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ACERVO

ESTUDOS DE GÊNERO - Arquivo Nacional

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<strong>ACERVO</strong>R E V I S T A DO A R Q U I V O I Í A C I O M A LVOLUME 9 • NÚMERO • 01/02 • JAN/DEZ • 1996ESTUDOS DE GÊNEROMINISTÉRIO DA IUSTIÇA,l,f.ili|>M> ••['< • dilHH .M.*ARQUIVO NACIONAL


Ministério da JustiçaArquivo nacional<strong>ACERVO</strong>REVISTA DO ARQUIVO NACIONALRIO DE JANEIRO, V.9, NÚMERO 01/02, JANEIRO/DEZEMBRO 1996


R V Osia, a campanha trazia em si implicaçõesde maior peso. De acordo com os argumentosdos advogados de acusação, oscasos inicialmente colocados perante ojuízo municipal puseram à prova o princípioderivado do direito romano, de quea prostituição de uma escrava violava detal modo o domínio legítimo, a ponto deexigir que o estado retirasse a propriedade.Caso as sentenças do juízo inferior55tivessem prevalecido, elas não só teriamimposto a mais severa sanção contra proprietárioscondenados por uso imoral desuas escravas, porém, em maior profundidade,elas teriam estabelecido um precedenteque permitiria que a autoridadegovernamental interviesse no sacrossantoexercício do poder pessoal e privadosobre a propriedade de escravos. EmboraTavares decidisse abertamente a favordas escravas pleiteantes, os juizes de tribunaissuperiores subseqüentes, que examinavamos casos, revertiam ou qualificavamsuas sentenças. Deste modo, elesimpediam o uso da alforria como medidapunitiva e cerceavam qualquer leitura dasações do juízo como apoio à regulamentaçãoda escravidão pelo estado. Além domais, suas sentenças tornavam clara aposição oficial sobre a questão palpitanteda indenização. Em casos que haviamresultado em uma concessão inicial de liberdade,um juiz de tribunal de recursosconstantemente exigia que o dono fosseindenizado, mesmo quando a prostituiçãotivesse sido admitida ou provada convincentemente.A disposição do Superior Tribunalenunciava enfaticamente que aemancipação sem indenização não seriaendossada. Para proteger senhores respeitáveisdas práticas comprometedorasde alguns poucos, Tavares havia acabadopor minar os direitos dos próprios senhoresque ele procurava proteger. Tendo suatentativa de confiscar a propriedade de escravose sua posição em favor da liberdadetotal ter sido cabalmente derrotadapela Corte de Apelação, os esforços deTavares em prol da moralização da sociedadesossobraram.Durante o outono e inverno do mesmoano de 1871, entretanto, outra controvérsiarelacionada a este problema absorveua atenção da nação. Os parlamentaresreuniram-se para enfrentar penosamenteo que percebiam ser uma crise referenteao controle da escravidão. Suas discussõescentralizaram-se exatamente nasmesmas duas questões da propriedade eda regulamentação - indenização e emancipação- que haviam confundido Tavarese seus associados. Pelo fato da campanhaexpor o dilema acerca da escravidão,ela proporciona um comentário instruti-Acetvo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 53-66. Jan/dez 1996 - pag.M


A C Evo sobre o debate então em andamentono Parlamento. Quando examinada deperto e no contexto das decisões locais,a lei promulgada em setembro foge dequalquer caracterização metódica comopasso seguinte em direção à abolição.O DEBATEy ão importa o quão inquietantesas questões da emancipaçãoe da indenização fossemem 1871, quando os brasileiros aindadependiam da mão de obra de um e meiomilhão de escravos, elas dificilmente eramdesconhecidas. Através de toda a décadade 1860, o Parlamento, o imperador e56seus assessores vitalícios no Conselho deEstado haviam lutado erraticamente coma questão da escravidão. Desde 1863,Agostinho Marques Perdigão Malheiro propôsuma 'emancipação do ventre', a fimde libertar as crianças subseqüentementenascidas de mulheres escravas, o querepresentava um plano para apaziguar,por meio da emancipação gradual, tantoaqueles que temiam perder sua mão-deobra,quanto aqueles, inclusive os escravos,que insistiam em uma liberdade maisampla. Seguiu-se uma série de reformaspaulatinas: o governo declarou libertos osemancipados, ou africanos capturados abordo de navios que tentavam trazê-losilegalmente para o Brasil após 1831; osescravos não mais podiam ser chicoteadosem público; alguns escravos pertencentesao governo foram libertados; e, apartir de 1869, os escravos não podiammais ser vendidos em hasta pública, nemfamílias de escravos podiam ser legalmentedivididas por venda. A pedido do57imperador, José Antônio Pimenta Buenoesboçou e apresentou em 1866 propostaspara servirem de base à primeira discussãono Conselho do Estado sobre otérmino da escravidão. Porém, tão logo oimperador havia levantado a questão daemancipação em seu discurso de aberturano Parlamento em 1867, gesto este queassinalava aprovação pelos membros doministério e do Conselho de Estado paraque o Parlamento assumisse a questão,eles desviaram o apoio da reforma e, aoinvés, apoiaram aqueles com os quais ogoverno contava na guerra dispendiosa esangrenta que se arrastava contra oParaguai - isto é, homens que se opunhaminabalavelmente a qualquer interferêncianas estruturas da escravidão. O governohavia decidido não alterar a dissenção58durante o tempo de guerra.Mo início de 1871, quando Tavares iniciousua campanha, o Parlamento previu e elaboroua agenda para a seção seguinte.Tendo finalmente terminado a Guerra dopag.52,jan/òez 1996


R V OParaguai e restabelecida a paz, liberaramseas energias para retomar mais uma veza questão profundamente contenciosa daemancipação, visto que ela se encontravasuspensa sobre uma nação insegura.O imperador abriu o caminho em março,pela formação de um novo ministério comJosé Maria da Silva Paranhos, visconde doRio Branco, como primeiro-ministro. RioBranco iria revelar-se como escolha astuta,uma vez que, como conservador, osque viam perigo na emancipação podiamconfiar nele, ao mesmo tempo em queganhava a confiança e o compromisso dosliberais que se impacientavam por medidasdecisivas, que na opinião deles eramessenciais para salvar a nação da ruína.Mo poderoso Conselho de Estado, ele podiacontar com os argumentos há muitoensaiados de Pimenta Bueno. Em maio,59em sua fala do trono, o imperador declarouque a "reforma da legislação sobre oestado servil não deveria continuar a seruma aspiração nacional indefinida e incerta.Já é tempo de resolver esta questão".Move dias depois, o ministro da Agriculturaintroduziu, na Câmara dos Deputados,um projeto de lei propondo aemancipação dos filhos subseqüentementenascidos de mães escravas. E, ao finaldo mês, o imperador partiu para uma prolongadaviagem à Europa, deixando suafilha, a princesa Isabel, como regente; e,por sua ausência, ele garantiu aos políticosque o atual ministério não seria substituído.Estando, portanto, autorizados,60o primeiro-ministro e o Parlamento prosseguiram.A nossos ouvidos, mais de cem anos depois,as apreensões - e os vocabuláriosusados para expressar essas apreensões- de ambos os lados, eram de tal modoidênticas nas discussões que se seguiram,que dificilmente soam como um debate.Todos concordavam que não apenas apropriedade, mas a segurança e a ordemsocial estavam em risco. A questão eracomo melhor lidar com a ameaça. Os quese opunham à emancipação - e todos entendiamque a emancipação seria um fimgradual da escravidão, pela libertação degrupos específicos de escravos, ao invésde uma abolição imediata e completa dainstituição - viam-na como levando o país"à ruina completa". Com estas medidas,disse um proprietário rural e deputado,proveniente da região cafeeira, "a disciplina,o único vínculo moral que liga oescravo ao senhor [e] o respeito, que impõesua superioridade, enfraquecem-senaturalmente". Como pode o fazendeiro,perguntava ele, manter o seu estabelecimento,uma vez que "estes vínculos desubordinação se afrouxam e enfraque-Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 53-66, Jan/dez 1996 - pag.53


cem"? ' Perdigão Malheiro, invertendo sua6posição de nove anos antes, como autorda primeira proposta de 'emancipação doventre', falou enfaticamente contra esta.Os fazendeiros, dizia ele, não se opunhamà liberdade, como demonstravam seusatos: eles libertavam escravos todos osdias e haviam, voluntariamente, dado escravosà nação como soldados durante aguerra. O que eles temiam, segundoMalheiro, era que, sem a garantia da lei,tornar-se-iam vulneráveis através da "perdade força moral". Uma "ruptura abruptae violenta" desta natureza, da autoridadedo senhor, resultaria na "imediatadesobediência dos escravos". Sombriamente,ele previu que a insurreição poderiaespalhar-se através de provínciasvizinhas, "como fogo em um camposeco". 62Os partidários do plano não negavam queestavam enfrentando tempos profundamenteperturbadores. "Sabemos", disse PimentaBueno, "o que é insurreição e tambémquantos assassinatos são cometidos anualmente,privando as famílias dos fazendeirosde seus chefes e, muitas vezes, arruinandosuas fortunas". Porém, designandoa escravidão como "uma violência que nãopode ser mantida senão pela violência', elevia na liberdade a tênue esperança de segurançae ordem. Ele compartilhava com oministro da Justiça a interpretação de que"longe de ser um plano para a abolição", oprojeto de lei era "na verdade, uma medidadestinada a proteger a agricultura do paíse a manter a organização da mão-deobra".Eles expressaram uma ânsia coletivapor um término final da escravidão,63mediante uma "revolução pacífica" atravésdo uso de meios que fossem eficientes,porém não "perturbadores de nossa sociedade".*6Ao mesmo tempo, todos entendiam o queninguém verbalizava: a desalentadorapercepção de que escravos inquietos cadavez mais exigiam sua liberdade individual.A ameaça de rebeldia era tão temidaque até mesmo a discussão de desmonteda escravidão parecia explosiva. Em 1867,Sayão Lobato achava a questão tão graveque ela só deveria ser debatida em sessõesa portas fechadas, a fim de se evitaro que ele designava como "as conseqüênciasdesastrosas que resultariam necessariamenteda publicidade imprudentee perigosa". Em 1871, sua linguagem65era elíptica: eles falavam de 'insurreição'ou 'desorganização da mão-de-obra' semusar a palavra escravo. Porém, se os contemporâneosrecuavam diante da citaçãodo objeto de seu terror, isso não explicaporque os historiadores se omitiram deexaminar o que havia por trás destes tepa9.54.Jan/oez1996


mores mudos. Somente Warren Dean descartouas explicações usuais propostaspelos historiadores - "as lutas políticaspessoais dos líderes parlamentares, o altruísmodo imperador ou questõestangenciais como o regionalismo", a crençade que a mão-de-obra livre era maisprodutiva ou idéias abolicionistas - e Deanargumentou que o que mais havia mudadoeram os próprios escravos. A medidaque os canais de alforria para escravosisolados ficavam bloqueados e um maiornúmero de escravos crioulos e mulatosambiciosa e agressivamente buscavamsua liberdade, eles efetivamente questionavama legitimidade de seu cativeiro. 66Era exatamente o fato de os escravos seremautores de suas próprias ações, influenciandosua própria condição, que osparlamentares se recusavam a admitir emseus debates, mas que foram obrigadosa acomodar, por medo, no projeto de leique finalmente promulgaram.O que eles finalmente obtiveram ao finalde cinco meses de debate tempestuoso eapaixonado, tornou-se conhecido como aLei de Rio Branco ou a Lei do Ventre Livre.Pela libertação ambígua dos filhos daíem diante nascidos de mães escravas epela provisão de um fundo de emancipaçãoa partir do qual se patrocinava umaalforria limitada de escravos adultos, a leiaprofundava, mais do que resolvia, as tensõesexistentes. O projeto, simultânea,porém paradoxalmente, buscava sustentara posição dos proprietários rurais eaplacar uma força de trabalho rural agitada,tornando mais acessível a liberdadeindividual. As diversas disposições doprojeto incluíam o estabelecimento do direitodos escravos de acumular economiase da fixação do valor de um escravo edo número máximo de anos que ele ouela precisava trabalhar para pagar o preçoda liberdade. Embora houvesse disposiçõesdo projeto que foram transpor­67tadas para os escravos urbanos, estesnunca constituíram a principal preocupaçãodos senadores e deputados, que votaram93 a 39 para a aprovação do mesmo.Inspirada pelo medo, a Lei do VentreLivre não satisfez aos conservadores,68que se prepararam para suas conseqüências,nem aos liberais, que achavam queela fazia muito pouco e muito tarde.Tál como na campanha de Tavares, nada,nesse caso, sugere que os legisladoresconsideravam a promulgação dessa leicomo mais um passo em um movimentocontínuo em direção à abolição da escravatura.Ao invés disso, eles reconhecerama lei como sendo inconclusiva, até mesmodivisiva, para lidar com aquilo que elespróprios concordavam ser uma grave cri-Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 53-66, jan/dez 1996 - pag.55


ACEse nas relações entre senhores e escravos.E, da mesma forma que Tavares, osparlamentares chegaram a um impasse.A fim de defender a organização da mãode-obrapara afirmar a autoridade morale, portanto, a legitimidade da propriedadedos senhores, eles haviam tomado aprecaução de tornar a liberdade disponívelpara certas categorias de escravos.Como legisladores da nação e com a aprovaçãodo imperador e do Conselho deEstado, eles, diferentemente de Tavares,possuíam o poder de circunscrever a autoridadedos senhores de escravos. Entretanto,eles não conferiram poderes àlei para providenciar seu cumprimentoeficaz, de modo que a execução destapermaneceu nas mãos arbitrárias dos fazendeiros.Eles haviam achado necessáriochegar até aquele ponto: recusavamsea ir mais além.A despeito das maneiras pelas quais a linguagemjudicial reduz e distorce a experiênciareal, obtemos uma compreensãorevisada da vivência das escravas atravésdestes autos. Além da sobrecarga de trabalho,da doença ou da dolorosa perdados filhos, vemos como as relações comerciaispodiam produzir vínculos entreas prostitutas e os clientes. A história deHonorata demonstra solidariedadesconstruídas sobre os pontos comuns deraça e de classe, mais ainda do que desexo. Com relação ao risco da certeza docastigo, Honorata aparece como umamulher ativa, determinada, capaz de convocaraliados masculinos quando necessários.Sua inimiga imediata e inequívocaera e permanecia sendo sua senhora.A campanha de Tavares revela, de modosdiferentes, as particularidades de uma sociedadeescravagista. Os funcionários quetentavam eliminar a prostituição de escravasinvertiam a acusação padrão européia:ao invés de lançar a culpa da prostituiçãosobre a sexualidade descontrolada das mulheres,estes brasileiros identificavam asprostitutas escravas como vítimas da ganânciade seus senhores. Pelo "abuso imoral",estes senhores não apenas lesavam suasescravas, mas ameaçavam destruir "o laçode respeito e obediência que deveria ligar"o senhor e o escravo, pondo, portanto, emrisco a legitimidade de todos os senhoresde escravos. Testemunhamos a luta de69Tavares para afirmar o comportamento corretona conduta cotidiana e descobrimos osmeios culturais pelos quais ele se orientavapara assim proceder.O episódio da campanha reflete, porém inversamente,os debates no Parlamento. Enquantoque Tavares e seus associados tenpag.56.Jan/dez1996


tavam punir um bando de senhores de escravosde má reputação pelo uso nãoconscencioso de suas escravas, no Parlamentohomens importantes procuravam defendersenhores poderosos contra escravosrebeldes. Através de suas ações aparentementeopostas, entretanto, corriam preocupaçõesidênticas: a determinação de conservaçãoda ordem moral, juntamente comuma profunda ambivalência quanto à regulamentaçãopública em uma sociedade quecontinuava a depender da propriedade privadade escravos.Este artigo foi publicado na revistaComparative Studies In Society AndHistory, v. 33, n. 4, em outubro de 1991,da Cambridge University Press.Tradução de Nariana Erika Heynemann.N O T A S1. Salvo quando indicado em contrário, a história de Honorata é extraída do Juízo doSupremo Tribunal de Justiça, Revista Cível, sendo ré, Maria Elentéria Borges deAlbuquerque, Rio de Janeiro, 1872. Arquivo Macional, Rio de Janeiro, Seção do PoderAcervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 53-66. jan/dez 1996 - pag.57


A C EJudiciário, caixa 10.965 (nova catalogação), especialmente fls. 3, 3v-4, 5v, 6, 14,14v, 17, 18-18V, 63, 63v-65, 66-66v, 67-68, 69v-70, 71v, 73v, 75, 76v, 77-92V, 106-106v, 110, 133, 135 [doravante citadas como AMSPJ); os casos judiciais na segundacitação e nas citações subseqüentes são citados por nome do réu e por data.2. As mulheres livres que exerciam a prostituição não são de meu interesse neste trabalho;quanto ao número total de escravas e mulheres livres, vide nota 7.3. O procedimento tinha suas origens desde o século XVI, ver ALMEIDA, Cândido Mendesde. Código Filipino; ou Ordenações e leis do Reino de Portugal, recopilados pormandado d'el-rey d. Philippe I, 14 ed., segundo a primeira de 1603 e a nona deCoimbra de 1824. Addicionada com diversas notas ...Rio de Janeiro: Tip. do InstitutoFilomático, 1870, liv. 3, título XX.4. A frase é do artigo de Alain Corbin. "Commercial sexuality in nineteenth-century France:a system of images and regulations". In: Representations, 14, primavera de 1986,pp. 209-19.5. Em 1872, o Rio de Janeiro era maior do que Mova Orleans ou Havana e possuía amaior população escrava restante de qualquer cidade nas Américas: mais de 37 milescravas e escravos (em números quase iguais) perfaziam 16% da população urbanatotal da cidade, de 228.743 habitantes. Outros 54 mil mulatos e negros livres levavama população de cor' a mais de 91 mil, ou seja, cerca de 40% do total. De todasas mulheres negras e mulatas, 45.012, as escravas representavam quase 42%. Vide:Brasil, Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento da população do Império doBrasil a que se procedeu no dia I de agosto de 1872. Rio de Janeiro: Leuzinger,o1873-76, município neutro, pp. 1-33. Os historiadores apenas começaram a identificaras situações de vida complexas e freqüentemente ambíguas dos escravos no Brasilurbano, vide KRESCH, Mary. Slave life in Rio de Janeiro, 1808-1850. Princeton:Princeton University Press, 1987; REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil. SãoPaulo: Brasiliense, 1986; e GRAHAM, Sandra Lauderdale. Mouse and street: thedomestic world of servants and masters in nineteenth-century Rio de Janeiro.Cambridge: Cambridge University Press, 1988.6. SAMTOS, Luiz Gonçalves dos (padre Perereca). Memórias para servir à história doreino do Brasil, 2 vols, anotados por Francisco Agenor de Moronha Santos. São Paulo:Editora Itatiaia, 1981, I: 99, 101, 103, 120-1, 126, 136-7.7. CUMHA, Herculano Augusto Lassance. Dissertação sobre a prostituição, em particularna cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tip. Imparcial de Francisco Paulopag .58, jan/dez 1996


R V OBrito, 1845, 19, citado em SOARES, Luiz Carlos. Rameiras, ilhoas e polacas: a prostituiçãono Rio Janeiro do século XIX. São Paulo: Ática, p. 26; o número total era de1.171, em MACEDO, Francisco Ferrez. Da prostituição em geral e, em particular, emrelação à cidade do Rio de Janeiro: profilaxia da sífilis. Rio de Janeiro: Tip. Acadêmica,1873, pp. 136-45; quanto à distribuição espacial da prostituição em Paris, videQEREMEK, Bronislaw. The margins of society in late medieval Paris. Jean Birrell,tradução. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, pp. 87-94, 211-41.8. Juízo do Comércio da la. Vara Cível, réu, Duarte, Fonseca & Cia. Rio de Janeiro,1881, AMSPJ, maço 3.149, no 4.530.9. Juízo de Direito da 2a. Vara Cível, Ação de Liberdade, ré, Cleria Leopoldina de Oliveira,Rio de Janeiro, 1871, AMSPJ, maço 855, n. 3.837, fls. 2,llv; Juízo de Direito da2a. Vara Cível, Ação Sumária de Liberdade pela parda Feliciana por seu curador, ré,Leonarda Maria da Conceição, Rio de Janeiro 1871, AMSPJ, caixa 1.611, n. 2.577, fls.37,14;Juízo de Direito da 2a. Vara Cível, Libelo de Liberdade pela escrava Corina porseu curador, ré, Ana Valentina da Silva, Rio de Janeiro, 1869, AMSPJ, caixa 1.624, n.2.781, fl. 69v.10. MACEDO, F. F., op. cit., pp. 74, 79; Dicionário da língua portuguesa, 8a edição, rev. 2vols, Antônio de Moraes Silva, comp. Rio de Janeiro: Empresa Literária Fluminense,1889-91, definiram zungú como um lugar que alugava pequenos quartos por preçobaixo a "pessoas de condição vil, servindo também de refúgio a malfeitores, vagabundosetc".11. Ana Valentina da Silva, 1869, fls. 3, 70v, 71, 74, 109v.12. ALMEIDA, José Ricardo Pires de. Homosexualismo (a libertinagem no Rio de Janeiro):estudo sobre as perversões e inversões do instinto genital. Rio de Janeiro:Laemert, 1906, 72, citado em Luís Carlos Soares, op. cit., (pg. 51 do texto datilografado).13. Maria Elentéria Borges de Albuquerque, 1872, fl. 69v; Juízo de Direito da 2a Vara Cível,ré, Rosalina Bandeira, Rio de Janeiro, 1871, AMSPJ, maço 813, n. 17.802, fl. 3v.14. Maria Elentéria Borges de Albuquerque, 1872, fls. 3, 18-18v, 67, 68, 69; LeonardaMaria da Conceição, 1871, fls. 44, 44v, 13v.15. MACEDO, F. F., op. cit., p. 74; Juízo de Direito da 2a Vara Cível, Liberdade pelo Traslado,ré, Julia Catarina Cortai, Rio de Janeiro, 1871, AMSPJ, caixa 5.802 [nova catalogação],fls. 20v, 33.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 53-66. Jan/dez 1996-pag.59'


A C E16. Leonarda Maria da Conceição, 1871, fl. 44v; Cleria Leopoldina de Oliveira, 1871, fl.10, llv-18. A distinção tinha importância, pois uma vez libertada a pessoa não podialegalmente ser reduzida à condição de escrava.17. Quanto à discussão sobre os deveres exigidos culturalmente com relação aos escravos,vide QRAHAM, Lauderdale, op. cit., 3, pp. 91-96.18. Ana Valentina da Silva, 1869, fls. 3-3v, 10, 11, 17, 20v, 71, 74, 109v.19. Ana Valentina da Silva, 1869, fls. 10, 20v. A roda era a base de um cilindro giratóriona qual se podia colocar mercadorias ou uma criancinha, a partir da rua, que a seguirgiravam e eram recebidas por alguém de dentro, sem que qualquer das partesfosse visível para a outra. De uso comum nos conventos das ordens de clausura, aroda tornou-se uma instituição social no Brasil, vide FAZEMDA, José Vieira. "A roda(casa dos expostos)". In: Revista do Instituto Histórico e Qeográfico Brasileiro, tomoLXXI, vol. 118, parte II, 1908, p. 155; SOARES, Ubaldo. O passado heróico da Casados Expostos. Rio de Janeiro: Fundação Romão de Matos Duarte, 1959, p. 228;QRAHAM, Lauderdale, op. cit., p. 84.20. Carta de Liberdade (doravante citada como CL), Rio de Janeiro, I de março de 1871,oAMSPJ, Cartório do Primeiro Ofício, Registro Geral, livro 77, 1870-71, fls 108V-109(doravante citado como AMSPJ CPO); Julia Catarina Cortai, 1871, fls. 27-30v, 21, 22v;Francisco de Faria Lemos, chefe de polícia, "Relatório do chefe de polícia da Corte".In: Brasil, Ministério da Justiça, Relatório, 1871, pp. 21-22; uma tradução da parteprincipal do relatório consta em COMRAD, Robert E. Children of gods fire: adocumentary history of black slavery in Brazil. Princeton: Princeton University Press,1983, pp. 130-2 (as traduções do relatório original são minhas).21. Juízo de Direito da la. Vara Cível, ré, Honorata, crioula. Rio de Janeiro, 1873, maço2.385, n. 2.088, fl. 5v. Sobre escravos abandonados, vide Brasil, leis, estatutos etc.Coleção das leis do Brasil, decreto 2.433, de 15 de junho de 1859, cap. IV, art. 85,"São bens do evento os escravos, gado ou bestas, achados, sem se saber o dono aquem pertença" (doravante citada como as leis do Brasil); e o comentário feito porSAES, Décio. A formação do estado burguês no Brasil, 1888-89. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1985, pp. 142-3.22. Quanto ao número de mulatos e negros livres, vide a nota 5. Leonarda Maria daConceição, 1871, fl. 14; Maria Elentéria Borges de Albuquerque, 1872, fls. 3, 18,67v; Honorata, 1873, fls. 25, 27-27v.23. Ela não era a única. Alexandrina Rosa de Jesus mandou citar o próprio juiz por 'expag.60.jan/dez 1996


R V Ocesso de autoridade' que [a] privava da posse da escrava mulata Ana ... e dos ganhosdiários desta'.Vide Juízo de Direito da la Vara Cível, Protesto, réu, Miguel José Tavares,Rio de Janeiro, 1871, AMSPJ, maço 581, n. 4.399, fls. 2,6; vide também Juízo Municipal,la Vara Cível, autos de requerimento, suplicante, Fortunée Levy, Rio de Janeiro,1871, AMSPJ, caixa 7.286 (nova catalogação); Julia Catarina Cortai, 1871, fl.9).24. Juízo de Direito da 2a. Vara Cível, execução de sentença, ré, Honorata, crioula, Riode Janeiro, 1873, AMSPJ, maço 2.385, n. 2.088, fls. 23, 26, 27-28.25. Embora o caso tratasse somente da escrava Belmira, ela é inicialmente relacionadacomo uma das seis escravas que instauraram processo contra seus senhores - duasmulheres e quatro homens - por sua liberdade. A história de Belmira foi tomada de:Corte de Apelação, Ação de Liberdade pela Belmira por seu curador, réu, Franciscoda Veiga Abreu, Rio de Janeiro, 1872, AMSPJ, caixa 11.158 (nova catalogação), especialmentefls. 2, 4v, 11, llv, 12, 20, 21, 21v, 22, 32, 33, 33v, 35v-37v, 39v, 40, 41v,44v, 45, 46v, 47v, 60.26. Ela foi descrita por outros de várias maneiras, como mulata, cabrinha, ou fula.Otermo fula, anteriormente usado para negros originários ou descendentes de africanosda Guiné, cujo cabelo era encarapinhado e de cor amarelo-avermelhada, veio asignificar simplesmente mestiça, alguém que descendia de pais negros e brancos ounegros e mulatos. Vide Novo dicionário da língua portuguesa, comp. por AurélioBuarque de Holanda Ferreira. Rio de Janeiro: Mova Fronteira, 1975.27. As coincidências se amontoam. Mo mesmo dia em que Honorata fugiu para a polícia,para prestar sua declaração, as seis escravas identificadas no caso de Belmira foramretiradas da guarda de seus senhores; o curador nomeado para Honorata tambématuou para uma das seis escravas no caso de Belmira; e o advogado de defesa deMaria Elentéria de Albuquerque também defendeu outros senhores de escravos. Franciscoda Veiga Abreu, 1872, fls. 11, 43-43v, 46; Maria Elentéria Borges de Albuquerque,1872, fls. 14-14v, 81, 105v-106v.28. O cargo de Tavares era coerente com a lei. Desde a década de 1840, haviasuperposição das funções policiais e judiciais, o que conferia considerável poder àpolícia. Em setembro de 1871, uma lei que reformou o procedimento judicial separouas funções. A partir de novembro, quando a lei entrou em vigor, um juiz nãopodia mais atuar como comissário de polícia. Em outubro, Tavares havia sido substituídocomo juiz, não estando claro se isso ocorreu em cumprimento antecipado dalei ou em virtude de seu mandato ter terminado. Vide a lei n° 2.033, de 20 de setembrode 1871, Leis do Brasil, art. I, parágrafos 4,5,6; decreto n° 4.824, de 22 deAcervo. Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 53-66. jan/dez 1996 - pag.6!


