvente (Cf. sobrinhos <strong>de</strong> Feijó).Parece-nos que estas realizam em si a utopia (256) . Às crianças é <strong>da</strong>do o253Não po<strong>de</strong>mos esquecer-nos <strong>da</strong> vasta <strong>obra</strong> poética <strong>de</strong> Manuel Rui.254Um adolescente.255Margarido, Alfredo, Estudos sobre literaturas <strong>da</strong>s nações africanas <strong>de</strong> língua portuguesa, Lisboa, ARegra do Jogo, 1980.256Platão é geralmente consi<strong>de</strong>rado o pai <strong>da</strong> utopia. Para o filósofo, a utopia era entendi<strong>da</strong> comoci<strong>da</strong><strong>de</strong> perfeita. Com efeito, diversas são as <strong>de</strong>finições que o conceito tem conhecido ao longo <strong>da</strong> História.Segundo Hodgart (1969:131): “a utopia faz uma crítica do mundo i<strong>rra</strong>cional do presente oferecendo umcontraste racional”; na linha <strong>de</strong> Ricoeur (Op. cit. Laranjeira: 1994: 223). A utopia “c´est ce qui maintientl´écart entre l´espérance et la tradition”, isto é, enquanto a i<strong>de</strong>ologia assume a função <strong>de</strong> “redoublementdu réel”, a utopia tem a função <strong>de</strong> excentrici<strong>da</strong><strong>de</strong> em relação ao presente, <strong>de</strong> produção. Karl Manheim(1979), tal como Ernest Bloch, enten<strong>de</strong> que os elementos que i<strong>de</strong>ntificam e caracterizam a utopia são <strong>de</strong>natureza funcional: ”the function of bursting the bonds of the existing or<strong>de</strong>r” (i<strong>de</strong>m:173). Assim, se se<strong>de</strong>signar como topia uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> e concreta or<strong>de</strong>m social, as aspirações e os <strong>de</strong>sígnios <strong>de</strong> alteraressa mesma or<strong>de</strong>m po<strong>de</strong>m receber a <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> utopia (i<strong>de</strong>m: ibi<strong>de</strong>m). Manheim, Karl, I<strong>de</strong>ology andutopy, London, Routledge & Kegan Paul, 1979.<strong>Na</strong> Grécia antiga e na China, por exemplo, para alcançar a utopia “ten<strong>de</strong>u a pôr-se uma tónica muitomais forte nas possíveis formas concretas <strong>de</strong> fazer a ponte entre a or<strong>de</strong>m i<strong>de</strong>al e a or<strong>de</strong>m social mun<strong>da</strong>na,1192007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveirapapel <strong>de</strong> rompimento com um estado <strong>de</strong> coisas ou <strong>de</strong> espírito que tem <strong>de</strong> sersuperado em favor <strong>da</strong>s novas perspectivas <strong>de</strong> futuro, este figura-se como aíndole implícita que atravessa to<strong>da</strong> a <strong>obra</strong>, através <strong>de</strong> metáforas explícitas.Bloch (Op. cit. Venâncio 2004) <strong>de</strong>fine utopia como uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong>nunca alcançável, diferindo <strong>de</strong> uma “antecâmara para o paraíso”,mas passível <strong>de</strong> “antecipação”, ganhando apenas sentido se vivi<strong>da</strong>quotidianamente.A utopia <strong>de</strong>fine-se, <strong>de</strong>sta forma, como “um espaço <strong>de</strong> harmonia sociale política a alcançar” (i<strong>de</strong>m: 1999:198) (257) .Venâncio (2004) <strong>de</strong>staca alguns escritores angolanos, que ao lado<strong>da</strong> dimensão <strong>da</strong> angolani<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> que a utopia pepeteliana foi tradutora,fun<strong>da</strong>mentaram o seu propósito futurista na vivência <strong>da</strong> infância. LuandinoVieira (258) , Arnaldo Santos (259) , António Jacinto e António Cardososão os exemplos <strong>de</strong>stacados (260) . Também em Aires <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong> Santos(“A mulemba secou”) (261) e Mário António (“Rua <strong>da</strong> Maianga”), a infânciaé o lugar on<strong>de</strong> não há diferenças raciais.Ora, Manuel Rui, influenciado pelos autores citados, retoma estamesma temática <strong>da</strong> infância. Pelo i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> afeição, as crianças unem-se,nesse movimento <strong>de</strong> luta contra os adultos, em prol do i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong>,<strong>de</strong>ixando explícito que as suas vi<strong>da</strong>s po<strong>de</strong>rão vir a construir a soberania<strong>de</strong> uma nação, que difira <strong>da</strong> vigente. As crianças são as únicas que seregem pela simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> e inocência.120existente, real, na busca <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> aproximar pelo menos um pouco mais as duas or<strong>de</strong>ns entre si”.Eisenstadt, S. N., Fun<strong>da</strong>mentalismo e mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> Heterodoxias, Utopismo e Jacobinismo na Constituiçãodos Movimentos Fun<strong>da</strong>mentalistas, Oeiras, Celta Editores, 1997 [1989], p. 9.257Venâncio, José Carlos, “Globalização, Democratização e facto literário em Angola. Aproximaçãoa uma sociologia do romance”, in, Africana Studia I, 1999, pp. 193-204.258Em Luandino a infância surge como utopia, como o tempo <strong>de</strong> justiça e igual<strong>da</strong><strong>de</strong>. Cf. Venâncio,José Carlos, <strong>Uma</strong> perspectiva etnológica <strong>da</strong> literatura angolana, Lisboa, Ulmeiro,1987.259Também o quadro social <strong>de</strong> Arnaldo Santos é o <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>, “colado, não ao <strong>de</strong>sencanto,mas ao jogo ineficaz <strong>de</strong> um certo absurdo, antes ultrapassando o jogo <strong>da</strong>s aparências, aviva criticamente ocírculo <strong>da</strong>s contradições sociais e raciais (...) o tecido linguístico enriquece-se ao nível <strong>da</strong> angolanização”Ferreira, Manuel, op. cit. p. 56.260O mesmo autor (Venâncio:2004) acrescenta ain<strong>da</strong> o tratamento <strong>da</strong> mesma temática por algunsescritores brasileiros: Lins do Rego e Manuel Ban<strong>de</strong>ira.261Em “A mulemba secou”: “a aprendizagem <strong>da</strong> infância é também a aprendizagem do mundo, mastambém do além, do mundo dos mortos e dos espíritos que prepassam no xuaxalhar, no rumorejar <strong>da</strong>mulemba. Nesse caso, o poema separa-se do peso <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> branca e o musseque aparece, como espaçoautónomo, elaboração perfeitamente africana on<strong>de</strong> a criança apren<strong>de</strong> a reconhecer os homens, as árvores,os espíritos” Margarido, Alfredo, op. cit. p. 360.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiA reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>scrita e <strong>de</strong>gra<strong>da</strong><strong>da</strong> entra em choque com as palavras<strong>de</strong> or<strong>de</strong>m esvazia<strong>da</strong>s <strong>de</strong> sentido, a revolução (262) está apenas na utopiados miúdos, que <strong>de</strong>sejam o seu amigo vivo, contrariamente à revoluçãoconcreta que se per<strong>de</strong> em práticas autoritárias: a posição <strong>de</strong> Diogo quesubmete a família aos seus caprichos; a <strong>de</strong> <strong>Na</strong>zário e Faustino, que encaramos factos como uma questão oficial, para pôr em prova as suaspequenas autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s.Os gran<strong>de</strong>s agentes <strong>da</strong> <strong>obra</strong> são os jovens <strong>da</strong> nova geração (263) , é nestesque a concepção do humano ganha voz, através <strong>da</strong> amiza<strong>de</strong>.São também os miúdos que nos oferecem os momentos mais hilariantes:o humor é fruto do cómico <strong>de</strong> situação, quando, por exemplo,numa visita do fiscal, que Faustino e <strong>Na</strong>zário enviaram para inspeccionaro apartamento <strong>de</strong> Diogo, as crianças inventam que não sãoeles que têm um porco em casa, mas antes o “camara<strong>da</strong> Faustino”,aliás, acusam as crianças, fabrica “quitan<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ndém”, engenhosos,dizem ain<strong>da</strong> que a causa <strong>da</strong> água que corria na casa <strong>de</strong> banho(a fim <strong>de</strong> o fiscal não ouvir o porco) era do “primo Cinquenta <strong>da</strong> segurança”;perante esta “mentira”, o fiscal interrompe <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo ainspecção, mas os miúdos não se ficam por aqui e fingem, no telefoneavariado, uma conversa com a professora, acusando o fiscal <strong>de</strong> serladrão e assassino.Após a saí<strong>da</strong> do fiscal <strong>da</strong> casa <strong>de</strong> Diogo em direcção à <strong>de</strong> Faustino,as crianças tocam em to<strong>da</strong>s as campainhas dizendo haver um ladrão noprédio, resultado: o fiscal é corrido pelos moradores.O cómico <strong>de</strong> situação é evi<strong>de</strong>nciado em to<strong>da</strong> a confusão gera<strong>da</strong> emredor do fiscal:“Lá em baixo a peleja tinha crescido. Fiscal no meio exibindo documentos.As donas, os miúdos e mais gente <strong>de</strong> passagem ro<strong>de</strong>ando o intruso. Oscarros buzinando por causa do enga<strong>rra</strong>famento. Insultos <strong>de</strong> quem chegavaadiantando discussão e ain<strong>da</strong> as mulheres em voz alta, “pren<strong>da</strong>m esse gatu-121262Enten<strong>da</strong>-se a revolução socialista.263Tal como se verifica na Geração <strong>da</strong> Utopia <strong>de</strong> Pepetela: “Personagens como Orlando e Cristina são<strong>de</strong> alguma maneira her<strong>de</strong>iros <strong>da</strong> geração utópica, portadores <strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> crítica em relação à corrupçãodo governo e dos novos ricos que o sustentam”. Brookshaw, David “Pepetela e a construção <strong>de</strong> umanacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>”, in Venâncio, José Carlos (coord.), O Desafio Africano, Lisboa, Vega, 1997, p. 161.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveirano”, é o mesmo <strong>da</strong> semana passa<strong>da</strong>”, “foi o que roubou a aparelhagem”, “secalhar o cartão <strong>de</strong>le ain<strong>da</strong> é falso”(...)”.(p. 17)O episódio <strong>de</strong> escape do fiscal leva a re-baptizar o porco <strong>de</strong> “Carnaval<strong>da</strong> Vitória”.Um outro fruto <strong>da</strong> esperteza dos miúdos é a falsificação <strong>de</strong> um ofício(264) em papel timbrado <strong>da</strong> Justiça – roubado <strong>de</strong> Faustino – através doqual obtém restos <strong>de</strong> carne num hotel <strong>de</strong> luxo:“À tar<strong>de</strong>, no fim <strong>da</strong> escola, quando chegaram na recolha <strong>da</strong> comi<strong>da</strong> <strong>de</strong>‘carnaval <strong>da</strong> vitória’, Ruca aproximou-se do controlador <strong>da</strong> porta e entregouo papelTribunal <strong>da</strong> Comarca <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong> – 2ª VaraPara os cães policiais <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia do Tribunal peço aparas cruas <strong>de</strong> carne.Man<strong>de</strong>-me pouco sebo. São cães estatais comem todos os dias.Sau<strong>da</strong>ções RevolucionáriasFaustino(Juiz)O homem foi no fundo do corredor, fez uma ligação telefónica evoltou.– Esperem só um bocado.E não passaram <strong>de</strong>z minutos. Zeca e Ruca tinham um saco <strong>de</strong> aparas”.(p. 50)122O que transluz, para além <strong>da</strong>s fragili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> um sistema aparentementetão rígido, é o cenário <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana.Confrontados com o final, parece-nos que o i<strong>de</strong>al que subjaz, na <strong>obra</strong>,será o <strong>de</strong> que a reconstrução social como um todo, como uma utopia, realizáveltanto no seu sentido colonial como no sentido <strong>da</strong> funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong>do po<strong>de</strong>r, ultrapassando a própria inocência <strong>da</strong>s crianças, assumindo--se como utopia sagra<strong>da</strong> (ou sagra<strong>da</strong> esperança <strong>de</strong> que falava AgostinhoNeto), <strong>de</strong>sestrutura<strong>da</strong> <strong>da</strong>s práticas sociais vigentes e critica<strong>da</strong> na <strong>obra</strong>.264Alegava-se que a carne era <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> a cães que, por serem “estatais”, comeriam todos os dias.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiA expressão máxima <strong>de</strong>ssa utopia (265) é anuncia<strong>da</strong> por Beto que,reunido com os filhos <strong>de</strong> Diogo, no momento em que respon<strong>de</strong> a Ruca,questiona “- Vocês não gostariam <strong>de</strong> ser on<strong>da</strong>?”