SETOR RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA

Material do Professor - Setor Religiosidade Afro-Brasileira Material do Professor - Setor Religiosidade Afro-Brasileira

08.08.2015 Views

profanos dos sagrados, pois esta separação, existente nacosmovisão cristã, não faz sentido na cosmovisão africana,na qual comer, beber, dançar, tocar os instrumentos depercussão são atos litúrgicos.O terreiro, espaço sagrado, separado da sociedade envolvente,ou seja, da sociedade onde os brancos exerciamhegemonia cultural, econômica e política, era o espaçode uma comunidade que pôde preservar e recriar formasafricanas de ser e viver, no qual a cosmovisão africana(yoruba, jeje ou bantu) ganhou novos significados,produzindo sentidos e criando vínculos de solidariedade,afetividade e poder entre seus membros.Ainda que nunca tenham se mantido isoladas da sociedade,as comunidades-terreiro estabelecem:. Uma temporalidade própria, baseada em uma percepçãocíclica da existência;. Uma espacialidade própria, pois o espaço é sacralizadoe prenhe de significados. A relação com a natureza é pautadana cosmovisão africana, na qual cada elemento naturalcorresponde ao arquétipo de uma divindade;. Relações de poder próprias, nas quais a hierarquia éestabelecida com base no saber e na senioridade, ou seja,quanto mais “velha de santo” uma pessoa é, mais sábia éconsiderada, portanto mais poder acumula, expresso noscargos que assume no terreiro. A intrincada hierarquia doterreiro determina funções bem diferenciadas para cadaum, de acordo com o tempo de iniciação e o gênero domembro. Há ainda um outro fator definidor de seu papelnesta estrutura: entrar ou não em transe de possessãopelo orixá, uma vez que o culto só é possível se houver aquelesque incorporam e aqueles que não incorporam o orixá eajudam a cuidar dos primeiros durante as cerimônias.Assim, a “família-de-santo” assume o lugar da famíliade sangue do africano, restabelecendo padrões marcadamenteafricanos de relação entre as pessoas, ao valorizaros mais velhos (detentores de mais sabedoria e de maisforça vital, pois estão mais próximos dos antepassados) eas crianças (representantes das gerações futuras, responsáveispela continuidade da tradição), assim como estabelecendoclaras diferenciações entre os papéis masculinose femininos no ritual. Para os descendentes de africanos,o candomblé representa a possibilidade da preservaçãoe reelaboração de uma tradição que se diferencia da culturahegemônica, cujos padrões e valores eurocêntricosestigmatizam e oprimem as maneiras de crer, ser, fazer,viver e conhecer africanas. Esta tradição constitui umtraço distintivo de sua identidade e é mobilizada pormovimentos sociais e políticos, na contemporaneidade,na reivindicação de direitos para a população negra.2. Prática de preservação e reelaboração do patrimôniocultural imaterial afro-brasileiroEssas maneiras de ser, crer, fazer, viver e conhecer, chamadasde ethos de um povo ou grupo social, fundadas emuma cosmovisão africana, traduziram-se em um conjuntode saberes que puderam ser preservados e reelaboradosnas comunidades-terreiro. Resguardados pelo candomblé,estes saberes muitas vezes transpuseram as fronteirasda religião e do grupo étnico-racial e espraiaram-se peloconjunto da sociedade, constituindo aspectos característicosda cultura brasileira. Muito do que somos e sabemosdevemos ao aporte cultural africano, cujo locus não exclusivo,mas certamente estratégico de preservação foramas comunidades-terreiro. Hoje se fala em salvaguarda dopatrimônio imaterial brasileiro, ou seja, do conjunto desaberes e saber-fazeres que nos singulariza como nação.Porém, muito antes de tal política de preservação ser umdesígnio do Estado brasileiro, quando ele ao contrário tinhao objetivo explícito de embranquecer o Brasil e depurar asmarcas africanas de nossa cultura, as religiões afro-brasileirasjá exerciam este papel fundamental de preservação