A C Enovembro de 1871, Leis do Brasil, Artigos 7 e 9.29. Quanto ao texto da carta extraordinária enviada ao ministro da Justiça e incluída norelatório anual deste ao Parlamento, vide Miguel José Tavares, juiz municipal, 2a.Vara, para Francisco Faria Lemos, chefe de polícia, Rio de Janeiro, 18 de março de1871, em chefe de polícia, "Relatório". In: Brazil, Ministério da Justiça, Relatório,1871, p. 21; para correspondência adicional, vide Miguel José Tavares para Franciscode Faria Lemos, Rio de Janeiro, 18 de fevereiro de 1871; ofício do chefe de polícia daCorte ao ministro e secretário dos negócios da Justiça, Rio de Janeiro, 20 de fevereirode 1871; e chefe de polícia, Francisco de Faria Lemos, ao juiz municipal da 2aVara, Rio de Janeiro, 18 de janeiro de 1871, toda ela na Documentação não catalogada(5B-511), 17.4, Instituições Policiais/Polícia da Corte, AMSPJ.30. As cartas de alforria padrão são abundantes; para exemplos específicos, vide CL, Riode Janeiro, 3 de fevereiro de 1871, 23 de fevereiro de 1871, 18 de abril de 1871,AMSPJ, CPO, Registro Geral, liv. 77, 1870-71, fls. 95v-96, 103-103v, 122; CL, Rio deJaneiro, 9 de janeiro de 1871, AMSPJ, Cartório do 2 Ofício, Registro Geral, liv. 107,o1870-71, fls. 133v, (doravante citado como AMSPJ, CSO); CL, Rio de Janeiro, 5 dejaneiro de 1871, 12 de janeiro de 1871 e 16 de janeiro de 1871, AMSPJ, Cartório doTerceiro Ofício, Registro Geral, livro 32, 1870-71, fls. 69v, 71, 74-74v (doravantecitado como AMSPJ, CTO).31. Quanto aos meses de janeiro até abril inclusive, vide Registro Geral, AMSPJ-CPO,liv.77, 1870-71, fls. 89-124; CSO, liv. 107, 1870-71, fls 131v-178v; CTO, liv. 32, fls.68v-98v e liv. 33, 1870-71, fls. 10-24; os de fevereiro e março de 1871 contrastamclaramente com as do mesmo período no ano anterior, quando a maioria dos escravoslibertados era mais velha e muitos deles eram homens (vide Registro Geral, AMSPJ-CPO, liv. 74, 1868-70, fls. 155-185).32. CL, Rio de Janeiro, 23 de fevereiro de 1871, AMSPJ,CPO, Registro Geral, livro 77,1870-71, fl. 103v; Rio de Janeiro, 23 de fevereiro de 1871, AMSPJ, CSO, RegistroGeral, liv. 107, 1870-71, fl. 158; CL, Rio de Janeiro, 23 de fevereiro de 1871, AMSPJ,CTO, Registro Geral, liv. 32, 1870-71, fl. 90.33. CL, Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 1871, AMSPJ, CPO, Registro Geral, liv. 77,1870-71, fls. 108-108V.34. CL, Rio de Janeiro, 22 de abril de 1871, AMSPJ, CPO, Registro Geral, liv. 77, 1870-71,fl. 122v; escritura de locação de serviços, Rio de Janeiro, 24 de abril de 1871, AMSPJ,CPO, Escrituras, liv. 315, fls. 34v-35. A liberdade condicional era efetivada por umacordo notarizado e legalmente vinculatório que podia ser registrado separadamenpag.62,jan/dez 1996


R V Ote, uma vez que a mulher fosse libertada, ou incluído na carta de alforria dela. Umarranjo desses deixava as escravas em uma situação altamente ambígua. AgostinhoMarques Perdigão Malheiro argumentou que a partir da data do contrato, a liberdadenão podia ser revogada e a escrava não podia ser hipotecada nem vendida, porém sótinha um direito futuro à liberdade plena, vide A escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social.3 partes em 1 volume. Rio de Janeiro: Tip. nacional, 1866-67,par. 112-3, pp. 144-5; par. 125, pp. 160-72.35. Brasil, Ministério da Justiça, Relatório (1870), 61; Francisco de Faria Lemos, Secretariade Polícia da Corte ao ministro da Justiça, Rio de Janeiro, 25 de julho de 1870,Confidencial, Arquivo nacional, Seção do Poder Executivo, IJ-6, 518, Secretaria dePolícia da Corte, ofícios com anexos, 1870-73; REGO, José Pereira. "Relatório dopresidente da Junta de Higiene Pública", anexo H, p. 7. In: Brasil, Ministério da Justiça,Relatório (1870).36. Jornal do Comércio (doravante citado como JC), 16 de fevereiro de 1871, 'Gazetilha',p. 1, col. 2; 26 de fevereiro de 1871, p. 1, col. 3; 12 de março de 1871, p. 1, col. 4; 26de março, p. 1, col. 5.37. JC, 19 de fevereiro de 1871, p. 3, col. 5; 21 de fevereiro de 1871, p. 2, col. 4, 22 e 23de fevereiro de 1871, p.l, col. 6, 6 de março de 1871, p. 1, col. 6; 24 de março de1871, p. 3, col. 3; Diário do Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 1871, p. 1.38. AZEVEDO, Luiz Correia de. "Da prostituição no Rio de Janeiro". In: Anais Brasiliensesde Medicina, 21:6, novembro de 1869, pp. 210-2, 215-6, 222, 223-4, Catarina Cortai(1871), fls. 27-30v, 21, 22v.39. AZEVEDO, L. C. de, op. cit., pp. 212, 225-6. Quanto a discussões recentes sobre odiscurso do controle e das zonas nas quais podia ser permitido o comportamentosexual promíscuo e explícito, por estar contido e sanitarizado, vide SOARES, LuísCarlos. "Da necessidade do bordel higienizado: tentativas de controle da prostituiçãocarioca no século XIX" e EnGEL, Magali G. "O médico, a prostituta e os significadosdo corpo doente" In: História e sexualidade no Brasil. Ronaldo Vainfas, ed. Rio deJaneiro: Graal, 1986, pp. 143-68 e 169-90; EnGEL, Magali G. "A cidade, as prostitutase os médicos". In: Revista do Rio de Janeiro, 1:3, agosto de 1986, pp. 31-39.40. [Proposta], Rio de Janeiro, [1879], Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Prostituição,Projetos ... da Junta Sanitária Policial baseados nas deliberações da AssembléiaLegislativa, 1878, 1879, 1884, cod. 48-4-59, fls. 3, 4, 11, 16; Brasil, Ministérioda Justiça, Relatório (1875), 184; mesmo tardiamente, em 1883, Joaquim nabucoescreveu que os senhores podiam ainda empregar suas escravas como prostitutas.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 53-66, Jan/dez 1996 - pag.63


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A C Esem perigo de perder sua propriedade (O Abolicionismo[1883; rpt. Recife: FundaçãoJoaquim Nabuco, 1988], p. 130).41. Para Fins de comparação dos detalhes da regulamentação estatal, são especialmenteúteis as seguintes obras: HARSIM, Jill. Policing prostitution tn nineteenth-centuryParis. Princeton: Princeton University Press, 1985; QIBSOM, Mary. Prostitution andthe State in Italy, 1860-1910. Mew Brunswick: Rutgers University Press, 1986, especialmentepp. 13-23; e WALKOWITZ, Judith. Prostitution and victorian society: women,class and the State. Cambridge: Cambridge University Press, 1980; CORBIN, Alain.Women for hire: prostitution and sexuality in France after 1850. Alan Seridan, tradutor.Cambridge: liarvard University Press, 1990. Segundo EVANS, Richard. "Prostitution,State and society in imperial Germany". In: Past and Present, 70 [1976, 106-29, fevereirode 1976], a preocupação era acerca da influência corruptora de um ambienteurbano, que se industrializava. Sobre os Estados Unidos, vide CONNELLY, Mark T. Theresponse to prostitution in the progressive era. Chapei Hill: University of North CarolinaPress, 1980. Quanto a exemplos de duas sociedades em que a prostituição legalizadaestava em questão, vide PERRY, Mary Elizabeth. "Deviant insiders: legalizedprostitutes and a consciousness of women in early modern Seville". In: ComparativeStudies in Society and History. 27:1, janeiro de 1985, pp. 138-58; e QUY, Donna J."White slavery, public health and the socialist position on legalized prostitution inArgentina". In: Latin American Research Review, 23:3, 1988, pp. 60-80. O temor dochefe de polícia brasileiro, de que mulheres comuns pudessem ser presas por acaso,ocorreu de fato na Inglaterra e na França, fazendo com que os reformadores se mobilizassemcontra os regulamentos, vide HARSIN, op. cit., e WALKOWITZ, op. cit.42. Chefe de polícia da Corte, "Relatório do chefe de polícia". In: Brazil, Ministério daJustiça, Relatório (1871), p. 21.43. Juízo Municipal da 2a. Vara da Corte ao chefe de polícia, Rio de Janeiro, 17 de outubrode 1871, e chefe de polícia ao ministro da Justiça, Rio de Janeiro, 19 de outubrode 1871, Confidencial, ambos em ANSPE, IJ-6, 518, Secretaria de Polícia da Corte,ofícios com anexos, 1870-73.44. BERQSTRESSER, Rebecca Baird. The movement for the abolition of slavery in Rio deJaneiro, Brazil, 1880-1889. Tese de doutorado, Departamento de História, StanfordUniversity, 1973, pp. 101, 104-5; Cleria Leopoldina de Oliveira, 1871, fls. 2,3.45. MELLO, Américo Brasiliense de Almeida, ed. Os programas dos partidos e o SegundoImpério. Primeira parte: exposição de princípios. São Paulo: Seckler, 1878, pp. 59-88;HOLANDA, Sérgio Buarque de, "O manifesto de 1870". In: História geral da civilizaçãopag.64. jan/dez 1996


R V Obrasileira, tomo II: O Brasil monárquico, vol. V: Do Império à República. São Paulo: DifusãoEuropéia do Livro, 1972, pp. 256-70; SANTOS, José Maria dos. Os republicanospaulistas e a abolição. São Paulo: Livraria Martins, 1942, pp. 45-71, 98-105.46. BEIQUELMAN, Paula. Formação política do Brasil, vol. I: Teoria e ação no pensamentoabolicionista. São Paulo: Pioneira, 1967, 1, p. 120.47. Termo de declaração feito por Romualda Maria da Glória perante o chefe de polícia,Francisco de Faria Lemos, Rio de Janeiro, 10 de outubro de 1871 e Segunda delegaciade polícia, Miguel José Tavares ao chefe de polícia, Francisco de Faria Lemos, Riode Janeiro, 11 de outubro de 1871, ANSPJ, IJ, 518, Secretaria de Polícia da Corte,ofícios com anexos, 1870-73; Brasil, Ministério da Justiça, Relatório (1871), 22.48. CORBIN, Alain. "Commercial sexuality", pp. 210-2; ENGELSTEIN, Laura. "Morality and thewooden spoon: russian doctors view syphillis, social class and sexual behavior - 1890-1905". In: The making of the modern body: sexuality and society in the nineteenth century.Catherine Gallagher e Thomas Laquer, editores, [Berkeley: University of Califórnia Press,1987], pp. 169-208, argumentam a favor de uma visão ambivalente, pois embora sepensasse que a sífilis se originasse em cidades com prostitutas, as pessoas que viviamem áreas rurais acreditavam que a doença se espalhava pelo compartilhamento de xícaras.Em 1845, Cunha, Dissertação sobre a prostituição, 24-33, citado em Soares, LuisCarlos, Rameiras, ilhoas e polacas, caracterizava as amas de leite como sedutoras, gerandocorrupção moral e, portanto, causa da prostituição, ponto de vista esse que aparentementenão persistiu em décadas posteriores (vide GRAHAM, Lauderdale, op. cit.,esp. pp. 117-36).49. Quanto a uma discussão informativa das obras de Alexandre-Jean-Baptiste Parent-Duchâtelet sobre esgotos e prostitutas, ambas publicadas em 1836, vide HARSIN,Jill, Policing prostitution, xv-xvi, pp. 96-130.50. Chefe de polícia, "Relatório", em Brasil, Ministério da Justiça, Relatório (1871), 21.51. KIDDER, Daniel P. e FLETCHER, James C. Brazil and the brazilians portrayed in historicaland descriptive sketches. Filadélfia: Childsand Peterson, 1857, pp. 29-30, 135; EWBANK,Thomas. Life in Brazil or a journal of a visit to the land of Cocoa and the Palm. 1856, rpt.Detroit: Blaine Ethridge Books, 1971, pp. 117-9; Francisco Peixoto de Lacerda Werneck(barão do Pati do Alferes), para Bernardo Ribeiro de Carvalho, fazenda Monte Alegre, 31de março de 1856, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, Seção de Arquivos Particulares, Afamília Werneck, cód. 112, vol. 3, copiador I, fls. 352.52. Discurso de Francisco de Paula de Negreiros Sayão Lobato, 9 de setembro de 1871,Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 53-66. Jan/dez 1996 - pag.65


A C Eem Brasil, Congresso, Discussão da reforma do estado servil na Câmara dos Deputadose no Senado, 1871, 2 vols. Rio de Janeiro: Tip. nacional, 1871, II, pp. 346-7.53. Arquivo de Tavares Bastos, Escravidão, vol. IV, 1870, fl. 97, e o recorte de jornal nafolha 98, Biblioteca nacional. Seção de Manuscritos, 11, 1, 17. nos Estados Unidos, oestigma da condição de estrangeiro estava associado às prostitutas, não a seusproxenetas. Vide FELDMAn, Egal. "Prostitution, alien women and the progressiveimagination, 1910-1915. In: American Quarterly, 19, [verão de 1967], pp. 192-206;e HIRATA, Lucie Chaeng. "Free, indentured, enslaved: chinese prostitutes in nineteenthcenturyAmerica". In: Signs, 5:1, [outono de 1979], pp. 3-29.54. JC, 26 de fevereiro de 1871, p. 3, cols. 2-3.55. O advogado de Honorata, José Antônio de Azevedo Castro, recorreu ao argumentodo jurista Perdigão Malheiro, baseado no direito romano, de que, em alguns casos,as escravas deveriam ser libertadas mesmo contra a vontade de seus senhores, MariaElentéria Borges de Albuquerque, 1871, fl 14v. Vide MALHEIRO, Perdigão, A escravidãono Brasil, I, seção 3a, 'Terminação do cativeiro", art. 111, par. 95, n. 8, nota 507.As citações em Leonarda Maria da Conceição, 1871, fls. 47, 48 incluem: lei, de 18 deagosto de 1769, que 'substituiu o direito romano"; Constituição [do Brasil, 1824];cód[igo criminal?], liv. 6, tít. 7, pg. 4; Ord[enações Filipinas], liv. 4, tit. 11, p. 4; estasúltimas são consultadas, da forma mais útil, na edição de 1870, em virtude das extensasnotas relacionarem a aplicabilidade da lei ao Brasil contemporâneo: Almeida,comp.. Código Filipino, 1870, liv. 4, tit. 11, p. 4, n. 1.56. A estimativa consta do discurso de Agostinho Marques Perdigão Malheiro, 12 de julhode 1871, Brasil, Congresso, Câmara dos Deputados, Anais, 1871, III, pp. 121-2.57. Decreto n. 1.695, de 15 de setembro de 1869, Leis do Brasil, especialmente arts. 1e 2; embora enfocasse o papel de José Thomaz nabuco, a história mais abrangente éa de Joaquim nabuco. Um estadista do Império (1897-99; rpt Rio de Janeiro: Editoranova Aguilar, 1975), especialmente pp. 606-746; Beiguelman, Formação política,pp. 110-7; em inglês, um estudo útil destas medidas é o de COnRAD, Robert. Thedestruction of brazilian slavery, 1850-88. Berkeley: University of Califórnia Press,1972, pp. 73-76.58. BEIQUELMAH, Paula. "O encaminhamento político do problema da escravidão no Império".In: História geral da civilização brasileira. Sérgio Buarque de Holanda, ed.Tomo II: O Brasil monárquico, vol. III: Reações e transações. São Paulo: DifusãoEuropéia do Livro, 1969, p. 205; BEIQUELMAn, Paula. Formação política, I, pp. 110-pag.66. jan/dez 1996


R V O1, 113-7; PARANHOS, José Maria da Silva, barão do Rio Branco II. O visconde do RioBranco. Rio de Janeiro: "A Noite" Editora, n.d.), pp. 175-80; SANTOS, José Maria dos.A política geral do Brasil. São Paulo: J. Magalhães, 1930, p. 101.59. PARANHOS, José Maria da Silva. O visconde do Rio Branco, pp. 194-7; BEIQUELMAN,Paula. Formação política, pp. 117-21; TORRES, João Camillo de Oliveira. O Conselhode Estado. Rio de Janeiro: Edições QRD, 1965, p. 44.60. Dom Pedro II, " Fala do trono na abertura da Assembléia Geral, 3 de maio de 1871".In: [Brasil, Congresso], Taias do trono desde o ano de 1823 até o ano de 1889. SãoPaulo: Melhoramentos, 1977, p. 397; Anti-slavery repórter, 1 de julho de 1871, p.149; BEIGUELMAN, Paula, formação política, I, 121.61. Discurso de João de Almeida Pereira, 2 de agosto de 1871, Brasil, Congresso, Câmarados Deputados, Anais, 1871, IV, pp. 25, 31-32.62. Discurso de Agostinho Marques Perdigão Malheiro, 10 de julho de 1871 e 12 de julhode 1871, Brasil, Congresso, Câmara dos Deputados, Anais, 1871, III, pp. 52, 122.63. Discursos de José Antônio Pimenta Bueno e Francisco de Paula de Negreiros SayãoLobato, 9 de setembro de 1871, em Brasil, Congresso, Discussão da reforma doestado servil, II, pp. 330-1 e 345.64. Cândido Mendes de Almeida, em Brasil, Congresso, Discussão da reforma do estadoservil, II, p. 522.65. Citado no discurso de Francisco de Paula de Negreiros Sayão Lobato, 31 de maio de1871, em Brasil, Congresso, Discussão da reforma do estado servil, I, p. 44.66. DEAN, Warren. Rio Claro: a brazilian plantation system, 1820-1920. Stanford: StanfordUniversity Press, 1976, especialmente pp. 124-30; sobre o regionalismo, vide CONRAD,Robert. The destruction of brazilian slavery, especialmente pp. 90-105.67. Lei n. 2.040, de 28 de setembro de 1871, Leis do Brasil, especialmente o art. I, art.4, parágrafos 1,2,3. Uma tradução inglesa do texto integral, tomado de British andForeing State Fapers, LXI1 (1871-72), pp. 616-20, consta de CONRAD, Robert, Thedestruction of brazilian slavery, apêndice II, pp. 305-9.68. HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira, tomo II, OBrasil monárquico, vol. V, Do Império à República, p. 144.69. Maria Elentéria Borges de Albuquerque, 1872, fls. 14, 14v.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 53-66, Jan/dez 1996 - pag.67


A B S T R A C TThis article discusses social practices, everyday routine and the social and juridical conflictsrelated to slave prostitutes and their mistresses during the 1860's and 1870's. The textalso discusses the campaign of the abolicionists which culminated in the Brazilian SlaveryLaw of 1871, also known as the Law of the Free Womb.R É S U M ÉII sagit des pratiques sociales, rapports quotidiens et conflits sociaux et juridiquesconcernant les esclaves destinées à la prostitution et leurs seigneurs aux années 1860 et1870. Le texte discute aussi la campagne des abolitionnistes, qui a culmine avec la Loidu Ventre Libre, en 1871, et ses conséquences sur la prostitution des esclaves.


Georgina Silva dos SantosProfessora assistente do Departamento de História da UniversidadeFederal Fluminense.A santa e o lavradorsgênero e poder na Baixa IJade MéJiaportuguesa (1282 - 1325)Arealeza medievalrendeu à historiografiacontemporâneamuitas obras de pesoMarc Bloch, Kantarowicz eJacques Le Qoff situam-se, certamente,no primeiro time dos pesquisadores que apartaram a história políticado ranço positivista. Incluindo em suasanálises uma perspectiva interdisciplinar,estes autores fizeram do circuito de produçãode símbolos e práticas culturaisuma rica fonte de aproximação com asredes de projeção e constituição do poder.Outrora reconhecido como "anedótico,factual, elitista e psicologizante",'nestesdias, como um terreno privilegiado paraa observação das representaçõessociais, o campo de estudospolíticos enriqueceusua abordagem com os empréstimosconceituais de outrasáreas do conhecimento. Todavia,em meio ao farto elenco deestudos sobre a construção da estampareal, sobre a 'fabricação do rei', sua funçãotaumatúrgica ou seus gestos de piedade,a figura política da rainha desconheceua mesma atenção.Restritas a relatos curiosos, eclipsadaspelas ações dos monarcas e outros sujeitosmasculinos, as soberanas foram tratadas,salvo raras exceções, como coadjuvantesde parco brilho no processo histórico.Pouco se discutiu sobre as articu-Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 69-84. jan/dez 1996 - pag.69


A C Elações políticas em torno destas personagens,sobre a importância de suas imagenspara a promoção do consensus sociale elaboração de um paradigma feminino.Afirma-se, no entanto, que a Idade Médiafoi a Idade dos Homens'; que os mesmosa ostentar o hábito, a espada e a lavrar aterra selaram modelos ideais de regra econduta. Esta sentença, legitimada pelapreponderância e veemência dos registrosmasculinos envergados pela voz de clérigos,físicos, juristas e trovadores,minimiza o papel das filhas de Eva noOcidente medieval. Atrizes deste tempo,elas responderam às silhuetas delineadaspelos valores vigentes, ora integralizandoas representações acerca do feminino, orarenegando estas mensagens.Na intenção de enfatizar a dominação masculinacristã, cunhada e aperfeiçoada em ummilênio, aquele jargão de forte apelo editorialnega a lembrança de que estas falasmasculinas, tributárias da matriz paulina eagostiniana, foram tão contundentes porqueas margens de desvio eram mais amplasdo que se possa supor.Uma análise mais atenta à questão do gênerodemonstra que o produto da elaboraçãocultural que a sociedade opera sobreuma pretensa natureza norteia os discursosde época. Destarte, valendo-se de um2extenso processo pedagógico, a Idade Médiaevocou para a figura feminina uma partilhatenaz de espaços e funções onde asassociações masculino/público, feminino/privado fizeram-se parecer natural.A figura da rainha, entretanto, atravessaestas duas esferas. É esposa do monarca,mãe do herdeiro legítimo, 'senhora dopaço'. Seu lugar no cenário político exige,porquanto, uma atuação pública. Afinal,representa, em última instância, aolado do rei, o Estado e seus súditos. Ésocialmente previsto que homens e mulhereslhe devam obediência. Contudo,para que este papel seja desempenhadoem uma sociedade rigidamentehierarquizada, é mister que seu perfil respondaaos códigos de comportamentomodelares. Por outro lado, é necessárioque fale de perto à memória afetiva daquelesa quem governa.O torrão lusitano foi testemunha de umprojeto centralizador monárquico aindaem meados da Baixa Idade Média. A realezaoperou esta empresa através da imposiçãoarmada, de medidas administrativaspouco simpáticas à nobreza senhorial,de uma corte requintada onde o ritmodos jograis fazia vibrar as paredes dopaço, mas também através da estampamariana de sua soberana.SALVE, RAINHA!Se a Alta Idade Média foi uma arenaonde as resistências pagas sedegladiavam com a falta de apelodidático dos ritos católicos, conformandouma espiritualidade matizada por crençasdiversificadas, se foi um palco onde atradição veterotestamentária atuou comoum suporte ideológico para a construçãodo poder temporal, o período posteriorcedeu o solo para movimentos heréticospag. 70. jan/dez 1996


S U M A R I01Apreseníaçáo03Uma tela alma exigia um belo corpo?Mulkcrcs, religiosidade c aparência pessoal nt\ Inglaterra do século XVIIAnne Laurence17A guardiã da memóriaAngela de Castro Qomes31O impasse da escravatura: prostitutas escravas, suas senkoras ea lei brasileira de 1871Sandra Lauderdale Granam69A santa e o lavrador: gênero e poder na Baixa Idade Médiaportuguesa (1282 - 1325)Qeorgina Silva dos Santos85Mulheres e patrimônio familiar no Brasil no fim do período colonialMaria Beatriz Nizza da Silva99Mulheres em busca de novos espaços e relações de gêneroRachel Soihet125Gênero e construção do simbólico na literaturaEni de Mesquita Samara