. Diante <strong>de</strong>sta perspectiva<strong>de</strong> utopia libertária, <strong>de</strong> evasão, Zeca acrescenta “On<strong>da</strong> on<strong>de</strong> ninguémama<strong>rra</strong> com cor<strong>da</strong>” (266) .A criança “anseia pela força telúrica para o exercício <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong>,para vencer o mal, impor o bem. Mas, porque propensa ao maravilhosoe ao fantástico, à visão cósmica, à energia transformadora <strong>da</strong> poética doslápis <strong>de</strong> cor, também se <strong>de</strong>ixa absorver pela máscara carnavalesca. A fantasiaporém não lhes cega a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>” (Hilário:2006:91). A comemoraçãodo Carnaval, enquanto festivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, contrasta com o estado <strong>de</strong> espírito<strong>da</strong>s crianças que temem pelo <strong>de</strong>stino do porco, com o mesmo nome.A frase, que dá nome ao livro, exprime o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nça, o po<strong>de</strong>r<strong>da</strong> força do mar não se po<strong>de</strong> reprimir. Recorrente, na <strong>obra</strong> <strong>de</strong> ManuelRui, nomea<strong>da</strong>mente na poesia, a palavra “on<strong>da</strong>” significa, conforme sublinhaAna Maria Martinho (1986:36), a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> “<strong>de</strong>nunciar vícios e<strong>de</strong>smistificar dogmas, o que traduz, no fundo, a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> autocrítica<strong>de</strong> um sistema” (267) .Mas, neste mar <strong>de</strong> ilusões e frustrações, o leitor questiona: Afinalon<strong>de</strong> está a utopia? Será simples espuma <strong>de</strong>svaneci<strong>da</strong>?O mar (268) , antigo símbolo <strong>da</strong> travessia colonizadora, é transformadoem lugar <strong>de</strong> esperança, em embrião <strong>de</strong> uma nova nação.O livro ence<strong>rra</strong>, precisamente, com esta filosofia <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e esperança(“fúria lin<strong>da</strong>”), através do retomar <strong>da</strong> expressão por Beto.265A utopia realizável tanto no seu sentido horizontal (“contemplando o espaço geopolítico her<strong>da</strong>dodo colonialismo e a integração <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s periféricas, tradicionais, na angolani<strong>da</strong><strong>de</strong>”), como vertical(“a funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> forma a evitar a formação <strong>de</strong> novas elites”). Venâncio, José Carlos, Literaturae Po<strong>de</strong>r na África Lusófona, Lisboa, ICAL, 1992.266“Os outros perceberam. Zeca tinha voltado o olhar lá bem no fundo nos contornos <strong>da</strong> Corimba.Território <strong>de</strong> “Carnaval <strong>da</strong> vitória”. Livre. Vadio na chafur<strong>da</strong> <strong>de</strong>spreocupa<strong>da</strong>” (p. 60).267Em Um anel na areia, o mar e Kian<strong>da</strong>, a sua ilustre moradora, são focalizados. Marina, cujo nometambém inscreve o mar, vive nesse mundo dominado pelo mesmo, em que fantasia e reali<strong>da</strong><strong>de</strong> se unempara <strong>da</strong>r uma nova visão do real. Em Rioseco, Zacaria afirma: “Os rios é que enchem o mar. O mar é sóassim por causa dos rios que lhe trazem a água (...) Não há mar sem rio”, nesta perspectiva o mar é resultadosdos rios, diversos como as etnias, usos e costumes <strong>de</strong> Angola. Ele é a síntese <strong>da</strong> te<strong>rra</strong>.268O mar funciona como o símbolo <strong>da</strong> dinâmica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>da</strong> inconstância. Tudo sai do mar e tudo aele volta. Com as suas águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre o que é possívele o que é real, uma situação <strong>de</strong> incerteza, <strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong>, <strong>de</strong> in<strong>de</strong>cisão que po<strong>de</strong> acabar bem ou mal. O mar é aimagem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> morte. Cf. Chevalier et Gheerbrant (1994).1232007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira124Este <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ser on<strong>da</strong> metaforiza a viagem para o sonho. Tal comoa on<strong>da</strong> que se <strong>de</strong>sfaz, para renascer momentos <strong>de</strong>pois, também o renascimento<strong>de</strong> Angola <strong>de</strong>verá constituir a <strong>de</strong>man<strong>da</strong> dos futuros agentes activos<strong>da</strong> te<strong>rra</strong> (os miúdos, na sua natureza pura e inocente), que “semcor<strong>da</strong> que ama<strong>rra</strong>”, numa dimensão on<strong>de</strong> a pe<strong>da</strong>gogia <strong>de</strong> luta será livre,pacífica e harmoniosa, construirão uma Angola <strong>de</strong>sprovi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s práticascritica<strong>da</strong>s na <strong>obra</strong>.Da mesma forma que os miúdos <strong>de</strong> Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong> ence<strong>rra</strong>mem si a esperança <strong>de</strong> um futuro, em Crónica <strong>de</strong> um mujimbo, os sobrinhos<strong>de</strong> Feijó seguem esta mesma linha, apesar <strong>de</strong> não serem tão importantespara a intriga, como os primeiros, o autor serve-se <strong>da</strong> crítica <strong>de</strong>stes, típica<strong>da</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>, para os transformar, à semelhança <strong>de</strong> Beto, Ruca e Zeca, emapologistas <strong>de</strong> uma causa, cujos efeitos não são imediatamente visíveis.Outros exemplos <strong>de</strong> crianças, que cativam na sua singeleza, quelutam pela sobrevivência, que mostram a humil<strong>da</strong><strong>de</strong> e autentici<strong>da</strong><strong>de</strong> doseu carácter, e que, regra geral, se opõem aos adultos insensíveis, estãopresentes nas inúmeras páginas, que constituem a <strong>obra</strong> do autor.Kalakata, “o rei dos papagaios”, acredita na utopia e fraterni<strong>da</strong><strong>de</strong>para ver, no final do conto, o seu sentido <strong>de</strong> justiça abalado pelo pai dosmiúdos, a quem construíra dois bonitos papagaios, este em vez <strong>de</strong> o aju<strong>da</strong>r,socorrendo-o dos “matulões” que o atacavam, ignorou-o e virou-lheas costas (“O rei dos papagaios”, 1 Morto & Os Vivos).A “doce” Nélinha, com os seus olhos “gran<strong>da</strong>lhões <strong>de</strong> euforia”, <strong>de</strong>spertando“carinho”, ven<strong>de</strong> jinguba, junto a um esgoto a céu aberto, emcartuchos “do seu ca<strong>de</strong>rno analfabeto” (Da palma <strong>da</strong> mão).O miúdo do “conto <strong>de</strong> natal” aju<strong>da</strong> as tias nas compras e transforma-seno “padrinho <strong>de</strong> <strong>Na</strong>tal” <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>las, presenteando-a com “doissabonetes” e uma “pasta <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes” (“O padrinho <strong>de</strong> <strong>Na</strong>tal”, Da palma<strong>da</strong> mão).A neta <strong>da</strong> ven<strong>de</strong>dora, que honesta e integramente, entrega o troco<strong>da</strong> avó ao advogado, visto que a avó se enganara no mesmo em <strong>de</strong>trimentodo advogado. Consequentemente aquela vai restituir o dinheiro,conforme a avô lhe solicitara. Em contraparti<strong>da</strong>, o advogado quer presenteá-lacom uma nota, mas a menina recusa (“O troco”, Da palma <strong>da</strong>E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruimão), Tico (269) possui uma lata há três anos, que tem uma dupla função:“sentar na escola e no serviço <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r”, <strong>de</strong>sta forma, Tico enfatiza acondição infantil <strong>da</strong>s crianças, nomea<strong>da</strong>mente <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>, que invectivampare<strong>de</strong>s, aliás, merce<strong>de</strong>s (270) .Parece-nos que a temática <strong>da</strong> educação é novamente reitera<strong>da</strong> (271) ,no <strong>de</strong>stino <strong>de</strong>stas crianças, que a nação não po<strong>de</strong> e/ou não quer educar.Quem melhor do que os miúdos para i<strong>de</strong>alizar a utopia? Quem melhordo que as crianças para salvaguar<strong>da</strong>r uma nação futura?E a nação angolana não será ela própria uma jovem nação, no panoramamundial? Parece-nos que a resposta é afirmativa, po<strong>de</strong>mos entãoestabelecer esta analogia entre a “criança” e a “jovem nação”, que talvezaguar<strong>de</strong> a passagem a um outro escalão etário! (enten<strong>da</strong>-se a resoluçãodos múltiplos problemas que Manuel crítica pela voz <strong>da</strong> criança e pelaanálise <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana).125269Tico simboliza a situação dos meninos <strong>de</strong> rua: “na situação <strong>de</strong> pobreza que se vive em Angola, ascrianças são o grupo social mais vulnerável (...). As crianças <strong>de</strong> rua são um fenómeno urbano que a gue<strong>rra</strong>e a crise económica trouxeram para Angola, sobretudo a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1990. Muitas crianças sãoobriga<strong>da</strong>s para seu sustento a trabalharem na rua”. Carvalho, op. cit. p. 126.270Funciona como metonímia <strong>de</strong> carros.271Cf. capítulo “Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>”, pp. 73–74.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira“Falo <strong>da</strong>s mulheres. / Das mulheres-miriápoles que têmmilhares <strong>de</strong> mãos para o quotidiano ofício <strong>de</strong> existir. /Falo<strong>da</strong>s terríveis habitantes do trabalho-até-ao-fim-do-tempo.Das pobres mulheres que povoam o Mundo e a quem oMundo povoa <strong>de</strong> cadáveres e lágrimas. / Há mulheresque são como as aves: pairam num céu limpo e têm nosolhos a serena proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> do sol. / Há mulheres que sãocomo flores perfumam os dias que atravessam inutilmentebelas; perfuma<strong>da</strong>mente assimétricas ou iguais. Breves.Deseja<strong>da</strong>s. Quase felizes. / Mas eu falo <strong>da</strong>s mulheres quenascem, vivem e morrem suga<strong>da</strong>s pelos tentáculos lentos doTédio, do Trabalho, <strong>da</strong> Dor. / Falo <strong>da</strong>s mulheres que paremo alimento dos canhões; <strong>da</strong>s que fecun<strong>da</strong>m a te<strong>rra</strong> comlágrimas silenciosas, <strong>da</strong>s que se alimentam <strong>de</strong> uma fome<strong>de</strong> amor, eterna e incompartilha<strong>da</strong>. / Falo <strong>da</strong>s mulheres domeu tempo, que povoam as gran<strong>de</strong>s al<strong>de</strong>ias <strong>de</strong>spovoa<strong>da</strong>s egastam ao longo dos dias sua solidão, esperando estranhosmilagres. / Falo <strong>da</strong>s mulheres incha<strong>da</strong>s que, em cortejolento <strong>de</strong> círios e urtigas, <strong>de</strong>positam os frutos dos seusventres benditos em leitos <strong>de</strong> te<strong>rra</strong> dura.”Maria Rosa Colaço126A FIGURA FEMININAEncarnando a fecundi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a mulher é, nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s africanastradicionais, instância <strong>de</strong> trabalho, reprodução, alianças e ponto <strong>de</strong> referênciapara <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s linhagens. Constituindo, <strong>de</strong>sta forma, elementoessencial <strong>de</strong> coesão e fortalecimento dos grupos sociais. A agricultura,base <strong>da</strong> economia, era entregue à responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s mulheres.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiA mulher Africana. Alguns Aspectos <strong>da</strong> sua promoção social em Angola(1966) acentua duas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> protagonismo feminino: o políticoe o social.Em Manuel Rui, a <strong>obra</strong> que melhor realça o protagonismo femininoé Rioseco (272) . Antes <strong>de</strong>sta, nenhuma outra <strong>de</strong>u particular ênfase à figurafeminina (273) . Não obstante, o na<strong>rra</strong>dor <strong>de</strong>screver algumas personagensfemininas fulcrais, no <strong>de</strong>senrolar <strong>da</strong>s <strong>obra</strong>s em estudo.O papel feminino no corpus <strong>de</strong> análise, com excepção natural <strong>de</strong>Dona Vaca, é o <strong>de</strong> apaziguar e <strong>de</strong> estabelecer comunicação entre os várioselementos cosmológicos e os mundos representados.Em Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong> Liloca é-nos apresenta<strong>da</strong> como a esposafiel, doce, amiga e <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> ao marido e aos filhos.Marca <strong>de</strong> uma dimensão ética enfatiza<strong>da</strong> do papel <strong>de</strong> esposa, a aju<strong>da</strong>e o apoio são elos <strong>de</strong> ligação, que vão mo<strong>de</strong>lando a sua relação com Diogoe os filhos (274) . Cúmplice <strong>da</strong>s crianças em alguns momentos <strong>da</strong> na<strong>rra</strong>tiva,não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser obediente e sensível a Diogo:“Dona Liloca entendia o sentimento e estacionava nessa in<strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>mãe e esposa, ora a comungar do carinho que os filhos <strong>de</strong>dicavam ao porcoora carnívora também nos <strong>de</strong>sejos expressos no projecto do marido”.(p. 26)“– Pra quê mais bater? O porco voltou Diogo”.(p. 32)Desenrasca<strong>da</strong>, honesta, trabalhadora, solícita e atenta, auxilia osmiúdos na sua “causa”, nomea<strong>da</strong>mente quando prepara a comi<strong>da</strong> comrestos do hotel <strong>de</strong> luxo, adiando, <strong>de</strong>sta forma, a morte do amigo suíno:127272Noíto é a personagem principal <strong>da</strong> história, sinédoque <strong>da</strong> mulher africana e <strong>da</strong> mulher em geral.A sua viagem interior e exterior é a metáfora <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. A sageza vai sendo adquiri<strong>da</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo com todosos atributos <strong>de</strong> uma personagem “velha” e superlativiza<strong>da</strong>. O na<strong>rra</strong>dor atribui ao elemento feminino agran<strong>de</strong> força impulsionadora que coman<strong>da</strong> a mu<strong>da</strong>nça e traça o rumo <strong>da</strong> História, tornando-a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iraprotagonista <strong>da</strong> história e <strong>da</strong> História.273Embora, tal como o autor <strong>de</strong>stacou (Op. cit. Entrevista em anexo, p. 168), haja outras personagensfemininas que são protagonistas, nomea<strong>da</strong>mente Marina, <strong>de</strong> Um anel na areia, embora aí nos<strong>de</strong>paremos com uma história <strong>de</strong> amor.274Assim como Joaninha em Crónica <strong>de</strong> um Mujimbo.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira“E nessa noite, dona Liloca <strong>de</strong>cifrou estrelas <strong>de</strong> amor nos olhos luarentosdos filhos brilhando <strong>de</strong> alegria por não ouvirem o pai xingar no porconem repetir ameaças <strong>de</strong> morte à faca<strong>da</strong> contra “carnaval <strong>da</strong> vitória”.