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SETOR RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA

Material do Professor - Setor Religiosidade Afro-Brasileira

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CENTRO DE ESTUDOS <strong>AFRO</strong>-ORIENTAIS / UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA<strong>SETOR</strong> <strong>RELIGIOSIDADE</strong> <strong>AFRO</strong>-<strong>BRASILEIRA</strong>Projeto de Atuação Pedagógica e Capacitação de Jovens MonitoresMATERIAL DO PROFESSOR


APRESENTAÇÃOO Museu Afro-Brasileiro (M<strong>AFRO</strong>) foi inaugurado emjaneiro de 1982, fruto de um Programa de CooperaçãoCultural entre o Brasil e países da África. Seu acervo écomposto de esculturas, máscaras, tecidos, cerâmicas,adornos, instrumentos musicais e jogos africanos, quetestemunham a visão de mundo e os conhecimentostécnicos de diversos povos da África Ocidental e Central.Há também objetos de origem afro-brasileira, relacionadosàs divindades e sacerdotes do candomblé naBahia. Merece destaque especial o conjunto de talhas emcedro do artista plástico Carybé, retratando 27 orixás,que constitui uma das mais importantes obras da artecontemporânea brasileira.O M<strong>AFRO</strong> pretende ser um espaço de identidade e memóriada população afro-descendente. Desde sua inauguraçãoeste museu vem recebendo grande visitação de públicoescolar, procurado por educadores comprometidoscom a inclusão do povo negro à educação formal e com odireito que todos os brasileiros têm ao acesso ao conhecimentosobre uma de suas principais matrizes civilizatórias.Tais educadores vêm se colocando questões como: oque sabemos sobre a África? Que conhecimentos sobreo continente africano têm sido veiculados pela escolabrasileira? De que maneira o enorme patrimônio culturalbrasileiro de origem africana tem sido incorporadoao currículo? Como a escola aborda o papel dasreligiões afro-brasileiras na preservação e reelaboraçãodas culturas africanas no Brasil?Hoje, o Estado brasileiro já reconhece a legitimidadedessas proposições e a necessidade de introduzir modificaçõesnos currículos de ensino fundamental e médioque os tornem menos eurocêntricos, mais diversos e pluriculturais.Isto se evidencia nos temas transversais propostosnos Parâmetros Curriculares Nacionais, assimcomo na Lei 10.639/03, que altera a Lei de Diretrizes e Basesda Educação Brasileira (LDB) e dispõe sobre a obrigatoriedadedo ensino de história e culturas africanas e afro-brasileiras,e ainda nas Diretrizes Curriculares Nacionais paraa Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino deHistória e Cultura Africana e Afro-Brasileira.O desafio atual consiste em implementar no currículo ativodas escolas estas disposições da legislação educacional. OM<strong>AFRO</strong>, ao realizar o Projeto de Atuação Pedagógica eCapacitação de Jovens Monitores, pretende contribuircom o processo de implementação da Lei 10.639/03, visandoà eliminação do preconceito racial e à divulgação deconhecimentos acerca das culturas africanas e afro-brasileiras,através das seguintes ações:· Formação de jovens monitores afro-descendentes, oferecendo-lhesqualificação profissional e formação pessoal.· Disponibilização ao público escolar de roteiros educativosde visita monitorada ao M<strong>AFRO</strong>.· Elaboração e distribuição de materiais de apoio à açãoeducativa (para estudantes e professores atendidos peloprograma).Para tanto, realizamos uma ação educativa que privilegia:· A construção de imagens da África alternativas aos estereótiposdifundidos pela mídia e pela escola e divulgaçãode conhecimentos acerca da história dos africanos e afrodescendentes,com ênfase em dimensões essenciais de suavisão de mundo e de suas formas de organização social, evidenciadasnos objetos em exposição.· O combate à intolerância religiosa e valorização da diversidadecultural.· A realização de exercícios de leitura de objetos, provocandoo olhar para seus elementos formais e fornecendo infor-


mações de cunho histórico e cultural para a compreensão deseus significados.Este material, destinado ao professor, refere-se ao setorReligiosidade Afro-Brasileira da exposição do M<strong>AFRO</strong>. Elepretende oferecer subsídios a professores das escolasatendidas no Museu para preparação de atividades relacionadasà visita. Este material constitui-se, ainda, em recursode pesquisa para elaboração do planejamento noque tange ao ensino interdisciplinar de história e culturasafro-brasileiras. Ele contém:dialogada dos objetos, fornecendo-lhe informaçõeshistóricas e antropológicas sobre as sociedades queos produziram, para que ele possa, além de fruir esteticamentea visita, ter uma melhor compreensão dossignificados dos objetos em seu contexto original deprodução e consumo.Desejamos a todos uma agradável e proveitosa visita àsnossas raízes africanas e a seus frutos afro-brasileiros!· Um texto introdutório que apresenta o candomblécomo instrumento de preservação da história, dossaberes e da memória afro-baiana.· Fotografias de 15 objetos da exposição (14 das quaisconstam no Material do estudante).· Exercícios de leitura de imagem e informações específicassobre estas peças, passíveis de utilizaçãodurante e após a visita, em sala de aula.O texto introdutório aborda a importância do respeito àdiversidade cultural, étnico-racial e religiosa, sugerindoa adoção de uma postura ética e relativizadora peloseducadores ao tratar da religiosidade afro-brasileira.O candomblé é apresentado como herança cultural epatrimônio histórico da população negra da Bahia e comoprática religiosa que favorece a preservação ambiental.Há ainda neste texto uma breve conceituação sobre a artesacra afro-brasileira, a partir dos objetos que compõemo acervo do M<strong>AFRO</strong>.Durante a visita o monitor abordará alguns destes temas,a partir das peças da exposição. É importante frisar queo visitante desempenha um papel ativo neste processo,uma vez que o monitor não age como guia que apenas “deposita”seus conhecimentos, mas sim procura estimularo olhar e a percepção do visitante através de uma leitura


POR QUE CANDOMBLÉ?“Por que preciso aprender sobre o candomblé, se sou deoutra religião?”. “Por que o Museu Afro-Brasileiro tem objetosde candomblé?”. “Estes objetos não são perigosos?Se sou de outra religião, posso olhar e tocar neles?”. “Asentidades do candomblé não são malignas? Posso ouvir osmonitores do Museu Afro-Brasileiro falarem sobre elas?”.Estas são algumas questões que surgem com freqüênciadurante a monitoria do setor Afro-Brasileiro do Museu Afro-Brasileiro, por parte dos estudantes das escolas visitantes,e, às vezes, mesmo de alguns professores que trazem suasturmas para conhecer nosso museu.Essas dúvidas e os temores que as acompanham só podemser dissipados através do conhecimento sobre o queé realmente o candomblé, sobre o que significa para seuspraticantes e sobre sua importância para a história dopovo negro no Brasil. Mas a obtenção deste conhecimentodemanda uma atitude de abertura para com aquilo que édiferente, uma atitude não preconceituosa, que evita julgarantes de conhecer.Para compreender o candomblé e poder aproveitar a visitaao M<strong>AFRO</strong>, é preciso que os professores preparem seusalunos antes da visita, debatendo amplamente sobre estaquestão e ensinando aos alunos uma postura de respeitoà diferença, ou seja, às formas de ser, pensar, crer e viverque caracterizam pessoas diferentes de nós ou gruposdiferentes daqueles aos quais pertencemos, mas que nempor isso podem ser vistas como piores ou inferiores àsnossas próprias formas de ser, pensar, crer e viver.A DIVERSIDADE NO CURRÍCULO ESCOLAROs professores podem encontrar referências de como trabalharcom a diversidade cultural, étnico-racial e religiosana própria legislação educacional: os Temas Transversais


dos Parâmetros Curriculares Nacionais abordam estaquestão em diferentes momentos, especialmente nos temasPluralidade Cultural e Ética. Outro documento importanteé o Parecer CNE/CP nº003/2004, aprovado em 10/03/2004,que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para aEducação das Relações Étnico-Raciais e Ensino de Históriae Cultura Afro-Brasileira e Africana. Estes documentos estãodisponíveis em todas as unidades escolares e podemser encontrados nos sítios eletrônicos do MEC. Além disso,já há uma ampla bibliografia especializada sobre a temáticaafro-brasileira e sobre a diversidade cultural na educação,disponível no mercado.Depois que adentrou a legislação educacional, a diversidadecultural, antes nunca ou muito pouco debatida peloseducadores, está se tornando uma espécie de moda, umaexpressão cada vez mais recorrente no jargão da Educação.É importante, porém, evitar falar do “outro” comose ele fosse muito distante ou absolutamente diferente demim. Isto pode levar a uma postura que não é nada nova,mas apenas a reedição de algo muito comum: tratar o“outro” e sua cultura como algo folclórico, congelado notempo e no espaço, petrificado e exótico. Esta abordagemapenas acrescenta, de forma marginal, um simples adendoum tanto descartável ao que é considerado “currículode verdade”, ao “conteúdo tradicional”, que permanece,assim, intocado.Não basta abordar aspectos das culturas de origem africana,como a culinária, o samba e a capoeira no currículo,porém tratando-os como “manifestações folclóricas” ou“folguedos”. É preciso investigar a importância que taispráticas tiveram e têm para a constituição de uma identidadenacional e os significados particulares que assumirampara a conformação da identidade negra, enquantoformas de sociabilidade e práticas de resistência do povonegro. É preciso, igualmente, indagar como e por que taispráticas têm sido discriminadas e depreciadas, em prolde práticas culturais de origem européia. O que temosvalorizado como “conhecimento legítimo” para constarnos currículos? A seleção dos conteúdos curricularesdeve ser compreendida como uma operação política, umaquestão de poder que expressa uma disputa que silenciae invisibiliza alguns atores sociais, enquanto legitima econsolida outros.Aquilo que as crianças e adolescentes brasileiros aprendemna escola e que é tido como um conhecimento “universal”expressa na verdade valores, conhecimentos,hábitos e sensibilidades de apenas um segmento da sociedade,constituído pela camada dominante, representandoum patrimônio cultural feito por e para esta camada, reproduzidona escola com o objetivo de perpetuar tal estruturade poder.O desafio de aplicar a lei 10.639/03 constitui-se, assim, nãoapenas em incorporar novos conteúdos ao currículo, masem avaliar como o próprio currículo foi estruturado, a quaisinteresses corresponde e em que valores civilizatórios épautado. Esta lei traz a possibilidade de repensar o currículonão só como o quê se aprende, mas como se aprende, paraquê e para quem é destinada a educação escolar.Desta maneira, torna-se possível pluralizar a educação,adequando-a a sujeitos heterogêneos, levando em contaas diferenças culturais, étnico-raciais, religiosas, degênero e sexualidade, entre outras, existentes entre eles.O objetivo desta educação renovada é possibilitar a convivênciarespeitosa entre pessoas diferentes e criar realcondição de igualdade de oportunidades de aprendizagem.Para isso se tornar possível, porém, é necessário queos educandos compreendam como as diferenças entre aspessoas tornaram-se desigualdades ao longo do processohistórico, de que maneiras estas diferenças tornaram-semarcas distintivas de superioridade ou inferioridade. Aprincípio, ser branco ou negro é apenas uma diferença,