R V Ode expressiva ressonância, que revolveramfósseis acumulados e superpostos dafé popular.Em contrapartida a esses salteadores dadoutrina católica, o cuidado pastoral intensificou-se.Mele, o Evangelho e o Cristotransformado foram apontados comoesteio e cura para as chagas abertas. 3Jesus deixou então de ser apenas a segundapessoa da Santíssima Trindadepara ser também o pobre. Por isso, a indigência,considerada antes um castigo,apresentou-se como uma oportunidadepara o crescimento espiritual.Deste modo, seguir a Cristo era tomá-lo nasua pobreza evangélica, na solidão e no silêncio,na ausência do luxo e da ostentação.E mais, era fazê-lo presente em umacaridade ritualizada, fosse com a adoção deinfelizes privados de pão e dinheiro, fosselavando os pés de um leproso.A Boa nova calcada em um ideal de castidade,vida comunitária e serviço litúrgicogerou um esforço de muitos laicos paraimitar as regras do monacato. não comoum movimento de 'mimetismo' ou'osmose' e sim como o despertar de umanova consciência religiosa. 4neste bojo, a fascinação pela proezaascética e as mais variadas formas de mortificaçãolevaram a compensar a própria incapacidadede ler e meditar sobre a palavrarevelada. A obsessão pela salvação daalma encontrou-se no desejo de imitar Cristoem sua dor. Logo, logo, ascetismo,autoflagelação, peregrinação e caridadeequacionaram um padrão de santidade.Invocar o filho, dar relevo à Paixão era,por conseguinte,evocar a mãe: suas agruras,sua obediência cega aos desígnios divinos.Doravante, Maria, mãe de toda acristandade, passava a exercer o papel deintercessora. Destarte, era umataumaturga capaz de advogar junto àsdores e aflições de toda a sorte. Portanto,o universo espiritual da Baixa IdadeMédia reservou-lhe um lugar naafetividade dos homens e mulheres destetempo.A península Ibérica via-se comprometidacom este circuito de fé, com esta "dinâmicaque imprime um sentido, um modode ler o mundo". Contudo, o intento de5construir uma memória política e socialera também uma tarefa a ser desempenhadapelos reinos de Leão, Castela,Aragão, navarra e Portugal. 6Manter-se envolvido nas lutas da Reconquista,erguer-se sobre os infiéis, era decertouma maneira de cunhar uma imagemcristã, além de assegurar a posse eo poder sobre áreas economicamenteimportantes, no entanto, os códigos decompreensão destes territórios políticos,que se apresentaram, na verdade, comouma província do religioso, fizeram com7que seus governantes buscassem garantirpara si uma estampa que interceptasse,na construção de um projetocentralizador monárquico, as artérias querespondiam no coração do imagináriocristão, neste momento, aos olhos dosautores eclesiásticos, as rainhas, damasAcervo. Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 69-84. jan/dez 1996 - pag.71


A C Ee imperatrizes cuja firmeza de condutaaproximava-se dos predicados marianoseram dignas de elogio. 8Portugal nâo se colocou à margem destemovimento. O culto mariano encontrouem sua extensão geográfica um númeroconsiderável de fiéis, comprovado pelaedificação de santuários e a consagraçãode datas festivas em homenagem à nossaSenhora. não obstante, o fervor reli­9gioso à Virgem também serviu à cena política.O reinado de d. Dinis (1279-1325),sexto na sucessão da dinastia deBorgonha, absorveu como uma malhaeste clima espiritual.O CENÁRIO DION1SINOEm 1282, quando d. Isabel de Aragão casou-secom d. Dinis e subiu ao trono português,os limites entre o poder régio esenhorial eram ainda bastante tênues.D. Dinis. o rei Lavrador. H. Morse Stephens. História de Portugal.pag. 72, Jan/dez 1996


R V OMuitas das funções que no futuro caberiamexclusivamente ao rei ou ao Estadoeram ainda exercidas por senhores. Porém,a esta época, a autoridade real erareconhecida pelos demais detentores depoderes públicos ou privados, qualquerque fosse a maneira como partilhavamcom o monarca esta autoridade. 10Com efeito, a vastidão dos domínios régiosconduziu ao reconhecimento do rei como omais poderoso de todos os senhores. Maesteira de seu pai, Afonso III, o rei Lavradorfez suas as terras de ninguém e ao contrárioda maioria de outros senhores, seudomínio somava um conjunto considerávelde bens em várias cidades. A gerência destasposses, quer nas áreas urbanas, quernas áreas rurais, requisitou uma máquinaadministrativa capaz de controlar e tornarpresentes os interesses da Coroa. Portanto,ainda que contaminada por preceitos quepulverizavam o poder régio, a vigilância e oesforço para erguer uma autoridade únicae diferenciada estavam na ordem do dia."Fazendo-se representar por corregedores,mordomos-régios, almoxarifes eescrivães, d. Dinis buscou penetrar tambémnas áreas dos concelhos. Assim,embora reconhecesse a independênciadas jurisdições senhorial e concelhia, apolítica dionisina reclamava para si o papelde árbitro. Desta feita, o direito deintervenção do rei tornou-se uma fontede justificação e de sua autoridade.O empenho em distribuir pelo reino aquelesque fossem simpáticos às pretensõesmonárquicas manifestou-se também naintenção de domesticar o clero'; primeiro,favorecendo a eleição de religiosos desua confiança, depois, com a secularizaçãode algumas ordens militares. Mas, nãoseria possível desprezar a legitimação docircuito sagrado face ao caráter tambémdivino da função regia. Por isso, el rei nãose absteve de manter acesa suas relaçõescom a Santa Sé, ora através de generosasdoações ao papa, a exemplo de seugenitor, ora promulgando leis que favoreciamo clero contra a extorsão dos nobres.12O panorama político do reinado dionisino,apesar de seu caráter conciliatório, nãopassou sem guerras ou disputas civis.Contudo, o monarca soube, inegavelmente,dialogar com seus súditos e imprimirem seu governo um cunho nacional. Aooficializar a língua nativa, fundar universidadese promover em seus salões querelasjogralescas forjando uma imagem deelegância e sapiência, aos moldes de seuavô, d. Afonso X de Castela, el rei , tambémum trovador, esmerou-se para construiruma estampa que Fizesse lugar noseio da cristandade.O prestígio de d. Dinis adicionado ao seucarisma, aliás, elementos fundamentaisna constituição de uma força excedente,' 3atravessaram também os limites portugueses.Sua política externa teve no consórciocom a filha de d. Pedro111 de Aragãoe d. Constança de Navarra uma aliança depeso. Pois, afirmar-se no âmbito dasHispânias não significava isolar-se, massim associar-se.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n" 1-2, p. 69-84. jan/dez 1996 - pag.73


A C EA fama da princesa e decerto a proeminênciaA ROSA E O TROVADORRosa da Casa de Aragão. 18 rei trovador, mais próximo estava-se dedos guerreiros de sua casa atraí­Isabel era ainda uma criança quandoram cedo os olhares para aquele gineceude sua união com o rei trovador. Apesarde somar apenas onze anos deda virtude . Mão foram poucos os que cruzaramidade, já desfrutava de uma reputação suigeneris para uma menina. Conta-se queao "nascer em uma pele que de todoencubria a vista" pareceu revelar a todosque teria diante de si um destino di­14ferente. Tanto que, subtraindo as muitasdistâncias entre os aposentos do paço eos lares camponeses, sua mãe apressouseem fazer deste prenuncio celeste uma15relíquia.Recebido pelas criaturas deste mundo umdistâncias para desposá-la. Mo en­tanto, capaz de exibir tantos predicados,Isabel haveria de tornar-se logo uma rainha.Assim, até então adormecida para ascoisas do mundo, a Rosa recebeu o reitrovador como esposo e ascendeu ao tronoportuguês.Ao unir-se a d. Dinis, a soberana não desistiude sua profissão de fé e virtude. Fezse,pelo contrário, mais afeita aos motivosespirituais de sua geração. Divididasinal diferenciador, como uma marca deentre suas ações prediletas, 'orar' e 'jejuar',distinção e poder, o empelicado foi tomadocomo um presságio bendito pela parentelada princesa. Presa em uma caixaprata' que o tempo oxidou, mas libertapela pena dos memorialistas, à lembrançado empelicado juntaram-se outros atributosque fizeram da pequena Isabel amenina dos olhos de d. Jaime I.a rainha aprendeu cedo em terras lu­sas a conjugar também os verbos ofertare perdoar.Maqueles dias, já eram muitas as 'barregãs'do rei na corte e transcorreriam nove longosanos até que a rainha desse à luz ao infanted. Afonso. Mas, asseveram seus biógrafos, sea maternidade não conteve os arroubos depaixão d'el rei, tampouco desviou-lhe dosResponsável pela concórdia entre o avô eprincípios de devoção' iniciais. Portanto, continuava'envolta em cilícios', partidária das pe­o pai, dedicada aos 'exercíciosangélicos', amante das 'rezas, jejuns e10 regrinações, além de vigilante da educaçãocilícios', avessa às cantigas profanas, ados filhos e enteados que, segundo as mesmasjovem aragonesa, como São Luís de França,uma década antes, era "inimiga dosjogos e outras recreações inúteis". Destafeita, o mesmo a domar a força dos17infiéis em Maiorca, Valência e Múrcia, adiantoua todos que aquela seria "a melhormulher a sair daquele paço". Por isso, ofontes, 'tratava como seus'. 19O perfil de d. Isabel construía-se, destemodo, oposto à figura do rei d. Dinis.Quanto mais próximo estava-se da Rosa,mais próximo estava-se das coisas divinase angélicas, de um tempo de contemplação.conquistador cedeu-lhe o epíteto de aQuanto mais perto estava-se dopag. 74. jan/dez 1996


K V Oum mundo dinâmico, de lutas e conquistastemporais. A rainha apresentava-se 'retinha'e 'santa', como a mensagem viva dogineceu da virtude; o monarca, emcontrapartida, figurava como o suporte dagrandiosidade.O aparente antagonismo do casalgovernante constituiu, na verdade, umequilíbrio de forças no interior da Coroaportuguesa, na imagem que se quis projetar.Amante das 'vaidades e delícias', d.Dinis exprimia o ideal da nobreza cavalheiresca,senhorial e guerreira, destacando oespírito 'viril e colérico' da natureza masculina.Ela, de inclinação asceta, mostrouse,por sua vez, o protótipo do feminino,com características 'fleumáticas e melancólicas',próprias do temperamentum das20filhas de Eva. Neste sentido, ambos deramforma ao discurso religioso. Mas, tambémresponderam às expectativas populares. D.Isabel mais ainda que el rei.O formato da imagem do trovador atendiabastante bem a nobreza, enquanto a Rosaà Igreja, à religiosidade propagada pela'vanguarda espiritual' da cristandade: omonacato. Não obstante, se a esfera políticaé a seara onde o coletivo se enraíza e sereflete, quem falaria ao terceiro estado?Quem responderia as agruras da maioriada população, homens e mulheres sem 'ostentaçãoou luxo'? Quem seria capaz desublimar a hierarquia de uma sociedadeque ridicularizava os cavaleiros sem sanguenobre, os clérigos sem livros distantesdo poder do episcopado e ainda o camponêssem alódios ou arado? Por fim, quemfalaria aos pobres? 21A SANTA E O LAVRADORSe a caracterização dos personagens d.Dinis e d. Isabel serviu como um elo entrea realeza, os oradores e os defensores,como um meio de sublinhar a suaparecença com os códigos de comportamentopartilhados pela nobreza e peloclero, prestou-se, concomitantemente,à crítica dos segmentos populares.Registrada no Cancioneiro de Coimbra,oriundo do Romanceiro do Arquipélagoda Madeira, a lenda do Milagre das Rosas,de criação e domínio popular, tambémopõe rei e rainha.Esta rainha tão santamulher d'el rei dom Dinissó fez por servir a Deuse ele fez quantas quis.Toda Ias suas esmolassó em segredo Ias dava,'e uma vez qu' escondidasno regaço Ias levavaum cavaleiro privadoa el rei la delatava:correu e, perguntava:'- Que levais aí senhora,nesse regaço tamanho?- Eu levo cravos e rosasque outras coisas não tenho.- riem sequer há maravilhasmenos cravos e janeiro!Ou serão esmolas isso,ou isso será dinheiro?'La rainha não falouAcervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2, p. 69-84, jan/dez 1996 - pag.75


A C Esó Io regaço levantou,e eram cravos e rosasque dinheiro não se viu."Atrelada aos valores da época, esta composição,cuja data é difícil precisar, toma o reiLavrador como um sovina, insensível às práticasde caridade, mas qualifica sua esposacomo 'santa'. Contudo, esta Figura modelar,que segundo a lenda já nascera predestinadaao encontro com o sobrenatural, iludeo rei. De fato, como sugere a estaçãoem que se dá o milagre, ela trazia ao regaçoesmolas' e dinheiro'.A possibilidade de resistência ao paço, deatestar seu poder efêmero no mundo doshomens, intrínseca ao sentido desta cantiga,encontra seu caminho através da RainhaSanta. Logo, as vias para depurar estaautoridade que obedece a um tempo linearatravés dos laços de parentesco, que seimpõem sobre a força das armas, só sãofactíveis no circuito religioso. Para tanto, épreciso um poder sobre-humano.As cantigas, porém, não cessam em desafiara figura dei rei. Em outra composiçãodo Cancioneiro de Coimbra, um fun-Estampa popular do século XVIII, representando a Rainha Santa Isabel.Afonso Eduardo Martins Zuquete (dlr.). Nobreza de Ponxigal.pag. 76. Jan/dez 1996


Vocionário real anuncia a presença de umapaixonado nos aposentos da soberana.[Ela] doutra vez foi recolher-se[e] seu pobre n'alcova achou;e logo Io despe e lavae na cama Io deitou.Lo cavaleiro privadoa el-rei la delatoue el-rei de suspeitoso.acorreu, e lhe raivou:'- Pelejo, vosco, senhora,que sou vos agravado.na cama em qu'eu me deitoquem nela está deitado?E, mui iroso, el-reiIas roupas levantou:viu Jesus crucificado,e logo ajoelhou.Meu Bom-Jesus do Calváriomeu Jesus crucificadoemendai minha vida,emendai reinado.[•••]La nossa Rainha Santaoutros milagres obrou:[...]e com tantos milagressanta, bem santa, ficou. 23À semelhança do que se passa no Milagredas Rosas, a Rainha Santa que prestavacaridade a um pobre, ou seja, agia exatamenteconsoante os pressupostos religiososde seu tempo, viu-se imiscuída emuma situação vexatória por um 'certo cavaleiroprivado'. Todavia, por duvidar dapalavra feminina e deixar-se levar por intrigaspalacianas, d. Dinis acaba ajoelhadoaos pés do 'pobre-cristo'.Retratado como um homem 'suspeitoso',cobiçoso, o monarca mostra-se frágil diantedos mexericos alheios. Conforme oprimeiro, este milagre que ganhou estrofessonoras para o canto de tantos jograisda península ridiculariza a figura do rei.Ambos levantam, portanto, suspeitasquanto ao poder de base hereditária quelhe está na origem e questionam a fidelidadedaqueles que merecem a sua confiança.Pivôs da discórdia, aqueles que são'privados' ao rei, isto é, seus funcionários,estão do lado oposto aos pobres: osprelados longe do bispo, os camponesessubmetidos a taxações, os cavaleiros semprocedência nobre.Outro exemplo que integra aquele padrãoantagônico é o Milagre das Águas doTejo. * O que o diferencia dos demais é2sua situação em um ambiente externo aopaço e sua referência à Santa fria, cujomartírio integra o conjunto de episódiosmilagrosos de domínio popular.Reza a lenda que passeando nas praiasdo Tejo, d. Isabel, d. Dinis e sua comitivaviram abrir-se diante de si as águas dorio, 'qual um outro mar roxo', deixando àmostra o túmulo da padroeira deSantarém. Frente ao 'sacrossanto monumento'que se oferecia inédito aos olhoshumanos, a Rainha Santa caminhou depés enxutos até ele. Dispondo-se a fazero mesmo, d. Dinis viu o líquido agitar-sesob seus passos e, por isso, recuou até amargem, onde permaneceu até que a es-Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 69-84, jan/dez 1996 - pag.77


ACposa regressasse das orações. Em outraversão, o rei Lavrador, ao tentar fazer atravessia do lençol tejano, por pouco nãose afoga, sendo salvo por alguns dos presentes.É neste sepulcro oculto à visão, mas transparenteà memória afetiva lusitana, que apersonagem d. Isabel opõe-se mais uma vezà figura de d. Dinis, reafirmando o toposficcional dos milagres desta soberana.A exemplo da travessia feita por Moisés,a Rainha Santa caminha sobre uma superfícielíquida. Na passagem do AntigoTestamento, todo um povo massacradopela escravidão no Egito, submetido a umfaraó, pretenso deus vivo e encarnado,acompanhou seu líder até a Terra Prometida.Quando seus adversários tentaramfazer o mesmo, o mar, revolto, se fechou.No milagre que tem o Tejo por testemunha,apenas d. Isabel pôde andar sobre as águas.D. Dinis e o modelo que representa não foramdignos da mesma graça. Ele e seuspares ficaram retidos, presos à porta daestrada do paraíso. Não obstante, aquelaque reinou no coração dos pobres, que cristalizoua imagem da virtude e da caridade,que tornou presente a mensagem mariana,realizou a façanha.Comparada a Moisés, um ator masculino,a Rainha Santa desempenha o papel deum líder libertador. Pobres e oprimidossob o jugo de uma política centralizadora,impiedosa e sovina, encontraram em suasoberana a proteção. Pode-se dizer então,que a personagem política Isabel deAragáo emergiu deste conjunto de expectativasfrustradas. Em função de uma silhuetasanta e 'angélica' pôde atender aosapelos da maioria da população e, porisso, incrustou-se na memória coletivaportuguesa.Trata-se, entretanto, de uma mulher, gêneroque no imaginário cristão é, por 'natureza',híbrido, escorregadio, enganoso.Note-se que, mesmo se tratando de umarainha, há espaço para que outro cerquede suspeitas o seu comportamento. Aindaque Isabel omita, disfarce e recupereesta imagem, ela é uma mulher. Logo, avia de acesso à contestação é mais fluidaatravés dela.Rede de disseminação do poder de unssobre os outros, a relação masculino-femininoé elemento estruturante da polarizaçãoentre os segmentos sociais, édado constitutivo da experiência que confirmae fermenta a relação entre dominantese subalternas. Por ser uma possibilidadeimanente de transgressão e negaçãoda ordem, a imagem feminina temuma face ambígua no conjunto das representaçõescoletivas. Também por isso, elaé uma figura dialógica: capaz de se comunicare atender às expectativas do sociale ser tomada como consensus da ordeme da desordem. Conquanto, é umapotência aglutinadora, que superpõe funçõesdiferentes, capaz de servir a ideologiasdistintas. Por isso, ela é também umvértice de crítica.Observa-se que, nas cantigas populares,a imagem de d. Isabel reúne o lugarpag.78. jan/dez 1996


R V Oparadigmático da virtude, materializadonos gestos caridosos perante os pobres,e, simultaneamente, o lugar da resistênciaao poder público e masculino quedesconsidera a palavra feminina.vina como o homem.Principal afluente da corrente patrística,o pensamento agostiniano serviu-se dasbases neoplatônicas, das reflexões culturaisgreco-latinas, para iluminar a Escri-Com efeito, não é possível negar que as - Caracterizado por uma perspectivat u r acantigas populares foram mais generosas evolucionista e hierarquizante, o discurcoma Rainha Santa do que com o rei s o d o S a n t o gênero hu-P a d r e a c e r c a d oLaurador. As composições insistem em sa- m a n o bastante fidedigno à valsaf o ilientar a completa ignorância de d. Dinis paulina. Diga-se, com ênfase, a "origemno que tange à santidade da rainha. To- ambigüidades do cristianismo em redavia,d a sseria por demais ingênuo pensar Ç l a a o a 9ura feminina"." Ma Primeirand a sque a política dionisina não teve nenhu- Epístola a Timóteo, discorrendo sobre oma contribuição na elaboração desta per- comportamento das mulheres, São Paulosonagem política. A apropriação que se prescreveu:fez dela pode ter servido à sátira do po- a s mulheres que elas tenham roudertemporal, mas ela foi de fato um dis- p a s decentes, se enfeitem com pudor ecurso do paço. Deslocá-la de seu lugar25 modéstia; nem trancas, nem objetos dede produção seria negar, inclusive, a di- o u r o pérolas ou vestuário suntuoso;nâmica histórica que engendrou este pro- m a s q u e s e o r n e m, ao contrário, comcesso de identificação, associação eboas obras, como convém as mulhereslegitimação. q u e s e professam piedosas.'Eu não per-SANTA RAINHA OU RAINHA SANTA?santidade eram preceitos caros à redençãofeminina. Santo Agostinho bradou, em altoe bom tom, que todo o ser humano possuíauma alma espiritual (memória, sabedoriae vontade) por natureza assexuada eum corpo sexuado. Entretanto, no gêneroasculino o corpo refletia a alma e na mulhero processo era exatamente o inverso,ogo, apenas se refreasse os impulsos dame, a mulher se tornaria uma criatura di-mito que a mulher ensine o homem.Que ela conserve pois o silêncio. Porqueprimeiro foi formado Adão, depoisEva. E não foi Adão que foi seduzido.mas a mulher que seduzida caiu emtransgressão. Entretanto, ela será salvapela sua maternidade, desde quecom modéstia permaneça na fé, noamor e na santidade.Uma das máximas do pregador ancorouseno Gênesis, onde Adão e Eva, o primeirohomem e a primeira mulher do LivroSanto, representam o segundo princípiohierárquico conhecido pela culturacristã, porque são decorrência da relaçãoAcervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 69-04, jan/dez 1996 - pag.79


A C ECriador-criatura. Como apêndice da figuramasculina, criada para lhe servir, Evaé fruto das costelas de Adão, é feita damesma matéria humana/divina de seu par.Seres complementares mas, paradoxalmente,em permanente desnível, Adão eEva mancharam a humanidade com o pecado.Ele por se deixar 'seduzir', ela por'transgredir'. Doravante, 'Eva', um substantivopróprio, passou a designar todoum coletivo comum, singular na sua sedução:'a mulher'. Por serem a razão maiordo trabalho e da dor, por trazerem nasentranhas o germe do pecado, as filhasde Eva foram fadadas, segundo o mitojudaico-cristão, ao mesmo destino.Construído sobre pares binários de oposição,luz e trevas, bom e mau, sagrado eprofano, o imaginário cristão reproduz asdiretrizes hierárquicas assentes no parmasculino-feminino para a dualidade Mariae Eva, referências verticalizadas desantidade e danação, virtude e malícia, fée heresia, perfeição e debilidade. 29Elaborado socialmente, este olhar sobrea figura feminina articula a crueza do cotidianoe as projeções sobre o vivido.Obedece, assim, a cânones de beleza, virtude,maldade e perversão, forjados ecompartilhados pela cultura cristã.Destarte, estrutura-se sobre uma rede desímbolos polissêmicos e itinerantes consagradospela longa duração que são sustentáculodas arquiteturas mentais e obstáculoa sua 'mutação'. Eles encerram30os limites da percepção, pois são o alfabetoda alteridade.Senhora destes mecanismos de abstraçãoe coação, a mulher é lida pelos agentesmasculinos como uma arca de segredosvertida em engano, mas se submetida aespaços calculados de atuação reverte-seem uma arca de santidade, note-se queSão Paulo resgatou a possibilidade de regeneraçãofeminina através do 'amor ', da'fé', da 'santidade' e da 'maternidade'.Com efeito, a ação política do sexto reida dinastia de Borgonha, de pretensõesabsolutamente centralizadoras, congelouem sua soberana a mensagem da fé e davirtude. Mão o fez, entretanto, com traçosmal feitos e imprecisos, pelo contrário,desenhou sua presença com linhas firmese tintas fortes.Segundo as antigüidades, a que maisanos conta entre todas as que há nestaigreja, e a dos Santos Reis Magos quetem seu olhar pegado com a de MossaSenhora do Rosário contra a porta daigreja. A capela e retábulo foi mandadofazer e pintar por el rei d. Dinis.[...] Háneste altar uma curiosidade muito dignade ser sabida. E que no meio doretábulo, cercada de reis, temos tiradaao natural a rainha d. Isabel (Santa),mulher d' el rei d. Dinis, e na do meninoJesus que tem nos braços, o príncipeseu filho, que então se criava e depoissucedeu no Reino com o nome ded. Afonso. Quem fosse autor de tal memória,não consta, mas há de crer queseria el rei..." 31Ma verdade, o que pareceu simples curiosidadeaos olhos de frei Luís de Sousa é,pag.80. jan/dez 1996


K V Ocontudo, um dos traços que evidenciamo conhecimento de d. Dinis a respeito doque pensam seus contemporâneos sobresua rainha. Ou mesmo, a intenção emenvolvê-la em uma aura de santidade.Mais do que isso, acompanhando o espíritoreligioso da época que fazia da VirgemMaria a flâmula da piedade e da maternidade,el rei fez-se um agente fundamentalna produção deste vínculo querelacionaria, posteriormente, d. Isabel aMossa Senhora. Como em tantas igrejasdeste tempo que trazem a figura da Vir-D. Afonso III, numa gravura do século XVIII.Afonso Eduardo Martins Zuquete |dir.|. Nobreza dePortugal.gem Maria segurando junto ao regaço omenino Jesus, a Rainha Santa carrega nosbraços o herdeiro legítimo.Observa-se que o dominicano usa entreparênteses o qualificativo 'santa'. D. Isabelsó foi beatificada no reinado de d.Manuel e canonizada em 1625, no entanto,a distância entre a corte portuguesa ea corte celeste já se pretendia curta.A destreza e ciência com que d. Dinis dirigiua cena política é inconteste. De fato,cunhou para seu reinado uma imagempersonalizada, aportuguesada, da SantaRainha. Ao consentir a associação, casocontrário seria uma profanação à imagemda rainha ou uma heresia com a figurabíblica, demonstrou seu poder sobre ostrês estados. Ergueu, em conseqüência,seu cetro sobre a Igreja, 'domesticandoseu circuito de atuação', distinguiu-se deseus pares, não de maneira belicosa, maspor uma união matrimonial e santa, econfortou os pobres oferecendo-lhes umafigura maternal com poderes similaresaos de nossa Senhora. Desta feita, às vistasdo clero, dos nobres e de quemporventura pisasse no templo, el rei faziaas vezes de um grande monarca: comandavao real através do imaginário."Eala-se de um conjunto de representaçõescoletivas que serve ao sistema de poder,não por tratar-se de algo externo a ele,mas sim, porque é parte constituinte destesistema. Em uma conjuntura encrespada,matizada por facções contrárias aopaço, a estampa do rei guerreiro de armasprontas, defensor do território con-Acervo. Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 69-64. jan/dez 1996 - pag.81


A C Etra os inimigos internos ou externos(mouros) era bem acolhida. Porém, umaimagem belicosa poderia significar tambéma possibilidade de uma existênciaconstantemente ameaçada.A Rainha Santa assumiu neste circuitopolítico o papel de um vetor complementara fim de equilibrar as forças. Atravésdela a política dionisina manipulou símbolose modelos cristãos, conferindo legitimidadee identidade à reprodução dopoder nas várias instâncias da sociedademedieval portuguesa."As sementes lançadas em solo luso pelorei Lavrador criaram raízes e desenvolveram-secom a força dos bons grãos.Conjugando em sua biografia a personificaçãoda caridade, a ação de advogadados desvalidos e marginalizados, o papelde embaixadora ante os conflitos armadose o poder de cura dos achaques edores do corpo e da alma, esta nobre virtuosa,maestrina de uma multiplicidadede funções, congelou um padrão de atuaçãopública para a figura feminina, figurade diálogo à época dionisina, masinspiração para as dinastias ulteriores, aimagem desta personagem política venceuo duelo com cronos e transformouseela mesma em um modelo para as 'senhorasdo paço'.O paradigma isabelino teve vida longa notorrão português. Alçada ao posto de protetorae defensora de toda a nação portuguesa,em 1556, um momento em quePortugal já se fazia senhor das águas doAtlântico, de novos povos e gentes, configurandoum Império, mas também seafligia quanto à sucessão do trono, elaemprestou-lhe o rosto e a memória daunidade.n O T A s1. FERREIRA, fiarieta. "A nova 'velha história': o retorno da história política". In: Revistade Estudos Histórtcos. Rio de Janeiro, n° 10, 1992, p. 226.2. KAPLISH-ZUBER, Christiane. "Introdução à história das mulheres". In: KAPLISH-ZUBER,Christiane (org.). História das mulheres no Ocidente: a Idade Média. Porto:Afrontamento, 1993.3. VAUCHEZ, André. La espirltualtdad dei Occtdente medieval. Madrid: Cátedra, 1985,p. 73.4. Idem, ibidem, p. 30.pag.82. jan/dez 1996


