Ação afirmativa no ensino superiorPor último, o leitor deverá fazer um exercício de apreensão menoscomprometido com os paradigmas da ciência tradicio<strong>na</strong>l e com aprodução dos intelectuais europeizados, compreendendo que estamosem verdadeiro processo de produção do conhecimento sobre relaçõesraciais no Brasil, em uma segura tentativa de superar as premissas racistasde nossa formação sociopolítica e jurídica, o que por certo irá diferenciaras referências bibliográficas tradicio<strong>na</strong>is, incluindo então um aporte decriação do conhecimento. Este processo, ainda que tardio, é fundamentalpara a mudança de paradigma sobre racismo e relações raciais emnossa sociedade. O tempo será meu avaliador e o prognóstico é positivo,com certeza.Antecedentes HistóricosA história do racismo <strong>na</strong>s Américas, que está intrinsecamenteligada com o regime da escravidão e com o tráfico transatlântico deescravos, não pode deixar de ser trazida quando se empreende umaanálise sobre o racismo e seus nefastos desdobramentos em nossasociedade e mesmo <strong>na</strong>s sociedades america<strong>na</strong>s como um todo. E, aocontrário do que primeiramente apresento, essa reflexão não se propõea descrever ou lamentar o período de escravidão america<strong>na</strong> e dapilhagem européia contra as <strong>na</strong>ções e povos das mais diversas etniasdo continente africano, em especial os povos subsaarianos.As referências históricas são criadoras de culturas, percepções,comportamentos e ideologias, mais ainda quando as relações envolvidasentremeiam as estruturas materiais e estruturas interiores da <strong>na</strong>turezahuma<strong>na</strong>, tais como identidade, rejeição e ódio. É dessa formulação,então, que estou tratando, é ela que impõe a referência ao períodohistórico nomeado, especialmente ao século XIX, cujo fi<strong>na</strong>l trouxepara o Brasil, e igualmente para as sociedades européias e norte-55
Dora Lucia de Lima Bertulioamerica<strong>na</strong>s 3 , revoluções 4 e guerra, que alteraram – não necessariamentemodificaram – as relações entre brancos e <strong>negro</strong>s <strong>na</strong>s dadas sociedades.O Brasil foi o maior importador de escravos africanos <strong>na</strong>sAméricas, durante os 350 anos de comércio de homens e mulheres dascostas da África para a costa brasileira. “Entre os séculos XVI e XIX,40% dos quase 10 milhões de africanos importados pelas Américas desembarcaramem portos brasileiros”, conforme Florentino 5 . Em 1883 estimava-se quehavia em território <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l 1.300.000 escravos, dos quais milhares foramcontrabandeados após a determi<strong>na</strong>ção oficial do fim do tráfico negreiro:Entre esses (1.300.000) se devem contar muitos, em grandenúmero, introduzidos no período decorrido desde a Lei de 7 denovembro de 1831 6 até a época em que cessou o contrabando, em1850. Nesses dezenove anos, se não falham os cálculos estatísticosque existem, avalia-se terem entrado de 180 a 190 mil africanos. 7As relações entre Estado e sociedade <strong>na</strong> segunda metade dosanos de 1800 estavam, pois, significativamente determi<strong>na</strong>das pelarealidade de estar o regime escravista caminhando para seu fi<strong>na</strong>l, e ter,ao mesmo tempo, a sociedade brasileira – política e civil – de apresentarplanos e propostas relativamente ao contingente <strong>negro</strong>, que à época e3Minhas referências de estudo deixam de lado os outros países latino-americanos emrazão da especificidade da exposição, que se limita ao Brasil e traz, por outro lado, aEuropa e os Estados Unidos da América porque são fontes imprescindíveis dasrelações inter<strong>na</strong>s brasileiras.4No caso brasileiro, refiro-me a uma revolução nos paradigmas políticos/ideológicos,já que não tivemos comoção social que tenha sido significativa <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lmente.5FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras. Uma história do tráfico de escravosentre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo : Companhia das Letras. 1997.6Chamada Lei Euzébio de Queiroz e que detrmi<strong>na</strong> a proibição do tráfico negreiro emterritório brasileiro. Seu art. 1º declara livres os africanos importados após a sua edição.7NEQUETE. Lenine, Escravos e Magistrados no Segundo Rei<strong>na</strong>do : Aplicação da Lei2040 de 28 de setembro de 1871. Brasília : Fundação Petrônio Portela, 1988, P.177– transcrição de artigo de Juiz de Direito de Cabo Frio, Rio de Janeiro, a propósito davigência da Lei de 7.11.1831 que proibia a descarga de mercadoria huma<strong>na</strong> vinda daÁfrica e as ações de liberdade.56