assim como ser católico ou do candomblé. Porém, umaeducação pluricultural deve problematizar como e por queser branco e cristão significa, na sociedade brasileira, sermelhor do que alguém negro e do candomblé. Apontandoas discriminações sofridas pelos “diferentes” em relação aopadrão hegemônico, a educação abre a possibilidade de quetais diferenças deixem de ser uma marca de desigualdade.CANDOMBLÉ E APRENDIZAGEM DORESPEITO À DIVERSIDADE CULTURAL,ÉTNICO-RACIAL E RELIGIOSAOs valores e crenças que divergem, contrastam e mesmose chocam com os nossos próprios valores e crençasconstituem o desafio, a “prova de fogo” para uma posturade respeito à diferença. Quando tratamos de religião, entramosem um campo em que são colocadas frente a frente formasde ver o mundo por vezes radicalmente diferentes. Estãoem jogo verdades tidas como absolutas pelos que crêemnelas, que explicam e dão sentido à própria vida destas pessoas.Esta crença íntima e profunda, esta forma de explicare dar sentido ao mundo tida como única e verdadeira, que éa religião, dá pouca abertura a considerar que a verdade ea forma de ver o mundo do outro possa ser tão válida quantoa nossa própria. Isso pode dar origem à intolerância, aodesrespeito e ao fundamentalismo religioso, tanto maisquando o alvo é uma religião historicamente marginalizada,à qual estão associadas também outras formas de discriminação(econômica, étnico-racial, sexual) que resultam emexclusão social de seus adeptos, como o candomblé.A religião é, com freqüência, uma forma de expressar relaçõesde poder e hierarquias sociais. A religião hegemônica,assumida muitas vezes como religião “oficial” de um país ouregião, é via de regra a do grupo social dominante, à qual osgrupos subalternos aderem por imposição ou como formade negociar com os dominantes possibilidades de inserçãosocial. No Brasil, o catolicismo, religião do colonizadorbranco, impôs-se aos negros e indígenas, cujas religiõesoriginárias foram discriminadas, proibidas, demonizadase perseguidas. O ensino e aprendizagem da diversidadeétnico-racial e religiosa tem de levar em consideração olugar das diferentes religiões no imaginário e na vidasocial, elemento essencial para compreender e investircontra o preconceito religioso.Uma postura ética e relativizadora é requisito paraconviver com pessoas de diferentes religiões e para aceitare respeitar sua forma diferente de ver o mundo. Estaaprendizagem não pode ser “espontânea”, na medida emque requer um esforço de racionalização e reflexãocrítica sobre a própria prática. O ensino da atitude éticae relativizadora é, desta forma, um dever da escola e doeducador. Para isso, o professor tem que primeiramenterever suas próprias práticas e valores, para depois podersuscitar, através do diálogo, tais atitudes em seus alunos.RELATIVIZAR E SER ÉTICOAssumir uma postura ética significa refletir sobre osvalores e normas que orientam o comportamento de pessoasde determinada sociedade e que pautam as regrasde sua convivência. Na sociedade democrática, assumemsealguns princípios, como a igualdade de todos perantea lei e o direito à livre expressão de idéias, pensamentose crenças, que constituem a base de um “contrato social”no qual os direitos e deveres mínimos dos cidadãosestão assegurados. Tais princípios são expressos na ConstituiçãoBrasileira e em documentos internacionais, como a DeclaraçãoUniversal dos Direitos do Homem.Desta forma, o professor deve levar o educando a refletir sobreseus valores e ações frente à coletividade, orientado portais princípios de convivência democrática. Os ParâmetrosCurriculares Nacionais, que propõem Ética como um dos te-


mas transversais da Educação Básica, sugerem que os professoresestimulem a adoção de “atitudes de respeito pelasdiferenças entre as pessoas”, “atitudes de solidariedade,cooperação e repúdio às injustiças e discriminações” pelosalunos e levem-nos a “valorizar e empregar o diálogo comoforma de esclarecer conflitos e tomar decisões coletivas”.Tais reflexões são indispensáveis para orientar os estudantes,antes da visita ao M<strong>AFRO</strong>, acerca da diversidade religiosaexistente no Brasil e da postura a adotar frente a ela.Relativizar significa perceber que nossos valores culturaisnão são universais nem absolutos. Temos a tendênciaa pensar que nossa forma de ser e viver é “normal”,“natural”, enquanto a dos outros é “estranha”, diferente”,“anormal”, “exótica”. Quando se diz “nossa forma de ser”,não se trata de uma característica individual. Esta expressãorefere-se à forma de ser, agir e pensar de pessoasdo nosso grupo étnico, de nossa religião, do nosso país ouregião, de nossa orientação sexual ou de nosso gênero,entre outras categorias que nos posicionam na sociedade.Normalmente, não questionamos por que somos como somos,ou por que vivemos como vivemos. Isto é para nós umdado de realidade: “é assim porque é”, diriam muitos.Por outro lado, estamos sempre buscando explicaçõespara os hábitos e comportamentos dos outros: por que oschineses comem insetos? Por que alguns grupos indígenaspintam o corpo ou perfuram os lábios? Por que os judeusfazem circuncisão? Por que os muçulmanos ficam um mês(o Ramadan) sem comer durante o dia? Por que a mulheresficam nervosas antes da menstruação? Por que alguns homense mulheres têm preferência por pessoas do mesmosexo? Tudo parece tão estranho...Relativizar, assim, significa deixar de considerar que taishábitos, comportamentos, crenças e práticas dos outrossão “estranhos”. Significa aceitar que eles são apenasdiferentes dos nossos, mas não inferiores, anormais oudesviantes. Eles fazem sentido e cumprem importantesfunções sociais em suas respectivas sociedades, são respostasculturais diferentes encontradas para problemashumanos comuns.Ao mesmo tempo, relativizar implica também em adotaruma postura mais “desconfiada” em relação aos nossospróprios comportamentos, crenças e práticas, percebendoque eles não são “naturais”, mas sim fruto de circunstânciashistóricas específicas. Será que é “normal” comerum alimento feito com mais de uma dezena de substânciasquímicas que podem ser prejudiciais à saúde, comogrande parte dos alimentos industrializados? Será que é“normal” uma sociedade produzir centenas de milhões detoneladas de lixo por dia que não podem ser absorvidaspela natureza e acabam contaminando o ar, a água e osolo? Será “normal” uma mulher passar a vida torturandosepsicologicamente por causa da medida de sua cintura esubmeter-se até mesmo a uma perigosa cirurgia como alipoaspiração, em nome de ter um “corpo perfeito”? Seráque em outras sociedades, em outros tempos e em outroslugares as pessoas achariam essas coisas “normais”? Oque uma mulher indígena acharia de nosso padrão de belezae da lipoaspiração? O que uma pessoa de uma sociedadeagrária da Antigüidade acharia do lixo produzido pelo modode vida das sociedades industriais contemporâneas?Relativizar, portanto, requer que dirijamos nossas perguntas,nossos “porquês” a nós mesmos, tentando desnaturalizarnossa própria cultura, ou seja, tentando investigarnossa cultura como coisa “estranha”, lançando um olharcurioso sobre ela, um olhar que pressupõe um deslocamento:saímos de nossa posição e tentamos nos colocar naposição do “outro” para olharmos sob um ângulo diferentepara nós mesmos, tentando perceber por que vivemos comovivemos, quando e como passamos a viver assim, quais osinteresses que motivam este modo de vida. Isso nos levará,inevitavelmente, a perguntar quem somos nós.


Isto nos ensina algo sobre nossa identidade: ela só se definea partir da comparação e do contraste com o “outro”.É a partir da percepção da diferença do outro que conseguimossaber quem somos nós. Desta forma, não existeuma identidade absoluta: ela sempre é relativa a outros,diferentes de nós.A aprendizagem do respeito à diversidade cultural, étnicoraciale religiosa é, desta forma, o primeiro dos temasabordados na visita ao Setor Religiosidade Afro-Brasileirado Mafro. Este tema é o fio condutor que permite umoutro olhar para o candomblé e o reconhecimento de suaimportância para a história da resistência negra e paraa preservação e reelaboração das culturas africanas noBrasil. Consideramos esta aprendizagem de tamanha importânciaque, por si só, já justificaria uma ação educativaem museu centrada na religiosidade afro-brasileira.Sabemos, no entanto, que pode não ser fácil romper asresistências de alguns alunos que, pertencendo a certasigrejas cristãs, reproduzem a atitude discriminatória quecaracteriza a forma como as religiões de matriz africanasão tratadas pelas mesmas. Uma maneira de desmontareste tipo de atitude e reverter os prejuízos que acarretaà formação de crianças e adolescentes é mostrar comoeste discurso foi construído e a quais interesses historicamentetem servido.A DISCRIMINAÇÃO DAS RELIGIÕESDE MATRIZ AFRICANA COMO PRÁTICARACISTAAs religiões de matriz africana sempre foram vistas pelasociedade branca dominante de forma discriminatória: inicialmentecomo feitiçaria e manifestação demoníaca, depoiscomo prática criminosa e finalmente como índice depatologia psíquica, de doença mental.


Desde o início da colonização, os africanos foram consideradospela Igreja Católica como seres sem alma, próximos aosanimais, que portanto poderiam ser escravizados e tratadoscomo coisas, como “peças”. Era necessário justificar de algumaforma a prática criminosa da escravização, e o únicoargumento seria negar aos africanos a própria condiçãohumana, classificando-os como selvagens que desconheciama organização política, as leis, a moral e a religião. A fécristã era considerada, evidentemente, a única verdadeira.As religiões africanas foram classificadas como prática defeitiçaria que, no período da Inquisição, era punida com amorte na fogueira.A demonização das religiões africanas surge, assim, comoestratégia de manutenção dos interesses econômicos epolíticos da elite branca, que defendia a escravidão comoprática benéfica, que ajudaria a civilizar e converter à “verdadeirafé” os “infiéis” africanos. Classificar as religiõesafricanas como “coisa do demônio” foi o álibi para promovere legitimar a cristianização e a escravização,mantendo os privilégios dos senhores brancos à custa daexploração do trabalho, da tortura e assassinato de milhõesde africanos e seus descendentes durante mais de 300 anos.Impedir o culto religioso era também uma forma de evitarque os africanos se juntassem e planejassem possíveisrebeliões, fugas ou crimes contra seus senhores. Assim,durante o Império, a proibição das religiões de matrizafricana deixou de ser apenas uma questão religiosae passou a constar no código criminal, pois eram consideradasuma ameaça ao Estado e ofensivas à moralpública. Os candomblés tornaram-se alvo de perseguiçõespoliciais, que invadiam os templos, destruíam ou apreendiamos objetos de culto e prendiam os fiéis.Esta prática de repressão policial manteve-se uma constanteaté meados da década de 1930, quando o candomblé deixoude ser proibido a partir do decreto nº 1.212, assinado porGetúlio Vargas após uma negociação feita pessoalmentecom Mãe Aninha, sacerdotisa do Ilê Axé Opó Afonjá. Mesmoassim, apenas em 15 de janeiro de 1976, durante o governode Roberto Santos, é que foi decretada a lei de nº 25.095,que desvinculava os terreiros baianos da jurisdição policial,acabando com a exigência de que fossem registradosna Delegacia de Jogos e Costumes.Desde o final do século XIX, já no contexto da República eapós a abolição, com o advento de novas idéias “científicas”,as religiões de origem africana passaram a ser consideradascomo manifestações de distúrbios psíquicos. É no séculoXIX que surge o conceito de “raças humanas”. Segundoseus propagadores, cada “raça” caracterizava-se não sópor um conjunto de traços físicos, como tipo de cabelo, corda pele, formato do crânio, do nariz, prognatismo facial, entreoutros, mas também por um conjunto de característicaspsicológicas e padrões de comportamento.Surge assim uma nova ciência – a Antropologia – que se propunhaa descrever e analisar minuciosamente as diferençasentre os grupos humanos, instituindo uma hierarquia quesituava os brancos no topo da escala civilizatória da humanidade,atribuindo-lhes características como inteligência,liderança, coragem, determinação, organização comoqualidades inatas e naturais. Inversamente, negros eindígenas foram caracterizados como “naturalmente”preguiçosos, indolentes, covardes, brutos, incapazesde raciocínio lógico, propensos ao crime e a distúrbiospsicóticos. Percebe-se desta forma que a ideologia racistaque atribui inferioridade aos negros, antes fundamentadana teologia cristã que os considerava infiéis, agora érespaldada pela ciência positivista e evolucionista.As religiões de matriz africana eram vistas pela nova ciênciacomo prova da irracionalidade e do atavismo dos negros.Pioneiro dos estudos africanos no Brasil, o médicolegista Nina Rodrigues foi o primeiro a afirmar que o transe