R V O5. Idem, ibidem, p. 10.6. FERNANDEZ, Mônica. A sennor de d. Afonso X: um estudo do paradigma mariano(Castela 1252-1284). Niterói, 1994. Dissertação de mestrado. Instituto de Letras daUniversidade Federal Fluminense.7. LE QOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval. Lisboa: EdiçõesSetenta, 1985, p. 229.8. VAUCHEZ, André, op. cit., p. 97.9. MARQUES, A. H. de Oliveira. Portugal na crise dos séculos XIV e XV. Editorial Presença,1987, pp. 374-375.10. MATTOSO, José. "A consolidação da monarquia e a unidade política". In: MATTOSO,José (org.). História de Portugal: a monarquia feudal. Lisboa: Editorial Estampa, 1993,p. 269.11. Idem, ibidem, p. 271.12. Idem, ibidem.13. QIL, José. "Poder". In: ENCICLOPÉDIA Einaudi - Estado/Guerra. Lisboa: ImprensaNacional/Casa da Moeda, 1989, p. 62.14. LA FIQANIÉRE, Frederico Francisco de. "Lenda da Rainha Santa". In: Memória dasrainhas de Portugal. Lisboa: Tipografia Universal, 1859, p.107 ôc BENEVIDES, Franciscoda Fonseca. Rainhas de Portugal. Lisboa : Tipografia Castro ôf Irmão, p. 21.15. A crença no poder do empelicado era corrente nesta época. Cario Qinzburg demonstra,inclusive, que algumas mulheres propagaram enganosamente um nascimentosimilar, já que esta era a condição slne qua non para o diálogo com os mortos, ouseja, uma marca de distinção e poder entre os demais. Cf. QINZBURG, Cario. Osandarilhos do bem. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pp. 65, 87, 90.16. BENEVIDES, Francisco da Fonseca, op. cit., p. 21.17. LE QOFF, Jacques, op. cit., p. 83.18. BENEVIDES, Francisco da Fonseca, op. cit., p. 109.19. AFONSO, Diogo. Vida e milagres da gloriosa rainha Santa Isabel, mulher do católicorei d. Dinis, sexto de Portugal. Coimbra: Confraria da Rainha Santa, 1560, p. 6.20. THOMASSET, Claude. "Da natureza feminina". In: KAPLISH- ZUBER, Christiane (org.),op. cit., p. 72.21. VAUCHEZ, André, op. cit., p. 67.22. VIEIRA, Afonso Lopes. "Estória da Rainha Santa". In: Cancioneiro de Coimbra. Coimbra:França Amado Editor Sc Impreffor, 1918, p. 125. O grifo é meu.23. Idem, ibidem, p. 126 . O grifo é meu.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 69-84, Jan/dez 1996 - pag.S3


137As polacas cariocas: mulheres judias prostitutas e suasassociações de ajuda mútuaBeatriz Kushnir165"Que virgindade é esta?"A mulher moderna c a reforma do código penal noRio dc Janeiro, 1918 a' 1940Sueann Caulfield203Da prisão cor-de-rosa aos arquivos: fontes documentaissohre a mulher no Arquivo NacionalBeatriz Moreira Monteiro225Perfil InstitucionalConselho Nacional dos Direitos da MulherRosiska Darcy de Oliveira228Perfil InstitucionalFundação Carlos ChagasCristina Bruschini235Bibliografia


24. LA FIGAMÉRE, Frederico Francisco de. "Milagre das Águas do Tejo". In: LA FIGAMÉRE, op.cit., p. 305.25. FRÓES, Vânia Leite. Espaço e imaginário em Gil Vicente. São Paulo, 1987. Tese dedoutoramento. Departamento de História da Universidade de São Paulo.26. DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,1993, p. 315.27. Idem, ibidem.28. (2 Tm. 9-15). In: A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1991.29. SANTOS, Qeorgina Silva dos. "Os tenores da anunciação e da natividade". In: A senhorado paço: o papel da rainha na construção da identidade nacional portuguesa(1282-1557). Niterói, 1995. Dissertação de mestrado. Instituto de Ciências Humanase Filosofia da Universidade Federal Fluminense30. BRAUDEL, Fernai d. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 49.31. SOUSA, frei Luís de. "De outras confrarias que há nesta igreja, de sua antigüidade edevoção". In: História de São Domingos - parte I. Lisboa: Tipografia Panorama, 1866.32. BALANDIER, Qeorges. O poder em cena. Brasília: EDUNB, 1982, p. 6.33. SANTOS, Qeorgina Silva dos, op. cit.A B S T R A C TAt the close of the Late Middle Ages, aiming at building a national identity link, the earlyPortuguese State works out a pattern for a queen, based on the Marian female model.The symbolic effectiveness of this ideal sovereign, wife and mother, already conceived inthe 12th century and culminating in the 16th century, is one means for directing women'ssocial role, based on the queen's attributes and actions. The Isabelline pattern, however,requires a superhuman posture. Ascetism, altruism, faith, obedience to the fate designedby men and Qod, are some of the elements making up the production cycle of this image.R É S U M ÉA la Fin du Haut Moyen-Age, en vue d'établir un lien d'identité nationale, le jeune Etatportugais elabore un paradigme de reine prenant comme base le modele féminin marial.Lefficacité symbolique de cet ideal de femme souveraine, épouse et mère, dont la genèseest au Xllè Siècle et dont le couronnement est dans le XVIè Siècle, est un des moyens dediriger la conduite sociale de la femme, dont les attributs et les actions de la reine sontle modele. Le paradigme isabélien exige pourtant une posture surhumaine. Lascétisme,l'altruisme, la foi, fa soumission au destin trace par les hommes et par Dieu sont quelquesuns des éléments qui composent le circuit de production de cette image.


Maria Beatriz Nizza da SilvaProfessora da Universidade de São Paulo e da Universidade Aberta de Lisboa.]VIJjheres e paàimôiiiofamiliar no Brasil no fim dodo colonialpemo


A C Ecurto período de suas vidas. Ou quandoviúvas, ou quando solteiras e de maioridade. Mem sempre os 25 anos significavamautonomia econômica das filhas herdeiras,já da meaçào de suas mães. Seelas continuavam vivendo na casa paterna,permaneciam submetidas ao pátriopoder aos 30 ou 40 anos. Durante a maiorparte de suas vidas as mulheres viamseus bens administrados pelos pais (oututores) e pelos maridos. Embora a legislaçãolhes desse algumas garantias de queeles não seriam delapidados, através daatuação dos juizes dos órfãos ou atravésda impossibilidade de os maridos alienarembens de raiz sem a assinatura e aconcordância das esposas.Muma única situação perdiam as mulheresa possibilidade de controle do seupatrimônio: quando davam entrada numrelacionamento ou num convento. Aí odote religioso com que entravam na reclusãoera administrado pela superiora edemais irmãs encarregadas da gestão davida comunitária. Estas sim detinham umgrande poder econômico, até pela possibilidadede fazer empréstimos a juros dasrendas provenientes dos aluguéis de casasou de outras propriedades da comunidade.Assim, a igualdade garantida pela legislaçãoentre filhos e filhas, e entre maridose mulheres, possibilitou no Brasilcolonial, e também nas colônias espanholasonde vigia um direito semelhante, umaparticipação maior na vida quotidiana,embora não significasse poder igual aodos homens na sociedade. Poder econômiconão garantia de modo algum podersocial ou político.A primeira forma de garantir o futuro dasfilhas era contribuir com um dote para queelas pudessem achar marido de igual condiçãosocial. O montante desse dotevariava com a fortuna dos pais, pois elenada mais era do que um adiantamentoda legítima a ser recebida pela morte dosprogenitores. Ma capitania da Bahia encontramosvalores mais altos do que emcapitanias menos ricas como a de SãoPaulo. Quando um casal, proprietário detrês engenhos na Bahia, casou uma dasfilhas com um desembargador, o rol dodote revela o elevado índice de fortunadesta família: em dinheiro, 8:000$000réis; um adereço de diamantes no valorde 500$000 réis; um jogo de fivelas e ligas,40$000; um rosário de contas deouro, 12$800 réis; dois cordões de ouro,22$000 réis; botões de ouro de colete,9$600 réis; brincos de ouro cravados dediamantes, 10$000 réis; 7 escravos,560$000 réis. Somava este dote a elevadaquantia de 9:154$400 réis. 1Ma capitania de São Paulo deparamos comdotes mais moderados. Manuel dos SantosAlmeida, um reinol natural do bispadode Lamego e morador na vila deSantana de Parnaíba, declarou no seu testamento,em 1778, que para casar sua filhaAntônia dera em dote 230$000 réisem dinheiro, um casal de escravos no valorde 248$000 réis, urrias cartas na vila,seis tamboretes "com pregaria", uma caipag.86.jan/dez 1996


R V Oxa grande "e todo o necessário enxovalde casa", seis colheres de prata e uma salvatambém de prata, meia dúzia de pratosfundos, cama com colchão, dois lençóisde algodão, cobertor de papa, umacruz de ouro de filigrana e uma vara decordão de ouro, um par de brincos, e ainda"roupa para casa e trajes para a praçae o manto para a igreja". 2Mo fim do período colonial o princípio deigualdade regia a dotação feita às filhascasadoiras, embora no séc. XVII se observeo favorecimento de uma das filhas emrelação às demais através da atribuiçãoda terça dos pais, de que eles podiam disporlivremente, para reforçar o adiantamentoda legítima. Uma viúva, mãe de3nove filhos, declarou no seu testamento,feito em 1797, já ter relacionado os dotesde duas das suas filhas por ocasiãodo inventário por morte do marido. Quaseiguais eram os dotes de duas outrasfilhas: uma recebeu 245$350 réis em dinheiro,uma mulata no valor de 125$000réis, um par de fivelas de prata de sapatos,seis colheres e seis garfos de prata;a outra foi dotada com 445$348 réis emdinheiro para compensar não ter nenhumaescrava, e o mesmo número e qualidadede objetos de prata. Além dos denominadosenxovais que, de caráter maispessoal, estavam por vezes isentos deavaliação.*A prática do dote revela uma predominânciade dinheiro, jóias, objetos de prata,escravos, e mais raramente bens de raiz,casas ou engenhos e fazendas. Estes podemsurgir como heranças já recebidasOJantar no Brasil, J. B. Debret, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil.- .Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n» 1-2. p. 85-98. Jan/dez 1996 - pag.87


A C Ede parentes, constituindo assim uma parteimportante do dote. Ma capitania dePernambuco, os pais de d. AngélicaJoaquina Rosa Pires Ferreira, ao fazer-seo ajuste do casamento, declararam queela entrava para o matrimônio com umascasas que lhe tinham sido deixadas emtestamento por um tio padre, umas outrascasas doadas por uma tia, além deescravos e dinheiro provenientes de presentesfeitos por outros tios e tias. A colaboraçãoda família extensa para o doteaparece assim em alguns casos. Os tios5padres, sobretudo, eram os beneméritosde sobrinhas casadoiras. Uma vez celebradoo matrimônio, ficava o marido cabeçade casal e administrador dos bensde ambos, podendo contudo a mulherassumir a administração durante as viagense ausências prolongadas do marido.Menhum deles podia alienar bens deraiz sem o consentimento do outro. Sobrevindouma crise conjugai, a questãodo patrimônio do casal era colocada ladoa lado com as queixas femininas acercade sevícias ou adultério.Uma dona da capitania de São Pauloagüentou durante 15 anos as inFidelidadesdo marido e só se queixou ao governadorquando aquele lhe tirara violentamenteos bens, pretendendo deixá-la "emúltima miséria". Uma outra esposa demonstraa mesma atitude de preocupa­6ção com o patrimônio. Ela se casara havia13 anos "a tempo que ambos nadapossuíam". A pouco e pouco foram adquirindoos bens de que se compunha o seucasamento: "negócios de fazenda seca,casas na vila, chácara, uma escrava e outrosbens próprios de quem procura a decênciade sua casa". Logo que os cônjugesdeixaram de viver "em boa harmonia",a mulher passa a preocupar-se com o destinoda sua meação. 7Quando a união conjugai cessava pela mortedo marido, a viúva podia encontrar-se em situaçõesdistintas. Mão havendo filhos ela Ficavacom a sua meação, e a do marido iriapara os pais ou, no caso de serem já falecidos,para quem ele determinasse, observando-secasos em que a consorte era escolhidacomo herdeira. Havendo filhos maiores, procedia-selogo à partilha e à entrega das legítimaspaternas, a menos que os Filhos decidissemde comum acordo deixar a mãe naposse de todos os bens enquanto vivesse.Sendo os filhos de menor idade, era feitoobrigatoriamente um inventário pelo juiz dosÓrfãos e escolhido um tutor, caso não houvessedisposição testamentária a esse respeito.A mãe podia ser tutora desde que pedisseuma provisão regia, a qual era emitida peloDesembargo do Paço quando ela demonstravaviver com honestidade e ser capaz de administraros bens dos menores. De qualquermodo, ela perdia a tutoria se contraísse segundasnúpcias.Os bens dos menores eram imediatamenterecolhidos ao cofre dos Órfãos quandose tratava de ouro, prata ou dinheiro, ouentão vendidos em hasta pública quandocorriam perigo de se extraviarem ou dese desvalorizarem, como era por exemploo caso de escravos. O dinheiro obtidocom essa venda podia ser emprestado apag.88. jan/dez 1996


R V Ojuros, tendo aquele que tomava o empréstimode dar a fiança. Apesar desta precaução,em todo o período colonial surgemreferências à malversação dos bensdos órfãos, a ponto de em muitas regiõesse proibir o empréstimo desses dinheiros,pois os juros se perdiam ou então secobravam com grande dificuldade. 8O quinhão de cada órfão era recebido porocasião do seu casamento, quando atingiaa maioridade (25 anos), ou quando oDesembargo do Paço passava provisão desuplemento de idade. As moças, tal comoos moços, queriam em geral assumir logosuas heranças, sobretudo quando era dalegítima paterna que se tratava, e mesmomuito jovens não hesitavam em encaminharpetição nesse sentido. Quandoera a legítima materna que estava em9causa, aquele tribunal exigia o consentimentopaterno para tal autonomia. Percebe-se,na prática da emancipação, umanítida assimetria decorrente da supremaciado poder paterno na família: peranteo Desembargo do Paço, a morte da mãenão precisava ser provada com certidãode óbito e exigia-se o consentimento escritodo pai; a morte do pai tinha de constarde uma certidão e não era pedida aautorização da mãe.As jovens pretendiam emancipar-se tãologo recebiam uma legítima, pois dessemodo não precisavam de autorização parase casarem e a legítima supria o dote.Entravam assim em melhores condiçõesno mercado matrimonial. Ma capitania doRio de Janeiro, em 1817, uma jovem de16 anos alegou "ter juízo e capacidadepara bem reger e governar sua pessoa ebens" ao requerer provisão de suplementode idade com o objetivo de gerir "aslegítimas heranças que por direito lhehajam de pertencer". 10A emancipação permitia o casamento semautorização de pai ou tutor e muitos conflitosfamiliares surgiam precisamentedevido à recusa de um pretendente, comopodemos ver pelas petições encaminhadasao Desembargo do Paço para que esteTribunal suprisse a autorização paterna.Foi o ouvidor geral do cível, cargo da Relaçãoda Bahia, quem informou, em agostode 1796, o requerimento de d. PaulaInácia dê Oliveira que pedia licença paracasar com Manuel Inácio Lisboa "visto seupai não lho permitir"."Ouvido o pai da moça, este declarou nãoconcordar com o enlace por o pretendenteser Filho de um indivíduo "tido e havidopor mulato da ilha do Faial", além de terservido de lacaio a um desembargador noRio de Janeiro. Também Manuel Inácionão possuía bens com que pudesse sustentarsua filha. Neste caso apontava-se,além de desigualdade de condição social,uma evidente desigualdade de fortunas,pois o pai de d. Paula, bacharel, marechalde campo e senhor de dois engenhos,alegava posses para dotar cada umadas filhas com 50 mil cruzados, ou seja,cerca de 20 contos de réis.Por seu lado o pretendente Manuel Inácionegou que houvesse mulatos na sua famíliae disse que seu pai não fora lacaioAcervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 85-98, jan/dez 1996 - pag.89


A C Ee sim "criado-grave" (o que parece ser entãosocialmente mais aceitável) da mulhere filhas do desembargador que estavamnaquele momento a serviço do Paço, oque era considerado uma grande honra.Além disso, seu pai era comandante e capitãode um forte por nomeação regia.Quanto à sua própria pessoa, nunca exerceraofício mecânico, era capitão do navioTrindade e fazia ao mesmo tempo negociaçõesem terra, o que lhe permitia"decentemente tratar sua mulher".Ma sua informação o ouvidor geral do cíveldesmontou as pretensões sociais do paida moça, pois este, "posto fosse bacharel,não usara jamais das suas letras"; foraefetivamente mestre de campo "mas semsoldados" e por esse motivo tivera baixa.Quanto aos dois engenhos mencionados,um deles, situado mais próximo da cidade,"andava em praça" para ser vendido afim de pagar dívidas, "estando há um anosem trabalhar, arruinadíssimo, tendo vendidoescravos, móveis, e até alfaia de pratada capela". O outro engenho, no distritoda vila da Cachoeira, não possuía "nemcobre nem os escravos necessários parao fazer trabalhar", não dando portantonenhum rendimento. E concluía: "sãoimensas as dívidas e execuções já aparelhadas,e mal poderão chegar os benspara pagamento".Senhor de engenho arruinado, o pai ded. Paula era de conduta irregular e libertina,"tendo há anos abandonado suamulher e filhas, não cuidando no seu sustentoe vestuário". Assim, informava-se,não havia desigualdade de fortunas nemde condições, pois quer o avô paternoquer o materno da jovem tinham vindodo Reino para o Brasil como simples "moçosde loja e caixeiros", posto que maistarde se tivessem tornado negociantes.A mãe de d. Paula, separada do marido ecom as filhas sob sua guarda, estava deacordo com o casamento e dera seu consentimentopor escrito. O ouvidor do cívellembrou na sua informação que a jovemestava com 23 anos e que portanto aos25 anos poderia casar com quem quisesse"só com a circunstância de dever porreverência pedir a licença paterna".A documentação revela ainda que a autorizaçãodo juiz dos Órfãos era exigidamesmo que o tutor tivesse dado o seuconsentimento. Este magistrado desempenhavana verdade um papel de granderelevância, pois a ele cabiam as decisõesem relação aos bens dos menores. Assim,se compreende que um certo tenente,tendo contraído matrimônio com uma órfãsem obter licença do juiz respectivo, o quefizera "por ignorância", tenha resolvido regularizara situação do casal de maneiraa poder administrar a legítima da mulher.Encaminhou então petição aoDesembargo do Paço requerendo umaprovisão que suprisse aquela licença medianteuma carta de emancipação. 12Quando estava em causa um patrimôniofamiliar de valor elevado, a questão daautorização do pai (a da mãe nada valiasem a deste), tutor ou juiz dos Órfãos erasempre levantada. Já entre as camadaspag.90. Jan/dez 1996


A P R E S E N T A Ç Ã OAfirma Véronique Neiertz quea história das mulheres deveser "uma história que se interessapelas atrizes da História e não pelasfigurantes, uma história inédita, insólita,que põe a tônica nas resistências,nas subversões, nas práticas de desviodos estereótipos tradicionais, e não nasubmissão silenciosa à ordemestabelecida".Fazer essa história das mulheres e dasrelações de gênero no Brasil é o que vemempreendendo pesquisadores em universidades,centros de pesquisa e núcleosde estudos espalhados pelo país.Nos arquivos, entre eles o Arquivo Nacional,constatamos a existência de fundose coleções que podem fornecer importantessubsídios a estes estudos epesquisas. Exemplo disto, é a exposiçãoImagens da mulher brasileira, organizadapela Instituição em 1996, no EspaçoCultural do BNDES, tendo por base o seuvalioso acervo iconográfico.Os documentos textuais do Arquivo Nacionaltambém têm sido utilizados em inúmerostrabalhos, alguns deles publicadosneste número da Aceruo. A revista apresenta,ainda, pesquisas desenvolvidas emoutras instituições, mantendo o propósitode divulgar fontes documentais, comosugere o próprio nome da publicação.Abre este número o artigo da historiadorainglesa Anne Laurence que aborda arelação entre religiosidade e aparênciadas mulheres devotas na Inglaterra doséculo XVII. A autora discute o dilemadessas mulheres que deveriam fugir damutabilidade da moda e das manifestaçõesextravagantes no vestir, e, ao mesmotempo manter uma aparência limpa,saudável, adequada à posição social e aospreceitos religiosos.Outro artigo também se dedica ao estudodas relações entre gênero e religiosidade.Trata-se do texto de Qeorgina Silvados Santos sobre Isabel de Aragão,conhecida como a rainha santa, que estabeleceuum padrão de atuação públicapara a mulher na Baixa Idade Média portuguesa.Angela de Castro Qomes narra a trajetóriade Alzira Vargas do Amaral Peixoto,guardiã da memória do pai, QetúlioVargas. Qraças a ela, que manteve os'caderninhos' de anotações de Vargas, osdiários do ex-presidente puderam serpublicados.Sandra Qraham analisa em seu artigo acampanha abolicionista e seus efeitos


K V Omais pobres da população a cerimônia decasamento era celebrada sem maiores inquiriçõespelos párocos. Estes preocupavam-semais em inquirir do estado de solteiroou de viúvo dos contraentes, a fim deevitar o crime de bigamia, do que em investigarse a autorização paterna fora concedida.Em matéria de patrimônio, qual a situaçãodas mulheres que viviam como concubinasde alguém e tinham prole ilegítima? Oconcubinato era uma prática muito comumno Brasil colonial, implicando brancos egente de cor, solteiros, casados e viúvos etambém numerosos indivíduos que, tendofeito voto de castidade, não cumpriam ocelibato religioso. Relações passageiras oumais estáveis, com coabitação ou sem ela,dando origem a filhos ilegítimos ou não,são muitas as variáveis que se tem de levarem conta e que se perdem totalmente emestudos puramente quantitativos.As acusações contra padres concubinadose, o que era ainda mais condenável, adúlteros,eram feitas perante as autoridadeseclesiásticas, sobretudo os bispos, e tambémperante as autoridades civis, nomeadamenteo Senado da Câmara, que em seguidapodia levar o caso a instâncias superioresna metrópole, ou no Rio de Janeiro, quandoa Corte passou a ali residir. Em 1814, osparoquianos da vila da Barra, no termo dacidade de Salvador, na Bahia, representaramaos camaristas contra o vigário e, entre outrasacusações graves quanto à sua conduta,escreveram: "Passa mão de uma mulher casadade nome Brites, ausente do marido comassistência na casa de seu pai, moradornesta vila, com quem vive em concubinatopúblico, e de quem tem uma filha batizadana mesma vila para mais escandalizara lei oposta a semelhante procedimento".lias palavras destes paroquianos13surge a noção de 'escândalo', o fato deser pública uma relação que às ocultas seriamenos condenável, além de se deixarsupor uma possível conivência do pai como adultério da filha.Um outro caso de mulher casada comprole adulterina ocorreu no arraial doTejuco, na capitania de Minas Gerais. D.Ana Clara Freira, com o marido ausenteou dele separada, não o sabemos aocerto, teve nove filhos com um bacharelquando este, solteiro, residira no ditoarraial. Ma sua informação sobre o assunto,o ouvidor da comarca de vila doPríncipe declarou ser "público e notório"que ela era mãe daqueles filhos dobacharel porque muitos anos viveracomo manceba "teúda e manteúda". *1Esta expressão significa que a mulherera economicamente amparada comquem mantinha relações.Isso fica claro num caso de concubinatona capitania de São Paulo. Uma mulhercasada mas cujo marido se ausentou duranteum longo período, oito anos, "seintroduziu de amizade, e comércio ilícitocom um sujeito que trata dela, a sustentae alimenta, vivendo e morandojuntos". Era esse apoio material à15concubina que muitas esposas condenavampor constituir um decréscimo doAcervo. Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 85-98, jan/dez 1996 - pag.91


A C Epatrimônio do casal, mesmo que se tratasseapenas de pôr uma escrava ao serviçoda concubina, como muitas vezesocorria.O destino dos filhos ilegítimos no fim doperíodo colonial variava de acordo comos grupos sociais implicados e tambémcom o fato de serem naturais, adulterinosou sacrílegos, e de haver ou não filhoslegítimos do matrimônio do pai ou damãe. A variável etnia também tem de serlevada em conta pois a atitude em relaçãoa um ilegítimo branco não era a mesmaque em relação a um mulato.Há em primeiro lugar os expostos ou enjeitados,acerca dos quais possuímos algunsdados fornecidos pelos estudos dedemografia histórica. Ma capitania de SãoPaulo, com base nos registros debatizados da paróquia da Sé da cidade deSão Paulo, a porcentagem de expostos emrelação ao número total de batismos oscilavaentre 10,41% e 25,56%. Ma capitaniade Minas Cerais, as listas de habi­16tantes de Vila Rica e da cidade de Mariana,em 1804, registravam respectivamente126 e 25 expostos com menos de 14 anosde idade, num total de ilegítimos de 982e 118, representando portanto 1,62% e21,18% da ilegitimidade total. Como nasduas localidades mineiras os filhos legítimoseram praticamente em númeroigual aos ilegítimos (900 para 982 e 101para 118), a disparidade daquelas porcentagensde expostos indica que na sede dobispado eram abandonados mais ilegítimosdo que numa vila em que preponderavaa população de cor, pois quem enjeitavaos filhos era predominantementea população feminina branca. 17Havia, contudo, na sociedade colonialaqueles que podemos denominar os 'falsosexpostos', ou seja, os recém-nascidoscolocados à porta de parentes ou compadresdaquelas que os tinham dado à luz.A mãe salvaguardava assim sua honra eao mesmo tempo conhecia o destino dacriança, pronta a recuperá-la e legitimálaquando a ocasião fosse propícia. Váriostipos de documentos demonstram seresta uma prática corrente entre as mulheresde elite. Entre as petições à Coroapara a concessão de uma provisão de suplementode idade para fins de emancipação,encontramos a de d. Ana de AssisCarvalho, de 19 anos, que fora expostaem casa de um alferes, mas sabia ser filhade d. Tomásia Cândida Xavier, já entãofalecida em Vila Rica, onde morara.Também d. Maria Eleutéria de Carvalhonascera na cidade de Mariana e fora levadapara Vila Rica, onde fora criada eeducada como filha por uma senhora.Requereu contudo provisão de suplementode idade a fim de poder receber umascasas e alguns móveis que herdara damãe natural, que portanto a reconhecerae a tornara sua herdeira, ou pelo menossua legatária. 18Era na hora de redigirem os seus testamentose de se prepararem para a morteque as mães se arrependiam de teremabandonado os filhos. Muitos dos que tinhamsido batizados como expostos fopag.92.jan/dez 1996