(p. 51)Para além <strong>da</strong> figura materna, surge ain<strong>da</strong> uma outra personagem femininatambém ela cúmplice e amiga <strong>da</strong>s crianças. Referimo-nos à professora,ministrando um ensino inovador e livre <strong>de</strong> práticas <strong>de</strong>spóticas,<strong>de</strong>monstra carinho e atenção para com as crianças, respeitando-as nosseus i<strong>de</strong>ais (275) :“–A camara<strong>da</strong> já faz i<strong>de</strong>ia <strong>da</strong> sua convocação, trouxe to<strong>da</strong>s as re<strong>da</strong>cçõese <strong>de</strong>senhos? / – Sim. – Nos olhos <strong>da</strong> professora alindou-se uma on<strong>da</strong> <strong>de</strong> orgulhosaalegria. – Antes que me esqueça, os alunos propuseram e votaramtodos a favor que a nossa escola passasse a chamar-se “carnaval <strong>da</strong> vitória”./(...) Não batia nos alunos. Às vezes, colegas até lhe gozavam por causa <strong>de</strong>ssei<strong>de</strong>alismo.”(p. 45)128A responsabilização <strong>da</strong> mulher na função educativa e <strong>de</strong> sageza épersonifica<strong>da</strong> na professora (Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>) e nas “mais velhas”,Dona Bia e Catarina, respectivamente. Desta forma, a própria concepçãodo ensino e educação está vincula<strong>da</strong> à imagem <strong>da</strong> mulher.Papel semelhante a Liloca será aquele que Joaninha <strong>de</strong>sempenhaem Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo, contudo, contrariamente àquela, esta será<strong>de</strong>scrita pormenoriza<strong>da</strong>mente, usava cinta para apertar a barriga e ascoxas, porém mantinha-se bonita “no rosto <strong>da</strong> beleza dos vinte anos”,cabelo negro <strong>de</strong>sfrisado na “condizência” <strong>de</strong> olhos gran<strong>de</strong>s “<strong>de</strong> vi<strong>da</strong>” eos <strong>de</strong>ntes “<strong>de</strong>senhados superior que os postiços a sobressaírem do vincocarnudo dos lábios”, com a “<strong>de</strong>liciosa covinha no queixo” (p. 24).Vivia obceca<strong>da</strong> com a dieta e com a visita à prima <strong>de</strong> Lisboa.Joaninha é, tal como Liloca, fiel, amiga, confi<strong>de</strong>nte e leal:275O seu papel é semelhante àquele que Bélita <strong>de</strong>sempenha em Rioseco. Bélita, no exercício <strong>da</strong>s suasfunções <strong>de</strong> professora, atenta às motivações <strong>da</strong>s crianças, inscrevendo no “curriculum” escolar as partes<strong>de</strong> um barco, acabando por conciliar a escola com a vi<strong>da</strong>.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruicopo”.“Joaninha voltou com a ban<strong>de</strong>ja. Pote <strong>de</strong> gelo, ga<strong>rra</strong>fa <strong>de</strong> uísque e o(p. 18)“Beijou-o na face retirando-lhe o copo <strong>da</strong> mão para o recolocar sobre aban<strong>de</strong>ja”.(p. 18)“O telefone tocou e Joaninha apressou-se a trazê-lo junto do marido”.(p. 19)Também Joaninha li<strong>da</strong> com a intriga do segredo, sentindo inclusiveum estranho prazer em sabê-lo:“Depois o segredo insistente no seu pensamento. Martelado. Pareciauma reza e sentiu um prazer estranho <strong>de</strong> arrepio febril. Estremeceu”.(p. 21)Joaninha é, ao contrário do marido, católica e supersticiosa:“‘Assim não, parece <strong>de</strong> um morto e pôs a biqueira <strong>de</strong> um ao contrário <strong>da</strong>outra, ‘quebra o azar’. Mirou os sapatos na nova postura. Também não faziasentido “que raio uma pessoa tem medo não sei porquê os sapatos que malpo<strong>de</strong>m fazer e parece que falam (...) Benzeu-se sob a Senhora do Carmo”.(p. 21)Ambas tentam aju<strong>da</strong>r os respectivos maridos a equacionar os seusanseios. Neste caso, Joaninha leva o marido, por exemplo, para a praia,aju<strong>da</strong>ndo-o a <strong>de</strong>scontrair. Deci<strong>de</strong> também acompanhá-lo na sua visita aoestrangeiro:129“Amava o marido e <strong>de</strong>leitava-se por sabê-lo <strong>de</strong>spreocupado, só com elae o filho, longe do serviço, <strong>da</strong> casa e dos amigos”.(p. 46)“Depois <strong>da</strong>s férias ficas <strong>de</strong>z anos mais novo. Agora isso <strong>da</strong> Roménia... iaspara Portugal. Essa mania <strong>de</strong> man<strong>da</strong>r os doentes para os países socialistas”.(p. 118)2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraEm “De Um Comba”, Dona Márcia é a esposa fiel, humil<strong>de</strong>, crente,submissa e <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> aos seus princípios <strong>de</strong> fé e religião, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong>fazer criticas e acusações:“To<strong>da</strong> enluta<strong>da</strong>, véu, luva, meia, sapato preto, salientou-se na cabeceirado falecido, an<strong>da</strong>ndo <strong>de</strong> costas, mãos para o céu (...) fui a tua mulher fiel(...) eu tinha <strong>de</strong> dizer isto aqui no cemitério em frente a estes responsáveis<strong>de</strong> tuji que a<strong>rra</strong>njaram casa na habitação para essa Dona Vaca, eles mesmosé que lhe puseram o nome e ain<strong>da</strong> te meteram num caixão pior que um semfamília maluco dos contentores”.(pp. 43-44)Por outro lado, Dona Vaca é a personificação <strong>da</strong> mulher adúltera, <strong>da</strong>íque ao não ser mencionado o seu nome a crítica seja vela<strong>da</strong> a to<strong>da</strong>s asmulheres praticantes <strong>de</strong> adultério.Diversos são os adjectivos que a sua <strong>de</strong>scrição nos permite evi<strong>de</strong>nciar:extravagante, esplendorosa, exuberante, altiva, elegante, atraente,rica e sociável.De facto, a sua primeira <strong>de</strong>scrição é bastante significativa e ilustrativa<strong>da</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong> que corrobora:130“... tocando com segurança no jeito <strong>de</strong> pisar segura a calça<strong>da</strong>, pisarassim proposita<strong>da</strong>mente pisado, firme e provocante, uma quarentona pesa<strong>da</strong>como que abriu alas com seu vestido comprido. Azul sedoso. Com discreto<strong>de</strong>cote tentador por isso anunciando os seios gran<strong>da</strong>lhões como dois penedosimpostos nas cabeças solenes dos homens boquiabertos. Com a <strong>de</strong>labem ergui<strong>da</strong>, exibindo-se, para quem bem quisesse ver, numa peruca lisa,<strong>de</strong> enrolar em cima. Depois, a testa a franzir <strong>de</strong> intenção <strong>de</strong> quem distrai importância,rosto vitória, olhos límpidos, bem abertos, fixos e sem lágrimas.Rosto <strong>de</strong> atrair nas coisas. De mulher. Pescoço com cordões <strong>de</strong> ouro. Três. Eum crucifixo em prata, <strong>de</strong>stacado em seu tamanho no caminho entre as duasproeminências <strong>de</strong> seios”.(p. 44)Repare-se que todo o vocabulário utilizado evi<strong>de</strong>ncia os traços quenos permitem <strong>de</strong>duzir a sua personali<strong>da</strong><strong>de</strong>. A segurança com que pisaa “calça<strong>da</strong>”, e atente-se no valor do advérbio <strong>de</strong> modo “proposita<strong>da</strong>-E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruimente”, ou seja, com intenção <strong>de</strong> chamar a atenção para a sua própriafigura; os adjectivos “firme e provocante” vêm corroborar essa mesmaafirmação <strong>de</strong> carácter; o próprio azul “sedoso”, o “discreto <strong>de</strong>cote” quese transforma em “tentador” para aqueles que a observam.O carácter sublimemente irónico do na<strong>rra</strong>dor é possibilitado pelaexpressão “cabeças solenes”, atente-se no adjectivo utilizado para caracterizaraqueles “homens boquiabertos”.Dona Vaca acaba por se revelar fútil, leviana, sensual, exibicionista etriunfante, com os “olhos límpidos”, “abertos”, “fixos”, atraia os que a ro<strong>de</strong>iam.Destaque-se ain<strong>da</strong> os “três” cordões que traz com um “crucifixo”.A opção pelo número “três” (276) (cordões), não nos parece inocente,nem casual. O número “três” que tantas vezes remete para o sagrado, aperfeição e o sublime, foi utilizado ironicamente pelo na<strong>rra</strong>dor.Dona Vaca <strong>de</strong>staca-se quer <strong>da</strong> mulher do falecido (277) , quer <strong>de</strong> outraamante que aparece no funeral. A primeira diferencia-se pela sua posturaeleva<strong>da</strong>, enquanto a segun<strong>da</strong> <strong>de</strong>monstra uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sujeição:“<strong>Uma</strong> chorando <strong>de</strong> corpo vergado. Outra altiva, olhos absorvendo espaço,enfrentando tudo e remirando tudo e todos.”(p. 46)Dona Vaca mantém a sua postura <strong>de</strong> firmeza, superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> e altivezem todos os momentos <strong>da</strong> <strong>obra</strong>, nomea<strong>da</strong>mente quando é observa<strong>da</strong>:“Desfilava pela aveni<strong>da</strong> com o carro que o amante lhe <strong>de</strong>ra. E seguravao volante com soberba, em atitu<strong>de</strong> intencional <strong>de</strong> mostrar-se nas luvas pretas.Assim que alcançou a aveni<strong>da</strong> <strong>de</strong> maior trânsito, diminuiu a veloci<strong>da</strong><strong>de</strong>,vidros abertos. Era mais que evi<strong>de</strong>nte. Todo o mundo lhe reparava. Apon-131276O número três é o número perfeito, que transmite po<strong>de</strong>r, concretização e êxito. Refira-se queo autor traz, por diversas vezes, a simbologia dos números para a na<strong>rra</strong>tiva. Assim, Ruca, Zeca e Beto(Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>) são as (três) crianças que personificam a realização <strong>da</strong> utopia. Em O manequime o piano chove por três dias e são ain<strong>da</strong> três as galinhas que Kalufebe mata para o almoço do reencontrocom o sobrinho. Também o número sete aparece, por exemplo, em Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>, revestido <strong>de</strong>simbologia, “Carnaval <strong>da</strong> Vitória nasceu <strong>de</strong> uma ninha<strong>da</strong> <strong>de</strong> sete” e “Diogo e a sua família viviam no “sétimoan<strong>da</strong>r” (negrito nosso), não nos <strong>de</strong>moraremos sobre a vasta simbologia <strong>de</strong>ste número, no entantoele parece associar nestes dois segmentos a posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque e ruptura com o instruído. Chevalier etGheerbrant (1994).277Tal como já fizemos alusão.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveiratavam-na como um caso, uma espécie <strong>de</strong> heroína <strong>de</strong> que ela, momentaneamente,para além <strong>de</strong> vaidosa, pesava aí o peso <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>”.(p. 97)Como “centro <strong>da</strong>s atenções”, Dona Vaca sente-se “vaidosa”, <strong>de</strong>sfilando“pela aveni<strong>da</strong>”, <strong>de</strong>monstrando segurança e orgulho “segurava ovolante com soberba”, exibindo-se no seu aspecto físico e nos bens quepossuía “vidros abertos”, “com o carro que o amante lhe <strong>de</strong>ra”.Registe-se um breve apontamento sobre o tempo verbal predominante,neste excerto, o pretérito imperfeito que dá conta precisamentedo carácter durativo <strong>da</strong> acção na<strong>rra</strong><strong>da</strong>, como que prolongando a ostentação<strong>da</strong> própria personagem e o seu “<strong>de</strong>sfile” exibicionista.Através <strong>de</strong>sta personagem feminina, <strong>de</strong>nuncia-se um sistema <strong>de</strong> valores<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte e corrupto. Os seus bens, atitu<strong>de</strong>s e reacções põem emevidência uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> corrompi<strong>da</strong>.Manuel Rui <strong>de</strong>stacaria como factor relevante e primordial na <strong>obra</strong> arelação que a personagem mantém com as instâncias do po<strong>de</strong>r (278) .Em suma, as personagens femininas articulam-se na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana,assumindo um papel <strong>de</strong> relevância, quer como apoio e leal<strong>da</strong><strong>de</strong>ao marido, quer ain<strong>da</strong> como elementos fulcrais <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> influênciase relacionamentos que se vão estabelecendo com os diferentespontos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.132278Op. cit. Entrevista em anexo, p. 143.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiPARTE .031332007 E-BOOK CEAUP