de possessão no candomblé era na verdade um estado de“sonambulismo mórbido”, relacionado também à histeria,que deveria ser tratado psiquiatricamente. Neste momentoconcorriam duas visões racistas sobre o candomblé: paraalguns, juristas e policiais, o candomblé continuava a seruma prática criminosa que deveria ser reprimida. Para osmédicos psiquiatras, ele era manifestação de doença mentale assim devia ser tratado.Demoníacos, criminosos, loucos: assim têm sido consideradosos praticantes de religiões de matriz africana no Brasil,desde o início da colonização. O Brasil, país majoritariamentenegro, mas que se representa como branco; país profundamentemarcado pelas culturas africanas, mas que valorizae legitima apenas o legado cultural europeu, considerado oúnico relevante e necessário à socialização, portanto o únicoa constar no currículo escolar; neste país, ser adepto do candomblésignifica lutar pela preservação de uma memória,de uma história e de um conjunto de saberes que têm sidosistematicamente invisibilizados, que a sociedade branca hegemônicavem tentando eliminar há séculos, e que no entantotêm corajosamente resistido, devolvendo sentido à vidadesenraizada dos africanos escravizados, reconstruindo amemória fragmentada dos escravos crioulos das práticasculturais de seus ascendentes, criando laços de solidariedadeque permitiram que os negros sobrevivessem à imensaviolência física e simbólica da escravidão.CANDOMBLÉ COMO HERANÇA CULTURALE PATRIMÔNIO HISTÓRICO DA POPULAÇÃONEGRA DA BAHIAÉ, assim, importante que o professor demonstre aos estudantesque, independentemente da adesão religiosa decada um, é necessário saber sobre o candomblé para entenderaspectos cruciais da história do Brasil e da culturabrasileira. É preciso ficar claro que a visita monitorada doMafro não abordará o candomblé a partir de uma perspectivareligiosa ou teológica, discutindo seus dogmas e fundamentos,mas sim a partir de uma perspectiva histórica,sociológica e antropológica. Deve-se assegurar aos estudantesque saber sobre outra religião não implica em uma“conversão” a esta outra, nem muda nada na fé que elesprofessam à sua própria. A ação educativa do Mafro entendeo candomblé como:1. Prática de reestruturação das famílias africanas noBrasil e de reatualização da cosmovisão africanaO candomblé é uma religião afro-brasileira, ou seja, surgidano Brasil a partir de elementos de diversas religiõesafricanas, trazidas para cá pelos africanos escravizados. Aformação desta religião foi longa: começou com o desembarquedos primeiros africanos, em meados do século XVI,passando por diversas mudanças até chegar, no final doséculo XIX, a uma forma de ritual semelhante à que existeatualmente. Esta religião, como outras, continua em transformação,adaptando-se à vida contemporânea, mas semperder seus vínculos com as tradições africanas de queé herdeira. Estas tradições vieram de povos e de lugaresdiferentes na África: dos povos bakongo, mbundo e ovimbundo,de Angola e do Congo; do povo fon (ou jeje), doBenin; do povo yoruba (subgrupos nagô, ketu, ijexá), daNigéria e do Benin, entre outros. No Brasil, estas tradiçõesse sincretizaram entre si e por vezes com tradições indígenase com o catolicismo.Para compreender melhor como se deu a formação do candomblé,é preciso entender o processo histórico do tráficonas duas regiões que forneceram o maior número de africanosescravizados ao Brasil e às Américas, o Golfo do Benine a África Centro-Ocidental. Para isso, consulte o Materialdo Professor referente ao Setor África do M<strong>AFRO</strong>, nositens “A África no Brasil: os ‘sudaneses’ do Golfo do Benin”e “A África no Brasil: os povos bantu”. É preciso lembrarque durante mais de dois séculos, de meados do XVI a fins


do XVIII, houve predomínio absoluto dos escravizados deorigem bantu. Só a partir de então tornou-se significativo,até ser predominante, o tráfico do Golfo do Benin, especialmentepara a Bahia. Este fato vai introduzir as divindades – osorixás – e o modelo ritual dos yoruba na religiosidade afrobrasileirajá em adiantada formação, modificando-a e instituindoum novo modelo de culto, já semelhante ao atual.No Material do Professor do Setor África encontram-setambém informações sobre as formas de organização sociale política nas sociedades africanas, mostrando que apertença a uma família, a uma linhagem, é que determinavao lugar que um indivíduo ocupava na sociedade, suaprofissão, a pessoa com quem se casava, a forma comovivia. Além disso, havia um permanente contato com osmembros já mortos da família, os ancestrais, vistos comoresponsáveis pelo bem-estar dos vivos. Esta relação estabelecia-sepor meio de um culto, assentado em um territórioque, sendo a morada dos ancestrais, balizava a existênciados vivos, abrangendo elementos da natureza como rios,lagos, pedreiras, matas. Este território adquiria, assim,dimensões sagradas.A escravidão destruiu tanto os laços de parentesco quantoas referências territoriais dos africanos, as duas instânciasque conferiam significado a suas vidas. Desterrados, separadosde suas famílias, a travessia do mar (chamado de Kalungapelos bantu) significava, para a maioria deles, a morte.Mesmo quando sobreviviam, aquela vida que tinham em suaterra já não existia aqui, do outro lado do Atlântico.Chegando aqui, os africanos, especialmente os que permaneceramnas cidades como escravos urbanos, em diversoscontextos procuraram reconstruir suas vidas, criandoassociações e grupos de auxílio mútuo fundados na solidariedadeétnica, ou seja, grupos que reuniam escravizadosprovindos do mesmo grupo étnico ou pelo menos deregiões próximas. Estes laços eram o mais próximo que sepodia chegar da família de sangue, uma vez que esta nãopodia ser reconstituída. Exemplos deste tipo de associaçãoforam algumas irmandades católicas de homens pretos,que amparavam seus membros, auxiliando-os financeiramenteem caso de doença ou para seus sepultamentos, eos cantos de trabalho, que reuniam homens escravizadosde uma mesma etnia, que faziam diversos tipos de serviçomanual, contratados por jornada. Acredita-se ainda quealguns quilombos tenham se originado a partir de umgrupo de escravos pertencentes ao mesmo grupo étnico.Algumas rebeliões escravas, como a Revolta dos Malês,ocorrida em 1835 na Bahia, também foi alicerçada em laçosétnicos e religiosos, uma vez que a maioria dos revoltososeram nagôs muçulmanos.Percebemos assim que os africanos tentaram reconstruirno Brasil seus vínculos étnicos e culturais, constituindoorganizações por etnias ou “nações”: jejes, nagôs, angolas,cabindas, benguelas, congos e outros. Note-se que“nação” era o termo usado pelos brancos, inicialmente pelostraficantes de escravos, para referir-se à procedência dosafricanos, mas indica apenas o porto de embarque, e não ogrupo étnico ao qual o africano pertencia. Assim, “angola”pode referir-se à etnia mbundo, mas igualmente pode tratarsede um imbangala ou mesmo alguém de grupos étnicosdistantes do litoral, mas igualmente envolvidos nas redesdo tráfico, como os lunda ou tchokwe. Uma vez embarcadospelo porto de Luanda, todos tornavam-se “angolas”.No Brasil, porém, os escravizados passaram, com o tempo,a designar-se a si próprios usando o nome da “nação”, criandoinclusive os grupos de auxílio mútuo mencionadosacima com base em tal identificação. No século XIX foramcriadas comunidades religiosas baseadas, também, nestaidentificação por nação. Assim, surgem os terreiros decandomblé das nações congo, angola, nagô, ketu, jejemina,jeje-mahin, entre outros. Com o passar do tempo,porém, os terreiros vão englobar adeptos de diferentesprocedências étnicas, inclusive crioulos (negros nasci-