K V Oram nesse momento de decisão reconhecidoscomo herdeiros, saindo assim dasituação de ilegitimidade. Por vezes asmulheres nem esperavam pela antevisãoda morte e resolviam a questão antecipadamente.São tão variadas as circunstânciasem que os enjeitados deixavam de oser, que se torna necessário expor pelomenos algumas delas para se analisar acomplexidade das motivações.No extremo sul do Brasil, na capitania doRio Grande de S. Pedro, d. Ana Franciscada Silveira e Sousa contou a seguinte históriana escritura que passou de 'reconhecimentomaterno': vivendo em companhiade seu pai, solteira, na freguesia de MossaSenhora dos Anjos da Aldeia, "ignorantepor sua idade e por fragilidade da naturezahumana", fora seduzida e perderaa virgindade com o vigário daquela freguesia.Tivera dois filhos desta relação eeles foram expostos e batizados como tal"vista a infâmia". Mas, se publicamenteeram tidos como enjeitados, particularmentesempre tinham sido alimentadose cuidados por aquele padre. Ela própriaos tivera sob suas vistas e, quando começaraa "viver sobre si", ou seja, quan-Cana de Emancipação. Arquivo Nacional.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 85-98, jan/dez 1996 - pag.93


A C Edo saíra da casa paterna, "também ospassou a tratar publicamente, a estimare distinguir como seus filhos". Ma alturaem que os reconheceu, os pais dela aindaestavam vivos, mas d. Ana Franciscamorava em outra localidade, na vila de RioGrande, o que mostra ter sido necessáriosair da pequena povoação onde perderaa virgindade e tivera os Filhos "sacrílegos",para assumir plenamente a maternidadereconhecendo os frutos do pecado. 19Uma outra mulher, enquanto estava sobo pátrio poder, tivera uma filha e, conformeconfessa na escritura de filiação assinadaem 1815, fora levada a ocultar estenascimento "para não macular a sua reputaçãoe por outros motivos que a modéstiafaz calar". A menina fora batizadacomo exposta e só mais tarde, "aconselhadapelos seus ministros espirituais", sedecidira a perfilhá-la. 20Matural da cidade de São Paulo, uma talÚrsula Maria Vieira, declarou no testamentoredigido em 1762 que, depois da mortedo marido com o qual tivera dois filhos,concebera mais dois filhos, Eufrásiae João, não obstante os ter mandado batizarcomo expostos. À hora da morte resolveudeclará-los também seus legítimosherdeiros, beneficiando mesmo Eufrásiacom a sua terça. 21O que se pode observar nas práticas sociaisdo Brasil do fim do período colonial éque o desejo de transmitir um patrimônio àprole ilegítima era mais forte nas mulheresdo que a preocupação com a salvaguardada honra. Ainda que tivessem recorridodurante parte de sua vida ao subterfúgio deencaminhar as crianças ao batismo comose fossem expostas, mais cedo ou mais tarde,quando a situação das mães se tornavamais favorável à legitimação, esta ocorria,mesmo quando havia uma prole legítima,que iria ter de dividir a herança com os legitimados.As mulheres brancas, para não falar dealgumas forras que conseguiram acumularpor vezes um pecúlio avantajado, tinhamconsciência da importância dopatrimônio familiar, lutavam pela sua preservação,administravam-no quando a situaçãoda família o exigia, e procuravamtransmiti-lo de maneira a proteger os filhos,e sobretudo as filhas, na constituiçãode novas famílias.Por muito tempo que se tenha falado daociosidade das brancas na sociedade colonialbrasileira, o que a documentaçãonos revela é que as mulheres trabalhavam,embora o conceito de trabalho numasociedade escravocrata tenha de ser diferentedaquele que é adequado a outrassociedades. Gerir um patrimônio era trabalhoe as mulheres o faziam, administrandoengenhos, supervisionando feitorese capatazes, responsabilizando-se porum estabelecimento mercantil quando omarido morria.A situação de viuvez, ou de ausência prolongadado marido, é que levava as mulheresa assumir a gestão do patrimônio,quer no meio rural, quer no meio urbano.Ma Bahia, como podemos ler na gazetalocal, Idade dOuro do Brasil, muipag.94. Jan/dez 1996


K V Otos engenhos estavam em mãos femininas.Numa lista de moradores que tinhamcontribuído para a construção de umaponte de pedra e cal na entrada da vilade Santo Amaro, aparecem nada menosdo que seis senhoras de engenho só notermo daquela vila. 22Graças às cartas escritas por uma senhorade engenho da Bahia a seu marido, que seencontrava em Lisboa como deputado àsCortes em 1821, ficamos sabendo como elaadministrava a sua propriedade, e quais asdecisões tomadas por ela. D. Maria Bárbara,aliás nascida em Portugal, não pedia23conselhos aos Filhos já homens na gestãode seu engenho Aramaré, preferindo enfrentarsozinha as dificuldades. Por exemplo, aover que a chuva constante prejudicara a safrade cana, tomou a decisão de procederao enxugamento do solo. E contava ao marido:"Se eu para aqui não venho (ela deixaraa cidade da Bahia), não teríamos em breveo que moer, nem os nossos lavradores".Além disso, como encontrara a boiada muitomagra, decidiu comprar 34 bois, ao mesmotempo que providenciava a compra de36 potros. Também procurava vigiar a produçãodo alambique depois de descobrirque a estavam roubando.Não era fácil nesta época uma mulher lidarcom a parte financeira pois, comoescrevia d. Maria Bárbara ao marido, nobanco não queriam "firmas de senhoras',referindo-se à sucursal do Banco do Brasilque já existia em Salvador. Mas, apesardestes obstáculos, ela tinha plenaconsciência da sua capacidade de administradora:"Se não tinha Ficado, o enge-Os refrescos no Largo do Paládo, J. B. Debret Viagem pitoresca e histórica ao Brasil.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 85-98, Jan/dez 1996 - pag.95


ACnho Aramaré dentro em pouco era campoonde foi Tróia. E berp que com as minhaspoucas forças o não possa adiantar,com a vista ao menos afugento as harpiasque queriam devorá-lo".ynem todas as proprietárias geriam diretamenteo seu patrimônio rural. Algumaspreferiam arrendá-lo ou mesmo vendê-lo.Em 1814, d. Maria Violante Teles deMeneses, senhora da fazenda do noviciado,na Bahia, colocou um anúncio dizendoque pretendia aforar suas terras, enquantouma viúva, moradora na cidade doSalvador, pôs à venda "seis fazendas degado mui abundantes, de excelente criação,denominadas a Várzea, no rio de S.Francisco". 24Mais abaixo na hierarquia social em relaçãoà senhoras de engenhos e fazendasde gado, as lavradoras de canas dedicavam-seà agricultura exatamente do mesmomodo que os homens: recorrendo àmão-de-obra escrava. Já no Sudeste doBrasil, nomeadamente na capitania deSão Paulo, mulheres brancas dedicavamseà cultura de suas roças muitas vezessem escravos, apenas com a ajuda de filhose agregados. Vejamos alguns exemplosdo termo da vila de Ubatuba.Qertrudes Maria, viúva de 61 anos, moravacom uma única Filha de trinta anos. Eraroceira, plantava mandioca, tendo produzido,no ano de 1798, vinte alqueires defarinha, exclusivamente para o consumoda sua casa. Outra viúva, vivendo sozinha,completava com seu trabalho de costureirao rendimento de sua roça de mandioca,milho e feijão, consumindo por anodez alqueires de farinha. Quando possuíamescravos, as roceiras conseguiam produzirnão só para consumo próprio mastambém para o mercado da região. AssimInês Maria, viúva de 49 anos, com doisfilhos e apenas uma escrava adulta, produziu,naquele ano de 1798, 52 alqueiresde farinha e vendeu quatro para a tropada vila de Santos, mas o milho e o feijãoforam destinados à alimentação da família.25Portanto a todos os níveis da hierarquiasocial, desde as senhoras de engenho àssimples roceiras, as mulheres cuidavamde seu patrimônio e faziam-no renderatravés de uma produção agrícola destinadaao fabrico do açúcar ou à subsistência,no mundo urbano, a populaçãofeminina encontrava uma maior variedadede ocupações. Algumas viúvas ficavamà testa de empreendimentos iniciados porseus maridos. Quando um comerciantefalecia, a esposa podia prosseguir com onegócio mediante autorização regia,como se vê pelo anúncio colocado poruma viúva na Gazeta do Rio de Janeiro,em 1821: "continuam as transações desua casa sob a firma de Pinheiro, Viúva eFilhos, isto por concessão regia, que obtevecom a data de 16 de fevereiro do correnteano". 26na Bahia, a proprietária do trapiche novode Santo Amaro da Purificação anunciavana gazeta baiana os novos preços cobradosno seu armazém, na vila da Cachoeira,muito populosa, uma viúva assumiupag.96, Jan/dez 1996


R V Oem 1814 a direção da fábrica de chapéusdeixada pelo marido e procurava, atravésde um anúncio na capital, alguém quesoubesse trabalhar naquela manufatura. 27Atividades comerciais variadas eram desempenhadaspor mulheres brancas na cidade daBahia. Uma certa Ana Joaquina do Coraçãode Jesus tinha uma loja de bebidas na travessado Senhor dos Aflitos, sendo ajudadanas vendas por um escravo. Uma outra abria,em 1823, uma "casa de pasto', enquanto umaviúva anunciava na gazeta ter rapé para venderna sua loja. A viúva Sobral esclarecia publicamentea todas as pessoas que tivessemcontas com o seu armazém que só poderiamfazer pagamentos a ela, ou a quem ela autorizasse.28Em conclusão, podemos afirmar que no Brasilno fim do período colonial as mulheresnão se limitavam a receber dotes, meações elegítimas, contribuindo de maneira ativa namanutenção e no aumento desse patrimônioatravés da gestão do trabalho de outrem ouatravés do seu próprio trabalho.N O T A S1. P1MHO, José Wanderley. "Uma partilha de bens no Recôncavo da Bahia em 1779, com informaçõesde caráter econômico e social". In: Anais do Congresso comemorativo do bicentenárioda transferência da sede do governo do Brasil da cidade de Salvador para o Rio de Janeiro.Rio de Janeiro, 1965, pp. 313-367.2. Arquivo do Estado de São Paulo (AESP), ordem 456, lata 2, livro 5, foi. 12v. e sgs.3. Ver MAZZARI, Muriel. Disappearance of the dowry, women, families, and social change inSão Paulo, Brazil, 1600-1900. Stanford: Stanford University Press, 1991.4. AESP, ordem 456, livro 6, foi. 93v.5. Arquivo Macional, Desembargo do Paço, doações, caixa 137, pacote 3, documento 6.6. AESP, ordem 342, lata 93 A.7. AESP ordem 343, lata 94.8. Anais do Arquivo Público da Bahia, vol. 37 (1962), p. 324.9. Ver no Arquivo Macional as caixas do Desembargo do Paço referentes às emancipações.10. Arquivo Macional, caixa 105, pacote 3, documento 87.11. Arquivo Macional da Torre do Tombo (AMTT), papéis do Brasil, avulsos 3, n° 5.12. Arquivo Macional, Desembargo do Paço, caixa 115, pacote 3, documento 91 A.13. Biblioteca Macional, Ms II - 33, 30, 4.14. Arquivo Macional, Desembargo do Paço, legitimações, caixa 123, pacote 1, documento 11.15. Arquivo da Cúria de São Paulo (ACSP), divórcios, 15-13-208, de 1820.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2, p. 85-98, Jan/dez 1996 - pag.97


16. MARCÍLIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo. Povoamento e população (1750-1850). SãoPaulo: Editora Pioneira, 1974.17. COSTA, Iraci dei Mero da. Populações mineiras. São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas,1981, p. 250.18. Arquivo Macional, Desembargo do Paço, emancipações, caixa 110, pacote 1, documento 26 ecaixa 120, pacote 1, documento 27.19. Arquivo Macional, Desembargo do Paço, legitimações, caixa 124, pacote 3, documento 44.20. Arquivo Macional, Desembargo do Paço, legitimações, caba 123, pacote 1, documento 12.21. AESP ordem 457, lata 3, livro 12, foi. 270.22. Idade d Ouro do Brasil, n° 39, 1816.23. FRAMCA, Antônio dOliveira Pinto da. Cartas baianas, 1821-1824. São Paulo: Companhia EditoraMacional, 1980.24. Idade d Ouro do Brasil, n° 84, 1816.25. AESP ordem 186, lata 186, mapa dos habitantes do distrito da paróquia de Ubatuba, na 2 aCompanhia, 1798.26. Gazeta do Rio de Janeiro, n° 11, 1821.27. Idade dOuro do Brasil, n° 78, 1817 e n° 90, 1814.28. Idade d'Ouro do Brasil, n° 72, 1815; n° 12, 1823; n° 76, 1816; n°s 34 e 46, 1819.A B S T R A C TPortuguese law gave women property rights in marriage and in inheritance. In colonialBrazil dowry was a social practice in propertied families and each daughter received anequal amount of money, slaves, gold and silver, besides jewellery and a trousseau. Womenadministered their property when they were widows, when they remained single and wereof age, and during their husbands' absence. Those women who had illegitimate childrenmade them theirs heirs.R É S U M ÉLe droit portugais accordait aux femmes le droit à la propriété dans le mariage et dansIhéritage. Les parents avec des biens de fortune donnaient une dot à leurs filies et chacunerecevait la même valeur en argent, en esclaves, en or et en pièces d'argenterie, en dehorsdes bijoux et dun trousseau. Les femmes administraient leur propriété quand elles étaientveuves, quand elles étaient célibataires et majeures, et pendant 1'absence de leurs maris.Quand elles avaient des enfants illégitimes elles les transformaient héritiers de leurspatrimoines.


Rachel SoihetProfessora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.M^mUieres em IWsca de novosespaços e relações de gêneroApartir da segunda metadedo século XIX,-A. )\ principalmente, as insatisfaçõesde muitas mulheresinconformadas com sua exclusão doterreno público contribuem para aemergência de movimentos feministas naEuropa Ocidental e nos Estados Unidos.Criando uma imprensa própria, organizandoassociações, quer aquelas que selimitavam a uma postura liberal, quer asque vinculavam suas propostas à instauraçãodo socialismo, as mulheres lutampelo reconhecimento de seus direitos,incursionando algumas pelo terreno dasexualidade. Mo início do século XX, umaprimeira geração de mulheres médicassugere às demais a liberação do medo eda ignorância do seu corpo. Mão foitranqüila a receptividade para comessas manifestações. A reaçãofez-se sentir, não só por partedos governantes reprimindo taismovimentos, como da própria sociedade,particularmente da parcela masculinae de não poucas mulheres. 1Mo mundo anglo-saxão da era vitoriana,por exemplo, as feministas e seus partidáriossão apresentados como desaFiadoresdas sábias e intocáveis leis da natureza.Em nome dessas verdades universaisa réplica buscava ser demolidora, comvistas a desmoralizar aqueles que pugnavampelo acesso das mulheres à propriedade,às profissões, ao voto. Galinhas acacarejar, hommes-femmes, homesses,Acervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 99-12*. jan/dez 1996 - pag.99


hermafroditas, eram alguns dos pesadosepítetos sexuais que lançavam osantifeministas contra tais mulheres, enquantoos homens que as apoiavam eramchamados de 'solteironas de calças'. Tãoassustadora lhes era a idéia de uma possívelconfusão de papéis sociais, temerososda perda de seu predomínio nas relaçõesde poder entre os gêneros, que lançavammão das estratégias mais variadaspara manter o status quo. Assim, lia-seou ouvia-se, repetidamente, em tratadosou piadas, em tons solenes ou leves, queos homens e as mulheres deviam ocuparesferas separadas porque tinham naturezase capacidades distintas e, portanto,deveriam exercer tarefas distintas.E, apesar desse bombardeio, mais e maismulheres reagiram contra esses sofismas,contra "sua dúbia realeza e sua muito realsubmissão doméstica". Algumas se rebelaramabertamente, enquanto a maioriase valesse de maneiras mais sutis na suaânsia de subverter sua situação. Lançavammão de táticas que lhes permitiamreempregar os signos da dominação,marcando uma resistência. 2no Brasil, idênticas iniciativas de liberaçãodas mulheres tiveram lugar. Desde oprimeiro protesto de Mísia Floresta nadécada de 1830, as insatisfações femininasmanifestaram-se com mais força.Constitui-se aqui, igualmente, uma imprensafeminina, cujo primeiro periódico,O Jornal das Senhoras, data de 1852. Algumasmais moderadas nas suas reivindicaçõesenfatizavam a importância daeducação da mulher, lembrando o seupapel de mãe, ou por uma "questão derequinte espiritual". Outras mais incisivasdefendiam-na como recurso para o alcanceda independência econômica, também,acentuando a relevância dos direitos civise políticos, chegando algumas a defendero divórcio. 3Já no século XX, despontam nomes comoMaria Lacerda de Moura, pioneira emmuitos âmbitos, cujas idéias, porém, nãoencontraram o devido eco naquele momento.Outras organizam-se em associações,destacando-se a atuação de BerthaLutz, cujo movimento teve como alvo oacesso das mulheres à cidadania plena.E, apesar de limitações comuns aos demaismovimentos feministas da época,algumas de suas propostas, como aquelados direitos civis, só recentemente vêmsendo implementadas.Tais reivindicações deram lugar a fortesresistências; autoridades, políticos emgeral, juristas, opunham-se às suas pretensõesnegando-se por toda a PrimeiraRepública a reconhecer às mulheres, entreoutros, o direito de voto. Respaldavam-sena ciência da época que legitimavaa partir de razões biológicas a desigualdadeentre homens e mulheres. Também,através de peças teatrais, da literatura,de crônicas e por diversas matériasna imprensa —jornais e periódicos — observa-seoposição ao seu atendimento,chegando alguns a ridicularizar as militantes,representando-as comomasculinizadas, feias, despeitadas e, mes-pag. 100, Jan/dez 1996


K V Omo, amorais. Conseguiam grande repercussão,não sendo poucos os homens comunsque endossavam tais opiniões, atravésde depoimentos e cartas aos jornais.Mão se pode, porém, concluir que tal campanhatenha sido totalmente vitoriosa. Asmulheres continuaram a expressar seudescontentamento com a educação quelhes era fornecida. Algumas lançavammão dos próprios argumentos que lhesestavam sendo impingidos. Muito possivelmente,estariam desenvolvendo umatática, visando mobilizar para seus própriosfins uma representação imposta —aceita, mas desviada contra a ordem quea produziu. Típica modalidade de manifestaçãodos poderes femininos numa situaçãode sujeição e de inferioridade quese traduz na reapropriação dos instrumentossimbólicos que instituem a dominaçãomasculina, desviando-os contra o seupróprio dominador. Dessa forma, aindaem 1855, uma mulher que não assumesua identidade, assinando-se como 'Baronesa',aponta a necessidade de se exigirpara as filhas uma instrução mais variadae séria, para o quê considera incapazesos colégios existentes. Observa aausência de preocupação no cultivo doespírito e da inteligência de uma menina"para que seja uma verdadeira senhora".O apelo se completa, valendo-se do próprioargumento utilizado por aqueles quepretendem manter a mulher como subalterna,ao acentuar o despreparo "de quemdeve um dia depender o futuro de umafamília inteira".*Mas havia, também, aquelas que exigiramAula de culinária na Escola Doméstica de Natal. Rio Grande do Norte, 1953.Arquivo Nacional.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 99-124. jan/dez 1996- pag.101


A C Euma educação mais qualificada não emnome da sua responsabilidade familiar,mas porque consideravam-se tão capazes"como o homem para o^estudo das ciências",apesar da constante repetição contrária;afirmavam inclusive a existência demulheres "superiores a muitos homens cientistase que escreveram trabalhos quesão citados por médicos insignes". Aprofissionalização como fruto da instruçãoera apontada como uma necessidade,reivindicando algumas, ainda de formatímida, à título de complementaridade,pois "nem sempre o trabalhodo homem é suficiente para proporcionarà sua família todas aquelas comodidades...".Outras mais lúcidas manifestavamtal necessidade com vistas a queas mulheres atingissem uma posição simétricano relacionamento com os homens,tornando-se dignas, capazes deuma escolha livre, o que as levaria a desprezar"as adulações pueris de que aindase mostram ávidas". Havia, também,aquelas que nem mencionavam o casamentocomo alvo, ao apontarem a importânciado trabalho assíduo e o seu fortalecimento"para as provas da liberdade epara os combates da vida". 5O DEBOCHE COMO ARMAOexercício pelas mulheres de atividadesprofissionais consideradaspróprias dos homens é paramuitos considerada catastrófica e objetode grosseiras caricaturas como na crônicaque se segue. Através do malicioso títulode Emancipada, busca-se passar amensagem do terror e do grotesco queessa situação poderia significar. MadameLinhares após um longo dia no escritório,encontra a casa em polvorosa: "osmeninos ainda não haviam jantado. E nãohaviam jantado porque o Cazuza Linharesnão havia acertado com o meio de fazer asopa e o assado". A cozinheira tinha saídoàs compras e, numa situação de in­6versão que a crônica buscava ridicularizar,"o Cazuza ficara em casa tomandoconta dos filhos". E todo atrapalhadopresta contas das suas desventuras, informandoà esposa que o almoço tinhasido a carne fria da véspera e ovos quentes.Já estava há três horas tentando semêxito preparar o jantar, pois "o fogo custoua acender como o diabo...". O fato,sem dúvida, se destinava a provocar preocupaçõesaos mais sensíveis', acerca dosprejuízos da ausência da mãe do lar ...O diálogo que se segue acentua a subserviênciado marido e o autoritarismo damulher. Era a inversão do quadro habitual,que ameaçava as famílias de bem...— Também você para nada presta.— Mas Milú se eu nunca aprendi a fazerisso...— E o que foi que aprendeu, não medirá? O senhor é um imprestável.— Mas Milú...— Cale-se homem, cale-sel— Mas eu...— Irral Molengal Bananal Pastelãol— Eu só queria vér você na cozinha...pag, 102. jan/dez 1996


R V O— Sim? Queria? Pois esse gosto não háde ter meu caro. Então eu, uma mulhersuperior, vou lá me ocupar com essescuidados domésticos.— E as crianças?— Pois, aí não tem queijo? não tempão? Vá ferver água para o chá.— Chá, pão e queijo? Mas isso é lá umjantar?— E basta. Também você só cuida dabarriga.Madame Linhares desloca-se em seguidapara os seus aposentos "majestosa e lenta... acompanhada pelos olhares dos filhinhosque o dedo à boca não ousaramaproximar-se, temerosos". Servido o chá,segue-se outra discussão entre os cônjuges,derramando a madame o chá fumegantepela cabeça do Linhares e aquelapara finalizar decide: "e passará a dormirna sala de visitas durante três meses. Épara ensiná-lo a respeitar uma mulheremancipada".Imagem de mãe no final do século XTX Arquivo Nadonal.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 99-124. janAIez 1996 - pag.103


sobre a prostituição de escravas na segundametade do século XIX. Mais adiante,o artigo de Beatriz Kushnir tambémenfoca a prostituição revelando a vida dasprostitutas judias, as chamadas 'polacas'.A reflexão sobre as imagens femininasencontradas na literatura brasileira doséculo XIX é o objeto de estudo de Eni deMesquita Samara.Quanto às relações de gênero, três artigosenfocam este tema, abordando a virgindade,o casamento - incluindo a questãodo dote e da transmissão dopatrimônio familiar - e a busca de novosespaços e direitos femininos. SueannCaulfield parte da reforma do Código Penalpara traçar o perfil da 'mulher moderna'no Rio de Janeiro, nas décadas de1910 a 1940. Tendo como pano de fundoo Brasil no fim do período colonial, MariaBeatriz Mizza da Silva analisa a questãodo patrimônio familiar e da inserção damulher não apenas como herdeira dedotes e meações, mas, principalmente,como responsável pela manutenção eaumento desse patrimônio. Rachel Soihetcomenta as tentativas de liberação feminina,desde meados do século XIX, utilizandocomo fontes as revistas femininas,entre outras.O artigo de Beatriz Moreira Monteiro indicaas fontes documentais do ArquivoMacional para os estudos sobre a mulher.A seção Perfil Institucional apresenta duasinstituições, o Conselho nacional dos Direitosda Mulher, que tem por objetivoassegurar que os direitos e as garantiasconquistados pelas mulheres sejam cumpridose a Fundação Carlos Chagas, entidadecivil que, além de se destacar naseleção de recursos humanos, desenvolve,desde 1978, um programa de apoioaos estudos sobre mulher e relações degênero.Maria do Carmo T. RainhoEditora


A C EApesar do tom caricatural, tal comportamentofeminino não distava daquele propagado,no momento em foco, porcriminalistas e médicos, acerca do perigorepresentado pelas mulheresintelectualizadas como parece ser a personagem.Para Cesare Lombroso, médicoitaliano e nome conceituado dacriminologia em fins do século XIX, emboraa mulher normal apresentasse algumascaracterísticas negativas que a aproximavamda criança, tais como sensomoral deficiente, tendência exagerada àvingança, ao ciúme, de maneira geral essesdefeitos eram neutralizados, entreoutros, pela maternidade, sua frieza sexuale sua menor inteligência. Emcontraposição, as mulheres dotadas deforte inteligência se revelavam extremamenteperigosas, constituindo as criminosasnatas. Eram incapazes da abnegação,da paciência, do altruísmo que caracterizama maternidade, função primordialdas mulheres a que estaria subordinadatoda a organização biológica e psicológicadaquelas normais.Higienistas, no Rio de Janeiro, concordavamcom tais asserções. Discorrendo sobreos motivos que levariam a mulher acometer o terrível crime do infanticídio,o dr. Augusto Militão Pacheco aponta as"mulheres originais" como capazes defazê-lo. Estas divergiriam das demais e secaracterizariam "pela sua extrema devassidão,...pelo gosto infrene de pintar, escrever,viajar etc", nesse caso enquadraem primeiro lugar, a mulher infiel e emsegundo, a mulher emancipada, nesseparticular, acentua Jurandir Freire Costa,para os higienistas a independência damulher não poderia extravasar as fronteirasda casa e do consumo de bens e idéiasque reforçassem a imagem da mulhermãe. A mulher intelectual, emancipada,em Fins do século XIX e início do XX, constituía-senum mau exemplo para outrasmulheres, levando-as a acreditar que poderiamsubsistir sozinhas sem o concursodo marido, comprometendo toda a organizaçãoda sociedade. Voluntariamenterecusando-se a restringir seu universoà maternidade e à casa, desprezando suasfunções naturais, eram a fonte de todosos flagelos sociais. 7Mais uma reivindicação feminina é o títulode uma outra crônica visando ridicularizaras demandas feministas por maiorparticipação na sociedade:Já não são somente nas profissões, já nãose limitam aos direitos civis e políticos;não param também nos vestuários as reivindicaçõesdas nossas ardentes feministas.Há agora uma tendência pronunciadapara usar coisas até agora permitidasao sexo feio. É assim que brevementeaparecerá uma obra da ilustrada sra. X... reivindicando o direito de senhorasusarem barbas também. 8Utilizando-se de um exemplo absurdo egrotesco, no caso a aspiração pelas mulheresao uso da barba, busca o autor induziros leitores a encarar, igualmente,como tolas ou supérfluas as demais reivindicações.E ao longo da narrativa nãofaltam alusões à indignação por tal prepag.104. jan/dez 1996