viva, ativa, incorporada e dinâmica deste patrimônio cultural,precioso para todos, negros e brancos, neste país. Talpatrimônio constitui-se de diversos saberes: culinários,medicinais, lingüísticos, artísticos.A cozinha ritual do candomblé atualiza as formas depreparar os alimentos na África (usando muitas vezes otrabalho coletivo das mulheres), utiliza ingredientes iguaisou semelhantes aos africanos e reproduz formas de comerafricanas (“comer de mão”, comer na gamela). Na Bahia,aquilo que é conhecido como “comida baiana”, a “comidade azeite”, importante capital cultural e fonte de atraçãode turismo gastronômico para o estado, é na verdade umaderivação da “comida de santo”, da comida oferecida àsdivindades, que obedece às preferências e tabus de cadauma delas, segundo os mitos e poemas orais da tradiçãoafro-brasileira. O acarajé é o acará, oferecido a Iansã etradicionalmente preparado por suas filhas que exercema profissão de baiana de acarajé, importantíssima na provisãodo sustento de tantas famílias negras. O caruru é umaversão ligeiramente modificada do amalá, comida ritual deXangô. Em outros casos, ocorreu uma apropriação criativade ingredientes brasileiros, especialmente o milho e a mandioca,usados abundantemente na alimentação indígena,para fazer as comidas de santo, como o milho branco ou apipoca, o que testemunha as trocas culturais estabelecidasentre negros e indígenas e o caráter dinâmico da culturaafro-brasileira.Na medicina afro-brasileira, o uso de plantas de valormedicinal na forma de chás, infusões, banhos e emplastosrevela um imenso conhecimento da natureza, fruto decentenas de anos de observação e experimentação de seusefeitos terapêuticos. É importante ressaltar este aspectodas culturas africanas, uma vez que elas são mais conhecidaspor suas feições artísticas e estéticas, mas pouco sefala de seus conhecimentos científicos. A ciência ocidental,de uma forma geral, representa-se como a única ciênciaque há, como se todo o conhecimento da natureza e todoo desenvolvimento tecnológico fossem sua prerrogativaexclusiva, enquanto que as culturas africanas e indígenasseriam marcadas pela ausência de pensamento analítico,abstrato, por uma característica pré-lógica que revelariaseu “primitivismo”.Tais estereótipos, com ranços evolucionistas, são contestadospela grande procura na atualidade, pelos própriospaíses do Ocidente industrializado, do conhecimento sobre anatureza que outros povos vêm desenvolvendo há milênios,auferindo grandes lucros para instituições de pesquisase laboratórios farmacêuticos multinacionais através dapatente de plantas medicinais, com as quais os verdadeirospesquisadores africanos e indígenas nada ganham.O uso das plantas no candomblé assinala uma outra concepçãode saúde e oferece formas de tratamento maisnaturais e holísticas. A doença não é vista como disfunçãofísico-química, mas como conseqüência de um desequilíbrioque envolve as múltiplas dimensões da pessoa, nãosó nosso corpo físico, mas também nosso duplo espiritual,acarretando a diminuição da força vital – concepção quetem sido corroborada por práticas medicinais alternativas,menos comprometidas com a indústria médica, hospitalare farmacêutica, no próprio Ocidente. O restabelecimentoda saúde implica em restaurar o equilíbrio na relação comas divindades e ancestrais, instando-os a agirem a favordos vivos. Há um provérbio yoruba que diz “kosi ewé, kosiorisa”, “sem folha não há orixá”, o que nos mostra que asfolhas estão presentes em todos os rituais. Para além deseus usos terapêuticos, as plantas são parte central dosfundamentos da religião, cujo conhecimento está sob aguarda do orixá Ossaim.As línguas africanas (kimbundo, kikongo, yoruba e fon,principalmente) mantiveram-se em uso nos terreiros,nas saudações, cantigas, provérbios, contos, poemas, nos