dos no Brasil) e mestiços. A “nação” irá tornar-se, então,uma designação da tradição religiosa predominante adotadapelo terreiro, sem que necessariamente todos ou amaioria de seus membros sejam daquele grupo étnico ouseus descendentes. Na própria estrutura do culto tambémocorrerá um amálgama de tradições e práticas religiosasafricanas, homogeneizando de certa forma o modelo ritualsob a influência yoruba, porém mantendo em geral o predomíniode uma das tradições.De uma “nação de candomblé” para outra, mudam as divindadescultuadas: os terreiros de tradição congo e angolacultuam inquices, os de tradição jeje cultuam voduns eos de tradição nagô ou ketu cultuam orixás. Mudam tambéma língua usada nas cantigas e saudações, as cores dascontas, o nome dos cargos das autoridades religiosas, ascomidas oferecidas... ou seja, há muita diversidade dentrodo próprio candomblé.Na história dos estudos afro-brasileiros houve uma predominânciados estudos acerca dos terreiros nagô ou ketue uma maior valorização destes frente aos de matriz bantu.Grandes especialistas da área, desde o próprio Nina Rodriguesa Arthur Ramos, Manuel Querino, Roger Bastide,Pierre Verger, Ruth Landes, entre tantos outros, dedicaramsequase exclusivamente ao estudo da tradição dos orixáse pouca atenção deram aos candomblés congo-angola emesmo jeje. O Museu Afro-Brasileiro também é fruto destatradição intelectual, o que se reflete em nosso acervo, compostoem sua grande maioria por peças africanas da regiãodo Golfo do Benin (yoruba e fon) e por peças do candombléketu, usadas no culto de orixás. Cientes desta lacuna, ressaltamosa importância de evidenciar a existência de diversastradições culturais e religiosas no candomblé, cadaqual com suas especificidades, nem sempre passíveis detradução ou equivalência entre si. Sem tal reconhecimento,não se pode considerar de maneira efetiva a diversidadeque constitui a riqueza das religiões de matriz africanana Bahia. Há, porém, pontos fundamentais que as unem,permitindo que o povo-de-santo se articule na defesa datradição do culto aos orixás, voduns e inquices.Na África, a religião não era uma esfera separada da vida,mas sim uma forma de ver o mundo que articulava os aspectossociais, econômicos e políticos da vida das comunidades.Seria mais preciso, segundo alguns especialistas,falar não em religião, mas em religiosidade, ou mesmo emcosmovisão, ou seja, visão de mundo africana, já que nãose tratava apenas de relação ou religação com Deus oucom o sagrado, mas de uma forma de conhecer o mundo,de classificá-lo e compreendê-lo, uma forma de estabelecerhierarquias sociais, de exercer e legitimar o poder, de regularas trocas de mercadorias e as trocas simbólicas.A despeito das significativas diferenças entre os povos quepara cá vieram, todos têm em comum uma cosmovisãobaseada na existência de um Deus todo-poderoso, que éa fonte de toda a vida e de toda a força vital. Na tradiçãonagô e ketu chama-se Deus de Olodumare ou Olorum; natradição jeje chamam-no de Mawu e na congo-angola deNzambi. É comum a todos, também, a crença na existênciade intermediários entre Deus e os homens. Acredita-se queDeus é distante e poderoso demais para poder se chegardiretamente até ele, por isso precisa-se de intermediários,que são os orixás, voduns e inquices. Eles representam aomesmo tempo forças da natureza, como entidades patronasligadas a certos locais sagrados, e ancestrais muitoremotos de diversas linhagens ou de um subgrupo étnico,que por isso são divinizados. Para todos os africanos vindospara cá também era importante o culto aos ancestraismais recentes, membros da família ou da comunidadereligiosa, que ao morrer passam a zelar pelos vivos,assim como os orixás, voduns e inquices.Todas estas entidades precisam, em contrapartida, sercuidadas e homenageadas, através de oferendas de co-


midas e bebidas e da realização de cerimônias nas quaisa música dos atabaques faz com que elas se manifestem,dançando e transmitindo sua força vital – seu axé – eproteção aos homens. Assim podemos entender aspectospouco compreendidos das religiões de matriz africana, osacrifício e o transe. Acredita-se que as plantas, animaise minerais possuem força vital (axé). A materialidade éum aspecto fundamental das oferendas, pois a matéria éveículo da força vital, especialmente alguns fluidos, comoo sangue animal e a seiva dos vegetais. Estas substânciassão consagradas e oferecidas, ou seja, sacrificadas, aosorixás/voduns/inquices ou aos ancestrais, estabelecendouma troca entre eles e os vivos, visando a manutenção doequilíbrio e do bem-estar na Terra. A negligência com oscuidados, na forma de oferendas, para com as divindades eancestrais rompe este equilíbrio e deixa os vivos sujeitos aacontecimentos desfavoráveis ou perigosos, à doença, esterilidade,infortúnio e morte.É importante saber que os animais sacrificados são depoisconsumidos na refeição ritual durante a cerimônia.Com exceção das vísceras e algumas partes específicas,como pés e cabeça, as que contém mais força vital, quesão reservadas às divindades e colocadas em seus altares,o resto é preparado com o delicioso tempero da cozinhaafro-brasileira, complementado por feijão fradinho, milho,caruru, acarajé, abará, e compartilhado por todos que comparecemà festa, sejam eles membros do terreiro ou não.Outra coisa também é necessária: trazer as divindades àpresença dos vivos, incorporadas em seus filhos iniciadosem seu culto. Neste momento de comunhão, que constituias cerimônias públicas, os vivos celebram e partilham,dançando e comendo, a transmissão da energia vital comsuas divindades. Isto faz com que a festa seja um aspectocrucial das religiões afro-brasileiras. Estendemos assimde onde vem o “jeito festeiro” dos baianos, nossa culturade festa, na qual não se pode facilmente separar aspectos


profanos dos sagrados, pois esta separação, existente nacosmovisão cristã, não faz sentido na cosmovisão africana,na qual comer, beber, dançar, tocar os instrumentos depercussão são atos litúrgicos.O terreiro, espaço sagrado, separado da sociedade envolvente,ou seja, da sociedade onde os brancos exerciamhegemonia cultural, econômica e política, era o espaçode uma comunidade que pôde preservar e recriar formasafricanas de ser e viver, no qual a cosmovisão africana(yoruba, jeje ou bantu) ganhou novos significados,produzindo sentidos e criando vínculos de solidariedade,afetividade e poder entre seus membros.Ainda que nunca tenham se mantido isoladas da sociedade,as comunidades-terreiro estabelecem:. Uma temporalidade própria, baseada em uma percepçãocíclica da existência;. Uma espacialidade própria, pois o espaço é sacralizadoe prenhe de significados. A relação com a natureza é pautadana cosmovisão africana, na qual cada elemento naturalcorresponde ao arquétipo de uma divindade;. Relações de poder próprias, nas quais a hierarquia éestabelecida com base no saber e na senioridade, ou seja,quanto mais “velha de santo” uma pessoa é, mais sábia éconsiderada, portanto mais poder acumula, expresso noscargos que assume no terreiro. A intrincada hierarquia doterreiro determina funções bem diferenciadas para cadaum, de acordo com o tempo de iniciação e o gênero domembro. Há ainda um outro fator definidor de seu papelnesta estrutura: entrar ou não em transe de possessãopelo orixá, uma vez que o culto só é possível se houver aquelesque incorporam e aqueles que não incorporam o orixá eajudam a cuidar dos primeiros durante as cerimônias.Assim, a “família-de-santo” assume o lugar da famíliade sangue do africano, restabelecendo padrões marcadamenteafricanos de relação entre as pessoas, ao valorizaros mais velhos (detentores de mais sabedoria e de maisforça vital, pois estão mais próximos dos antepassados) eas crianças (representantes das gerações futuras, responsáveispela continuidade da tradição), assim como estabelecendoclaras diferenciações entre os papéis masculinose femininos no ritual. Para os descendentes de africanos,o candomblé representa a possibilidade da preservaçãoe reelaboração de uma tradição que se diferencia da culturahegemônica, cujos padrões e valores eurocêntricosestigmatizam e oprimem as maneiras de crer, ser, fazer,viver e conhecer africanas. Esta tradição constitui umtraço distintivo de sua identidade e é mobilizada pormovimentos sociais e políticos, na contemporaneidade,na reivindicação de direitos para a população negra.2. Prática de preservação e reelaboração do patrimôniocultural imaterial afro-brasileiroEssas maneiras de ser, crer, fazer, viver e conhecer, chamadasde ethos de um povo ou grupo social, fundadas emuma cosmovisão africana, traduziram-se em um conjuntode saberes que puderam ser preservados e reelaboradosnas comunidades-terreiro. Resguardados pelo candomblé,estes saberes muitas vezes transpuseram as fronteirasda religião e do grupo étnico-racial e espraiaram-se peloconjunto da sociedade, constituindo aspectos característicosda cultura brasileira. Muito do que somos e sabemosdevemos ao aporte cultural africano, cujo locus não exclusivo,mas certamente estratégico de preservação foramas comunidades-terreiro. Hoje se fala em salvaguarda dopatrimônio imaterial brasileiro, ou seja, do conjunto desaberes e saber-fazeres que nos singulariza como nação.Porém, muito antes de tal política de preservação ser umdesígnio do Estado brasileiro, quando ele ao contrário tinhao objetivo explícito de embranquecer o Brasil e depurar asmarcas africanas de nossa cultura, as religiões afro-brasileirasjá exerciam este papel fundamental de preservação


viva, ativa, incorporada e dinâmica deste patrimônio cultural,precioso para todos, negros e brancos, neste país. Talpatrimônio constitui-se de diversos saberes: culinários,medicinais, lingüísticos, artísticos.A cozinha ritual do candomblé atualiza as formas depreparar os alimentos na África (usando muitas vezes otrabalho coletivo das mulheres), utiliza ingredientes iguaisou semelhantes aos africanos e reproduz formas de comerafricanas (“comer de mão”, comer na gamela). Na Bahia,aquilo que é conhecido como “comida baiana”, a “comidade azeite”, importante capital cultural e fonte de atraçãode turismo gastronômico para o estado, é na verdade umaderivação da “comida de santo”, da comida oferecida àsdivindades, que obedece às preferências e tabus de cadauma delas, segundo os mitos e poemas orais da tradiçãoafro-brasileira. O acarajé é o acará, oferecido a Iansã etradicionalmente preparado por suas filhas que exercema profissão de baiana de acarajé, importantíssima na provisãodo sustento de tantas famílias negras. O caruru é umaversão ligeiramente modificada do amalá, comida ritual deXangô. Em outros casos, ocorreu uma apropriação criativade ingredientes brasileiros, especialmente o milho e a mandioca,usados abundantemente na alimentação indígena,para fazer as comidas de santo, como o milho branco ou apipoca, o que testemunha as trocas culturais estabelecidasentre negros e indígenas e o caráter dinâmico da culturaafro-brasileira.Na medicina afro-brasileira, o uso de plantas de valormedicinal na forma de chás, infusões, banhos e emplastosrevela um imenso conhecimento da natureza, fruto decentenas de anos de observação e experimentação de seusefeitos terapêuticos. É importante ressaltar este aspectodas culturas africanas, uma vez que elas são mais conhecidaspor suas feições artísticas e estéticas, mas pouco sefala de seus conhecimentos científicos. A ciência ocidental,de uma forma geral, representa-se como a única ciênciaque há, como se todo o conhecimento da natureza e todoo desenvolvimento tecnológico fossem sua prerrogativaexclusiva, enquanto que as culturas africanas e indígenasseriam marcadas pela ausência de pensamento analítico,abstrato, por uma característica pré-lógica que revelariaseu “primitivismo”.Tais estereótipos, com ranços evolucionistas, são contestadospela grande procura na atualidade, pelos própriospaíses do Ocidente industrializado, do conhecimento sobre anatureza que outros povos vêm desenvolvendo há milênios,auferindo grandes lucros para instituições de pesquisase laboratórios farmacêuticos multinacionais através dapatente de plantas medicinais, com as quais os verdadeirospesquisadores africanos e indígenas nada ganham.O uso das plantas no candomblé assinala uma outra concepçãode saúde e oferece formas de tratamento maisnaturais e holísticas. A doença não é vista como disfunçãofísico-química, mas como conseqüência de um desequilíbrioque envolve as múltiplas dimensões da pessoa, nãosó nosso corpo físico, mas também nosso duplo espiritual,acarretando a diminuição da força vital – concepção quetem sido corroborada por práticas medicinais alternativas,menos comprometidas com a indústria médica, hospitalare farmacêutica, no próprio Ocidente. O restabelecimentoda saúde implica em restaurar o equilíbrio na relação comas divindades e ancestrais, instando-os a agirem a favordos vivos. Há um provérbio yoruba que diz “kosi ewé, kosiorisa”, “sem folha não há orixá”, o que nos mostra que asfolhas estão presentes em todos os rituais. Para além deseus usos terapêuticos, as plantas são parte central dosfundamentos da religião, cujo conhecimento está sob aguarda do orixá Ossaim.As línguas africanas (kimbundo, kikongo, yoruba e fon,principalmente) mantiveram-se em uso nos terreiros,nas saudações, cantigas, provérbios, contos, poemas, nos