K V Otensão de "trazerem os rostos femininos ospelos macios que o homem ciosamentereserva para o seu exclusivo uso". E na utilizaçãoda barba, como exemplo de demandadas feministas, pode estar implícita apretensão de mostrá-las comomasculinizadas ou invejosas não apenas depapéis vistos como privativos dos homens,mas igualmente de seus atributos físicos.Afinal, Freud não enxergaria nas mulheresuma forte inveja do pênis?E, para terminar, o autor não deixa de assinalarmais uma das propaladas fraquezasfemininas, não escondendo o esforço emapresentar as mulheres como seres nãomuito conseqüentes. Assim, afirma que oreferido uso da barba "servirá ... para demonstrara falsidade da alegação de quetoda mulher é tagarela, pois necessariamenteterão de ficar caladas, ao menos,enquanto fizerem a barba".Alguns tentam manifestar sua oposição àsmudanças pretendidas pelas feministas,apelando para um tom cavalheiresco, próximoao pieguismo. Aqui, o articulista nãodeixa de ressaltar a dimensão sacralizadada mulher, representada pela maternidadeque inicia o homem na sua caminhada pelavida, e este "obedece-a, e sem nunca maispoder esquecê-la Seu "poder mágico"exerce-se não "pela arrogância, não pelaimposição máscula e viril que são ospredicados do homem, mas pelo tom sentimentalcom que move todas as suasações, mesmo matando quando ri, mesmotraindo quando beija", no que abusa o autorem termos de morbidez ... 9Em tom grandiloqüente, acentua a importânciada sensibilidade, privativa damulher, através da qual "dominando ohomem, guia as crianças e governa omundo". E, em seguida, ressalta o caráterespecífico das qualidades femininasque não passam pela atividade intelectualou política.Mão concebo a mulher fora do seu ciclo,apostrofando os deuses ou discutindoa origem das espécies. Ela foifeita para domar o homem. Que seráda humanidade o dia em que ela, rasgandoo peignoir de rendas, envergaro grosso capotáo masculino e sairpara a rua, não mais com a leve sombrinhade seda, mas com o humilhantecacete do capanga eleitoral? Desapareceráo encanto dos salões, a almada paisagem, o amor do lar....Repetem-se velhos estereótipos, acercada importância de serem respeitadosos diferentes atributos dos homens emulheres, concepção presente na religião,atualizada e sofisticada pelos filósofosiluministas e utilizada pela ciência.O tom da crônica caracteriza-se pelasisudez, em que pese sua excessivamelosidade, até chegar ao seu final,quando lança mão de um artifício pordemais vulgar, aquele de que "só asmuito feias hão de querer se emancipar... coitadas! As bonitas não", porque aelas nunca faltará um adorador. E, semmais delongas: "...que nos importa asfeias! Salvem-se as belas, que a humanidadese aperfeiçoará".Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 99-124. Jan/dez 1996 - pag.105


A C EAliás, é recorrente a preocupação emacentuar o caráter imprescindível da belezapara as mulheres. A ausência desseatributo representa urh pesado ônus, jáque, infalivelmente, serão rejeitadas peloshomens. E caso ocorra a possibilidadede serem escolhidas existe sempre operigo de que o tenham sido pelo dinheiro.Crônicas se detêm na questão, propondoestratégias para superação desseobstáculo e garantir às feias a possibilidadede realização daquela que é consideradaa única aspiração legítima para asmulheres — o casamento. O feminismonão deixará de ser utilizado como ameaçaà concretização de tal anseio. Assim,um cronista destaca que na Europa e nosEstados Unidos as sufragistas vinham demonstrandoenergia e preparo suficientespara não comprometerem as suasidéias, tornando-se ridículas. Algumas atéassumiram profissões tais como "irmãs daCruz Vermelha, operárias, varredoras derua, tudo o que à sua saia era compatível".Refere-se, porém, de forma desrespeitosaàs militantes brasileiras, cujaatuação decorreria de sua ociosidade, recomendandomaldosamente que "se nãotiverem com o que se distrair em casa,vão para as fábricas, namorem ou façamsetelefonistas". Finaliza ameaçando como supremo castigo, ou seja, "se persistiremnessas bobagens ... ficarão todas solteironas,o que é o diabo!". 10Um outro, após discorrer sobre uma práticaexistente na antigüidade, destinadaa possibilitar o casamento de moças bonitas,mas também das feias, através deleilões, assim termina seu arrazoado:talvez fosse esse o único, excelente,maravilhoso meio de acabar de uma vezcom as sufragistas. as literatas, asneurastênicas, as cochichadeiras e asbeatas, horríveis espécies femininasnascidas da classe imensa, descontente,vingativa e audaz das uieillesfilles..."Depreende-se desta colocação que as mulheresque se decidem à luta pelo reconhecimentode direitos e buscam disseminarsuas idéias fazem-no apenas por frustração.Ou seja, não sendo privilegiadas com a beleza,vendo-se relegadas à triste situaçãode vieille-fille, vista na época como extremamentehumilhante para as mulheres,12buscam vingança através doquestionamento de sua condição. Em nenhummomento preocupam-se os donosdestas verdades' em lembrar que o casamentoe a maternidade, vistos como obrigatóriospara as mulheres, constituem-senuma construção, predominantemente,masculina. Através da religião, da Filosofia,das ciências, os formuladores desses saberesbuscaram demonstrar a vocação 'natural'e única das mulheres para tal forma deexistência. E seus herdeiros passam aapresentá-las como 'caçadoras de homens'incautos, ridicularizando-as a todo momentoquer por essa atitude, quer por seu fracasso,mantendo-se solteironas'.Mão se limitavam aos homens a crítica aofeminismo. A revista feminina Única, publicaçãomensal, contendo matérias sobreliteratura, arte, elegância e sociolopag.106, Jan/dez 1996


R V Ogia, dirigida por uma mulher, Franciscade Vasconcelos Bastos Cordeiro, incorre,igualmente, na questão. Em que pesecontar com diversificada colaboração demulheres significativas na época, como apoetisa Cecília Meireles e até de militantesdo movimento feminista. Messe sentido,noticia a invasão dos prados de corridase quarteirões elegantes londrinos pormulheres apaches de porte másculo emuito bem vestidas, pertencentes a umbando de nome bizarro: "bando dos quarentaelefantes". Tais "criaturas, dedicamseao roubo nos grandes estabelecimentos,à violação das fechaduras, à chantageme até ao assalto à mão armada ...resultado dos direitos equiparados damulher". 13À primeira vista, esta maneira burlesca deapresentar as mulheres empenhadas naluta por direitos não guardaria maioresconseqüências, visando apenas divertir opúblico leitor. Ma verdade, porém, percebe-seum aspecto perverso nessas insinuações,o que me faz enquadrar tais colocaçõesnuma das modalidades de violênciasimbólica contra as mulheres. Isto,porque a reiteração da comicidade naabordagem de suas reivindicações tendea difundir uma imagem em voga, acercada falta de seriedade das preocupaçõesfemininas, ao contrário das masculinas.For outro lado, muitas das mulheres tendema introjetar esse discurso, divulgadonos diversos meios de comunicação, identificandoas feministas como 'viragos',Berta Lutz, em Natal, fazendo propaganda aérea do voto feminino, s.d.Arquivo Nacional.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 99-124, JanAlez 1996 - pag.107


A C Epesadas como elefantes, perigosas, tendentesa incorrer em transgressões criminais.Imagens que se contrapõem aoideal feminino, constantementereatualizado de beleza, meiguice, delicadeza,paciência e resignação, o que nãopoucas vezes as levam a rejeitar sua inserçãono feminismo e até a combatê-lo. 14Aliás, também aqui, cabe lembrarLombroso que menciona o fato de muitasmulheres honestas estarem incorrendono delito devido o seu acesso à instruçãoelevada, uma das reivindicaçõesfeministas. Segundo ele, na medida emque estas encontram dificuldades deatuação profissional, face à manutençãodos preconceitos nesse campo, muitasacabam reduzidas à miséria. Outrossim,"tendo perdido ou quase a esperança deencontrar um último recurso no casamento(pela habitual repugnância do homemvulgar pela mulher instruída) não lhe restasenão o suicídio, o delito ou a prostituição".Assim, mais uma vez, a ciência mescla-secom o senso comum, corroborandoo perigo de uma escolha daquela espécie.REPRESENTAÇÕES FEMININAS: SIGNOSIDÊNTICOS E DESVIO TÁTICOMuitas das que enveredaramna campanha por reivindicaçãode direitos, denunciandoas desigualdades e injustiças que acometiamas mulheres na ordem vigente, emmaior ou menor grau, manifestaram emseu discurso algumas ambigüidades. Comesta observação não pretendo invalidarsua atuação, da maior importância. Inclusive,tal comportamento confirma a premissade que parto, e já aqui enunciada,do fato de que, em sua maioria, as mulherescomo tantos subalternos valem-seda própria linguagem da dominação queé reempregada para marcar uma resistência.Estariam se valendo das representaçõesque lhes foram impostas, emborasubvertendo-as e empregando-as comFins diversos daqueles para os quais foramestabelecidas. 15Esta é a minha leitura, da seguinte matériade uma colunista que escrevia na Revistada Semana acerca dos problemasenfrentados pelo gênero feminino. Ma crônicaem foco, narra o drama vivido naquelemomento, em plena Primeira GuerraMundial, por Maria Walvach, alemã expulsade Portugal devido à sua nacionalidade.Ali tivera um filho com um deputadoportuguês. Este filho, por tais circunstâncias,lhe fora retirado pelo pai da criança,como era reconhecido legalmente.A história passou-se realmente de formatrágica, de forma a emocionar quantosdela tiveram conhecimento e exemplar daviolência sobre a mulher. Maria,inconformada com a perda do filho,retorna, ilegalmente, a Lisboa suplicandoao pai sua devolução. É expulsa da casadeste e, de volta ao hotel, face a tal desilusão,tenta o suicídio com pastilhas desublimado. Levada ao hospital, desespera-sepor não ter morrido, tendo forte crise.É conduzida às autoridades policiaispag. 108. jan/dez 1996


R V Oe novamente expulsa do país, em meioaos apelos inúteis acerca dos direitos desua maternidade. 16Sobre a injustiça cometida, em nome dalei, contra os direitos de Maria Walvachsobre seu filho, Iracema assim se manifesta:nunca me foi possível conceber umapropriedade mais legítima do que damãe sobre o seu fruto. É ela quem forma,cria, organiza, no mistério de suasentranhas, o filho que só pelo preço dasmaiores dores humanas ela expulsarádo seu corpo. Foi com o seu sangue,com sua vida, à custa de sua beleza emuitas vezes da sua saúde, que elacriou em seu seio, dentro de sua carne,invisível a todos os olhares, o filho,liascido ele, é ainda a mãe que o alimentacom o seu leite. Vem depois ajustiça humana e discute-lhe os direitosque ela tem à propriedade do enteque gerou. O homem é o dono de tudo.A mulher não passa do terreno onde elesemeou.Das várias modalidades de violência presentesna atitude da justiça que se decidepela prioridade paterna na questãoacima apresentada, destaco a contradiçãocom o discurso veiculado acerca do papelsacrossanto da maternidade. As mãessão equiparadas à Maria, mãe de Jesus,tendo responsabilidade total nos destinosdos seus Filhos, aos quais devem devotarsuas vidas. Especialmente, a partir doséculo XVIII, é a mulher bombardeadacom variados estímulos sobre a prioridadedessa missão. Tais princípiosinteriorizados são básicos na construçãode suas identidades e é na condição demães que as mulheres passam a se reconhecer.Pode-se avaliar, a partir daí, acarga de violência para uma mulher damedida acima, reconhecida pelos diversoscódigos civis, em especial nos paíseslatinos. A maior violência residiria no desrespeitototal à tradicional construção,num momento em que esta se revela prejudicialaos interesses do Estado e dogênero dominante.Iracema, ao expressar sua revolta comrelação à situação, demonstra a incorporaçãoplena daqueles discursos acerca dosignificado da maternidade, apesar deutilizar sua coluna como tribuna de reivindicaçãodos direitos femininos. Seusargumentos na defesa dos direitos damulher nessa questão, em sua grandemaioria, são de caráter biológico. A mãetem direito porque dá à luz, "ao preço dasmaiores dores humanas". Enumera todasas transformações sofridas pelo corpo femininona gestação desse ser a quemgarante a vida através de seu leite, nenhumapalavra é pronunciada acerca dodesrespeito à mulher como sujeito, espoliadanos direitos proclamados como universais.Ao utilizar-se da linguagem que legitimavaa dominação masculina, Iracema poderia,porém, estar se valendo de um recursotático, desviando os instrumentossimbólicos que instituem tal dominaçãoem favor de outros fins, aqueles de inte-Acervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2, p. 99-124. jan/dez 1996-pag.l09


A C Eresse do gênero feminino. Mais adiante,inclusive, lança mão de expressõesindicativas de uma suposta submissão eexcessiva humildade emitidas num tomalgo caricatural, o que pode confirmaraquela hipótese.não me proponho a pregar doutrinasrevoltosas, nem eu sou, na minha obscuridade,uma propagandista. Minhasasas são curtas para vôos largos, nemeu acredito que a mulher tenha a lucrarem falar alto. As suas reclamaçõespodem ser feitas em tom de queixume.A voz da mulher nunca deve elevar-seaté o grito.Aliás, esta era um estratégia muito utilizadapelas feministas no país, face às críticascada vez mais virulentas que se lhesfaziam, acusando-as de viragos',subversoras dos lares, pondo em perigoa estabilidade das famílias etc. Em conseqüência,muitas das mulheres passama reivindicar direitos em nome dos valoresconsagrados pela ordem dominante.Isto não significa, porém, que deixem dedenunciar as situações que lhes afligem,assim como de explicitar suas aspirações.Apenas, procuram ressaltar sua compatibilidadecom a manutenção daqueles valorese práticas.Este é o caso de Maria Luiza da M. Freire,autora de um discurso revelador de suaastúcia política. De início, confessa nãoentender as motivações alegadas contrao voto da mulher em pleno século XX. Estareforma, portanto, "não pode nem deveser considerada mero capricho de vaidade,mas sim um ato de incontestável utilidade".Logo em seguida, abranda seutom reconhecendo que nem todos ospaíses estariam preparados para aceitare cumprir esta medida. ExempliFica comos países latinos, nos quais inclui o Brasil,que se contrapõem aos paísesescandinavos, anglo-saxônicos, nos quaishá muito se valorizava a instrução femininapermitindo-lhes o exercício de todasas proFissões. nesse particular, incorporaum dos mais constantes argumentos dosque se opunham ao voto feminino: a precariedadede instrução da maioria dasmulheres, por sinal estimulada pelos próprioshomens. Tal concessão' da cronistaé seguida por um protesto, citando algumasdas inúmeras contribuições femininase a injustiça representada por aquelarecusa.Quando se reflete que a mulher peranteo Estado suporta muitas vezes asmesmas cargas que o homem — quepaga impostos, trabalha com saláriosquase sempre inferiores aos do homem,dá seus Filhos para a defesa dapátria — é francamente inadmissívelque se lhe recuse o voto, se ela o reivindicar.17Ressalta a sintonia total deste direito como desempenho dos deveres domésticos,"que naturalmente são primordiais, assimcomo os deveres religiosos e morais",numa réplica a outra das invocações maiscomuns contrárias ao voto feminino. Voltaà carga após tal declaração, criticandouma das modalidades de manutenção dapag. 110, Jan/dez 1996


Anne LaurenceProfessora da Open University do Reino Unido.Uma tela alma exigiamm belo corpo?IVIiilneres, religiosidade eaparência pessoal na Inglaterrado século XVIIP:I ara os homens e mulheresdevotos na Inglaterra do século XVII, havia muitas ambigüidadesem toda a questão da aparênciapessoal. Por um lado, fugiamda extravagância, das manifestaçõesde vaidade e da mutabilidade da moda.Por outro, preocupavam-se profundamentecom o status e a aparência apropriadaà posição, tanto moral quanto social. Eranecessário que a esposa de um homemdevoto tivesse uma aparência agradável;que parecesse limpa e saudável; que sevestisse de acordo com sua posição social,o que poderia significar com algumluxo, se seu marido fosse um homem deposses.Esta ambigüidade aparece claramente nahistória da vida da jovem lady ElizabethLangham. Ela era filha do conde deHuntingdon e a segunda esposa de SirJames Langham de Cottesbrooke, distritode Mottingham, com quem ela secasara pouco mais de um ano antesde morrer de varíola, em 1664, durantesua primeira gravidez. A família de seupai, os Hastings, era de conhecidos puritanos.Os Langhams eram de posiçãomenos elevada, embora Sir James fosseherdeiro de uma considerável fortunamercantil e estivesse disposto a gastá-lagenerosamente nos funerais de suas trêsesposas e de seu filho mais velho.A história da vida de lady Elizabeth foi elaboradapelo clérigo que pregou o sermãono enterro dela, baseado no texto dosAcervo. Rto de Janeiro, v. 9. n° 1-2, p. 3-15.jarvdez 1996- pag.3


R V Odependência feminina, a de considerarsenatural que terminado o colégio a moçase deixe absorver "por um turbilhão defutilidades e ocupações" sem qualquervalidade prática. E continua Maria Luiza,referindo-se às objeções a que procureinstruir-se para garantir seu futuro, emcaso de lhe faltar a "proteção natural dopai ou do marido". O que deixa percebersua concordância com o trabalho feminino,apenas, em caso de necessidade. Utilizandoo próprio argumento dos defensoresda permanência das mulheres norecinto privado demonstra a incoerênciae inconsistência deles: "mas como há deela fazer de seus filhos excelentes cristãos,se suas convicções religiosas nãosão firmes, e perfeitos cidadãos, se elaignora por completo o que se passa naadministração do país?" Continua argumentandoacerca das vantagens de seconferir às mulheres o direito de voto,com vistas a atrair sua atenção para asquestões de interesse público, ampliandoseus horizontes, forçosamente estreitosse limitados à vida doméstica. Tranqüilizaaqueles que possam temer a concorrênciafeminina:O fato da mulher participar de maneiramais ativa nos debates sobre interessescomuns não significa que ela alimenteambições desregradas. Já queela não tem que cobiçar as posiçõesmais altas do governo, há muito maisprobabilidades para que sua eleiçãoseja mais desinteressada do que a dohomem em geral e é; e se há casos emque ela seja influenciada pelo ladoafetivo, o homem o é diariamente pelointeresse.Grupo das primeiras eleitoras brasileiras. Rio Grande do Norte, 1928.Arquivo Nadonal.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 99-124. jan/dez 1996 - paglll


A C EBaseada nas imagens construídas edivulgadas pelos homens sobre as mulheres,acerca de seu conformismo e passividade,procura assegurar-lhes que o reconhecimentoda cidadania política delasnão implicaria para eles em perda de espaço.Ao contrário, resultariam de suaparticipação maiores benefícios para osmesmos, face ao caráter destituído deinteresses daquele gênero. Também, procuratranqüilizá-los, alegando o carátermoderado do movimento em que pesemas maledicências que "espíritos retrógradosinvocam com prazer". Aqui, não haviaqualquer inclinação para reproduzir osabusos das suffragettes revoltadas emdiferentes países, como vidraças quebradasem edifícios públicos, passeatas espalhafatosasetc. Mão deixava, igualmente,de acenar aos conservadores com osbenefícios que lhes poderia trazer o votofeminino. Recorre ao exemplo da Bélgica,citando a atuação do bispo de Bruxelas,o qual impediu a vitória do partidosocialista, que parecia contar com maioria,apelando às mulheres e até àscarmelitas descalças a sufragarem representantescatólicos.Arguta peça política, em que pese seuconservadorismo. A autora articula umdiscurso no qual demonstra o carátermoderado do feminismo local. Moderadonos métodos, nas aspirações, nunca capazde ameaçar aos homens o espaço quecontrolavam; força capaz de impedir mudançaspolíticas bruscas. Mas, as injustiçassão colocadas, reclamando-se suacorreção. Em suma, demonstração decrescimento político alcançado por algumasdas mulheres, que nem por isso deixaramde incorporar e manter muitas dasrepresentações que lhes foraminculcadas...Os movimentos feministas na década de1920 marcam um momento de ruptura,não se limitando, apenas, àquelas atitudescotidianas, microscópicas em suamaioria, taticamente levadas a efeito pelossubalternos, visando esgueirar-se furtivamenteà opressão. Algumas mulheresassumem abertamente a campanha pelaobtenção de seus direitos. Organizam-seem associações, fazem pronunciamentospúblicos, utilizando-se fartamente da imprensa,buscam o apoio de lideranças nosdiversos campos, constituindo grupos depressão visando garantir apoio de parlamentarese de outras autoridades, da imprensa,da opinião pública etc. Apesardisso, em sua maioria, buscam revestir oseu discurso de um tom moderado, nãoapenas porque tenham introjetado queesta seria a forma adequada de expressãofeminina, mas, igualmente, por estratégiapolítica.O ÁPICE DA LUTA: ROMPENDO ECONSERVANDO)estaco nesse sentido a atuaçãode Bertha Lutz, cujo movimentoassumiu caráter hegemôniconaquele momento. Já em sua carta à citadaRevista da Semana, em setembro de1918, quando se pronúncia pela primeirapag. 112. Jan/dez 1996


R V Ovez no Brasil, recém-chegada da Europa,observa-se este duplo movimento. Criticaos homens pelo tratamento dispensadoàs mulheres que sob a capa do respeitotentavam mantê-las em permanenteestado de infantilização. Exige o direitode ser respeitada como ser humano enão como objeto de luxo ou agrado, incapazde pensar por si. Reconhece, porém,não serem eles os únicos responsáveispelo estágio em que se encontrava acondição feminina, embora tivessem umagrande parcela, já que "a legislação, a políticae todas as instituições públicas" estãoem suas mãos. Cabia, contudo, às mulhereslutarem pela sua emancipação, oque demandava requisitos básicos, taiscomo espírito de iniciativa, exercício dotrabalho e educação. O exercício do trabalhoera determinante, porquepropiciava-lhes meios de subsistência, livrando-asde uma "dependência humilhante".Constituía, além disso, fator decisivono amadurecimento da personalidadefeminina, ajudando-a a "disciplinara vontade e educar o pensamento". A educaçãoseria o veículo para a consecuçãodesse objetivo. Complementando suas sugestões,Bertha propunha a formação deassociações, imprescindíveis parafuncionarem como elementos de pressãoe para fazer frente às reações surgidas,garantindo "o êxito no rompimento dostabus e preconceitos relativos à libertaçãoda mulher". "1O cuidado em demonstrar sua moderaçãoestava presente ao afirmar que nãopretendia uma associação desuffragettes,que ameaçassem quebrar as vidraças daavenida, o que devia ser um chavão repetidopelos adversários deste tipo de reivindicaçãofeminina. Apressa-se em esclarecerque sua proposta era:...uma sociedade de brasileiras quecompreendessem que a mulher nãodeve viver parasitariamente do seusexo. aproveitando os instintos animaisdo homem, mas que deve ser útil, instruir-see a seus filhos e tornar-se capazde cumprir os deveres políticos queo futuro não pode deixar de repartircom ela.Contrapõe-se à intocável divisão de esferas,ao enfatizar o exercício do trabalhoextradoméstico, mesmo para as mulherescasadas, independentemente da condiçãodo marido. E aí depreende-se sua concepçãode que o eterno susten.to da mulherno casamento corresponderia a uma espéciede comércio sexual, ao recomendarque a mulher "não deve viver parasitariamentedo seu sexo, aproveitando osinstintos animais do homem", fiesse sentido,propõe uma reformulação na organizaçãoda família que naquele momentoconstitui-se em algo inovador. Um outroaspecto que se depreende de suas declaraçõesé a crença de que a ascensão femininaresultaria não só em benefíciospessoais, deixando de ocupar "uma posiçãosocial tão humilhante para elas comonefasta para os homens e deixariam deser um dos pesados elos que atam o nossopaís ao passado para se tornarem ins-Acervo. Rio dc Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 99-12*. jan/dez 1996- pag.113


A C Etrumentos preciosos do progresso do Brasil".Apesar da multiplicidade de atividadesque conseguiu empreender, abrindo váriasfrentes de luta, a conquista do voto,de acordo com o espírito da época, mereceuprioridade. Acreditava que o acessoaos direitos políticos eram essenciaisà obtenção de garantias com base na lei.Esta sua opção foi objeto de críticas, considerandoBranca Moreira Alves que estafoi uma luta inglória, limitada às "reivindicaçõesformais do liberalismo burguês".Reduziu, assim, esta conquista a uma concessão"quando assim interessou à classedominante, em seu confronto com asmassas urbanas que ameaçavam o equilíbriodo jogo político liberal". 19Uma posição desta natureza desdenha aslutas empreendidas por várias geraçõesde mulheres já preocupadas com a questão,das quais a própria autora faz umaretrospectiva. E, particularmente, quantoa Bertha, não há como negar sua açãonum momento decisivo, marcando umaruptura, em meio aos preconceitos nosmais diversos âmbitos, a começar peloCongresso, nas páginas da imprensa, nosteatros de revista etc. Afinal, penetrar naesfera pública era um velho anseio porlongo tempo vedado às mulheres. Significavauma conquista, possibilitando-lhesassumir sua plena condição humana atravésda ação política, da qual haviam sidoviolentamente excluídas. 20Além da sua presença efetiva nos meiospolíticos liderando um pequeno grupo,como tão bem coloca a citada autora, sucediam-seentrevistas de Bertha contra-argumentandoas diversas colocações contráriasà participação política feminina. Tratavade criar uma imagem positiva para taispropostas, tão ferrenhamente combatidas.Aos que aludiam à falta de preparo de algunselementos femininos ao exercício dovoto, lembrava que existiam "muitos homensem semelhantes condições", sem esquecerdas mulheres que "pelo trabalho epelo estudo" tornaram-se aptas, dotadas de"tirocínio e experiência suficientes de elevaras suas vozes a bem do país". Quanto àidealização da mulher como o "anjo do lar",do qual o voto a afastaria irremediavelmente,provocando inúmeros prejuízos, respondianum misto de ironia e lucidez:rfenhum homem se lembraria de consideraras suas empregadas ou umamulher do povo, operária esobrecarregada de filhos, como um anjodo lar. O anjo é apenas a mulher cujosmeios lhe permitam dedicar-se unicamenteao homem e, quando é máe aosfilhos, não dispensando contudo outrasmulheres — talvez menos divinas —para executar os trabalhos menosangélicos e diurnos do lar.E completava esclarecendo que o afastamentoda mulher do lar não se deveriaao pouco tempo necessário ao exercíciodo voto.O que afasta a mulher do lar é a necessidade,são as dificuldades materiais davida, as horas prolongadas nas oficinas,o trabalho mal remunerado, a falta depag. 114, Jan/dez 1996