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiTORRE DE BABELOU BABEL APAZIGUADANOTAS DE UM ESTILO“ Escudriñad la lengua, porque la lengua Ileva, aprésion <strong>de</strong> atmosferas seculares, el sedimento <strong>de</strong> lossiglos, el más rico aluvión <strong>de</strong>l espírito colectivo”.Miguel <strong>de</strong> Unamuno“O escritor não tira só as palavras significa<strong>da</strong>s,mas labora em cima do instrumento que é alinguagem. E o outro que vai ler on<strong>de</strong> o escritor seleu, <strong>de</strong>scobre a <strong>de</strong>scoberta que está no texto”.Manuel Rui“<strong>Uma</strong> língua é o lugar don<strong>de</strong> se vê o Mundo e emque se traçam os limites do nosso pensar e sentir.Da minha língua vê-se o mar. Da minha línguaouve-se o seu rumor, como <strong>da</strong> <strong>de</strong> outros se ouvirá o<strong>da</strong> floresta ou o silêncio do <strong>de</strong>serto. Por isso a vozdo mar foi a <strong>da</strong> nossa inquietação”.Vergílio FerreiraNo encontro com a na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Rui <strong>de</strong>paramo-nos com umalinguagem simples, que reverbera os múltiplos falares <strong>da</strong>s gentes <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>,aproximando-se muitas vezes, do coloquialismo (279) , conferindo,<strong>de</strong>sta forma, maior dinamismo e vivaci<strong>da</strong><strong>de</strong> à na<strong>rra</strong>tiva.135279Ana Mafal<strong>da</strong> Leite (1996) salienta precisamente este aspecto: “Manuel Rui reflects the multiplicityof Luan<strong>da</strong>´s urban Portuguese colloquialism in the period after in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nce”. Chabal, Patrick;Augel, Moema Parente; Brookshaw, David; Leite, Ana Mafal<strong>da</strong>, Shaw, Caroline, The Postcolonial literatureof lusophone África, London, Hurst & Company, 1996, p. 139.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira136É iniludível, em to<strong>da</strong> a <strong>obra</strong> <strong>de</strong> Manuel Rui, a existência <strong>de</strong> um impulsoten<strong>de</strong>nte à construção teatral (280) . E não são só as personagens quepermitem esta idiossincrasia, mas também a linguagem e o uso que oautor <strong>de</strong>la faz.Opta por uma estrutura na<strong>rra</strong>tiva simples e atraente, escrevendono registo <strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong> quotidiana. Assim, a atitu<strong>de</strong> linguística <strong>de</strong> ManuelRui é intencional, cheia <strong>de</strong> inovações (281) , ao mesmo tempo querecupera expressões tipicamente angolanas, nomea<strong>da</strong>mente na linguagemestereotipa<strong>da</strong>.Um dos elementos que contribuem para emprestar ao estilo <strong>de</strong> ManuelRui a sua mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> e intemporali<strong>da</strong><strong>de</strong> é, sem dúvi<strong>da</strong>, a sua relaçãocom a língua fala<strong>da</strong>, tanto no vocabulário como na sintaxe. Nestahá todo um movimento afectivo <strong>da</strong> conversação. Num estilo comum, ouseja, compreensível a to<strong>da</strong> a gente, essencialmente comunicativo.Para Isménia <strong>de</strong> Sousa (1996:122) as falas <strong>da</strong>s personagens estão sempreimpregna<strong>da</strong>s <strong>de</strong> “trouvailles”, privilegiando a criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> linguística.Os exemplos são lexicais: “Ramalho Eanes” – como metonímia do vinhoportuguês; “morteiro” – corruptela <strong>de</strong> Mosteiro, vinho brasileiro importadoe com má fama; neologismos como “<strong>de</strong>sconseguir”e “<strong>de</strong>sencon<strong>de</strong>r”.O coloquialismo permitirá um melhor enquadramento <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong>scrita no cenário <strong>da</strong> rua e do quotidiano. Desta forma, o vocabulárioencontra-se repleto <strong>de</strong> termos concretos, alguns <strong>de</strong>les técnicos <strong>de</strong> linguagemfamiliar, com prefixos e sufixos expressivos “zaragatear”; “embi<strong>rra</strong>ção”;“açambarca” (Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>); “barulhar” “<strong>de</strong>sconseguir”(Crónica <strong>de</strong> um Mujimbo).A linguagem quotidiana será apresenta<strong>da</strong> no seu registo popular“panquê”; “giboiar” (Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>) (282) .A temática do dia-a-dia é, <strong>de</strong>sta forma, apresenta<strong>da</strong> com concisão esimultaneamente liber<strong>da</strong><strong>de</strong> formal.Como já fizemos alusão, o na<strong>rra</strong>dor regista o discurso oral <strong>da</strong>s personagens,<strong>da</strong>í a linguagem ser tão rica em marcas político-i<strong>de</strong>ológicas,facto que marca o período pós-in<strong>de</strong>pendência.280Debruçar-nos-emos sobre este assunto no capítulo seguinte.281Vitalizando as inovações <strong>de</strong> Luandino.282Recorre muitas vezes, especialmente no diálogo, à variante angolana popular do português.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiA linguagem será, à semelhança <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, carnavaliza<strong>da</strong>. Aapropriação <strong>de</strong> uma metalinguagem doutrinária (Quem me <strong>de</strong>ra seron<strong>da</strong>) com conotação marxista (283) , utiliza<strong>da</strong> pelas diferentes personagensprovoca o riso e o cómico.A nível lexical, a combinação <strong>de</strong> vocábulos pertencentes a diferentescategorias gramaticais existentes, na língua portuguesa, resulta naformação <strong>de</strong> neologismos com sentidos novos e que ultrapassaram ossignificados <strong>de</strong> elementos linguísticos que os constituem, funcionandocomo “mise en abime” <strong>da</strong>s estruturas sintácticas e do próprio processo<strong>de</strong> escrita “bocam”, “tanchar”, “emborcou” (Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo).Numa economia discursiva, a maior parte dos lexemas expressamuma nova dimensão linguística. Assim, algumas palavras compostasjustapõem-se simplesmente, reunindo elementos <strong>de</strong> categorias gramaticaissemelhantes ou distintas. O lexema po<strong>de</strong>rá aglutinar as duas palavrasnuma só, ou então hifenizá-las: “peixefritismo” (Quem me <strong>de</strong>ra seron<strong>da</strong>); “marchatrás” (Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo); “à-vonta<strong>de</strong>” (Crónica <strong>de</strong>Um Mujimbo).Desta forma, as varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s do português aliam-se ao uso <strong>de</strong> novaspalavras e locuções <strong>de</strong> origem diversifica<strong>da</strong>.Concomitantemente, são notórios os traços <strong>de</strong> enraizamento <strong>de</strong> umalíngua viva, on<strong>de</strong> encontramos o aportuguesamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>spalavras: “faine”, “oquei” (284) (Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>).Fernando Hilário (2006) caracteriza o discurso na<strong>rra</strong>tivo do autor,nomea<strong>da</strong>mente em Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>, como “rápido, incisivo,subserviente do essencial, <strong>de</strong>sobrigado do supérfulo. Percebe-se, pois,que irá ser conta<strong>da</strong> uma estória <strong>de</strong> episódios essenciais, <strong>de</strong> linguagemaclimata<strong>da</strong> às personagens intervenientes e em economia discursiva”(i<strong>de</strong>m:40).Com efeito, a escrita traduz a cadência <strong>da</strong> fala, por vezes, porconstruções sintácticas e usos <strong>de</strong> aspas que dão conta do entrosamentodo discurso <strong>de</strong> personagens no <strong>de</strong> outras, ou no do na<strong>rra</strong>dor, comutilização do morfema introdutório do discurso: “masé” (1 Morto &Os Vivos).137283É frequente o uso literário dos novos vocábulos surgidos durante a gue<strong>rra</strong> pela in<strong>de</strong>pendência.284Verifica-se o anglicanismo registado foneticamente2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraA sigla, que <strong>de</strong> certa forma constitui um grau <strong>de</strong> abstracção, é <strong>de</strong>sfeitapelo escritor: “Ce-pê-pê-á; Ó-dê-pê (285) ; vê-dê...” (Quem me <strong>de</strong>ra seron<strong>da</strong>, “De Um Comba”); “pê-bê-xis; u-é-éme; dê-erre; tê-pê-erre...” (Crónica<strong>de</strong> Um Mujimbo), “tê-esse” (“De Um Comba”) obtendo, <strong>de</strong>sta forma,uma certa parodização <strong>da</strong> língua portuguesa.O uso do diminutivo assume significados distintos, ora <strong>de</strong>tém um carácterirónico (286) : “vai<strong>da</strong><strong>de</strong>zinha” (“De Um Comba”: 37), on<strong>de</strong> o sentidopejorativo é possibilitado pelo sufixo –inha, aludindo <strong>de</strong>preciativamenteà pequenez moral <strong>de</strong> Dona Vaca; ora é utilizado para <strong>de</strong>stacar algunsaspectos <strong>da</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s personagens, em favor <strong>de</strong>sta observação,po<strong>de</strong>mos aduzir o exemplo <strong>de</strong> Joaninha, na seguinte passagem napraia:“Tudo direitinho (287) , Joaninha iniciou a arrumação nos taparueres etérmicas.”(p. 50)138Neste caso, contrariamente ao efeito que o diminutivo produz na caracterização<strong>de</strong> Dona Vaca (288) , o seu emprego dá conta <strong>da</strong> preocupaçãoe do carinho empreendidos pela personagem na relação com marido efilho e, consequentemente, na arrumação do farnel.Também o advérbio <strong>de</strong> modo confere um maior animismo e vitali<strong>da</strong><strong>de</strong>ao universo na<strong>rra</strong>tivo: “sempremente”; “principalmente”; “comedi<strong>da</strong>mente”(Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo); “atoamente”; “repentinamente”;“negligentemente” (“De Um Comba”) sugere ain<strong>da</strong> características dosujeito ao qual se refere “(...) a repuxar as pregas <strong>da</strong> saia virginalmentebranca” (Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo) (289) .Se aten<strong>de</strong>rmos no emprego do advérbio “sempremente”, verificamosque a expansão <strong>da</strong> palavra primitiva – “sempre” possibilitou a obtenção <strong>de</strong>um novo vocábulo, cuja expressivi<strong>da</strong><strong>de</strong> só po<strong>de</strong>ria ser <strong>da</strong><strong>da</strong> por perífrase.Assim, constatamos uma <strong>da</strong>s múltiplas inovações empreendi<strong>da</strong>s nas <strong>obra</strong>s285Os cargos são parodiados, <strong>de</strong>sta forma, pela transcrição <strong>da</strong>s siglas.286Tal como no escritor realista Eça <strong>de</strong> Queirós.287Negrito nosso.288Cf. capítulo “As personagens e sua significação”.289Negrito nosso.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Rui(mestiçagem linguística), não só em relação ao sistema do português europeupadrão, como também em relação ao português <strong>de</strong> Angola.A adjectivação é, por vezes, binariamente objectiva e subjectiva,<strong>da</strong>ndo a pequena nota <strong>de</strong> uma escala <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>scrita e <strong>de</strong>scritiva.No que concerne aos tempos verbais, estes oscilam, predominantemente,entre o pretérito perfeito e imperfeito (290) , quer se trate <strong>de</strong> um momentona<strong>rra</strong>tivo ou <strong>de</strong>scritivo, respectivamente. Sendo que, o gerúndio é váriasvezes utilizado para veicular o carácter durativo <strong>da</strong> acção transmiti<strong>da</strong>:“Outras ficavam por ali mais tempo, ouvindo, comentando, comendo,bebendo e <strong>da</strong>ndo opinião” (291) .(“De Um Comba”, p. 66)O na<strong>rra</strong>dor traz, para a literatura, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira linguagem, atravésdo uso <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m directa, corrente <strong>da</strong>s personagens, tirando partido dovocabulário habitual. Serve-se <strong>da</strong> linguagem familiar, natural e simples,chegando a recorrer ao calão.Desta forma, Manuel Rui dá entra<strong>da</strong> às palavras humil<strong>de</strong>s, quotidianase até às que são consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s “ordinárias”.Assim, a falta <strong>de</strong> estrutura psicológica <strong>de</strong> algumas personagens écompensa<strong>da</strong> pelo po<strong>de</strong>r evocativo e <strong>de</strong>scritivo que a sua fala lhes empresta.To<strong>da</strong>s possuem a sua linguagem que as <strong>de</strong>fine socialmente. Paraalém disso, o discurso indirecto confere simplici<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas também vivaci<strong>da</strong><strong>de</strong>ao texto.Por sua vez, o discurso indirecto livre (292) possibilita a impressão domesmo fora do diálogo, ouvir falar a personagem, aproximar a expres-cit. p. 100.290Jogando, <strong>de</strong>sta forma, a na<strong>rra</strong>tiva entre o resolvido (mal) e o inacabado. Hilário, Fernando, op.291Negrito nosso.292Mieke Bal i<strong>de</strong>ntifica o discurso indirecto livre quando “el texto <strong>de</strong>l na<strong>rra</strong>dor indica explicitamenteque las palavras <strong>de</strong> un actor se na<strong>rra</strong>n por médio <strong>de</strong> un verbo <strong>de</strong>clarativo y una conjunción, o algo quelos substituya”. Bal, Mieke, Teoria <strong>de</strong> la na<strong>rra</strong>tiva (una introducción a la na<strong>rra</strong>tologia), Madrid, Cátedra,1985, p. 145.Por sua vez, Celso Cunha e Lindley Cintra <strong>de</strong>finem o discurso indirecto livre como a “forma <strong>de</strong> expressãoque, em vez <strong>de</strong> apresentar o personagem em sua voz própria (discurso directo), ou <strong>de</strong> informarobjectivamente o leitor sobre o que ele teria dito (discurso indirecto), aproxima na<strong>rra</strong>dor e personagem,<strong>da</strong>ndo-nos a impressão <strong>de</strong> que passam a falar em uníssono(...)”. Cunha, Celso et Cintra, Lindley, NovaGramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá <strong>da</strong> Costa, 1997, p. 635.1392007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveirasão literária dos processos <strong>da</strong> linguagem fala<strong>da</strong>, impersonaliza a na<strong>rra</strong>tiva,dissimulando-se por <strong>de</strong>trás <strong>da</strong>s suas personagens, <strong>da</strong>ndo-lhes umaaparente autonomia, submergindo-se <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>quelas, para se dirigirao leitor.No plano formal o discurso indirecto livre “pressupõe duas condições:a absoluta liber<strong>da</strong><strong>de</strong> sintáctica do escritor (factor gramatical) e asua completa a<strong>de</strong>são à vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> personagem (factor estético)” (293) . Nãoaparece, naturalmente, isolado no meio <strong>da</strong> na<strong>rra</strong>ção. Relacionando-se,mesmo <strong>de</strong>ntro do mesmo parágrafo, com os discursos indirecto e directo,o emprego conjunto faz que para o enunciado confluam, “numa somatotal, as características <strong>de</strong> três estilos diferentes entre si” (294) :“Mesmo assim as pessoas começaram a barafustar. “Quando é que porcos<strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> an<strong>da</strong>r na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>? “A gente apanha um porco e ain<strong>da</strong> esse ô-dê-pê com bocas.” “Fui eu que lhe apanhei primeiro e porco vadio é <strong>de</strong> quemaga<strong>rra</strong>.” “Não é na<strong>da</strong> <strong>de</strong> ministro, se fosse não ia a pé.” E no recomposto <strong>da</strong>bicha rebentaram outra vez as makas. “ Eu é que estava primeiro”. “Não erana<strong>da</strong>”. Começaram a encardurmar-se no meio <strong>da</strong> panca<strong>da</strong>ria mais ô-dê-pê,e Ruca com a cor<strong>da</strong> bem segura, <strong>de</strong>u logo uma corri<strong>da</strong>”.(Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>, p. 30)140A pontuação é pouco frequente e os discursos <strong>da</strong>s personagens sãotranscritos num continuum, on<strong>de</strong> só as pausas mais pronuncia<strong>da</strong>s são assinala<strong>da</strong>sgraficamente. Concomitantemente, o ritmo <strong>da</strong> na<strong>rra</strong>ção é rápido.Não é <strong>da</strong><strong>da</strong> uma gran<strong>de</strong> importância à <strong>de</strong>scrição, sendo o diálogo omodo <strong>de</strong> expressão literária mais frequente.A frase é normalmente curta, conferindo um maior dinamismoao discurso. Desta forma, o leitor não é obrigado a discorrer, pois nãohá conexões lógicas. Há apenas os factos, o fluir <strong>da</strong>s emoções e a suatransmissão objectiva. Assim, este ritmo sincopado possibilita uma relaçãoestreita entre a escrita e a linguagem fala<strong>da</strong>, natural, simples efamiliar (295) .293I<strong>de</strong>m, op. cit. p. 636.294I<strong>de</strong>m, op. cit. p. 637.295Manuel Rui <strong>de</strong>staca que o seu objectivo é aproximar-se <strong>da</strong>s estruturas <strong>da</strong> fala: “aquilo que pretendoé que quem me esteja a ler estabeleça a sua relação com o texto, que seja iludi<strong>da</strong>, sentindo que alguémlhe está a contar uma história”. Op. cit. Entrevista em anexo, p. 168.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiPredomina a coor<strong>de</strong>nação: as frases, mais ou menos soltas, têm sequênciapelo contexto ou situação.O na<strong>rra</strong>dor mais frequente é o <strong>da</strong> terceira pessoa.Em jeito <strong>de</strong> conclusão, é nítido o diálogo <strong>de</strong> línguas e linguagens,contrariamente ao espaço babélico, surge aquilo que <strong>de</strong>signamos poruma Babel apazigua<strong>da</strong>, uma vez que a riqueza dos termos utilizados e asdiferentes inovações opera<strong>da</strong>s confluem numa linguagem própria, massimultaneamente simples, fácil e franca, tornando cristalina a na<strong>rra</strong>tiva.As letras, as sílabas, as palavras, os parágrafos, as páginas, enfim,os livros <strong>de</strong>senharam um retrato vivo e dramático, pintado com esmeroe um extraordinário sentido <strong>da</strong>s cores e dos contrastes. É a própria vi<strong>da</strong>angolana que gesticula, através <strong>da</strong>s suas páginas.1412007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraDA PÁGINA AO PALCOE À TELA“O escritor realista está dominado pelo mito<strong>de</strong> Asmo<strong>de</strong>ia: erguer os telhados, ver através,“<strong>de</strong>spir”, <strong>de</strong>cifrar, iluminar,etc”.Philippe Hamon“O teatro é uma mágica totali<strong>da</strong><strong>de</strong> que integra apalavra, a música, a cor, o movimento, o público,o pulsar do gran<strong>de</strong> coração do espectador, doactor, do escritor, do cenógrafo, do músico...”Manuel António <strong>de</strong> Pina“Le roman est un récit qui s’organise en mon<strong>de</strong>,le film un mon<strong>de</strong> qui s’organise en récit”.Jean Mitry142A relação entre a literatura e as <strong>de</strong>mais artes é um lugar comum<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>. As artes eram então compara<strong>da</strong>s tanto pela sua origemcomum na mitologia grega (as nove musas – filhas <strong>de</strong> Mnemosine, aMemória, e Zeus – presidiam as artes), bem como pelo facto <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar,então, to<strong>da</strong> arte uma imitação, mimesis.Horácio, por exemplo, fez a comparação entre a poesia e a pinturaque se tornou o lema <strong>de</strong> uma longa história <strong>de</strong> aproximações entre a poesiae as artes plásticas, a partir <strong>da</strong> máxima ut pictura poesis.Obviamente que quando falamos <strong>de</strong> artes como o Cinema, o Teatroou a Literatura falamos <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> comunicação muito distintos:enquanto o romance nasce <strong>de</strong> uma linguagem feita <strong>de</strong> palavras (296) , o296Que po<strong>de</strong> associar sensações diversifica<strong>da</strong>s.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruiobjecto teatral/ cinematográfico envolve um conjunto <strong>de</strong> linguagens diversifica<strong>da</strong>s:não só as palavras ditas, mas também os actores em palco,os objectos, a luz e o som.Wellek e Warren (1971) (297) questionam a legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> do escritorpo<strong>de</strong>r ou não sugerir os efeitos <strong>da</strong> pintura e <strong>da</strong> música, concluindo que“os paralelos estabelecidos entre as belas-artes e a literatura resumem-sena asserção <strong>de</strong> que este quadro e este poema produzem em nós a mesmadisposição” (i<strong>de</strong>m:157).Ora, no nosso estudo, a questão que se coloca vai, <strong>de</strong> certa forma, <strong>de</strong>encontro à enuncia<strong>da</strong> por Wellek e Warren: será pertinente estabeleceruma analogia entre o corpus em análise e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> envolvente ao teatroe ao cinema? A resposta afigura-se como afirmativa.De facto, Teresa Gonçalves (298) (s. d.) enumera alguns estudos efectuadosno âmbito do cinema, quer do ponto <strong>de</strong> vista semiológico (299) , querestrutural (300) ou ain<strong>da</strong> na<strong>rra</strong>tológico (301) . Confirmando estes a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> aproximação entre o texto na<strong>rra</strong>tivo fílmico e o na<strong>rra</strong>tivo literário.Destacando a virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> “utilização idêntica que ambos fazem <strong>da</strong>veiculação <strong>de</strong> uma história através <strong>de</strong> um discurso peculiar a ca<strong>da</strong> texto,discurso este manipulado por uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> na<strong>rra</strong>dora que combina personagens,as quais protagonizam acções, situando-se num <strong>de</strong>terminadoespaço e num <strong>da</strong>do momento na linha do tempo diegético”(i<strong>de</strong>m).Numa linha anterior, Kowzan (1975:25) (302) salientara a importânciado tempo e do espaço nas artes do espectáculo, nomea<strong>da</strong>mente noteatro (303) : “l´art [du spectacle] dont les produits son communiqués <strong>da</strong>nsl´espace et <strong>da</strong>ns le temps, ce qui veut dire que, pour être communiqués,ils exigent nécessairement l´espace et le temps ». Também Aguiar eSilva (1990) <strong>de</strong>stacaria que o cinema e a literatura são artes temporais,297Wellek, R. et Warren, A., Teoria <strong>da</strong> Literatura, Lisboa, Biblioteca Universitária, 1971.298Gonçalves, Teresa, “Estudos <strong>de</strong> Literatura e Cinema”, in http://www.fcsh.unl.pt. Acesso em Agosto<strong>de</strong> 2006.299Nomes como Christian Metz, Roger Odin, François Jost. I<strong>de</strong>m.300Estudos <strong>de</strong> Raymond Bellour, Francis Vanoye, André Gaudreault e François Jost. I<strong>de</strong>m.301Salientam-se Seymour Chatman, Jacques Aumont, Michel Marie, Alain Bergala, Marc Vernet,entre outros. I<strong>de</strong>m.302Kowzan, Ta<strong>de</strong>usz, Littérature et spectacle, Paris, Mouton, 1975.303Escarpit (1970) argumenta que o teatro “n´est pas un moyen <strong>de</strong> communication: il “est” communicationet cela à plusieurs niveaux ”. Escarpit, Robert, Le littéraire et le social – elements pour une sociologie<strong>de</strong> la littérature, Flammarion, 1970.1432007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira144e como tal “aptas a construir e comunicar histórias, no seu fluir e nassuas transformações e não apenas numa <strong>da</strong>s suas situações ou num dosseus estados” (i<strong>de</strong>m:178).O mesmo acontece na fronteira estabeleci<strong>da</strong> entre a Literatura eas restantes artes, esta é níti<strong>da</strong> e clara, contudo, uma análise atenta <strong>da</strong><strong>obra</strong> em estudo (304) , dos seus signos e significantes, do movimento <strong>da</strong>spersonagens, <strong>da</strong>s <strong>de</strong>scrições efectua<strong>da</strong>s e <strong>da</strong> linguagem utiliza<strong>da</strong>, tocaem traços comuns quer do teatro (305) , quer do cinema.Po<strong>de</strong>mos afirmar, tal como alu<strong>de</strong> Maffei (306) (s. d.) que, “apesar <strong>de</strong>to<strong>da</strong>s as diferenças que há entre as diversas linguagens artísticas, é lícitoafirmar que, entre elas, ocorrem mútuas influências, o que permiteque se veja <strong>de</strong>terminado texto literário como, por exemplo, acentua<strong>da</strong>mentecinematográfico ou musical”.Não será por acaso que a novela Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong> foi eleva<strong>da</strong>a espectáculo teatral, representa<strong>da</strong> em vários países como Portugal,Brasil, São Tomé e Príncipe e Angola, assim como 1 Morto & OsVivos (“De Um Comba”) conhecerá brevemente a sua projecção natelevisão angolana.Obviamente que a representação teatral ou cinematográfica, <strong>de</strong> umaqualquer <strong>obra</strong> literária, não é condição indispensável para se consi<strong>de</strong>rarum texto com características intrínsecas ao teatro ou ao cinema.A analogia que se po<strong>de</strong> estabelecer, em primeiro lugar, pren<strong>de</strong>-secom as imagens que criamos, quando lemos um livro, pois como leitoressomos simultaneamente espectadores <strong>da</strong> peça/filme a que a <strong>obra</strong>literária nos conduz. Assim, os movimentos, as cores, os sons e as palavrassão pinta<strong>da</strong>s numa tela visualista. Mas, mais uma vez, esta tambémnão nos parece ser a razão principal <strong>da</strong>s afini<strong>da</strong><strong>de</strong>s estabeleci<strong>da</strong>s,visto que esta é uma característica comum a qualquer <strong>obra</strong> literária.304Tal como outras <strong>obra</strong>s literárias.305Ingar<strong>de</strong>n (1965) vê a peça <strong>de</strong> teatro como um “caso limite” <strong>da</strong> <strong>obra</strong> literária: “ela constitui, aomesmo tempo, uma transição para <strong>obra</strong>s <strong>de</strong> outros tipos que ain<strong>da</strong> revelam uma afini<strong>da</strong><strong>de</strong> com as literaturasmas já não po<strong>de</strong>m ser incluí<strong>da</strong>s nelas e, por assim dizer, estão a meio entre estas últimas e as <strong>obra</strong>s<strong>de</strong> pintura: uma transição para a “pantomima” e para a <strong>obra</strong> cinematográfica”. Ingar<strong>de</strong>n, Roman, A <strong>obra</strong><strong>de</strong> arte literária, Lisboa, Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian, 1965, p. 353.306Maffei, Luís, “Um ar <strong>de</strong> cinema na literatura <strong>de</strong> Honwana: Inventário <strong>de</strong> Imóveis e Jacentes”, inhttp://www.uea.org. Acesso em Agosto <strong>de</strong> 2006E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiAssim, as causas, que se pren<strong>de</strong>m com a relação que estabelecemos,versam aspectos como: o coloquialismo utilizado, as frases simples, opredomínio <strong>da</strong> coor<strong>de</strong>nação e o diálogo, que se assume como o modo <strong>de</strong>apresentação do discurso mais frequente. Este conjunto <strong>de</strong> factores confereum maior dinamismo à acção, aproximando-a, concomitantemente,<strong>da</strong> movimentação típica do cinema ou do teatro. Para além disso, a nívelvisual e auditivo (307) , os resultados produzidos na na<strong>rra</strong>ção vão <strong>de</strong> encontroaos recursos utilizados nas duas artes. Assim, no que diz respeitoao primeiro nível enunciado, as luzes, os cenários, a caracterização, osmovimentos, os a<strong>de</strong>reços e figurinos vão sendo <strong>de</strong>senhados, num quadroreal; quanto ao segundo nível, os sons diversos e a linguagem utiliza<strong>da</strong>confluem numa elocução única.Com efeito, em Manuel Rui <strong>de</strong>paramo-nos com uma escrita que ten<strong>de</strong>ncialmenteincita à representação, não só pelas categorias <strong>da</strong> na<strong>rra</strong>tiva,nomea<strong>da</strong>mente o tempo, o espaço, as personagens e a acção, mastambém pela própria linguagem, estes elementos coexistem num aumento<strong>da</strong> superfície <strong>de</strong> contacto entre o texto e a representação.Desta forma, enquanto leitores, através do realismo visualista,vamos observando esta ou aquela personagem, concluímos do seu carácter,constatamos ain<strong>da</strong> todo um cenário físico e humano, em suma,estabelecemos relações.Maffei (i<strong>de</strong>m) <strong>de</strong>staca a importância <strong>da</strong> visão e do olhar, comoformas <strong>de</strong> “captação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>”, tanto no cinema, quanto no romancecontemporâneo.Ora, Manuel Rui transporta-nos por uma atmosfera diversifica<strong>da</strong> <strong>de</strong>som, cor e agitação, o leitor sente-se o espectador <strong>de</strong> uma peça teatral ou<strong>de</strong> um filme que revela tópicos <strong>de</strong> uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> envolvente.Desta forma, o escritor cria páginas, facilmente a<strong>da</strong>ptáveis a um espectáculoteatral ou a um filme/série.Imaginemo-nos, então, como<strong>da</strong>mente sentados numa sala <strong>de</strong> cinemae tomemos como exemplo “De Um Comba”. Des<strong>de</strong> logo, no início <strong>da</strong><strong>obra</strong>, somos projectados para uma série sucessiva <strong>de</strong> imagens, que dãoconta do cenário envolvente ao “comba”.145307Níveis fun<strong>da</strong>mentais quer no teatro, quer no cinema.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraCom efeito, como bom observador realista, Manuel Rui (308) caracterizaas personagens com varia<strong>da</strong> notação <strong>de</strong> pormenores, pintando gentes,atitu<strong>de</strong>s, roupas e gestos (nível visual):“Os grupos distinguiam-se pela homogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> no vestir, nos gestose até no tom <strong>de</strong> voz e na forma como ca<strong>da</strong> um havia chegado, com mais oumenos à vonta<strong>de</strong>”.