títulos da hierarquia do terreiro e no nome iniciático deseus membros, no nome de plantas, animais, alimentos,objetos de culto e inúmeros outros vocábulos. Evidentementeinúmeras palavras africanas, especialmente daslínguas bantu, incorporaram-se ao português brasileiro, deforma que sua origem africana é quase imperceptível paraa maioria de seus falantes. Mas o terreiro preservou maisque vocábulos ou formas de construir as frases: preservouseum grande corpus literário transmitido oralmente, degeração em geração de iniciados, sob as condições maisadversas, com o mero recurso à memória de alguns indivíduos,em meio a uma sociedade que estigmatizava e proibiasua expressão.O enorme número de cantigas, a extensão dos poemasorais, a variedade dos mitos e dos provérbios na tradiçãoafro-brasileira seriam espantosos, não fosse sabido o papelcentral que a tradição oral ocupa nas sociedades africanas.Ao longo dos séculos, foram desenvolvidos mecanismosmnemônicos e recursos de apoio à transmissão oral, atravésdo uso de símbolos gráficos presentes em inúmeros tiposde objetos e suportes, como esculturas, máscaras, pinturasmurais, desenhos na areia, decoração arquitetônica, insígniasde chefia, adornos, utensílios, instrumentos musicais,penteados, tatuagens, escarificações, dentre outros. Tudoisso nos mostra que, como exposto no Material do Professordo Setor África, os povos africanos desenvolveram formasde escrita pictográficas e ideográficas, revelando aomesmo tempo uma prodigiosa habilidade de memorizar aliteratura oral e uma enorme capacidade de acionar essamemória através de símbolos gráficos. Isto nos permitecompreender um dos sentidos das expressões plásticasafricanas e afro-brasileiras, que examinaremos a seguir.Outro recurso fundamental utilizado para a memorizaçãoe exata transmissão da tradição oral é a música: aliteratura oral é ritmada e muitas vezes apresenta-se emforma de canções e/ou acompanhada de instrumentos musicais.A música também estabelece a comunicação com


os ancestrais, que comparecem às cerimônias chamadospelos instrumentos, o adjá (sino) tocado pela sacerdotisaou sacerdote e os atabaques consagrados, que são saudadose respeitados como as próprias divindades queajudam a manifestar. Ao seu som, as divindades dançam,dotando o transe de corporeidade e transformando a cerimôniareligiosa em uma performance ritual na qual estãoenvolvidos todos os aspectos da herança cultural africana:a música, a literatura oral na forma de cantigas, a dança,a culinária ritual.A musicalidade e o “jeito de corpo”, tão peculiaresao brasileiro e especialmente ao baiano, devem-se aesta herança. Ao contrário da tradição cristã que opõediametralmente corpo e espírito, estabelecendo um idealde comportamento no qual o corpo é sublimado, as culturasafricanas têm a performance das divindades, atravésdas máscaras e/ou do transe de possessão, como elementocentral de sua religiosidade. Nesta performance, o corpotorna-se o receptáculo da divindade, e sua expressãoatravés da dança reencena e atualiza os mitos de criação,reafirma seus pactos com os vivos e dispensa a estes aforça vital e a proteção necessárias a seu bem-estar. Adança e a música são sagradas, assim como a sensualidade– a percepção através dos sentidos e seu exercício.Muitos dos que se aproximavam do candomblé, noentanto, marcados pela formação cristã e pelo etnocentrismo,não conseguiam entender este aspecto econdenavam as cerimônias como “libertinas”, “lascivas”,“indecentes”. A despeito de seus equivocados eideológicos juízos morais, no entanto, a corporalidadebrasileira é indelevelmente marcada pela herança africana.Nossa “ginga”, presente não apenas na dança, masna forma de caminharmos, de jogar futebol, e em tantasoutras expressões corporais; a maneira de nos tocarmosao nos cumprimentarmos, e até mesmo o jeitode ficar parado, de pé ou sentado, são marcadamenteafro-brasileiros.


Da mesma forma, é quase uma banalidade dizer que nossorico e variado patrimônio musical deve-se fundamentalmenteà música afro-brasileira. No caso da música sagradadas religiões afro-brasileiras, ela sempre influenciou e relacionou-secom outras expressões da música negra, comoo samba, o jongo, os maracatus, as cantigas de capoeira,o tambor de crioula, para as quais, como para tudo na culturaafro-brasileira, não se pode estabelecer uma claraseparação entre “sagrado” e “profano”. Trata-se na verdadede uma outra concepção de sagrado e outras formasde relacionar-se com ele.De todas as expressões musicais afro-brasileiras, as maisdiretamente influenciadas pela música sacra do candomblésão as dos afoxés e, depois, dos blocos afro. Os afoxés, aocontrário do que pensam alguns, existem desde o séculoXIX, derivados dos cortejos de reis congos, desaparecidosna Bahia mas ainda muito presentes em Minas Gerais, EspíritoSanto e São Paulo. Em 1949 foi fundado o mais famosodestes grupos, o Afoxé Filhos de Gandhi, por trabalhadoresdo porto de Salvador, sintonizados com as lutas anti-coloniaisem curso do outro lado do mundo, na Índia. Em 1974surgiu o primeiro bloco afro, o Ilê Aiyê, no bairro do Curuzu,Liberdade, presidido por Vovô, um trabalhador do pólopetroquímico, filho de uma ialorixá e sobrinho-neto de ummembro de um afoxé das primeiras décadas do século XX.O Ilê foi logo seguido por outros blocos afro, como o Malêde Balê, Olodum, Muzenza e vários outros, surgidos nosanos 1970 e 80, mas que se desintegraram até os anos 90.É comum ouvir-se afirmar que o afoxé é o “candomblé narua”, caracterizado pelo ijexá, um dos ritmos característicosda música do candomblé, o qual também marca osamba-reggae, ritmo híbrido dos blocos afro que sintetizadiversas musicalidades negras da diáspora. Afoxés e blocosafro tornaram-se os principais personagens de um movimentocultural e político de “reafricanização” do carnavalbaiano, a partir de meados dos anos 1970, em que a músicae a performance carnavalesca converteram-se em instrumentopara ocupar o espaço público e dar visibilidade agrupos negros que reivindicavam sua herança culturalafricana, criando novos penteados e formas de se vestir,uma estética e uma atitude política que se contrapunhamao ideal de branqueamento do país.Não apenas no carnaval, mas nas várias “festas de largo”que marcam o calendário afro-baiano, como a de SantaBárbara, N. Sra. da Conceição, Senhor do Bonfim, Iemanjá,sempre estão presentes os afoxés e blocos afro, levando oritmo dos terreiros para as ruas. Para além da música, aafricanidade está presente no “jeito festeiro” do baiano, muitasvezes estereotipado para promover a Bahia como destinoturístico ou estigmatizado e confundido com “preguiça”.Esse “jeito” traduz uma forma muito afro-brasileira de sere viver, na qual a festa é muito mais que diversão. Na festase faz política, se reafirmam solidariedades e alianças, secultuam as divindades, se movimenta a economia, se projetamas identidades dos diversos grupos que compõem asociedade. Festa, em suma, é coisa séria e merece maisatenção dos educadores e um lugar no currículo, poisoferece aos estudantes oportunidade ímpar de observare refletir sobre os mais variados aspectos de nossa sociedadee, em particular, sobre as marcas africanas emnossa cultura, que gravitam em torno da matriz religiosaafro-brasileira.3. Prática de solidariedade, resistência e livre expressão dapopulação negra e culturalmente marginalizadaPor tudo que foi afirmado acima, o candomblé é, acima detudo, uma organização de resistência negra, na medidaem que cria redes de solidariedade – a família-de-santo decada terreiro e uma “rede de terreiros” relacionados entresi – que permitiram à população negra sobreviver em meioà sociedade escravista e, depois da abolição, em uma sociedaderacista, na qual os negros continuaram a ser mão-deobrabarata e cidadãos de “segunda classe”, sem direitos


sociais fundamentais, como educação e saúde, nem acessoàs instâncias de decisão e poder. Estas organizações,inspiradas no modelo de família extensa africana, no qualtodos são responsáveis pelo bem-estar de todos, foram fundamentaispara driblar a indiferença do Estado brasileiropelo destino da população negra, e mesmo sua vontade deliberadade eliminá-la, através dos projetos de “purificaçãoda raça” que promoveram a imigração européia no final doséculo XIX e início do XX.A despeito do famoso “fuxico” e das eventuais rivalidadesentre membros de uma mesma ou de diferentes casas decandomblé, é inegável que esta prática religiosa deu umlugar social para aqueles que eram social e culturalmentemarginalizados: mulheres negras, restritas aos trabalhosdomésticos nas casas dos ex-senhores brancos, dependiammuitas vezes dos vínculos no terreiro para terem com quemdeixar seus filhos para ir trabalhar, para um empréstimoquando o salário não alcançava, para conseguir um emprego,para ter acesso a atendimento médico (ou para tertratamento alternativo usando o conhecimento das plantasdo candomblé), para matricular os filhos em uma escola,até mesmo para mediar a relação com o Estado, defendendo-seda violência exercida por agentes policiais,fiscais e outros, para quem “até provar que não/negrosempre é vilão”, como afirma uma canção do Ilê Aiyê. Oconhecimento adquirido no terreiro muitas vezes tornouseprofissão e fonte de renda, como o ofício de baiana deacarajé, cozinheira (da “comida de azeite”), “curandeira”,ou seja, médica e parteira. Mas, principalmente, o candomblépropiciou a valorização da mulher negra. Depreciadae humilhada em tantas situações na sociedade racista,no terreiro esta mulher, como iniciada, como mais-velha,como sacerdotisa, é detentora de um saber e de um poderque lhe dão dignidade, reconhecimento, que a reconciliamcom sua identidade afro-brasileira, tornando-a orgulhosade ser a principal agente da preservação e recriação daherança africana.Outros marginalizados também encontraram no candomblérefúgio, solidariedade, reconhecimento, um lugar para estarno mundo: homens negros pobres, não alfabetizados,brutalizados pelo trabalho braçal, no candomblé se encarregamde funções-chave: tocam os atabaques sagradospara a manifestação das divindades, realizam o sacrifíciodos animais que vão alimentar a comunidade e tornar as divindadespropícias ao seu humano, garantem a segurançado terreiro (novamente, contra a violência do Estado...). Capoeiristas,sambadores e outros tidos por “vagabundos”também encontram no candomblé um local de expressão epartilha da linguagem da musicalidade, da corporalidade edos valores da cosmovisão afro-brasileira.Homossexuais, altamente reprimidos e ameaçados nasociedade permeada de valores machistas, condenadoscomo pecadores pela Igreja Católica, têm encontrado possibilidadede viver sem serem julgados no candomblé, umavez que nesta religião a orientação sexual não implica emqualidades ou defeitos morais, nem denota “normalidade”ou “anormalidade”. O candomblé constitui, também nesteaspecto, uma lição de comportamento ético e de respeitoà diferença.Por fim, é importante lembrar que um número considerávelde brancos, seja por se contraporem à ordem social fundadana injustiça e na desigualdade, seja por estabeleceremvínculos pessoais e afetivos com negros, seja por caíremenfermos e não se recuperarem através das práticas médicasocidentais, seja pela simples e direta manifestação dasentidades afro-brasileiras em suas vidas – pois, segundoestas religiões, todos têm orixás, voduns ou inquices na cabeça,sem distinção de cor – afiliaram-se às religiões afrobrasileiras.Desta forma, também se tornaram, sob algunsaspectos, marginalizados. Apesar disso, certamente estaexperiência lhes permitiu compreender a magnitude daherança africana, usufruir de seus conhecimentos e, sobretudo,deu-lhes a oportunidade de se humanizarem, estabe-