R V Oconforto nos 'ateliers' e nas fábricas, aausência de tentativas de por os seus trabalhosde acordo com a sua função demãe. Hão é o fato da mulher ser legisladoraque causa as circunstâncias atuais,pelo contrário, é a sua ausência. 21Através do discurso acima, verifica-se aconsciência de Bertha dos problemas sociaisque náo hesita em apontar, buscandodesmascarar os preconceitos e os pretextospara impedir a participação dasmulheres na política. Sua última frase, decerta forma, justifica a prioridade que emdado momento deu à conquista do voto.Acreditava que a prática legislativa porparte das mulheres seria um elementochavena mudança de condição dessessegmentos e mesmo do país. A sua participaçãocomo membro da Comissão deElaboração do Anteprojeto da Constituição,em 1932, e o documento que elaborou,a título de sugestão, comprovam-no.Ma verdade batalhou em várias frentes,sendo injusto considerar sua atuação apenascom relação ao voto.O trabalho feminino, inclusive aquele dasmulheres pobres, se constituiu numa preocupaçãoforte na militância de BerthaLutz, que também nesse âmbito sugeriua criação de associações de classe paraas diversas categorias profissionais. Ressalte-seque não postulava uma transformaçãoda sociedade em suas bases. Suapostura era reformista, inserindo-se nacorrente de idéias que vigoraram no país,após 1930. Dentro dos limites que se impôs,porém, esteve na liderança das propostasde regulamentação e melhoria dascondições de trabalho feminino. Comoparlamentar, a partir de 1935, desdobrousena criação da Comissão do Estatuto daMulher, da qual foi a presidente, visandoa regulamentação dos artigos constitucionaisrelativos aos assuntos femininos. 22As questões ligadas à educação mereceram,igualmente, sua atenção, mobilizando-separa garantir a entrada de elementosdo sexo feminino no ensino secundáriooficial, reivindicação vitoriosa em1922. Pleiteia para a mulher "direitos àinstrução idênticos ao homem, a fim deque esta dispusesse dos mesmos meiospara o exercício do trabalho e a mesmaremuneração". Por outro lado, quandomembro da Câmara Federal, a partir de1935, revela a manutenção das concepçõesacerca da divisão sexual de trabalho.Demonstra não ter conseguido libertar-sedas representações e práticas queimpõem a divisão das atribuições entreos gêneros, apesar de pretender a emancipaçãofeminina. Assim, é que por iniciativasua é criada no Ministério da Educaçãoe Saúde uma Divisão de Ensino Domésticoe Vocacional. E, ainda, foi maislonge no seu ideal de assegurar adomesticidade feminina, sugerindo acriação de uma Faculdade de Ciências Domésticase Sociais destinada à formaçãode "especialistas nos problemas domésticose sociais e do treinamento deorganizadoras futuras para serviços federaisde ensino doméstico e professoras deescolas secundárias". Também, o estatu-Acervo. Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 99-124. janMez 1995 - pag.l 15


A C Eto cultural, presente no estatuto da mulher,previa "a educação e a orientaçãofeminina, cultural, dornéstica, profissionale cívica procurando indicar o caminhodo preparo da mulher para o lar, otrabalho e a vida". Já quanto aos direitoscivis sua postura foi das mais avançadas.Afirmava a necessidade da "mulher [...]ter dentro ou fora do casamento personalidadecivil completa, igual a do homem".Através do estatuto da mulher reconheciam-seàs mulheres a plenitudedos direitos civis. O pátrio poder seriaexercido por ambos os cônjuges, e a mãecomo o pai transmitiria o nome aos filhos,proposição que até hoje não se estabeleceu.A dissolução do Congresso, em 1937,antes da aprovação do projeto, impediuque o estatuto entrasse em vigor, emboraalgumas de suas sugestões fossemadotadas posteriormente.De forma similar aos diversos movimentosinternacionais do gênero, padeceu deinúmeras limitações no que tange ao alcancede seu objetivo: a liberação feminina.Escaparam aos ideais feministas domomento vários dos fatores que a impediam,alguns apenas visíveis a partir dadécada de 1960. Continuava-se a aceitaro exercício de certas atividades como maisadequadas à mulher, por extensão de suasfunções maternais. Fato que continuavaa reproduzir a concepção acerca da inclinaçãode cada gênero para as tarefascompatíveis com sua natureza. Sem esquecerque aquelas consideradas maisadequadas ao gênero feminino eram asmenos remuneradas. Mantinha-se, emgrande medida, a força das representaçõese práticas que impõem a divisão dasatribuições entre os gêneros, comprometendoradicalmente a total emancipaçãofeminina.Uma forte crítica de Moreira Alves a estemovimento foi a de não ter polarizadosuas críticas contra a família patriarcal eas relações de poder dentro da família,optando pelo caminho menos contundenteda luta a nível jurídico. Ma verdade,matizo esta afirmação, pois considero quemuito foi questionado. Destaco as propostasde estímulo e reconhecimento da atividadeprofissional feminina e aquela relativaà instauração de completa igualdadecivil de homens e mulheres, mesmoquando casadas.Apesar disso, aquele feminismo não questionouas implicações de se atribuir àmulher a responsabilidade total pelas atividadesdomésticas e pela socializaçãodos filhos. A conquista dos novos direitosde participação na esfera pública não implicaramnuma reformulação no âmbitodas obrigações familiares entre os doisgêneros. Continuava-se, portanto, a consideraro espaço doméstico como inerenteà mulher, mantendo-se sua posição desigualna sociedade, fonte de um processode violência contra a sua pessoa. Resultavadaí uma mulher dividida, culpada,quando obrigada a trabalhar fora do lar;considerando sua atividade profissionalcomo algo secundário em relação à atividadeprincipal de esposa e mãe, dandopag. 116. jan/dez 1996


R V Olugar à discriminação salarial, profissionale sindical.Por outro lado, apesar da sociedade nãoter condições de sobrevivência sem o nascimentoe socialização das novas gerações,não foram devidamente exigidospelo movimento a instauração de estabelecimentoscoletivos acessíveis — restaurantes,creches, lavanderias — que possibilitassemàs mulheres partilhar as tarefasque se cristalizaram como suas. Aliás,na própria União Soviética, onde teoricamentese pretendeu uma sociedadeigualitária em todos os níveis, este problemanão foi resolvido. Embora, Fourier,ainda no século XIX, dado como 'socialistautópico', preconizasse a liberação femininaatravés da instauração daquelesestabelecimentos, além da educação comumaos dois gêneros e a liberdade sexualpara ambos.Mo que tange ao último aspecto, reconheçoa dificuldade, naquele momento, demulheres dos segmentos médios elevadosassumirem uma postura dessa natureza,quanto a um assunto consideradoCarnaval carioca nos anos de 1930. Arquivo Nacional.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2, p. 99-124. jan/dez 1996 - pag. 117


A C Ecomo tabu. Havia a questão política, poisconsideravam as outras demandas comoprioritárias. E face às preocupações coma aceitação do movimento pela opiniãopública, não ousaram sequer mencionartal questão, alegando algumas que esteera um assunto de foro privado. MariaLacerda de Moura que logo se desligoudesse movimento é uma exceção nessequadro. Miriam Moreira Leite trouxe àtona, em rica biografia, suas reflexõessobre os diversos aspectos da condiçãofeminina. Assinalou suas posições avançadas,em muitos aspectos similaresàquelas das feministas da década de1960. Mostra-a como uma severa críticada dupla moralidade vigente, da hipocrisiareinante na organização da famíliacom seu complemento: a prostituição,preocupando-se com questões interditadasna época como a sexualidade e o corpo.Tál diversidade de posições revela aflexibilidade da 'jaula', representada pelacultura, possibilitando aos agentes sociaiso exercício de uma relativa liberdade,conforme a articulação que estabeleçamdos elementos historicamente à sua disposição.O que é sumamente confortadorlAs idéias de Maria Lacerda de Moura, consideradasmuito radicais, aliadas ao seuaguçado espírito crítico e, principalmente,o seu excessivo individualismo, contribuíram,segundo Moreira Leite, parasua posição algo marginal. 23Permaneceriam as mulheres sem poderdispor livremente de sua sexualidade.Manter-se virgem, enquanto solteira, efiel, quando casada, era sinônimo de honrafeminina; a qual se estendia a toda família,constituindo-se num conceito sexualmentelocalizado, violência que seconstituiu em fonte de múltiplas outrasviolências. Enquanto aos homens estimula-seo livre exercício da sexualidade, símbolode virilidade, na mulher tal atitude écondenada, cabendo-lhe reprimir todosos desejos e impulsos dessa natureza.Pois, mulheres solteiras que se deixassemdesvirginar perdiam o direito a qualquerconsideração e, no caso de uma relaçãoilegítima, não se sentiam os homensresponsabilizados por sua atuação, devendoaquelas arcar com o peso das conseqüênciasdo seu "erro". Afinal, "pureza"era fundamental para a mulher, constituindo-seo desconhecimento do corpo emsigno de alto valor, num contexto em quea imagem da Virgem Maria era exemplarpara as mulheres. "Ser virgem e ser mãe"constituía-se no supremo ideal dessa culpag.118. jan/dez 1996


R V Otura, em contraposição à "mãe puta", amaior degradação e ofensa possível daqual todas desejavam escapar. E, assim,mulheres abandonadas expunham suasvidas em práticas abortivas toscas eapressadas, outras se desfaziam do recém-nascidonas situações mais trágicas.Transformavam-se em monstros, numacultura alimentada pelo estereótipo doamor de mãe como instintivo. "Porquantoas feras indomáveis, essas mesmas coma sua asperidade têm amor". Outras quearriscaram viver sua sexualidade fora docasamento foram assassinadas em nomeda "legítima defesa da honra". 24ROMPENDO AMARRAS. OCOMO ALAVANCAl' ^CARNAVALm que pese um quadro de tanta~violência, as pesquisas tambémdemonstram a presença de mulheresaproveitando-se das "falhas quel4iasconjunturas particulares vão abrindo navigilância do poder proprietário. Aí vãocaçar". 25 0 carnaval constituía-se numadessas falhas'. A imprensa, nas duas primeirasdécadas do século, invectiva contraa "degradação cada vez maior do carnaval",visando nele impedir a presençafeminina, admissível apenas às mulheresde má vida. Cresce, porém, naquela festa,não apenas a participação das mulheresdos segmentos populares, como tambémdaquelas das demais camadas.Sintomaticamente, algumas exibem fantasiasconsideradas comprometedorascomo a de gigolette. Tal fato provocareação e um cronista o atribui à ignorância,ao desconhecimento dessas donzelasde que a gigolette é a prostituta das maisreles, e que em Paris corresponde às mais"desgraçadas que, no Rio de Janeiro, vivemnas ruas do Regente e -de São Jorge".Um outro, depois de lamentar, igualmente,essa "coisa hedionda das mocinhasprocurarem imitar asgigolettes, querepresentam a ralé de uma sociedade",introjeta a visão corrente da menor sensibilidadesexual da mulher. Nesse sentido,imputa à inconsciência dessas moçasatitudes que, na verdade, deixam entrevera emergência de sua sensualidade,mais explicitada no carnaval. Capta-se talaspecto a partir de sua própria descriçãodas moças, seguindo pelas ruas da cidade"com um chalé aos ombros e mordendoo talo de uma rosa", postura assazreveladora de sua pretensões sedutoras. 26Cecília Meireles, a grande poetisa brasi-Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n"> 1-2. p. 99-124, janAJez 1996 - pag.l 19


leira, percebe o significado implícito nessesprocedimentos ao relacionar a escolhada fantasia às aspirações secretas decada um, referindo-se às "senhoras tranqüilasque sofrem silenciosamente o anointeiro só com a esperança de apareceremno carnaval vestidas de gigolettes".Em outro trecho, a mesma autora tentaesclarecer com mais detalhes o assunto,afirmando que: "a fantasia carnavalescarevela muito mais do que esconde, já queuma fantasia representando um desejoescondido faz uma síntese entre o fantasiado,os papéis que representa e os quegostaria de representar"."Assim, apesar da repressão sexual querecaía sobre as mulheres buscando-senelas incutir o estereótipo da frigidez feminina,das exigências da virgindade e dasobriedade de conduta, confirma-se opressuposto de Freud de que a sexualidade,o ingrediente mais poderoso daconstituição humana, não pode tão facilmenteser descartado. Messe particular,as energias eróticas, insaciáveis e aomesmo tempo cheias de recursos, lançammão dos mais inusitados estratagemas aserviço de sua gratificação. 28Havia, também, aquelas mais corajosas,que não se contentavam com meias medidas,buscando assumir sua sexualidadede uma forma mais plena. Tál pode serdepreendido da narrativa de Mário Lago,ao referir-se ao "carnaval dos duelos delança-perfume, iniciadores de muitosnamorinhos e até atividades mais conseqüentes".Percebe-se que tais atividadesdizem respeito a uma relação mais íntimaentre os dois sexos. Fala, em seguida,da iniciativa por ele considerada audaz,de um grupo de almofadinhas eróticos',que se exercitam em "bico-de-seioao alvo com os esguichos de seus rodosmetálicos". Para eles tal jogo de lançaperfumefuncionava como uma espécie deteste:Se a mocinha fizesse cara feia e recuasseante o esguicho gelado e fino, jáse sabia que daquele mato não saíacoelho e vamos pregar numa outra freguesia.Mas não faltavam as mais receptivasa essas experiências, e orisinho nervoso prenunciava vitóriassurpreendentes. 29O memorialista não consegue disfarçarseu machismo, ao conceber tais "mocinhas"como presa fácil. Mão vê no seugesto uma tentativa de não se vergar aospreconceitos do momento, dos quais elepróprio, com uma trajetória das mais ripag.120. Jan/dez 1996


cas no cenário artístico e político, nãoescapa. Assim, não consegue perceberque elas estavam, igualmente, procurandofestejar o corpo e extrair o prazer queele é capaz de proporcionar, ao invés depermanecer numa atitude passiva, conformelhes era apregoado.Para Juliet Mitchell, a libertação femininaestá condicionada à transformação dasquatro estruturas em que ela está integrada:produção, reprodução, socializaçãoe sexualidade. Embora ressalte o caráterdeterminante das exigências econômicas,enfatiza a necessidade de serem acompanhadaspor políticas coerentes para osoutros três elementos. Estas políticas, emconjunturas particulares, podem até ocuparo papel dominante na ação imediata.Segundo a autora, referindo-se à décadade 1960, momento em que escrevia, oaspecto sexual constituía-se, no Ocidente,no elo mais fraco das estruturas decuja transformação simultânea dependea liberação da mulher. 30Aceitando-se tais pressupostos, estasmulheres anônimas que atuaram nosinterstícios do sistema, atrevendo-se aexpressar de forma crescente sua sexualidade,revelando a presença de um desejo,apenas permissível no leito conjugai,foram, também, precursoras daemancipação feminina. Criativamente,utilizaram-se de brechas para furtivamenteou mesmo claramente vivenciarem-na,apesar de todas as interdições e ameaças.O carnaval representou uma dessasbrechas, funcionando como um balão deensaio para a plena assunção pelas mulheresdo seu corpo e da sua sexualidade,também, na vida cotidiana. Assim,também contribuíram aquelas mulherespara o movimento feminista da década de1960, pleno de demandas no campo dasexualidade; o qual não decorreria apenasdas aspirações de um restrito grupode intelectuais dos segmentos médios.n O T A s1. KAPPELI, Anne-Marie. "Escenarios dei feminismo". In: Qeorges Duby y Michelle Perrot(dir.). Historia de Ias mujeres en Occidente: el siglo XIX, 4, p. 513.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 99-124, Jan/dez 1995-pag.l21


A C F.2. QAY, Peter. A experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud: o cultivo do ódio. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 299-300.3. HAMMER, Juner. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. SãoPaulo: Ed. Brasiliense, 1981, pp. 35-63.4. As colocações relativas às sutilezas femininas para se esgueirarem à dominação masculinapautam-se em CHARTIER, Roger. "Diferenças entre os sexos e dominação simbólica(nota crítica)". In: Cadernos Pagu, 4. Campinas: núcleo de Estudos de Gênero/UniCAMP, 1995, pp. 40-44, e BERMARDES, Maria Thereza Caiuby Crescenti. Mulheresde ontem? Rio de Janeiro — século XIX. São Paulo: T. A. Queiroz editor, 1989, p. 138.5. Idem, ibidem, pp. 139,145 e 159.6. EMANCIPADA. In: Careta. Rio de Janeiro, 20.2.1909.7. LOMBROSO, Cesare e FERRERO, Guglielmo. La femme crtminelle et la prostituée(traduction de I' italien), 1896; as referências a Lombroso, ao longo do texto, foramretiradas do meu trabalho Condição feminina e formas de violência: mulheres pobrese ordem urbana, 1890-1920. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1989; dePACHECO, Augusto Militão. Do infanticídio. Tese, 30.11.1893; e de COSTA, JurandirFreire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979, p. 269.8. MAIS uma reivindicação feminina. In: Fon-Fon. 4.1.1908.9. PÁGIMAS da Cidade. In: Careta. 11.1.1919.10. CARETA. 2.2.1918.11. O LEILÃO das moças. In: Fon-Fon. 5.1.1918.12. Viei//e filie, expressão francesa com que se denominava pejorativamente as mulherescelibatárias.13. FEMIMISMO e suas desvantagens. In: Única, revista feminina, outubro 1925.14. Chartier no artigo citado identiFica a 'violência simbólica' como aquela que supõe aadesão pelos dominados das categorias que embasam sua dominação, nesse sentido,acentua que definir a submisáo imposta às mulheres como uma violência simbólicaajuda a compreender como a relação de dominação — que é uma relação histórica,cultural e linguisticamente construída — é sempre afirmada como uma diferençade ordem natural, radical, irredutível, universal.pag, 122, Jan/dez 1996


Vo15. CERTEAU, Michel de. Artes de fazer: a invenção do cotidiano. Petrópolis: Ed. Vozes,1994, p. 41; THOMPSON, E. P. Tradición, revuelta y consciência de c/ase: estúdiossobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona: Ed. Critica, 1979, p. 51.16. IRACEMA. "Mater dolorosa. Carta de mulher". In: Revista da Semana. 13.1.1917.17. FREIRE, Maria Luiza da M. Cunha. In: Única, revista feminina, outubro 1925.18. LUTZ, Bertha. "Cartas de mulher". In: Revista da Semana. 28.9.1918.19. ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil.Petrópolis: Ed. Vozes, 1980, p. 180.20. Estas idéias baseiam-se nas colocações de Hannah Arendt em seu trabalho A condiçãohumana. Rio de Janeiro: Forense Universitária/EDUSP, 1981.21. LUTZ, Bertha. "É uma questão de tempo o voto feminino". In: A noite, 11.10.1921.22. As referências às atividades de Bertha Lutz foram retiradas de minha dissertação demestrado Bertha Lutz e a ascensão social da mulher, 1919-1937. Niterói: pós-graduaçãode História, 1974.23. LEITE, Miriam Moreira. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo:Ed. Ática, 1984.24. SOIHET, Rachel, op.cit., pp. 325-366.25. CERTEAU, M. de, op. cit., p. 101.26. Qigolettes seriam as prostitutas francesas, daí a reação a este tipo de fantasia. Gazetade notícias, 15.2.1915. A noite, 6.2.1922.27. MEIRELES, Cecília. "Carnauai". In: Diário de notícias. 7.2.1932; FUNARTE. Batuque,samba e macumba: estudos de gesto e ritmo. Rio de Janeiro: Funarte, 1983, p.12.28 QAY, Peter. A experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud: a paixão terna. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1990, p. 25.29. LAQO, Mário, na rolança do tempo. São Paulo: Círculo do Livro, s/d, p. 136.30. MITCHELL, Juliet. "Mulheres: a revolução mais longa". In: Revista Civilização Brasileira,n. 14. Rio de Janeiro, 1967, p. 5.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 99-124. Jan/dez 1996 - pag.123


A C EAtos dos Apóstolos 21,14, 'Como não sedeixasse convencer, nós não insistimos.Seja feita a vontade do Senhor! Dizíamos'.A história descreve sua rotina diária, a administraçãode sua casa e suas boas relaçõescom os enteados. Porém, de modomais especial, ressalta sua religiosidade eas devoções religiosas particulares, orações,estudo da Bíblia e leitura de sermões, queela praticava todos os dias.É possível que algumas pessoas, ao ouviremdizer quão grande era a parte deseu tempo que ela assim passava em segredo,possam desejar saber quantotempo ela poderia dedicar para enfeitare adornar o corpo; ou, poderiam, poracaso, suspeitar que ela tivesse sido algumacriatura estranhamente deformada,que, tendo se desentendido com seuespelho, por este dizer-lhe uma excessivaverdade, houvesse negligenciadotodo e qualquer cuidado de melhoria dabeleza, como mero esforço perdido; eque ela se dedicava a embelezar suaalma. por desesperança de jamais tornarseu corpo toleravelmente agradável,muito menos belo. Entretanto, para satisfazeràqueles que possam entretertais pensamentos, possam eles ser informados,que sua pessoa era tal, que,quanto a um nível decente e mediano,acompanhado de uma justa proporçãode todas as partes, não lhe faltava umrosto, cujos traços amáveis poderiam,pelos artifícios comuns dessa natureza,ter sido promovidos à reputação de umabeldade, caso ela tivesse achado convenientefazer uso deles. Entretanto, elanão deixava de lhe conferir o tempo e oesforço (após os necessários cuidadosde sua alma) exigidos pela decência,embora, por acaso, não tanto quanto acuriosidade (caso ela a tivesse estudado)teria requerido. 1Este relato é muito interessante. O autor,Simon Ford, era um conhecido ministropuritano da Igreja Anglicana. Embora elediga implicitamente que as mulheres nãodeveriam perder tempo com sua aparência,não obstante era dever da mulher,particularmente de uma esposa, apresentaruma aparência formosa.Mão sabemos como era realmenteElizabeth Langham; não foram feitosquaisquer retratos dela e não podemossaber, a partir desta descrição, nada alémde que seu rosto tinha 'feições amáveis'.Isto pode ter sido simplesmente umareferência à sua juventude. Dizem-nosque, pela aplicação de 'artifícios comuns,ela poderia ter chegado à reputação debeleza, caso tivesse julgado necessáriofazer uso deles'. Em outras palavras, elapouco se interessava por sua aparência.Meste ponto, encontramos um dilema queafetava a todos que tivessem pretensão àdevoção religiosa, mas especialmente aospuritanos. A excessiva preocupação coma aparência física era repreensível, sendoporém dever de uma esposa apresentar-sede modo a ser motivo de orgulhopara seu marido. As atitudes em relaçãoà aparência pessoal das mulheres, na Inglaterrado século XVII, eram instruídaspor idéias de religiosidade, formosura epagAjarvtiez 1996


B S T R A C TThis papers object is to analyse one crucial moment of stress in the gender relationshipin Rio de Janeiro, from the second half of the 19th century to late 1930. In this work, 1attempt to review some of the forms of male opposition to the female claims for fullparticipation in society. Men manifested their opposition to such aspirations in differentways, from the more subtle justifications about female frailty, to the caustic, ironic, derisivetone of several discourses, seeking to ridicule those women who set out to claim theirrights. Women, however, by availing themselves of subreptitious forms or acting directlythrough organized movements, gradually built up their autonomy. Finally, the importanceof carnival is emphasized, as a trial balloon for women to assume their bodies and sexuality,also in everyday life.R É S U M ÉLobjectif de ce travail est de faire une analyse des moments de tension exacerbée dansles rapports entre les gendres à Rio de Janeiro, depuis la deuxième moitié du XIXèjusqu'à la fin de 1930. L'auteur y analyse quelques unes des formes d'oppositionmasculine aux revendications féminines dans le sens davoir une participation pleinedans la société. Les hommes faisaient opposition à ces prétentions de plusieurs manières,depuis les justifications subtiles, faisant appel à la fragilité féminine jusqu'au toncaustique, ironique, railleur, présent dans plusieurs discours qui essayaient de ridiculiserles femmes qui luttaient pour la conquête de leurs droits. Les femmes pourtant, faisantappel à des formes subreptices ou agissant directement à travers des mouvementsorganisés, ont peu à peu construit leur autonomie. Lauteur met en relief 1'importancedu carnaval comme linstrument qui a procure aux femmes loccasion dassumer leurcorps et leur sexualité dans leur vie de tous les jours.