(pp. 35-36)“Mais um Merce<strong>de</strong>s parou. E, primeiro e <strong>de</strong> rompante, dois militaresarmados. Só <strong>de</strong>pois saiu um homem com ares <strong>de</strong> mando. E, no fechar, ossol<strong>da</strong>dos batendo com força as portas <strong>da</strong> viatura, os presentes viraram logoa cabeça num só alvo, homens apertaram o casaco, ajeitaram casaco, ajeitaramgravata e mulheres apouparam perucas, tocaram lencinho no rosto,tudo num respeito que parecia automático”.(p. 37)O movimento <strong>da</strong>s personagens, numa “homogenei<strong>da</strong><strong>de</strong>” característica,remete-nos, concomitantemente, para a representação não <strong>de</strong> indivíduos,mas antes <strong>de</strong> grupos, enten<strong>da</strong>-se sociais. Atente-se no carácterpormenorizado, como “in loco”, que o escritor proporciona, numa sucessãorápi<strong>da</strong> <strong>de</strong> acontecimentos, consegui<strong>da</strong> pela coor<strong>de</strong>nação sindética,como se observássemos sem interrupção, uma sequência <strong>de</strong> actose imagens. O efeito é assim imediato: o dinamismo e a simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong>característicos <strong>da</strong> linguagem cinematográfica (309) e teatral (310) .146308Claus Clüver (2001:359) afirma que “os escritores sempre tiveram tendência para atravessar nãoapenas as fronteiras nacionais e linguísticas mas ain<strong>da</strong> as que separam as artes”. Clüver, Claus, “EstudosInterartes: Introdução Crítica”, in Buescu, Helena [et alli] [org.], Floresta Encanta<strong>da</strong>. Novos Caminhos <strong>da</strong>Literatura Compara<strong>da</strong>, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001.309Dorine Cerqueira argumenta que “o que caracteriza a cinematografia não é apenas o modo peloqual o homem se apresenta ao aparelho, é também a maneira pela qual, graças a esse aparelho, ele representapara si o mundo que o ro<strong>de</strong>ia”. Assim, estamos perante a école du regard, reflexo, movimento,ou melhor, “espectáculo reflectido com exactidão e apanhado continuamente em travelling”. Cerqueira,Dorine Daisy, Neo-realismo: a montagem cinematográfica no romance, Rio <strong>de</strong> Janeiro, AFE, 1980, p. 90.310Roland Barthes (1977:356) <strong>de</strong>staca a importância <strong>da</strong> simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong> na <strong>de</strong>finição do conceito<strong>de</strong> teatrali<strong>da</strong><strong>de</strong>: “em <strong>de</strong>terminado ponto do espectáculo, você recebe ao “mesmo tempo” seis ou sete informações(vin<strong>da</strong>s do cenário, dos trajos, <strong>da</strong> iluminação, <strong>da</strong> localização dos actores, dos seus gestos, <strong>da</strong>sua mímica, <strong>da</strong> sua fala), mas algumas <strong>de</strong>ssas informações mantém-se (é o caso do cenário), enquantooutras giram (a fala, os gestos), estamos, pois, perante uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira polifonia informacional, e é isto ateatrali<strong>da</strong><strong>de</strong>”. Barthes, Roland, Ensaios críticos, Lisboa, Edições 70, 1977.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiEpstein (Op. cit. Cunha: 2004) (311) <strong>de</strong>staca uma série <strong>de</strong> exemplos literários,a que <strong>de</strong>nomina “estética <strong>de</strong> sucessão, rapi<strong>de</strong>z mental, sugestãoe proximi<strong>da</strong><strong>de</strong>” e que permitem uma analogia pertinente entre a literaturae o cinema. Ora, o excerto que transcrevemos <strong>de</strong>staca precisamenteestes aspectos <strong>de</strong>stacados por Epstein (i<strong>de</strong>m), nomea<strong>da</strong>mente, no efeito<strong>de</strong> simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong> produzido, assim como na sucessão <strong>de</strong>scritiva dosfactos na<strong>rra</strong>dos.A visão <strong>de</strong> cineasta é possibilita<strong>da</strong> ao longo <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a <strong>obra</strong>, em alusãoa esta afirmação, tome-se outro exemplo – a <strong>de</strong>scrição do cortejo:“Os batedores <strong>da</strong> polícia iam à frente. Motos <strong>de</strong>vagar, só um pouco acimado ralanti. Luzes intermitentes mais uma sirene que controlava, à distância,qualquer hipótese <strong>de</strong> cruzamento <strong>de</strong> trânsito. Nessa or<strong>de</strong>m e disciplina doscarros an<strong>da</strong>rem, lentamente, seguindo a varredura dos batedores, o cortejoa chegar às portas do cemitério. <strong>Na</strong> imediação já a encontravam muitosautomóveis e uma caterva <strong>de</strong> gente, amontoa<strong>da</strong> em antecipação, na oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> entrarem primeiro no cemitério, antes <strong>da</strong>queles que vinham nocortejo. <strong>Na</strong>s roupas predominavam cores escuras, principalmente entre asmulheres, algumas sustentando ramos ou pequenas coroas <strong>de</strong> flores.Ouvia-se o abrir e fechar <strong>da</strong>s portas dos automóveis chegados nas primeirasposições <strong>da</strong> fila. Os ruídos dos sapatos sob a calça<strong>da</strong> <strong>de</strong> pedra. Ca<strong>da</strong>um procurando an<strong>da</strong>r mais <strong>de</strong>pressa, mas sem correr, na tentativa <strong>de</strong> alcançar,entre os primeiros, os portões, já <strong>de</strong>sce<strong>rra</strong>dos, do cemitério”.(p. 42)Neste excerto, à semelhança do anterior, como que provido <strong>de</strong> umalente minuciosa, o na<strong>rra</strong>dor <strong>de</strong>screve o cortejo fúnebre. O “ângulo <strong>da</strong>sfilmagens” revela uma panorâmica do funeral.Destaque-se novamente o predomínio <strong>da</strong> coor<strong>de</strong>nação sindética,numa fluência <strong>de</strong> ritmo rápido. Para além do ritmo, existe a cor (nívelvisual) “luzes intermitentes”, “escuras”, “flores”; o som (nível auditivo)“sirenes”, “motos”, “carros”, “gente”, “abrir e fechar <strong>da</strong>s portas”, “ruídodos sapatos”; o movimento (níveis visual e auditivo) “motos <strong>de</strong>vagar”,“carros [a an<strong>da</strong>r]lentamente”; “ca<strong>da</strong> um procurando an<strong>da</strong>r mais <strong>de</strong>-147311Cunha, João Manuel Santos, “Literatura e cinema”, 2004, in http//www.oolho<strong>da</strong>historia.ufba.br.Acesso em Agosto <strong>de</strong> 2006.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveirapressa, mas sem correr”. O leitor como que <strong>de</strong>sperta na sinestesia docortejo <strong>de</strong>scrito.A própria <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong>s personagens e do seu “habitat” dá-nos contaprecisamente <strong>de</strong>sse realismo visualista:“Dona Vaca está senta<strong>da</strong> sobre uma poltrona pesa<strong>da</strong>, <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira Verapanga-panga, preciosa, <strong>de</strong> Cabin<strong>da</strong>, com duas cabeças <strong>de</strong> leão trabalha<strong>da</strong>sem ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s extremi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em que ela assenta as mãos bem abertas eseguras. Poltrona fo<strong>rra</strong><strong>da</strong> <strong>de</strong> veludo grená, nos quiçás <strong>de</strong> her<strong>da</strong>nças nas confrontaçõesbélicas e ven<strong>da</strong>s e trocas <strong>de</strong> uns para os outros mas com a marcamarca<strong>da</strong> <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> casar gente numa qualquer conservatória do tempo<strong>de</strong> coló-coló. Porta <strong>da</strong> frente aberta e, por aí, varan<strong>da</strong>s, gra<strong>de</strong>s e portãoi<strong>de</strong>m. Pessoas poucas a entrar para o cumprimento <strong>de</strong> vénia e lava-mãos”.(p. 56)A visão do artista <strong>de</strong>screve minuciosamente a poltrona, <strong>de</strong>monstrativado luxo e ostentação <strong>de</strong> Dona Vaca. Os pormenores <strong>de</strong>scritos assemelham-sea um “microplano”, que vai sendo gra<strong>da</strong>tivamente aumentadopara uma visão global do cenário <strong>de</strong>scrito, movimento semelhante ao <strong>da</strong>câmera <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o, num filme (312) .Outros exemplos podiam aflorar esta i<strong>de</strong>ia. Assim, a <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong>s personagenstoca aspectos que possibilitam o carácter visualista <strong>da</strong> sua escrita:148“Agora com uma se<strong>da</strong> sedosa nas bolinhas pequenas brancas sobreo preto acetinado e meio transparente, ocultando-lhe as formas do corpoassim negligentemente suaves e gola <strong>de</strong> marujo. Nos pés um sapatinho alto,bem bicudo, cinzento prata. E sob eles, tão bem pousados, uma gran<strong>de</strong> eimpecável pele <strong>de</strong> onça, curti<strong>da</strong> a pormenor que até a cabeça com olhos <strong>de</strong>vidro bem brilhantes e patas manti<strong>da</strong>s com as unhas <strong>de</strong> verniz luzidio”.(p. 57)312Clau<strong>de</strong> Simon (Op. cit. Aguiar e Silva, 1990, p. 179) afirma que a fotografia e o cinema modificaramo modo como o mundo é apreendido: “não posso escrever os meus romances a não ser precisandoconstantemente as diversas posições que ocupam no espaço ou os na<strong>rra</strong>dores (campo <strong>da</strong> visão, distância,mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> em relação à cena <strong>de</strong>scrita –ou, se preferir, numa outra linguagem: ângulo <strong>da</strong>s filmagens,gran<strong>de</strong> plano, plano médio, panorâmico, plano fixo, travelling, etc...). Mesmo quando o meu ou os meusna<strong>rra</strong>dores relatam outras cenas imediatamente vivi<strong>da</strong>s (por exemplo, situações, episódios rememoradosou imaginados), encontram-se sempre numa posição <strong>de</strong> observador com conhecimentos e com visõeslimita<strong>da</strong>s, vendo os factos, os gestos a uma luz particular e limitativa. Aguiar e Silva, Vitor Manuel, Teoriae Metodologia Literárias, Lisboa, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Aberta, 1990.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiA personagem é <strong>de</strong>scrita, pormenoriza<strong>da</strong>mente, no seu traje. Repare-seque a utilização dos adjectivos: “sedosa”, “acetinado”, “transparente”,“alto”, “bicudo”, “prata”, “gran<strong>de</strong>”, “impecável”, “brilhantes”,“luzidio” (...) permitem ao leitor/ espectador visualizar uma imagem, omais precisa e concreta possível.De facto, os traços peculiares <strong>da</strong> <strong>obra</strong> <strong>de</strong> Manuel Rui incentivam àsua representação, como sejam o número reduzido <strong>da</strong>s personagens (313) ,a sucessão rápi<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes, ou o predomínio do diálogo e <strong>de</strong> algunspormenores <strong>de</strong>scritivos que marcam a diferença.149313<strong>Uma</strong> mais valia sobretudo no teatro.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraCONCLUSÃO“Where do you draw the line between languages?Between cultures? Between disciplines? Between peoples?”Homi Bhabha“A literatura, que é a arte casa<strong>da</strong> com o pensamento ea realização <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, parece-me ser o fim para que<strong>de</strong>veria ten<strong>de</strong>r todo o esforço humano (...) dizer umacoisa é conservar-lhe a virtu<strong>de</strong>(...)os campos são maisver<strong>de</strong>s no dizer do que no seu verdor. As flores, se forem<strong>de</strong>scritas com frases que as <strong>de</strong>finam no ar <strong>da</strong> imaginação,terão cores <strong>de</strong> uma permanência que a vi<strong>da</strong> celular nãopermite.(...)Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver.(...) Oromancista é todos nós”.Fernando Pessoa150Chegados a este ponto, surge a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma reflexão sobreo que foi dito, averiguando, <strong>de</strong>sta forma, se a nossa viagem atracou embom porto. Certos <strong>de</strong> que escrever um estudo sobre um autor angolano éuma navegação em mar cauteloso, tão arriscado como sedutor.Lança<strong>da</strong> a âncora e inicia<strong>da</strong> a viagem, cabe agora um olhar retrospectivo,para a nossa incursão, temos, pois, a tarefa <strong>de</strong> sintetizar e analisaras opções efectua<strong>da</strong>s, a linha argumentativa segui<strong>da</strong>, os <strong>da</strong>dos recolhidos,assim como a consecução dos objectivos enunciados à parti<strong>da</strong>.Ora, aquém do romance, e <strong>de</strong> certo modo do na<strong>rra</strong>r, a <strong>obra</strong> <strong>de</strong> ManuelRui manifesta objectiva e subjectivamente uma relação difícil entreos dois elementos <strong>da</strong>quele tropo com que Bhabha (1990) inaugurou adisciplina dos estudos pós-coloniais: nação e na<strong>rra</strong>ção. Daí que nos pareçater sido uma escolha a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> para o título do nosso estudo.