lecendo relações igualitárias e respeitosas que atestam apossibilidade de um mundo sem fronteira de cor, obedecendoa nenhuma outra hierarquia senão a do conhecimento, anenhuma barreira senão a do tempo para aprender, atravésdo fazer incorporado e vivido, o enorme corpus do conhecimentoafro-brasileiro. O candomblé testemunha que, apesardos crimes perpetrados, o privilégio deste legado é, também,dos brancos brasileiros.CANDOMBLÉ E PRESERVAÇÃO AMBIENTALO candomblé é uma religião que depende inteiramente deelementos da natureza para a realização de seus rituais. Ospróprios orixás são representações de elementos da natureza:os rios (como Oxum, Obá e Ewá), o raio, a tempestadee o trovão (Xangô e Iansã), a mata e seus animais (Oxóssi),o mar (Iemanjá), os manguezais (Nanã), as plantas medicinais(Ossain), a terra (Obaluayê), o ar (Oxalá), o arco-íris(Oxumarê). Já vimos acima que cada orixá tem folhas quelhe são consagradas e sem as quais não se pode fazer osrituais. Da mesma forma, se a mata e os rios forem destruídos,se as nascentes secarem, se o mar for poluído, o povo decandomblé perderá os elementos essenciais de sua religião.Se observarmos certas áreas da cidade de Salvador atravésdo estudo de fotografias aéreas de diferentes décadas desteséculo, perceberemos como a cobertura vegetal diminuiusensivelmente. Áreas urbanizadas a partir do fim do séculoXIX, como o Engenho Velho da Federação, por exemplo, apresentavamuma grande quantidade de vegetação nativa até aprimeira metade do século XX. Com a abertura das avenidasde vale nas décadas de 60 e 70 e o início da especulação imobiliária,esta cobertura vegetal já diminuiu bastante. Agora,no início do século XXI, fotografias aéreas daquele bairromostram apenas três pequenas manchas de vegetação, quecorrespondem precisamente aos terreiros do Cobre, Bogune Tanuri Junçara, além da área do terreiro da Casa Branca,chegando à Avenida Vasco da Gama. Todo o resto desapa-receu. Este exemplo pontual mostra o papel-chave dos terreirospara a preservação ambiental na cidade.O povo-de-santo vem lutando pela preservação de locaisnaturais sagrados, onde são realizados rituais, como aLagoa do Abaeté e o Parque São Bartolomeu, reivindicandopolíticas e participando de projetos junto ao governo doestado e prefeitura municipal. Alguns terreiros são responsáveispela preservação de áreas com espécies raras ouameaçadas da fauna e flora. O Terreiro Manso DandalunguaCocuazenza, próximo à Estrada Velha do Aeroporto,por exemplo, tem sob sua guarda uma imensa reserva demata atlântica, constantemente ameaçada por loteamentosclandestinos.No mundo atual, no qual tantas agressões são cometidas ànatureza em um ritmo que não está lhe permitindo recuperarse,onde todos precisamos estar atentos à preservação domeio ambiente para assegurar nossa própria sobrevivênciano planeta, a religião dos orixás, voduns e inquices podeser um importante instrumento de conscientização e educaçãoambiental.A ARTE SACRA <strong>AFRO</strong>-<strong>BRASILEIRA</strong>NO M<strong>AFRO</strong>A identificação dos orixás se faz por um complexo sistemade símbolos materiais e imateriais. Alguém não familiarizadocom o candomblé, ao assistir pela primeira vez a umacerimônia, será incapaz de distingui-los, pois é necessáriosaber decodificar esta linguagem simbólica que não apenasos identifica, mas que reproduz os mitos, as qualidadese características de cada um deles, criando um enredo emsua performance ritual. As ferramentas, os colares de contas,os adornos, véus e coroas, as cores e o tipo de indumentária,a maneira de amarrar o torso e o pano da costasão os principais símbolos materiais desta linguagem. Osmovimentos da dança, o ritmo dos toques dos atabaques,


as saudações gritadas pela assistência são seus símbolosimateriais. Na dança vemos os movimentos bruscos eagressivos do guerreiro Ogum, o passo ágil, firme e sutildo caçador Oxóssi, a explosão vibrante do vento e da tempestadede Iansã, a sensualidade e suavidade da água docede Oxum, os gestos largos, nobres e fortes do rei Xangô, osmovimentos sinuosos da serpente de Oxumarê, o movimentovigoroso de Obaluayê, o rei deste mundo, espalhando ouvarrendo daqui a doença, a calma lentidão branca do arprimordial do velho Oxalá. Toda a cosmologia yoruba tornasevisível nestes movimentos.A dança é, evidentemente, acompanhada da variação dosritmos, indo do lento e cadenciado ijexá ao frenético eimpetuoso ilu. Há ritmos mais usados para certos orixás,sendo que alguns se tornaram, no imaginário popular, inevitavelmenteassociados, como o ijexá para Oxum, ainda queeste ritmo seja tocado para diversos outros orixás também.As ferramentas também dialogam com a dança e a música,pois muitas vezes os movimentos envolvem sua manipulação,como a espada de Ogum, o arco e flecha de Oxóssi, oxaxará de Obaluayê e assim por diante.O acervo afro-brasileiro do M<strong>AFRO</strong> é constituído por trêstipos de objetos: símbolos materiais envolvidos nos cultosdos orixás, voduns e inquices, doados ao museu por terreirosou adquiridos de artesãos que os fornecem aos terreiros;representações dos orixás, feitas em diferentes técnicas;objetos em memória e homenagem às autoridades doculto dos orixás, voduns e inquices.Dos objetos envolvidos no culto, que constituem propriamenteo que chamamos de arte sacra afro-brasileira,o M<strong>AFRO</strong> possui ferramentas de orixá, objetos que simbolizamas divindades, carregadas por elas quando incorporadasem seus filhos durante as cerimônias religiosas.Cada orixá tem suas ferramentas específicas, quese relacionam com os mitos que contam suas históriase revelam suas características. Elas são feitas de acordocom padrões tradicionais, por artistas que aprenderamseu ofício no próprio terreiro. Os materiais utilizadossão variados: ferro, latão de diversas cores, madeira,nervuras de palmeira e outras fibras vegetais, búzios,contas. Na coleção há ferramentas afro-brasileiras etambém algumas africanas (yoruba), o que permite umacomparação que atesta a continuidade da iconografia edo estilo das peças afro-brasileiras em relação às africanas,ainda que em geral tenha havido uma mudançado material empregado, e conseqüentemente das técnicas.A exposição mostra a espada de Ogum, o ofá (arco eflecha estilizado) de Oxóssi, os abebês (leques) de Oxume Iemanjá, o oxê (machado duplo) de Xangô, o alfanje (espadim)de Iansã, o xaxará (cetro estilizado) de Omolu,o ibiri (cajado estilizado) de Nanã, o pilão de Oxaguiã,o Oxalá jovem, o opaxorô (cajado com pendentes) deOxalufã, o Oxalá velho.Há ainda os ferros usados não como ferramentas portadaspelos orixás nas cerimônias, mas utilizadas em seus assentamentos,que são o conjunto de representações materiaisde um orixá junto às quais são feitas as oferendas,que incluem, além destes instrumentos, pedras, substanciasanimais e vegetais, dentre outras. Na exposição temosos ferros de Exu, de Ossaim e de Oxumarê, representandosímbolos associados a estes orixás (o tridente, os sete pássarose a dupla serpente, respectivamente).O M<strong>AFRO</strong> possui também colares de contas, que identificamcada um dos orixás através das cores, podendo ser usadosdurante as cerimônias ou no cotidiano, por seus filhos e devotos.É preciso lembrar que há algumas variações das coresdas contas de nação para nação e mesmo de casa para casade candomblé, com exceção de alguns, como Exu, que sempreusa contas vermelhas e pretas, ou Oxalá, sempre brancas.As de Ogum podem ser azul escuro ou verde, as de Oxóssipodem ser azul celeste ou verde, as de Iansã podem ser marrom,vermelho ou vermelho translúcido, as de Oxum podemir do dourado pálido ao dourado avermelhado ou amarelo


intenso, e assim por diante. Outro fator para a variação dacor é a chamada qualidade do orixá, ou seja, suas especificidades,conhecidas através do jogo de búzios.As representações dos orixás constam de bonecos feitospor uma ebomi (uma pessoa iniciada há mais de sete anos)de um conceituado terreiro, Dona Detinha de Xangô doIlê Axé Opô Afonjá, em tecido colorido, contas e outros materiais,retratando os orixás com seus símbolos materiaisdistintivos. É interessante comparar esta representaçãotipicamente afro-brasileira com outra que se atém muitomais à iconografia africana dos orixás, presente nas pranchasde madeira entalhada feitas por Carybé. Este conjuntode 27 talhas constitui uma das obras-primas da artebrasileira contemporânea e é uma das grandes atraçõesdo Museu. Nelas, Carybé representa não apenas orixásbastante conhecidos no Brasil, mas também alguns cujoculto se perdeu, como Orixá Okô, Otin e Bayani. O entalhede cada uma das pranchas foi precedido de inúmeros estudose esboços, nos quais se percebe a profunda pesquisarealizada por Carybé em fontes africanas para execuçãodeste trabalho.Por fim, o M<strong>AFRO</strong> possui insígnias de autoridade dossacerdotes, das quais está em exposição a cadeira davodunsi Laura Costa Santos, bem como um painel defotografias retratando alguns importantes sacerdotes,sacerdotisas e ogãs de Salvador já falecidos.UTILIZAÇÃO DAS ATIVIDADES DELEITURA DOS OBJETOSNas atividades preparadas para o Material do Estudante,reproduzidas aqui, propomos exercícios deleitura dos objetos de arte sacra afro-brasileira e dasrepresentações dos orixás, que irão ensiná-los a extrairinformações e construir significados a partir do olhar,assim como estimular a adoção de um comportamentoético de respeito ao candomblé, compreendendo-o comoinstrumento de preservação da história, dos saberes eda memória afro-baiana. Sugerimos ao professor quepeça aos alunos que olhem os objetos apresentadoscom bastante atenção. Em seguida faça as perguntassugeridas, que acompanham cada objeto. Faça as perguntasuma a uma, obtendo a resposta dos alunos antesde passar à pergunta seguinte. Se possível, registre asrespostas no quadro ou peça a eles que o façam em umafolha de papel. Acrescente outras perguntas, se acharnecessário. Somente depois deste exercício dê as informaçõessobre o objeto, seu significado e utilização.Há ainda uma atividade inspirada na oficina realizada durantea visita, na qual cada orixá deve ser relacionado aseu colar de contas, sua ferramenta e a seus atributos ecaracterísticas, descritos em um texto numerado. A respostapara esta atividade é:OGUMtexto; espada; colar de conta azul escuroOXÓSSItexto; ofá; colar de conta azul claroOMOLU/OBALUAIÊtexto; xaxará; colar de conta vermelho, branco e pretoXANGÔtexto; oxê; colar de conta vermelho e brancoIANSÃtexto; alfanje; colar de conta vermelho terraOXUMtexto; abebê dourado; colar de conta douradoIEMANJÁtexto; abebê prateado; colar de conta vidrada (transparente)