profanos dos sagrados, pois esta separação, existente nacosmovisão cristã, não faz sentido na cosmovisão africana,na qual comer, beber, dançar, tocar os instrumentos depercussão são atos litúrgicos.O terreiro, espaço sagrado, separado da sociedade envolvente,ou seja, da sociedade onde os brancos exerciamhegemonia cultural, econômica e política, era o espaçode uma comunidade que pôde preservar e recriar formasafricanas de ser e viver, no qual a cosmovisão africana(yoruba, jeje ou bantu) ganhou novos significados,produzindo sentidos e criando vínculos de solidariedade,afetividade e poder entre seus membros.Ainda que nunca tenham se mantido isoladas da sociedade,as comunidades-terreiro estabelecem:. Uma temporalidade própria, baseada em uma percepçãocíclica da existência;. Uma espacialidade própria, pois o espaço é sacralizadoe prenhe de significados. A relação com a natureza é pautadana cosmovisão africana, na qual cada elemento naturalcorresponde ao arquétipo de uma divindade;. Relações de poder próprias, nas quais a hierarquia éestabelecida com base no saber e na senioridade, ou seja,quanto mais “velha de santo” uma pessoa é, mais sábia éconsiderada, portanto mais poder acumula, expresso noscargos que assume no terreiro. A intrincada hierarquia doterreiro determina funções bem diferenciadas para cadaum, de acordo com o tempo de iniciação e o gênero domembro. Há ainda um outro fator definidor de seu papelnesta estrutura: entrar ou não em transe de possessãopelo orixá, uma vez que o culto só é possível se houver aquelesque incorporam e aqueles que não incorporam o orixá eajudam a cuidar dos primeiros durante as cerimônias.Assim, a “família-de-santo” assume o lugar da famíliade sangue do africano, restabelecendo padrões marcadamenteafricanos de relação entre as pessoas, ao valorizaros mais velhos (detentores de mais sabedoria e de maisforça vital, pois estão mais próximos dos antepassados) eas crianças (representantes das gerações futuras, responsáveispela continuidade da tradição), assim como estabelecendoclaras diferenciações entre os papéis masculinose femininos no ritual. Para os descendentes de africanos,o candomblé representa a possibilidade da preservaçãoe reelaboração de uma tradição que se diferencia da culturahegemônica, cujos padrões e valores eurocêntricosestigmatizam e oprimem as maneiras de crer, ser, fazer,viver e conhecer africanas. Esta tradição constitui umtraço distintivo de sua identidade e é mobilizada pormovimentos sociais e políticos, na contemporaneidade,na reivindicação de direitos para a população negra.2. Prática de preservação e reelaboração do patrimôniocultural imaterial afro-brasileiroEssas maneiras de ser, crer, fazer, viver e conhecer, chamadasde ethos de um povo ou grupo social, fundadas emuma cosmovisão africana, traduziram-se em um conjuntode saberes que puderam ser preservados e reelaboradosnas comunidades-terreiro. Resguardados pelo candomblé,estes saberes muitas vezes transpuseram as fronteirasda religião e do grupo étnico-racial e espraiaram-se peloconjunto da sociedade, constituindo aspectos característicosda cultura brasileira. Muito do que somos e sabemosdevemos ao aporte cultural africano, cujo locus não exclusivo,mas certamente estratégico de preservação foramas comunidades-terreiro. Hoje se fala em salvaguarda dopatrimônio imaterial brasileiro, ou seja, do conjunto desaberes e saber-fazeres que nos singulariza como nação.Porém, muito antes de tal política de preservação ser umdesígnio do Estado brasileiro, quando ele ao contrário tinhao objetivo explícito de embranquecer o Brasil e depurar asmarcas africanas de nossa cultura, as religiões afro-brasileirasjá exerciam este papel fundamental de preservação

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!