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiFoi nosso principal objectivo traçar notas <strong>de</strong> <strong>leitura</strong> <strong>da</strong>s referi<strong>da</strong>s<strong>obra</strong>s, numa análise do romance <strong>de</strong> costumes, em que a sátira e o humorse impõem como cenário <strong>de</strong> reflexão – o título do nosso estudo patenteou,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, o horizonte: uma na<strong>rra</strong>ção humorística e satírica <strong>de</strong>uma nação. Desta forma, a própria acção, tal como se preten<strong>de</strong>u <strong>de</strong>monstrar,obe<strong>de</strong>ce à compulsão <strong>de</strong> na<strong>rra</strong>r, isto é, <strong>de</strong> produzir a nação.Partimos <strong>da</strong> teoria que condiciona o fenómeno <strong>da</strong> <strong>leitura</strong>/escrita àscontingências históricas, constituindo-se o romance, não só, mas também,como instância <strong>de</strong> mimesis dos atavismos do histórico, do homemnuma <strong>da</strong><strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> (314) .Os enunciados na<strong>rra</strong>tivos e a ironia, por eles produzi<strong>da</strong>, fun<strong>da</strong>m--se no conjunto <strong>de</strong> valores (morais, estéticos e i<strong>de</strong>ológicos) que regem asocie<strong>da</strong><strong>de</strong> on<strong>de</strong> se confrontam e se harmonizam normas hierárquicas eaxiologias diversas.Assim, a análise <strong>da</strong> nação angolana e a abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> uma na<strong>rra</strong>çãosatírica e humorística impuseram-se como propósitos exigentes, masigualmente fascinantes.Restringimos a nossa análise a três <strong>obra</strong>s principais: Quem me <strong>de</strong>raser on<strong>da</strong>; Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo; 1 Morto & Os Vivos – “De Um Comba”.Certos <strong>de</strong> que outras po<strong>de</strong>riam servir <strong>de</strong> porto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong>, optamos porestabelecer um confronto positivo entre as <strong>obra</strong>s supra. A nossa opçãopren<strong>de</strong>u-se com a relativa proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> publicação, assim como <strong>da</strong>ssimilitu<strong>de</strong>s que ence<strong>rra</strong>m, quer no espaço que <strong>de</strong>screvem (Luan<strong>da</strong>), querna crítica que <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>m (Burguesia).Obviamente que, como qualquer escolha, essa também restringe e,assim, as <strong>obra</strong>s, com carácter satírico, a que nos referimos são menos doque <strong>de</strong>sejaríamos, já que numerosas outras mereceriam ser cita<strong>da</strong>s.Ora, o estado <strong>da</strong> arte manifesta uma série <strong>de</strong> breves análises publica<strong>da</strong>s,que, com a excepção <strong>de</strong> algumas <strong>obra</strong>s <strong>de</strong> teor mais profundo,carecem <strong>de</strong> um estudo mais pormenorizado. Tal situação levou-nos àprocura <strong>de</strong> um fio <strong>de</strong> Ariadne próprio, resultando <strong>da</strong>í uma caminha<strong>da</strong>em busca <strong>de</strong> rumos e conceitos distintos, que culminou num estudo151314“Importa conhecer as fe<strong>rra</strong>mentas e os materiais que o artista instrumentalizou para perceber ossinais <strong>da</strong>dos pelas suas escolhas estéticas, articulando-as à programação <strong>de</strong> um “conteúdo”, à comunicação<strong>de</strong> uma “mensagem” para os leitores <strong>da</strong> época ou <strong>de</strong> sempre”. Soares, Francisco, op. cit. p. 22.2007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveira152contínuo e continuado, a fim <strong>da</strong> captação <strong>de</strong> possíveis horizontes <strong>da</strong>s<strong>obra</strong>s em estudo.Foi nossa intenção seguir uma linha pessoal tentando aprofun<strong>da</strong>r e<strong>de</strong>senvolver alguns aspectos que versam a análise literária <strong>da</strong> <strong>obra</strong> <strong>de</strong>Manuel Rui, <strong>da</strong>ndo importância acresci<strong>da</strong> às <strong>obra</strong>s supracita<strong>da</strong>s.A dimensão histórica, integra<strong>da</strong> no discurso na<strong>rra</strong>tivo, levou-nos aconsi<strong>de</strong>rar uma tipologia social, assim como o seu respectivo sistema<strong>de</strong> valores.O retrato que transpareceu nas páginas, por nós analisa<strong>da</strong>s, foi o<strong>de</strong> uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana pinta<strong>da</strong> pelos traços <strong>da</strong> crítica, do humore do riso.De facto, a escrita <strong>de</strong> Manuel Rui tem em conta as reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s culturaise sociais <strong>de</strong> Angola. O escritor tem então o seu próprio país como referenciali<strong>da</strong><strong>de</strong>,a partir <strong>de</strong> um cenário predominantemente urbano, palcoon<strong>de</strong> se tornam visíveis personagens representativas <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong>em mutação e on<strong>de</strong> se evi<strong>de</strong>nciam confrontos e conciliações <strong>de</strong> valores.A sátira, para além <strong>da</strong> crítica, visa moralizar e reformar. Trata-se <strong>da</strong>função didáctica que fizemos alusão e que nos pareceu fun<strong>da</strong>mental.Como elemento motivador <strong>da</strong> sátira distinguimos o senso do ridículo, napercepção do lado cómico <strong>da</strong>s personagens, situações e i<strong>de</strong>ias.As personagens: os “mais velhos”, os adultos e as crianças afloraramnuma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> que se aburguesou, on<strong>de</strong> os conceitos estão <strong>de</strong>sprovidos<strong>da</strong> natureza a que se reportam, on<strong>de</strong> não há uma i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong>valores, as práticas sociais e os comportamentos estão diluídos, estandoa incompetência e a corrupção esboça<strong>da</strong>s numa má distribuição <strong>de</strong> bens,assim, o <strong>de</strong>sajustamento social e a partilha do mujimbo são perenes e autopia, essa, é um ponto lá longe no mar <strong>de</strong> ilusões e <strong>de</strong>sejos.A ca<strong>da</strong> <strong>leitura</strong> que efectuámos, as personagens propõem-nos novosquestionamentos, as suas cores próprias pintam, <strong>de</strong>sta forma, o arco-íriscromático <strong>da</strong> <strong>obra</strong> do autor.Foi através do riso e humor, catarses do drama social, que lemos<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o livro <strong>de</strong> contos Regresso Adiado, passando por Quem me <strong>de</strong>ra seron<strong>da</strong>, Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo e 1 Morto & Os Vivos “De Um Comba”.Assim, a intriga que sustenta Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong> apoia-se nasfalhas <strong>da</strong> prática social, mas atinge algumas estruturas simbólicas doE-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruiestado: o Instituto <strong>da</strong> Habitação (acusado <strong>de</strong> corrupção); um assessorpopular (<strong>de</strong>nunciado por ser candongueiro), um agente <strong>da</strong> segurança(suspeito <strong>de</strong> prepotência por um fiscal), e até um ministro (através dosprivilégios que goza, no meio <strong>da</strong> penúria geral).Consequentemente, tanto a pequena-burguesia como a estrutura dopo<strong>de</strong>r aparecem contamina<strong>da</strong>s. Aliás, em Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo os doissectores estão intimamente ligados – o que constitui, implicitamente,uma crítica.Neste último, a crítica ao quotidiano (“crónica”), tendo como cenárioa vertente oral <strong>da</strong> notícia (“<strong>de</strong> um mujimbo”), abor<strong>da</strong> os po<strong>de</strong>res e influênciasdo aparelho partidário, <strong>da</strong>s relações hierárquicas no trabalho,dos hábitos <strong>de</strong> lazer (a praia, a bebi<strong>da</strong>, as férias, a Europa, etc), enfim,do comportamento <strong>de</strong> uma pequena burguesia.O autor contrapõe uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> tradicional em que a informaçãoé vital, a uma organização política burocratiza<strong>da</strong>, a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> urbanaregi<strong>da</strong> pelo documento, on<strong>de</strong> a escrita instaura uma nova or<strong>de</strong>m quepreten<strong>de</strong> reger aquela, em que a ocultação <strong>da</strong> informação é vital.Em 1 Morto & Os Vivos (“De Um Comba”) o fantástico e o mágico sãoo ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para uma análise <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> luan<strong>de</strong>nse. A tela temáticaengloba aspectos como o adultério, a corrupção, a ascensão fácil<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados elementos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana e a relação <strong>de</strong> algumasfiguras com o Po<strong>de</strong>r.O escritor serve-se dos diferentes cómicos: <strong>de</strong> personagem, formas(gestos e movimentos), acções e situações.As <strong>obra</strong>s <strong>de</strong>nunciam uma nova época <strong>de</strong> algum <strong>de</strong>sencanto, mas também<strong>de</strong> esperança e força impulsionadora vigente nas crianças e patentea<strong>da</strong>na expressão volitiva: “quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>”. Evi<strong>de</strong>nciam ain<strong>da</strong>todo um léxico político conquistado e a emergência/institucionalização<strong>de</strong> uma burguesia urbana que se distancia dos problemas periféricos eque constituiu o pólo sociológico, axiológico e topográfico.Manuel Rui soube ain<strong>da</strong> trazer para a literatura a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira linguagemcorrente <strong>da</strong>s classes retrata<strong>da</strong>s, tirando partido do seu vocabuláriohabitual. Conseguiu tornar a língua num instrumento dócil a uma novaexpressão, pondo <strong>de</strong> lado os lugares-comuns e criando novas associaçõesvocabulares.1532007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraHomem do seu tempo, nele confluem e se sobrepõem todos os elementosque a contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong> amadurece no próprio seio.A <strong>obra</strong> é expressão <strong>de</strong> um tempo actual, num espaço on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>senhamos homens e as coisas, num discurso orientado para o social, i<strong>de</strong>ológicoe cultural. O di<strong>da</strong>ctismo <strong>da</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong>ixa-nos uma espécie <strong>de</strong>pe<strong>da</strong>gogia não <strong>de</strong>clara<strong>da</strong>, mas inteligentemente expressa.Conta-se que o pintor Bonnard, ao visitar amiú<strong>de</strong> os museus on<strong>de</strong> estavamexpostos quadros <strong>da</strong> sua autoria, aproveitando as distrações dosguar<strong>da</strong>s, retocava-os pela cala<strong>da</strong>, permanentemente insatisfeito.Também nós fomos mu<strong>da</strong>ndo e revisitando pontos <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>gem e aspectos,tentando uma <strong>leitura</strong> mais clara e clarificadora <strong>da</strong> nossa abor<strong>da</strong>gem.Providos do astrolábio <strong>de</strong> conhecimentos a aprofun<strong>da</strong>r, tentamos,<strong>de</strong>sta forma, empreen<strong>de</strong>r uma caminha<strong>da</strong> pelo horizonte mágico <strong>da</strong> na<strong>rra</strong>tivaangolana, don<strong>de</strong> recebemos o muito que ain<strong>da</strong> temos para apren<strong>de</strong>r.Escutamos e vivenciamos os sons projectados nas diversas páginas,que constituem a <strong>obra</strong> <strong>de</strong> um dos autores <strong>da</strong> fecun<strong>da</strong> Literatura angolana.A viagem foi aliciante! Enfrentámos ventos contrários e outros <strong>de</strong>feição. Resta-nos, portanto, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> continuar a nossa caminha<strong>da</strong>(e que melhor forma do que a Literatura <strong>de</strong> Manuel Rui para fazê-lo?)pelos inúmeros portos que a na<strong>rra</strong>tiva e nação angolana <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>m.154E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiBIBLIOGRAFIA“Il est bien possible que le livre doive sonexistence précisément à ce défaut d´unegran<strong>de</strong> bibliothèque spécialisée ; si j´avaisen mesure <strong>de</strong> m´informer <strong>de</strong> tout ce qui a étépublié sur tant <strong>de</strong> sujets, je n´aurais peut-êtrejamais pu commencer à l´écrire”.Eric AuerbachI. Bibliografia activaA. CorpusRUI, Manuel, Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo, Porto, UEA. 1989.Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>, Lisboa, Edições Cotovia. 1982.1 Morto & Os Vivos, Lisboa, Cotovia, 1993.B. Elementos complementaresRUI, Manuel, O manequim e o piano, Lisboa, Cotovia, 2005.Um Anel na areia, Lisboa, Cotovia, 2002.Saxofone e Metáfora, Lisboa, Cotovia, 2001.Da palma <strong>da</strong> mão, Lisboa, Cotovia, 1998.Rioseco, Lisboa, Cotovia, 1997.Memória <strong>de</strong> Mar, Lisboa, Edições 70, 1980.Sim Camara<strong>da</strong>! Lisboa, Edições 70, 1977.Regresso Adiado, Lisboa, Plátano Editora, 1974.1552007 E-BOOK CEAUP