1. Olhe para este par de estatuetas. Quais assemelhanças e diferenças entre ambas?2. Você já viu algo semelhante a estas estátuas? Tentelembrar-se de uma festa católica para homenagearsantos gêmeos. Você já participou dela?3. Tente imaginar por que os yoruba faziam estatuetasde gêmeos. Quem será que possuía essasestatuetas? Quando as adquiriam? O que será quefaziam com elas?IbejisEtnia YorubaCotonou, Rep. Pop. do BeninMadeira e contasSe repararmos no tamanho das estátuas, nos detalhes deseu rosto e corpo, na sua postura, vamos perceber queelas são quase iguais. A diferença é que uma é masculinae a outra feminina. É fácil notar que o escultor tinha a intençãode que essas figuras parecessem gêmeas.O nascimento de gêmeos é interpretado em muitas sociedadesafricanas como a presença no mundo físico do “duploespiritual”, que normalmente estaria no outro mundo, o mundodos ancestrais. Este evento significa, assim, um fenômenoexcepcional. Certas sociedades, como a Yoruba, acolhem osgêmeos como seres especiais, que devem ser mimados e cercadosde privilégios, justamente por sua força vital ser “dupla”,por serem vistos como um só ser em dois corpos. Outrospovos, como os Igbo da Nigéria, consideram o nascimento degêmeos uma ocorrência perigosa, já que a presença do duploespiritual no mundo físico ameaça a ordem e a estabilidade dasociedade. De toda forma, na África o nascimento de gêmeossempre é visto como um acontecimento extraordinário, sejaele considerado benéfico ou ameaçador.As mães de gêmeos yoruba encomendam após o parto asestatuetas Ibeji, que recebem cuidados semelhantes aosdados às crianças. No caso da morte de um dos gêmeos, aestátua fica “no lugar” do irmão morto, sendo vestida e “alimentada”com oferendas. Isso é importante, pois uma vezque o “duplo” voltou ao mundo espiritual, o gêmeo que fi-cou tende a acompanhá-lo, ou seja, a morrer também. Ocuidado com a estátua ajuda, assim, a manter o gêmeosobrevivente na Terra.Mesmo que você não conheça os ibeji, é quase certoque já tenha ido a um caruru de S. Cosme e S. Damião.Essa prática mostra que o sincretismo afro-católico,nome dado ao processo de identificação dos santosaos orixás, causou modificações não só nas religiõesafricanas, como vimos com Exu, mas também no catolicismo:muita gente que é católica e dá ou freqüenta umcaruru de S. Cosme não sabe que esta prática deriva deuma tradição religiosa africana.


1. Compare as duas representações de Exu. O queelas têm em comum? O que é diferente? Presteatenção no material em que são feitas, nasferramentas que ele carrega, no que tem na cabeça.2. Que outra parte do corpo de Exu é ressaltada?Você consegue imaginar por quê?3. Quem é Exu para você? O que você conhece sobre ele?Exu é o primeiro dos orixás a ser saudado em qualquercerimônia no candomblé. Segundo a sabedoria do povoyoruba, ele é o mensageiro que liga o Orun (céu) ao Aiyê(terra), levando as oferendas doshomens aos orixás e trazendo asmensagens dos orixás aos homens.Exu é o guardião do axé (força vital)de Deus. Ele faz com que as coisasse cumpram da maneira correta,corrige os desvios e pune as falhasdos homens, quando deixam de saudare zelar por seus ancestrais eorixás. Exu é justo: ele dá a cada uma parte que lhe é devida, e tambémfaz questão de sempre receber oque lhe é devido.A ferramenta de Exu, um bastão demadeira com ponta arredondada,chamado ogó, é um símbolo fálico,ou seja, que lembra o pênis. Issoporque Exu é também o responsávelpela dinâmica do universo, pelo movimentoque gera a vida, ligado à fecundaçãoe à fertilidade. O sexo,como já vimos no setor África da exposição,é visto pelos yoruba e pelosafricanos em geral como fonte davida, da prosperidade e do bem-estar da família e do povo.As esculturas muitas vezes são feitas para estimular afertilidade, por isso dão destaque ao sexo dos homens emulheres representados.Na prancha de Carybé, além do ogó, Exu leva penduradosuma série de outros bastões, cabaças e cadeias debúzios, que são também seus símbolos. Exu tem uma cabeçapontuda e um penteado (às vezes um gorro) tambémem forma fálica. Ele não carrega nada na cabeça,em respeito a um tabu (uma proibição) que o tornou oprimeiro dos orixás a ser saudado, segundo os mitos.Esta representação de Carybé segue a maneira africana(yoruba) de representar Exu.No Brasil, porém, muitas pessoastêm uma imagem muito diferentede Exu. No período da escravidão,a Igreja Católica procurou identificaros orixás com santos católicos,para facilitar a imposiçãodo cristianismo aos africanosescravizados. Procuraram-se semelhançasentre santos e orixás.Os africanos, por sua vez, tambémprecisavam de uma “imagem”católica para continuar cultuandosuas divindades. Assim, comoIansã é a dona dos raios e daExuSalvador-BahiaMadeira (Cedro)Escultor: Carybé


tempestade, ela foi identificada com Santa Bárbara, umamártir que foi decepada pelo próprio pai, que como castigomorreu pela ação de um raio. Omolu, orixá da varíolae da doença, foi identificado a São Lázaro, pois este tem opoder de cura das doenças, especialmente as de pele. Atépara Jesus Cristo, o Senhor do Bonfim, foi encontrado umcorrespondente, Oxalá, o grande orixá da criação, orixá dacor funfun (branca). A Igreja achou necessário achar tambémum correspondente para o diabo. E foi assim que Exuacabou sendo identificado com o demônio. Só que isso nãotem nada a ver com a própria religião dos orixás, nem coma visão de mundo dos africanos.Para os yoruba, não existe uma entidade que correspondaao diabo, porque eles não acreditamque exista o mal absoluto. Ou seja, elesnão acham que uma entidade possa sertotalmente má, assim como não podeser totalmente boa. Os orixás, como oshomens, têm virtudes e defeitos, fazemcoisas boas e ruins. Deus, chamado deOlodumare ou Olorum, é a fonte de todaa energia, de toda a criação. Ele estámuito acima das virtudes e defeitos dehomens e orixás. Assim, podemos dizerque os yoruba acreditam que há umDeus único e poderoso, mas não achamque existe um ser maligno que possadesafiá-lo, portanto não acreditam queexista o demônio.Mas a Igreja insistia em ver na religiãoyoruba só o que queria, e foi assim queinventou que Exu era o diabo. Logo Exu, ozelador da justiça e mensageiro divino!Como isso aconteceu? Bem, Exu estámais próximo dos homens que os outrosorixás. Muitas vezes ele nos pune portermos esquecido de nossas obrigações.Estas punições foram entendidas como “maldades” deExu contra os homens, quando na verdade elas nosfazem ver os erros que nós próprios estamos cometendo,para lembrarmos de voltar ao caminho correto ede homenagear nossos ancestrais e mais velhos. Alémdisso, a Igreja Católica sempre considerou o sexo comoum pecado. E Exu, como vimos, é responsável pelo sexoe pela fertilidade.Foi desta forma que Exu passou normalmente a ser representadono Brasil como nesta escultura em ferro: o seu penteadofálico transformou-se em chifre, seu ogó transformou-se emum tridente e até mesmo um rabo ele ganhou! Assim, acabouficando parecido com o diabo no imaginário cristão...Hoje, o candomblé e Exu continuama ser atacados por algumas igrejascristãs. Mas é importante saber queo desrespeito a outras religiões, alémde nos tornar pessoas fechadas e insensíveise nos privar da oportunidadede aprender sobre o que é diferentede nós, é também um crime, já que oArtigo 5º da Constituição Brasileiraassegura que “é inviolável a liberdadede consciência e de crença, sendo asseguradoo livre exercício dos cultosreligiosos e garantida, na forma dalei, a proteção aos locais de culto e asuas liturgias”.Escultura de ExuSalvador–BahiaFerroEscultor: Agnaldo Silva da Costa


Você percebeu durante a visita que cada orixá tem ferramentase contas que o identificam. Relacione cada orixá a sua ferramentae ao seu colar de contas. Coloque abaixo do nome do orixá onúmero do texto que descreve suas características e atributos:1 Ela é a grande mãe dos orixás. Na África é identificada com um rio erepresentada como uma mulher de seios grandes, que amamentam atodos. No Brasil, tornou-se um dos orixás mais cultuados e foi identificadacom as águas do mar e representada como uma sereia.2 Orixá criador da forja do ferro, que ensina seus segredos aos homens.Ele é o desbravador que abre os caminhos e o patrono da tecnologiada agricultura, da caça e da guerra, feita também com as armas deferro. Por tudo isso, este orixá é considerado um herói civilizador, quetornou a vida do homem mais fácil através do domínio da tecnologia.3 Orixá das águas doces, bela, sensual e vaidosa. Ela é a iyá (mãe)responsável pela vida e pela fertilidade dos campos, dos animais e doser humano. É também a dona do jogo de búzios e a chefe das mulheresdo mercado, muito esperta e boa negociadora.4 Dona dos ventos e das tempestades, ela é guerreira, veloz e impetuosa.É a esposa de Xangô que o acompanha na guerra e que cospe fogocomo ele. O mito conta que ela pode transformar-se em um búfalo, porisso seus filhos carregam seus chifres nas cerimônias. Ela é também acriadora do culto dos eguns, os espíritos dos ancestrais.5 Orixá da caça e da mata, protetor da floresta e dos animais e provedorde alimento para sua comunidade. É o caçador que com uma só flechaconsegue abater sua caça. É irmão mais novo de Ogum e filho de Iemanjá.6 Orixá do fogo, do raio e da justiça, simbolizada em sua ferramentaque corta para os dois lados. Como personagem histórico, este orixá foio quarto rei da cidade de Oyó, um dos mais importantes reinos yoruba.Por isso ele é representado como um rei, cercado por sua corte e porsuas esposas Iansã, Oxum e Obá.7 Orixá da varíola, anda coberto de palha para esconder suas feridas ecom sua ferramenta pode trazer ou levar as doenças. É o rei do mundo, doAiyê, ligado ao elemento terra, muito temido e respeitado. É filho de Nanã,o mais antigo orixá feminino, dona da lama usada para criar o homem.Ogum Oxóssi XaOfáXaxará


ngô Iansã Oxum Obaluaiê/Omolu IemanjáAbebê Alfanje AbebêEspada Oxê


1. De que é feito este objeto? Preste atenção emtodos os elementos.2. Que formato tem ele? Imagine este objeto deitado.Agora pense na trajetória de uma bolinha de gudepor cima dele todo, partindo da base.O que aconteceria com ela?3. O que você imagina que este formato significa?4. Você já viu a obra de algum artista contemporâneoparecida com este objeto? Qual?Esta é uma ferramenta, um emblema de Nanã Buruku,carregado pelas filhas desta divindade quandoestão em transe, ou seja, quando este orixá estámanifestado nelas.Esta ferramenta é uma espécie de cajado, feito de feixesda nervura de palmeira – a parte central da folha dapalmeira – atados. Você conseguiu perceber que estecajado faz uma curva que volta ao mesmo ponto de ondesaiu? Ou seja, se a bolinha saísse do cabo, ela faria umacurva e voltaria para o mesmo lugar. Seu formato nostransmite a idéia de um ciclo, que termina no mesmolugar onde começou, e então começa e termina de novo,muitas vezes...Nanã é o orixá feminino mais antigo. Ela representa opoder feminino ancestral. O elemento de Nanã é a lama,elemento primordial da vida. O mito conta que quandoOxalá foi encarregado por Deus (Olorum) de criar ohomem, ele tentou usar vários materiais: ar, fogo, pedra,madeira, água, azeite de dendê ... com nenhum delesOxalá conseguiu criar o homem, ele ficava sempreduro demais ou mole demais. Até que Nanã ofereceu aele sua lama do fundo do mangue como matéria-pri-ma. Oxalá modelou com esta lama o homem e depoislhe deu o sopro da vida. Mas a lama que foi tirada deNanã precisa um dia ser devolvida a ela, para que delapossam ser feitos novos homens, dando continuidadeao ciclo da vida. Por isso nós nascemos e também,um dia, precisamos morrer. Agora você já sabe o quequer dizer o movimento circular do ibiri de Nanã: elaé o início e o fim, a vida e a morte. Ela é a mãe maisvelha, dos tempos em que o ser humano não sabiaainda usar os instrumentos de metal. Obaluayê, Oxumarêe Ewá são filhos deNanã. Toda esta família deorixás está ligada à terra,fonte da vida e última moradado ser humano.Um dos mais importantesartistas brasileiros contemporâneos,Mestre Didi,é um Assògbá, um sacerdote-artistaespecializado naprodução dos emblemas dosorixás do panteão da terra,feitos sempre com nervurasde palmeira, búzios e contas.A produção de MestreDidi, presente em grandesmuseus de arte moderna econtemporânea do país, étoda inspirada na tradiçãode fabricação dos objetosrituais de Nanã e Obaluayê,os ibiris e xaxarás.Ibiri de NanãSalvador - BahiaCouro, palha, contas e búzios


1. Que tipo de objeto é este? Descreva sua forma eo material de que é feito.2. Este objeto tem partes diferentes. Quais são?Preste atenção aos detalhes e tente descrevercada um de seus elementos.3. Como você imagina que ele é usado?4. A pessoa que o usaria é jovem ou velha? Por quê?5. Você acha que quem usa este objeto tem umaposição de destaque na sociedade? Por quê?O opaxorô também foi usado, segundooutro mito, para separar o céu (Orun)da terra (Aiyê) no início dos tempos.Batendo no chão com seu cajado, eleseparou os dois mundos, assim comoseus habitantes, ficando os orixás noOrun e os homens no Aiyê. O cajadorepresenta também o poder ancestralmasculino e mostra a relação dosorixás do branco com os ancestrais.O próprio nome deste objeto em yoruba explica o que eleé. Opá significa estaca ou cajado e òs òòroò significa pingosou gotas. Opaxorô é, assim, um “cajado de gotas”, quesão estes pendentes de cada um dos discos. Vemos queo opaxorô é formado por uma haste, quatro discos compendentes, e, em cima, uma coroa com um pássaro.Este cajado é usado por Oxalá para se apoiar quandodança bem devagarzinho, durante as cerimônias dedicadasa ele. Isso porque é um Oxalá bem velho, chamadoOxalufã, que é o dono deste cajado. Há também um outroaspecto deste orixá, mais jovem, chamado Oxaguiã.Oxalá é o rei do pano branco, o mais velho dos orixás, aqueleque recebe de Deus (Olorum) o saco da criação para criar omundo. Oxalá, porém, desrespeitou algumas regras, e comoaté o maior dos orixás tem que respeitar as proibições efazer oferendas, foi punido por Exu, que o fez ter muita sedee tomar muito vinho de palma até ficar bêbado. É entãoOdudua, outro antigo orixá, que pega o saco da criação econclui a tarefa que deveria ter sido realizada por Oxalá.Oxalá foi encarregado por Olorum de outra importantetarefa: criar o ser humano. Desta vez ele fez todas asoferendas e não desrespeitou nenhuma regra. Usandoa lama de Nanã, a mais velha das iabás (orixá feminino),Oxalá modelou o homem e lhe deu vida com seu sopro.Opaxorô de OxalufãSalvador – BahiaLatão prateadoOxalá é um orixá funfun, ou seja, da corbranca, que significa repouso, calma,silêncio. Todas as comidas oferecidasa Oxalá devem ser brancas, ou seja,sem azeite de dendê nem sangue vermelho.Oxalá também não pode comersal nem tomar bebidas alcoólicas. Ospanos usados nas cerimônias e paracobrir suas ferramentas, assim comoas roupas de seus iniciados, devem serbrancos. Oxalá é rei, por isso usa umacoroa (adê), que aparece também noopaxorô. Por isso é chamado tambémde Orixá Nla ou Orixalá, o Grande Orixá.


1. Quem usaria esta roupa?2. Quais são suas cores? Essas cores tambémrepresentam outro símbolo bem conhecido. Qual?3. Você já viu na rua alguém “vestido de caboclo”?Em que data?4. Por que será que um caboclo – um índio – écultuado em uma religião criada por descendentesde africanos? Qual será a relação existente entreestes dois povos?A roupa feita de plumas coloridas, composta por um saiotee um cocar, lembra-nos um indígena brasileiro. As coresusadas na sua roupa, verde e amarelo, mostram que o índio,chamado de “caboclo”, tornou-se um símbolo nacional.Ele simboliza a luta brasileira pela independência de Portugal.A Independência do Brasil foi proclamada no dia 7 desetembro de 1822, mas, na Bahia, os portugueses continuaramno governo até o dia 2 de julho de 1823, quando astropas brasileiras venceram a última batalha contra elesem Pirajá. O índio era, no século XIX, visto como o verdadeirobrasileiro, por ser aquele que estava aqui antes dosportugueses e africanos chegarem — “o dono da terra”. Ascomemorações da batalha de Pirajá, feitas a partir de 1824,elegeram o caboclo como o herói deste episódio histórico,e em 1826 foi feita uma imagem dele, que desde então desfilatodos os anos no “carro do caboclo” no dia 2 de julho.Mas o “caboclo” é também uma entidade cultuada nas religiõesafro-brasileiras, seja na umbanda, nos chamadoscandomblés de caboclo, na maioria dos candombléscongo-angola e em vários candomblés jêje e nagô. É aeste caboclo, e não ao “caboclo do 2 de Julho”, que pertenceesta roupa. Este culto originou-se provavelmente de umatradição dos povos bantu (dos atuais Angola e Congo),que, ao conquistarem um novo território, acreditavam quesó poderiam exercer o poder legitimamente se tivessema permissão dos ancestrais do povo que antes ocupavaIndumentária do Caboclo Trovezeiro de VisauraSalvador-BahiaTerreiro Auzidá JunssaraDoação: Nêngua de Inquice Maria Bernadete dos Santosaquela terra. Faziam então cerimônias homenageando epedindo licença àqueles que lá estavam enterrados – poisa terra não era vista como uma propriedade, mas como amorada dos ancestrais.Quando foram escravizados e trazidos ao Brasil, os bantu(das etnias Mbundo, Bakongo, Ovimbundo, Lwena, Imbangala,Bawoyo e outras) identificaram os indígenas comoos donos da terra e assim passaram a cultuá-los. É destaforma que surge o caboclo como entidade afro-brasileira.


UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIANaomar de Almeida FilhoReitorFrancisco José Gomes MesquitaVice-ReitorLina Maria Brandão e ArasDiretora da Faculdade de Filosofiae Ciências HumanasJocélio Teles dos SantosDiretor do Centro de Estudos Afro-OrientaisMaria Emília Valente NevesCoordenadora do Museu Afro-BrasileiroPROJETO DE ATUAÇÃO PEDAGÓGICA ECAPACITAÇÃO DE JOVENS MONITORESJocélio Teles dos SantosCoordenador GeralMaria Emília Valente NevesAssistente de CoordenaçãoJuipurema Alessandro Sarraf SandesCoordenador de Pesquisa e EdiçãoMaria Paula Fernandes AdinolfiCoordenadora Pedagógica e Texto CientíficoAline Silva JabarPesquisadoraDenyse EmerichConsultora — Educação em museusDaniele Santos de SouzaIraci Oliveira dos SantosTatiana Alves de AlmeidaEstagiáriasCelina Souza PinheiroDaza Ifá Ashanti MoreiraElane Cristina Nascimento dos SantosEmily Karle dos Santos ConceiçãoJeferson dos Santos SocorroKellison Jorge Souza dos SantosRamon Bonfim BarrosTainara Santiago do NascimentoTaiwo Pimentel dos SantosThiago dos Santos SantosTiago Mateus Figueiredo SantosViviane Carvalho de AraújoMonitoresRicardo Prado GóesFotografiaWalter MarianoProjeto GráficoProfessores ColaboradoresDepartamento de Museologia - UFBAJoseania Miranda FreitasMarcelo Nascimento Bernardo da CunhaPATROCÍNIODeputado Federal Luiz Alberto – PT-BACongresso NacionalEmenda Parlamentar n.º 345900012006


Terreiro de Jesus, Antiga Faculdade de Medicina,Centro Histórico, Salvador - Bahia - Brasil - CEP: 40025-010Telefax. (071) 3321 - 2013www.ceao.ufba.br/mafro

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