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<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiAnexoManuel Rui (MR) serve-se <strong>da</strong> pena satírica, com traços <strong>de</strong> ironia ehumor, <strong>de</strong>senhando um quadro <strong>de</strong> personagens, ilustrativo <strong>de</strong> algunsdos aspectos que administram a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana, foca, minuciosamente,relações e características <strong>da</strong> burguesia luan<strong>de</strong>nse, nos seus hábitose costumes. A sua reflexão engloba itens como a utopia, a crítica, osimbólico, o pe<strong>da</strong>gógico e o didáctico.<strong>Na</strong> entrevista que, gentilmente, nos conce<strong>de</strong>u, a 17 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong>2006, na Póvoa <strong>de</strong> Varzim, Manuel Rui comenta alguns aspectos <strong>da</strong> suavi<strong>da</strong> e <strong>obra</strong>, nomea<strong>da</strong>mente a idiossincrasia <strong>da</strong> sua sátira, as influências<strong>de</strong> que foi alvo, a linguagem e o estilo adoptados. Esclareceu-nos ain<strong>da</strong>sobre alguns conceitos que enformam a sua na<strong>rra</strong>tiva1632007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraENTREVISTA A MANUEL RUIQue factos culturais pensa terem sido marcantes na sua vi<strong>da</strong> econsequentemente na sua escrita?MR: Factos culturais... eu penso que todos. As pessoas com quem convivi,a formação <strong>de</strong> meus pais, a situação <strong>de</strong> ter nascido em tempo colonial,numa colónia. E, no fim <strong>da</strong> adolescência, a percepção <strong>de</strong> que as coisas nãoestavam bem. Nem quanto ao que se fazia, nem quanto ao que se escrevia.Visto que a escrita não se podia assumir como uma cópia fiel <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>,pois isso para mim não é escrever, mas antes intrometer-se como elementoque po<strong>de</strong> sugerir, picar ou transferir uma situação para outra que seria a<strong>de</strong>sejável, ou pelo menos <strong>de</strong>ixar os conflitos abertos.164Neste contexto, que influência teve Coimbra na sua literatura?MR: Coimbra é uma óptima influência como segun<strong>da</strong> pátria.Em primeiro lugar a vi<strong>da</strong> académica, apanhei os gran<strong>de</strong>s movimentos:as greves, a luta contra o fascismo. Num tempo em que os estu<strong>da</strong>ntes tinhami<strong>de</strong>ologia. Portanto, lutávamos contra o fascismo e contra o colonialismo.Não lutávamos para pagar menos propinas, nem para termos mais férias,ou ain<strong>da</strong> para em vez <strong>de</strong> passar com <strong>de</strong>z, passar com nove... Porque, tambémera essa a luta <strong>da</strong> própria classe operária: era a luta com i<strong>de</strong>ologia.Obviamente que para além disso, tive a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar numarevista, “Vértice”, que era uma revista <strong>de</strong> esquer<strong>da</strong>, e que faz parte <strong>da</strong> históriacultural <strong>de</strong>ste país, nomea<strong>da</strong>mente, no que concerne ao neo-realismo.Tudo isso contribuiu para a minha formação... Colaborei em jornais...Após o 25 <strong>de</strong> Abril, podia ter ido para Angola, mas <strong>de</strong>morei algumtempo, porque eu estava cá com residência fixa.An<strong>de</strong>i nessas “briga<strong>da</strong>s” culturais, a dizer poesia em al<strong>de</strong>ias. Poemascomo o “<strong>Na</strong>moro” <strong>de</strong> Viriato <strong>da</strong> Cruz: “Man<strong>de</strong>i-lhe uma carta em papel perfumado/e com letra bonita eu disse ela tinha/ um sorrir luminoso tão quente egaiato/ como o sol <strong>de</strong> Novembro brincando...”. Era uma coisa esplendorosa.A ligação constante com a cultura brasileira constituiu um papel importante.Estou a lembrar-me, por exemplo, que quando Jorge Amado veioa Portugal, conseguimos que ele viesse a Coimbra, ele e a Zélia, a esposa,E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruique era gran<strong>de</strong> fotógrafa naquela altura, <strong>de</strong>pois também escreveu bastante.Fomos a uma república <strong>de</strong> pessoal <strong>da</strong>s colónias. E eu e um amigo meu,Orlando Rodrigues, escrevemos “à pressão” uma biografia manuscrita <strong>de</strong>José Luandino Vieira, para Jorge Amado levar para o Brasil. O objectivoera continuarmos a lutar, com a intenção <strong>de</strong> o tirar <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia. Por outrolado, mesmo que não conseguíssemos esse propósito, pelo menos permitiase,<strong>de</strong>sta forma, uma vez que a censura vigorava em Portugal, que a <strong>obra</strong><strong>de</strong> Luandino continuasse a ser publica<strong>da</strong>. Claro que Luandino só saiu <strong>da</strong>ca<strong>de</strong>ia um pouco antes do 25 <strong>de</strong> Abril...Que escritor(es) <strong>de</strong>stacaria como aquele(s) que mais oinfluenciaram?MR: Deixa lá ver... Eu acho que não tenho influências, por assim dizer!Mas, talvez, Jorge Amado e Luandino Vieira, naturalmente na construçãodo texto e <strong>da</strong> história...O riso, a caricatura, a ironia, o humor e até o grotesco estãoao serviço <strong>da</strong> crítica <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Consi<strong>de</strong>ra-os a catarse <strong>da</strong> suana<strong>rra</strong>tiva?MR: Não. Olha, primeiro o problema <strong>da</strong> sátira. O Manuel Ferreira escreveusobre isso. Dizendo que, logo no primeiro livro, Regresso Adiado éuma escrita chaplinesca. Desta forma, quando as pessoas estão a rir, têm quechorar. Portanto não é tanto assim. Ele teve oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> verificar issomesmo quando se pôs Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong> em palco, em teatro. Há pessoasque saiam <strong>de</strong>sagra<strong>da</strong><strong>da</strong>s com aquilo. Com a personagem ser porco e tal...De facto, essa personagem provoca-nos momentos hilariantes.Será legítimo estabelecer uma analogia entre as suas atitu<strong>de</strong>s e algumasatitu<strong>de</strong>s burguesas?MR: <strong>Na</strong>turalmente que sim, mas não só. Po<strong>de</strong>mos estabelecer a analogiacom uma burguesia emergente, uma burguesia pós in<strong>de</strong>pendência.Num espaço, num tempo (Fevereiro), nas canções contra África do Sule contra o po<strong>de</strong>r, tudo isso leva ao Carnaval – o Carnaval <strong>da</strong> Vitória! Contudo,no final, o próprio Carnaval <strong>da</strong> Vitória acaba morto... As analogiassão evi<strong>de</strong>ntes.1652007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> OliveiraPor vezes, quando escrevemos um livro, as personagens po<strong>de</strong>m criarum caminho próprio. Actualmente, tenho um esquema <strong>da</strong>s personagens <strong>de</strong>Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>, mas fi-lo a posteriorI; contrariamente a Rioseco,on<strong>de</strong> fiz um esquema <strong>da</strong>s personagens, antes <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong> própria <strong>obra</strong>. Poroutro lado, neste último, O Manequim e o Piano, o esquema que prepareiantes <strong>de</strong> na<strong>da</strong> serviu, pois aqueles dois “filhos <strong>da</strong>...” começaram a <strong>de</strong>sviar-sedo caminho que lhes tinha traçado...A sátira <strong>de</strong> costumes é notória, por exemplo, em Quem me <strong>de</strong>raser on<strong>da</strong>; há todo um conjunto <strong>de</strong> valores que é posto em causa. Foiesta uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana, ou continua a sê-lo?MR: Não é propriamente uma sátira <strong>de</strong> costumes. Porque esses não sãocostumes tipicamente angolanos. Não era um costume angolano criar umporco num apartamento. É uma previsão <strong>de</strong>smarca<strong>da</strong>, <strong>de</strong> uma articulaçãomuito rápi<strong>da</strong> do ponto <strong>de</strong> vista i<strong>de</strong>ológico que não tem na<strong>da</strong> a ver com oscostumes angolanos.Tem a ver com <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s concepções, que an<strong>da</strong>ram por aqui no 25<strong>de</strong> Abril, que leva as pessoas a burocratizarem tudo sem saber porque estãoa fazê-lo. As personagens são marxistas sem saber o que é o marxismo. Étodo um contexto...Há mu<strong>da</strong>nça, claro! <strong>Na</strong>quele tempo, por exemplo, havia falta <strong>de</strong> cerveja.Para beber uma cerveja, tinha-se apenas uma marca, e esta era servi<strong>da</strong>num copo que não era senão uma lata <strong>de</strong> compota, que por vezes, ain<strong>da</strong>tinha restos do doce...166Quando escreve em epígrafe “Perdoem-me os leitores pelo fimque escolhi... mas é que eu não sou <strong>de</strong> Mujimbos”, foi esta umaforma <strong>de</strong> reiterar/afirmar ironicamente a importância <strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong>na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana?MR: Sim, exactamente. O mujimbo chega sempre à frente. Aliás o segredojá to<strong>da</strong> a gente o sabe antes <strong>de</strong>le ser revelado oficialmente.E não nos po<strong>de</strong> revelar qual era esse segredo?MR: Eu também não sei qual é! (risos)E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel RuiPor sua vez, Feijó e Diogo são personagens semelhantes em muitosaspectos. Contudo, Feijó será caricaturado com maior profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>.Parece-nos que aí a crítica foi mais sagaz...MR: Ambos representam a média burguesia já institucionaliza<strong>da</strong>, <strong>de</strong>pois<strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência. Feijó é o apogeu do MPLA. Ele reproduz aqueles queviam no MPLA uma espécie <strong>de</strong> religião.As pessoas, em Angola, passaram <strong>da</strong> religião católica para a “religiãodo MPLA”, actualmente, parece-me que estão a voltar à religião católica.Feijó é, portanto, um burocrata típico do sistema do po<strong>de</strong>r, a reiteraçãodo rigor e <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> formal.Po<strong>de</strong>r-se-á consi<strong>de</strong>rar Feijó um alienado ao mundo europeu?MR: Não só, mas também. Um alienado a tudo, não só ao mundoeuropeu, mas também àquilo que implica as viagens, o ser burguês, odinheiro...Quanto às crianças, elas são para si a realização <strong>da</strong> utopia? Ouseja, é a infância o tempo <strong>de</strong> justiça e igual<strong>da</strong><strong>de</strong>?MR: Claramente!Em 1 Morto & Os Vivos, mais propriamente em “De 1 Comba”,prossegue a sua crítica ao comportamento <strong>da</strong> pequena burguesiaurbana. Contudo, à semelhança <strong>de</strong> Memória <strong>de</strong> mar, introduz ofantástico. José Carlos Venâncio (1996:109) refere que a crítica émenos direcciona<strong>da</strong> e, por isso, mais profun<strong>da</strong> e dramática. Concor<strong>da</strong>com a afirmação?MR: Sim, claro! Aí é, <strong>de</strong> facto, a burguesia já instala<strong>da</strong> no po<strong>de</strong>r, comuma segun<strong>da</strong> mulher, um segundo carro...(Estão, agora, a fazer um historial sobre esta <strong>obra</strong>, inclusive a minhamulher trabalha na parte do figurino, é uma espécie <strong>de</strong> série...)Bem, mas aí já há a burguesia que está no po<strong>de</strong>r. O livro <strong>de</strong>monstracomo aquela “gaja” – Dona Vaca, se articula e se relaciona com as instânciasdo po<strong>de</strong>r.É o tipo <strong>de</strong> risco ao meio, que sabe ler e escrever e pinta as unhas, ouseja, um gajo que an<strong>da</strong> sempre bem vestido, e que está em vias <strong>de</strong> engatar1672007 E-BOOK CEAUP
Marta <strong>de</strong> Oliveiraa viúva. Ele po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado um neoliberal. É uma figura <strong>de</strong> marca,louca, superior.Opta por uma na<strong>rra</strong>tiva simples e atraente, escrevendo, frequentemente,no registo <strong>de</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong> quotidiana. O coloquialismoque utiliza tem como intenção aproximar-se dos hábitos <strong>da</strong>s gentes<strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>?MR: Sim! Esse é um aspecto importante. Eu não me consi<strong>de</strong>ro um romancista,pelo menos um romancista com valor histórico. Porque eu tentoaproximar-me ca<strong>da</strong> vez mais <strong>da</strong>s estruturas <strong>da</strong> fala! Aquilo que pretendoé que quem me esteja a ler estabeleça a sua relação com o texto, que sejailudi<strong>da</strong>, sentindo que alguém lhe está a contar uma história.Deduzo, portanto, que se consi<strong>de</strong>ra um contador <strong>de</strong> histórias?MR: Neste contexto, consi<strong>de</strong>ro!As suas inovações e a riqueza dos termos que utiliza, recordoexpressões como “fine”, “oquei”, assim como, o <strong>de</strong>sfazer do grau<strong>de</strong> abstracção <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s siglas (“Ce-pê-pê-á”...) são formas<strong>de</strong> afirmação em relação ao português padrão, ou melhor, a suaparodização?MR: Não acho que seja uma parodização. São uma mistura do portuguêscom línguas locais, ou então com palavras regionais. Em Rioseco, porexemplo, é engraçado fazer o levantamento do número palavras em quimbundo,dos neologismos, etc...168Nenhuma personagem feminina mereceu papel <strong>de</strong> protagonistanas suas <strong>obra</strong>s na<strong>rra</strong>tivas, com excepção obviamente <strong>de</strong> Noíto. Noentanto, a responsabilização <strong>da</strong> mulher na função educativa e <strong>de</strong>sageza é personifica<strong>da</strong>, por exemplo, na professora (Quem me <strong>de</strong>raser on<strong>da</strong>) e na “mais velha”, mãe <strong>de</strong> Feijó, respectivamente. Apesar<strong>de</strong> Dona Vaca personificar a crítica a <strong>de</strong>terminados vícios <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.Po<strong>de</strong>mos, então cingir a crítica social ao universo masculino?MR: Há outras, como Marina <strong>de</strong> Um anel na areia, embora seja umahistória <strong>de</strong> amor. <strong>Na</strong>turalmente que a Noíto é outra figura <strong>de</strong> mulher. ClaroE-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruique to<strong>da</strong> a gente acha que ela é feiticeira, e ela é-o <strong>de</strong> facto. A sua relaçãocom Mateus e Zacaria, tudo isso é muito distinto.Mas não me parece que possamos <strong>de</strong>limitar a crítica ao universomasculino.Finalmente, e visto que estamos neste encontro <strong>de</strong> escritoresibéricos (315) , consi<strong>de</strong>ra-se um escritor ibérico?MR: Bem, escrevo numa língua ibérica... Mas só posso consi<strong>de</strong>rar-meum escritor ibérico, num conceito <strong>de</strong> iberismo muito próprio. Ou seja, umiberismo que ultrapassa os oceanos. A nossa literatura assemelha-se mais à<strong>de</strong> Espanha e do Brasil...Este aspecto <strong>da</strong> união <strong>da</strong> intercontinentali<strong>da</strong><strong>de</strong> tem que aten<strong>de</strong>r a outroscontextos, como o gastronómico, o religioso... Estas coisas <strong>de</strong>vem serentendi<strong>da</strong>s sem preconceito e como sendo humanamente distintas. Não inventandomais aspectos para dividir as pessoas, como fazendo os tão <strong>de</strong>batidoscartoons <strong>de</strong> Maomé!Obriga<strong>da</strong>, Manuel Rui!Marta <strong>de</strong> Oliveira169315A entrevista foi realiza<strong>da</strong> aquando <strong>da</strong> 7ª Edição <strong>da</strong>s Correntes d´ Escritas. Encontro <strong>de</strong> Escritores <strong>de</strong>Expressão Ibérica, que <strong>de</strong>correu nos dias 15 a 18 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 2006, na Póvoa <strong>de</strong> Varzim.2007 E-BOOK CEAUP