Eni de Mesquita SamaraDiretora do CEDHAL - Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina eprofessora associada do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras eCiências Humanas da Universidade de São Paulo, FFLCH/USRGênero e construção dosimtólico na literatura«LIO que poderia lhe dizersenhora, do segredo danatureza que eu descobrienquanto cozinhava?...Lupércio Leonardo estavacerto quando disse que épossível filosofar e prepararum jantar ao mesmo tempo.E eu ainda acrescentaria: seAristóteles tivesse sabidocozinhar ainda teria escritomais do que fez...(Soror Inés de La Cruz, séculoXVIII)Considerada inovadora para oseu tempo, Soror Inés de LaCruz, poetisa mexicana do séculoXVIII, foi extremamente hábil ao recriarpapéis femininos a partirdas rotinas diárias de suas vidasdando-lhes dimensão, força e importânciana sociedade.Sem o mesmo propósito, outrosautores descreveram com riqueza de detalhesos papéis, comportamentos e virtudesentendidos como próprios da naturezae condição da mulher, enfatizandoque a sua participação na família e na sociedadepautava-se por regras restritas eque deviam ser obedecidas.A família contribuiu sobremaneira para aperpetuação desses valores, reproduzindoos ensinamentos prescritos na ordemestabelecida e tentando moldar o comportamentofeminino de acordo com asatitudes que eram requeridas. Cumprin-Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 125-136. jaiVdez 1996 - pag.125


A C Edo essa missão, justificava dessa forma aobediência às hierarquias e o respeito àsuperioridade masculina.Assim, a mulher aprendeu que a únicaautoridade que devia ser reconhecida eraa do homem, e que ela devia servir, adorar,respeitar e obedecer ao seu marido.A sociedade, por sua vez, incumbia-se delegitimar e reproduzir essa ordem socialbaseada na subordinação feminina e nasdiferenças de gênero, através da religião,da moral e do direito. 1Entretanto, esse conjunto aparentementeharmônico, de funções distintas e complementarespara homens e mulheres ede comportamentos rígidos e vigiados,nem sempre encontrou ressonância noestilo de vida dos habitantes. Especialmenteem contextos de adversidades, asmulheres foram requisitadas para preencheroutros papéis, distanciando-se dosmodelos e comportamentos esperados.Tal fato, também ocorre nas colônias doultramar português a exemplo do queacontecia na América colonial espanhola.E sobre isso. Charles Boxer e JamesLockhart chamam a atenção para a profusãode fontes documentais onde é possívelresgatar a participação feminina e asua importância no processo de colonizaçãoda América. Mostram, também,2que muitas vezes a rotina diária de suasvidas era quebrada, cedendo lugar aenfrentamentos e valentias.Assim, no século XVI, na guerra com osmouros em cabo de Qué, quando do assédioinimigo, lutavam ombro a ombronas muralhas com os homens. E sobreisso, deixaram os cronistas da época relatoscheios de admiração. Quando necessáriousavam também da força física emtarefas consideradas inexequíveis pela suaprópria natureza. Em 1533, no mesmolocal, surpreendia ver...uma mulher possante, grávida de seismeses, que chegou transportando àscostas grandes pedras que dois homensmal podiam erguer. Cia manejava-ascomo se nada fosse. Pois nem essahercúlea atividade evitou que três mesesdepois desse à luz uma criança normal.Em outra ocasião, quando Arzilaparecia prestes a cair perante um furiosoataque dos mouros, o baixo moralda guarnição foi reanimado por umadas filhas do governador, mulher casadaque estava então prenhe e com abarriga à boca de uma filha que logopariu, lia companhia da mãe e das irmãs,envergonhou os soldadosacovardados para que voltassem aosseus postos e empunhou uma bestacom a qual atirou aos mouros. 3Outras mulheres não foram por certo nemtão valentes nem tão felizes noenfrentamento de obstáculos e dificuldades.Souberam, entretanto, desenvolverestratégias ditadas pelas necessidades desobrevivência, chefiando famílias e envolvendo-seem negócios e atividades. Esposasqueixosas, por sua vez, chegaramaos tribunais rebelando-se contra a autoridadee desmandos dos maridos. E quantoa isso, especificamente no Brasil, sãopag. 126. Jan/dez 1996


R V Oinúmeros os casos encontrados nos documentoshistóricos coevos e que servempara confrontar os mitos construídos aolongo do tempo.Mas obras literárias, deparamos tambémcom essa problemática, onde é possívelentender melhor, a partir do fictício, atitudese psicologia das mulheres, desdeque se aceite a premissa de que toda literaturafornece símbolos, estereótipos,arquétipos e papéis que são extremamenteúteis para testar o real. 4Sendo assim, situações vividas por personagensde romances, apesar de namaioria das vezes sujeitas ao olhar masculino,dão voz às mulheres, movimentandoum cenário de muitas indagações epoucas respostas sobre o lado femininoda questão.lio início dos anos de 1970, esse viés surgeem trabalhos sobre a América Latina,preocupados com uma problematizaçãomais profunda na análise da condição feminina.Um bom exemplo, é a coletâneaFemale and ma/e in Latin America, quetem por objetivo fundamental o examedos papéis e atitudes em relação à mulhere o conflito entre imagem e realidade,lia parte I, "Images and realities offemale life", são construídos os arquétiposliterários a partir dos romances e dasrevistas, onde Jane S. Raquette, CornéliaB. Flora e Ann Pescatello se alternam naprática e no uso da literatura como fontehistórica. 5Para Pescatello, dedicada a estudar mudançase continuidades que ocorrem nahistória das brasileiras nos séculos XIX eXX, além do confronto entre imagem erealidade, há que se compreender o homem,que descreve a mulher através dasua própria bagagem cultural. 6Aceitando esse desafio é que pensamosesse trabalho, que busca resgatar e refletirsobre as imagens femininas encontradasna obra do Visconde de Táunay, Manuscritode uma mulher. Publicada em1872 e entendida na definição do próprioautor como um estudo de psicologia femininae um retrato da vida fluminenseno final do século XIX, o romance de costumescumpre então, nesse caso, umaoutra missão, ao ser analisado como documentohistórico do seu tempo. 7OUVINDO VOZES FEMININAS, ATRAVÉS DAFALA MASCULINACapital do Império do Brasil, oRio de Janeiro, no cenário urbanodo século XIX, figuravacomo grande metrópole da época. Compopulação e arrecadação de renda numericamentesuperiores a todas as outras cidadesdo país, o município da Corte destacava-secomo centro da vida política eda diplomacia nacionais. 8Seu estilo de vida alimentava-se das tendênciaseuropéias, trazidas nos influxosportuários. Cidade marítima, não deixoude ser alvo dos viajantes que para cá sedirigiram nessa época. Como exemplo,podemos citar a descrição dos americanosKidder e Fletcher que, em meados doséculo passado, diziam ser o Rio de Ja-Acervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 125-136, jan/dez 1996 - pag. 127


ACEneiro "... a maior cidade da América doSul, a terceira em tamanho do continenteocidental, a orgulhar-se de uma antigüidademaior que a de qualquer cidade dosEstados Unidos". 9Messe próspero ambiente carioca do séculoXIX, a mais alta camada da sociedadeencontrava-se nos inúmeros bailespatrocinados pela Corte. Desfilando nossalões ricamente decorados, discutiam etravavam pactos políticos, mexericavamsobre a vida alheia e resolviam questõesdo amor. Ponto de encontro da elite, erano baile que as "meninas em idade de secasar" mostravam-se à sociedade, à procurade um pretendente.É nesse ambiente festivo que Corina, personagemcentral do romance de Taunay,recorda seus 18 anos, início de um amarguradodestino de desencontros.Achando-se "casada e irremediavelmenteinfeliz", conta suas desventuras. Jovem,atraente, inteligente, ativa, circulava pelossalões, participando e desafiando asconversas masculinas. Crítica em suasposições, diferenciava-se, então, de suasO maestro Francisco Manuel e suas enteadas, depois senhoras Pertence e vlscondeTela de José Correia de Uma. Apud PINHO, wandertey. Salões e damas do Segundo Reinadopag. 128, jan/dez 1996


Vocompanheiras contemporâneas. Conscientede seu papel social, confrontava aspossibilidades de vida que gostaria de ter.Seria Corina uma típica representante dasaspirações das mulheres de sua época?Leituras recentes do papel da mulher nasociedade brasileira revelam essa contradição.Mostram também que, embora a10sujeição feminina tenha sido mais profundaque a masculina, a subordinação damulher ao homem não constituiu o únicoprincípio estruturador da sociedade brasileira.11Ma própria cidade carioca, cenário desteromance, vozes femininas precoces indicamque as mulheres, muitas vezes, romperamo estatuto de um comportamentopassivo imposto pela sociedade. Tal12constatação soma-se aos resultados depesquisas de historiadores, sociólogos eantropólogos que discutem a validade dese recorrer aos estereótipos para caracterizaro perfil das mulheres, recursofreqüentemente utilizado no caso das latino-americanas.E a partir disso, é importantepensar em que medida a leitura13de Manuscrito de uma mulher contribuipara retratar a realidade da vida das mulheresbrasileiras, no século XIX.Como uma das poucas opções das moçasbrancas da elite, o casamento tinha funçãoespecífica na sociedade brasileira dopassado. Mo romance de Taunay, ele apareceno centro da trama, com sentidos esignificados próprios da época. O pai deCorina, dirigindo-se à sua filha, exalta:"Creio que não quererás ficar solteirona.Toda a moça deve casar-se; do contráriotorna-se alheia ao movimento social e atéà natureza, fica em posição difícil, e coisapior ainda, assume foros de uma situaçãoridícula". *1Mo desenrolar do texto, o matrimônio adquireduas perspectivas distintas: umaque chamaremos de "romântica ou idealizada',figurada no sonho de se casar comOtávio Jurema, moço sem muitos recursosFinanceiros, homem que amava Corinae por quem ela também se apaixonou; eoutra 'concreta', realizada no casamentocontratuado, a partir de interesses puramenteeconômicos.Outra vez, a fala do pai de Corina aparecetransmitindo uma opinião comum paraa época oitocentista, ao afirmar: "A vida.Filha, é coisa muito positiva e não podereisentir maior alegria do que te ver aoabrigo dos golpes da sorte e casada comquem tenha sólidos bens de fortuna". E,mais adiante:Masceste rica; tens vivido como tal.sempre no meio do luxo e da abundância:deves achar quem te proporcionecondições de existência iguais às deagora, senão mais brilhantes... Se osmeus cálculos não houvessem falhado,então adiaríamos essa necessidade dete casares, digo que adiaríamos a esperade alguém que te agradasse semoutro predicado mais do que haverprendido os teus olhares..."O 'preconceito' de classe é evidenciadonas situações vividas pelas personagensde Taunay. O que mais o caracteriza, é aAcervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 125-138, janAJei 1996-pag.l29


A C Efrustrada união entre Otávio Jurema eCorina que, mesmo se amando, submeteram-seaos ditames sociais. Moça rica,de boa família, e moço de nível social inferior,que não podia dar-lhe o mesmotipo de vida a que estava habituada, simbolizavauma ligação que não condiziacom o esperado casamento entre "genteda mesma igualha", freqüente na sociedadeportuguesa e também no Brasil.Corina, em sua infelicidade, encarna, portanto,o cenário típico dos matrimôniosdo século XIX. Feito por acordos familiares,onde o amor era simplesmente descartado,transformava-se em ato social degrande importância que tinha, como finalidade,preservar a fortuna, mantendoa linhagem e a pureza de sangue. 16Dando voz à Corina, Taunay coloca-secontrário ao casamento, do modo comoocorria na época. Caracterizando-o como"ponto culminante da vida de uma mulher",ela o exalta logo no início do romance:Hoje que estou casada e irremediavelmenteinfeliz, escrevo estas páginas...Para mim não pode haver mais alegrias,esperanças, nem sonhos. Uma sóCostumes do Rio de Janeiro. Joáo Maurício Rugendas. Viagem pitoresca através do Bpag. 130, Jan/dez 1996


R V Otemor ao excesso de exibição. Havia tambémo perigo de excitar o desejo dos homens.Thomas Ken, ao falar das virtudesespirituais da falecida lady MargaretMainard em 1682, disseTenho plena consciência de que, se consultarmosa classe sensual e devassa dehomens, não são as mulheres amáveisou castas que eles estimam, mas somenteas bonitas e lascivas. Estimam,disse eu! Os homens podem cortejaruma beleza ociosa ou libertina por luxúria...,porém podem estimar somenteuma mulher amável e casta e, quandotudo está terminado, ela merece apenasser chamada de bela. 3Era comum que ministros da igreja, em sermõesfunerários de mulheres, dissessemalgo sobre a aparência física da falecida.Os ministros puritanos, que provavelmentepregavam mais sermões dessa natureza doque os membros da Igreja SuperiorAnglicana, às vezes expressavam opiniõesradicais sobre o assunto. O memorialistada condessa de Warwick esforçou-se paradizer ao mundo que "não lhe faltava beleza".Em um sermão funerário para a esposade um ministro, pregado em 1658, no3auge da comunidade puritana, o reverendoJohn Qlascock disse:Se [outras senhoras] sabiamente resgatassemalgum tempo de seu sono e váriashoras desse tempo que é geralmentededicado com abominável prodigalidadea supercuidadosamente vestir eenfeitar seus vis corpos... elas poderiamobter muito tempo... para outrosexercícios sagrados.*Um dos ataques mais inclementes à atençãodedicada à aparência pessoal foi opanfleto de William Prynne, de 1628, Theunloueliness of love-lockes (A feiúra doscachinhos de amor). Pryne era um puritanopopulista, um gênio em criar frasespara agitar a ralé. Junto com uma longadiatribe contra a moda dos cachinhos deamor (cabelos longos) em homens, eleexpunha algumas opiniões sobre o queconstituía beleza em ambos os sexos.A beleza perfeita, verdadeira e real, nãoconsiste das superfícies claras, lisas oubonitas da delicadeza e maciez da peleou do rosto; tampouco, dos cuidadososbordados, cachos, texturas, coloridos,empoamentos ou composição dos cabelos,como a maioria dos homens vaidososconsidera; porém nos dons, ornamentos,vestimentas, virtudes interiorese nas graças da mente e da alma.*Este, porém, não era um processo unilateral,poisa beleza natural é um dom de Deus, quenão deve ser inteiramente desprezado,e portanto acrescenta um certo brilho anossos dons e graças, sendo reguladoe atendido com castidade, modéstia,brandura e humildade. 6Os ataques aos excessos na aparênciapessoal vinham tanto de radicais religiososquanto dos puritanos mais ortodoxos.Um apelo anônimo ao Parlamento, em1659, continha um feroz ataque a todosos objetos usuais da fúria puritana: a be-Aceno.Rto de Janeiro. v.9.n° l-2.p.3-15.jarvtíez 1996-pag.5


Vopalavra resume a minha imensa desgraça- casada - casada com um ente que poracaso encontrei e com quem a sina me ligou;casada e não com o homem paraquem Deus me havia destinado... Verdadeirojoguete da sorte, fui vítima de combinaçõessuperiores às minhas forças. 17Como causador de grandes males à mulher,o casamento reaparece, inúmeras vezes, nodecorrer da estória. A própria mãe de Corinaaconselha sua filha, afirmando: "Olhe umacoisa, não se case nunca. É conselho que lhedou. O melhor dos homens não vale a nossaindependência". Inúmeras outras falas, de18homens e mulheres, vão aos poucos no correrdo romance compondo esse quadro depersonagens que, muitas vezes, estão bempróximas de situações concretas vividasnos casamentos do século XIX.Mos documentos da época, a insatisfaçãodas mulheres com a vida conjugaiera freqüente e muitas delas,inconformadas, chegaram ao divórcio,fugindo do comportamento esperado,do convencional. Retrato de costumes,19o romance não deixa assim de espelhara sociedade. Tensões e conflitos entrehomens e mulheres, no cotidiano e nospapéis sociais, ganham força no desenvolverdo relacionamento entre os personagens.Considerado superior, o homem tinhamais oportunidades sociais e direitos asseguradossobre a mulher. Assim, ini-Um funcionário a passeio com sua família. Jean Baptiste Debret. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2, p. 125-136. Jan/dez 1996 - pag.131


ciativa, poder de comando, inteligência,fluência e racionalidade eram característicasdo sexo masculino. O feminino moldava-sepela delicadeza, submissão, sentimentalismo,limitação intelectual e vocaçãonatural para ser mãe e esposa. Aparentementeconsciente dessa situação, anossa heroína não poupa críticas aos costumese pensamentos da época.Para ela, Amilcar, seu apaixonado pretendente,tinha um comportamento 'inconveniente',embora considerado naturalnas falas masculinas. Decidida e corajosanão temia enfrentamentos com o sexooposto e na sua visão ambos os sexos travavamentre si inúmeras batalhas na lutapela sobrevivência. E era exatamente issoque uma moça recém-exposta à sociedadeteria que enfrentar. Após um desses"combates", Corina, referindo-se aAmilcar, exalta: "Para quem se iniciava naluta do mundo, não era mau começo batertão decisivamente um dos mais temidoslidadores daqueles torneios...". 20Combativa, Corina, por vezes, desafiavaos estereótipos. Mo entanto, em outrascircunstâncias, a heroína de Taunay mostrava-serelutante em assumir a cumplicidadede comportamentos inusitados deoutras mulheres. Certa vez, sabendo quesua amiga Cecília, moça sem muitos recursose professora de piano, trabalhavapara se sustentar, finge que não a conhece:"- Cecília Ramos, amiga minha? Exclamei.É falso, mal a conheço. - Oh! entãoela mente. - Com certeza... o que éUma senhora brasileira em seu lar. Jean Baptlste Debret, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil.pag. 132, jan/dez 1996


R V Opróprio de quem é feia. Estive, é certo,no mesmo colégio que ela; nada, porém,a autoriza a dizer mais do que isso". 21Temerosa, acaba por revelar pelas própriasatitudes que as relações entre as mulherespodiam ser marcadas pela vigilância.Assim, desvios de papéis e comportamentoseram considerados imprópriose criticados pela sociedade e disso nãofogem as personagens que compõem essaestória.É surpreendente, no entanto, que nesseromance a figura principal, Corina, faziasenotar por outros atributos. Nos bailes,era o centro das atenções, por sua belezae vivacidade. Em casa, espiava os maushábitos do pai. Mo amor, confessava-seapaixonada à pessoa amada. Quem seriarealmente Corina? Uma donzela comumdo seu tempo transformada por Taunayem uma mulher de comportamento forado usual? Intempestiva algumas vezes,outras hesitante, Corina reflete um momentode mudanças onde havia que seter coragem para assumir e recuar. Queperfil é esse de mulher, que o autor buscaretratar?E apenas nas conversas femininas queTaunay dá espaço para aflorarem os sonhose sentimentos das mulheres, semrestrições, liesses devaneios, dão asas àssuas emoções. É exatamente isso que fazJúlia ao aconselhar sua amiga Corina:... se você tem inclinação por alguém,de modo algum consinta no seu sacrifício...não se deixe levar... nem pelojuízo dos outros, nem pela fascinaçãodo momento ou por idéias de sã razão...O coração é um órgão que sabe vingarsecruelmente de quem o contraria...Mão há Apoios, nem Adonis, cobertosde ouro, que valham aquele que eleescolheu... 22Isso, na realidade, pouco se concretiza nodesenrolar da trama.Dobrando-se aos desejos da família, aunião entre Corina e Otávio Jurema nãose realiza e ela abdica ao destino naturalde seu coração. Casa-se por conveniênciacom o filho de um fazendeiro do interiorpaulista. Solução infeliz, mas comumnessa época.Acusadas de caprichosas e de poucoconfiáveis, as mulheres em Taunay eram,no entanto, muitas vezes racionais na resoluçãode problemas. Corina, apesar depouco experiente, mostrava-se forte econsciente ao encarar as terríveis cenasde bebedeira e jogatina de seu pai. Emoutros momentos assumia comportamentostípicos do 'sexo frágil' o que nos levaa compor em uma só personagem diferentesperfis de mulheres.Ao final desse percurso, essa constataçãonos leva a repensar o que teria levadoTaunay a criar Corina como uma mulherfora dos padrões? Talvez, mostrar a difícilconciliação entre amor e casamento,ou entre vida planejada com sentimentoe a frustrada realidade cotidiana? Criticara instituição do casamento tal comoera no século XIX? Desmascarar os acordostramados pela burguesia carioca? Asdifíceis relações entre os sexos? EspelharAcervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 125-136. JanAJez 1996 - pag.133


ACEa posição da mulher brasileira?Qualquer que tenha srdo sua razão básica,o mais importante é que Taunay, nesseromance, procurou construir uma imagemdiferente de mulher, que talvez jádespontasse como realidade no final doséculo passado, mas que ainda era abafadapela sociedade da época. Ou seráque essa contradição existe apenas pelofato de Taunay emprestar sua voz aCorina?Como se pode perceber, são muitas asquestões que entrecruzam os campos dosimbólico e do real. E a sua compreensãoexige o entendimento da atmosferaintelectual do século XIX e das mudançasque ocorriam na sociedade brasileira nessaépoca. Em decorrência, personagensliterárias e tipos sociais 'concretos' devemser pensados a partir desse prisma. Mes-sa perspectiva. Manuscrito de uma mulher,apesar de pertencer à ficção, érevelador do 'real' por descortinar as váriasimagens da mulher brasileira numasociedade exposta ao processo de modernização.E sendo assim, por que nãoentendê-lo, também, como depoimento eretrato de seu tempo, dando força e dimensãohistórica às suas personagens?Uma primeira versão desse artigo foi escritaem co-autoria com Eiiane CristinaLopes e publicada na Revista Travessia,Mulher Século XIX. A atual versão foi integralmenterevista e tem nova redação,constando como epílogo da nossa tesede livre-docência Feminismo, cidadaniae trabalho: o Brasil e o contexto latinoamericanonos séculos XVIII e XIX, defendidana Universidade de São Paulo,em dezembro de 1994.N O T A S1. RAMOS, Carrrjen (org.). Presencia y transparência: la mujer en la história de México.México: El Colégio de México, 1987, p. 29 e seguintes.2. BOXER, CR.A. A mulher na expansão ultramarina ibérica. Lisboa: Livros Horizonte,1975 e LOCKHART, James. Spanish Peru. 1532-1560. Madison: The University ofWisconsin Press, 1968.3. BOXER, C.R.A., op. cit., pp. 16 e 17.pag. 134. Jan/dez 1996


R V Ok Ver PESCATELLO, Ann (ed.). Female and male in Latin America. Pittsburgh: Universityof Pittsburgh Press, 1973.>. Idem, ibidem.>. Idem, ibidem.7. TAUNAY, Visconde de. Manuscrito de uma mulher. São Paulo: Ed. Cia. Melhoramentos,1872. Alfredo d'Escragnole Taunay nasceu no Rio de Janeiro, a 22 de fevereirode 1843, e faleceu na mesma cidade, a 25 de janeiro de 1899. Bacharelado em Letraspelo Colégio Pedro 11, em 1848, formou-se em ciências físicas e matemáticaspela Escola Militar. Após a Guerra do Paraguai, dedicou-se ao magistério e à política,exercendo os cargos de deputado e senador pelo Partido Conservador, assim comopresidente das províncias de Santa Catarina e Paraná. Deixou inúmeras obras e dentreelas podemos citar: La retraite de Laguna (1871); A mocidade de Trajano (1871);Inocência (1892); Lágrimas do coração/Manuscrito de uma mulher (1889); Oencilhamento (1894). Apud. MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dostextos. 12". ed., São Paulo: Cultrix, 1987, p. 194.8. De acordo com o Censo de 1872, o Rio de Janeiro possuía 274.972 habitantes emcontraste com Salvador 129.109; Recife 116.671 e São Paulo com 31.385 moradores.A arrecadação geral da renda carioca girava em torno dos 71.856:826$, no períodode 1879-1880; 77.853:875$, entre 1880-1881 e 78.549:491$, em 1881-1882.9. KIDDER, D.P. e FLETCHER, J.C. O Brasil e os brasileiros. São Paulo: Nacional, 1941,p. 11.10. SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família - São Paulo, século XIX.São Paulo: Marco Zero/Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1989.11. SAFIOTTI, Heleieth. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1988.12. BERNARDES, Maria Thereza Caiuby C. Mulher de ontem? Rio de Janeiro, século XIX.São Paulo: T.A. Queiroz, 1988.13. METCALF, Alida. "Mulheres e propriedades: filhas, esposas e viúvas em Santana deParnaíba no século XVIII". In: Revista da SBFti. São Paulo: n.5, 1989/90.14. TAUNAY, Visconde de, op. cit., p. 142.15. Idem, ibidem, pp. 141 e 142.16. SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. 3 . ed. São Paulo: Brasiliense, 1986,app. 67-81.17. TAUNAY, Visconde de, op. cit., p. 7.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 125-136, janAJez 1996 - pag.135


18. Idem, ibidem, p. 47.19. SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira, op. cit., pp. 42 e 44.20. TAUMAY, Visconde de, op. cit., p. 36.21. Idem, ibidem, p. 61.22. Idem, ibidem, p. 108.A B S T R A C TThis article is directed to analysing gender relationships and marriage in Rio de Janeiro,during the 19th century. Literature is the basic documentary part, being utilized andunderstood from the premise that it provides symbols, stereotypes, archetypes androles, which are extremely useful to test 'reality'.R E S U M ELe but de cet article est d'analyser les rapports de genre et le mariage à Rio de Janeiro,pendant le XIXè Siècle. La littérature est le document de base, utilisée et entendue àpartir de la premisse quelle fournit des symboles, stéréotypes, archetypes et roles quisont extrêmement utiles pour tester le "réel".


Beatriz KushnirMestre em História pela Universidade Federal Fluminense edoutoranda em História pela Unicamp..As p o l < ã c < ã s cariocas?miillieres índias prostitutase suas associações de ajudamútiiaDO QUE SE ESTÁ TRATANDOAh, você quer saberquem somos nós" ?Foi assim que começouo encontro com Zelda, umasenhora octogenária que veiodar corpo e voz a uma pesquisa. Depareime,literalmente, com Zelda e sua irmã,Celina, em um domingo de sol no Final1de setembro de 1993. Elas, como a maioriados judeus, estavam vivendo um espaçode tempo — de dez dias — consideradodos mais sagrados e terríveis para areligião judaica. É entre o Rosh Hashaná(Ano Movo) e o lom Kipur (Dia do Perdão)que, segundo este preceito, o livro da vidaé reescrito e onde erros' podem ser deleapagados. É neste período, também, queos vários cemitérios judeus portodo o mundo ficam lotados.Mantendo este costume, taissenhoras estavam visitandoseus mortos. Porém, estes estãoem um lugar onde as visitassão raras e onde não se realizam maissepultamentos desde 1970, por mais queainda haja espaço.Zelda e Celina encontravam-se no subúrbiocarioca de Inhaúma, mais precisamenteao pé do morro da favela do Rato Molhado,em um cemitério onde estão enterradosum total de 797 corpos, entrehomens, mulheres e crianças. Mais queem outros cemitérios judeus, uma regramoral impõe àquele local silêncio e isolamento.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 137-164. jan/dei 1996 - pag. 137


A C EA exclusão social deste espaço e das pessoasque lá estão possuei algumas justificativas.Para o escritor judeu e PrêmioMobel de Literatura, Issac Bashevis Singer,um tradutor do contemporâneo mundodeste grupo na Europa Oriental, esta separaçãodemarca polaridades — positivae negativa — dentro de uma comunidade.Tal divisão foi por este autor retratadamais claramente apenas no seu últimotrabalho. Escrevendo sobre o mundoiidich, Bashevis Singer resolveu mergulhar,no seu livro Escória, mesmo que2não profundamente, sobre uma parte dacomunidade judaica considerada até hojecomo um tabu. Mesta obra, o autor voltaà velha Varsóvia do início do século porintermédio de um judeu polonês que imigroupara a Argentina e retornou à terranatal saudoso e nostálgico. Singer, nestetexto, é punitivo com seu personagem. Aonarrar sua trajetória e o desenhar comoum cáften, semelhante a muitos outrosjudeus da época, o condena à prisão. Algoque não era nem a regra nem a exceção. 3Meste sentido, está se tratando, tanto naficção criada por Singer como nesta reflexão,de uma questão que até hoje deixamarcas profundas em certos setores dacomunidade judaica mundial: a existênciatanto de mulheres judias prostitutasjá na Europa e sua posterior migraçãopara as Américas e o Oriente, como tambémdo ofício da caftinagem exercido porhomens e mulheres judeus. Algo que ficouconhecido como tráfico de escravasbrancas e que recebeu abordagens tantohistóricas como na literatura mundial. 4 5As duas pontas da questão — a existênciade prostitutas judias e de cáftens judeus—, portanto, são alvo de silêncio esegredo. Tornou-se vergonhoso para umaparcela da comunidade judaica relembrartais episódios. Esquecidas por esta partedo grupo judeu, imortalizadas em diferentesformas de narrativa — ficcional ou não—, as histórias destas mulheres tiveraminício em distantes aldeias da Europa Orientalou mesmo nas suas grandes cidadescomo Odessa, Lodz, Varsóvia etc; emum tempo largo de meados do século XIXàs três primeiras décadas do século XX.E, certamente, terminaram ou na própriaEuropa — Paris, Londres —, ou nas Américas— Mova York, Buenos Aires, Rio deJaneiro, São Paulo, Santos, Montevidéu...—, ou na África, índia, China etc. De fato,em qualquer lugar onde as leis de imigraçãoainda estivessem flexíveis e o mercadopara a prostituição comportasse edesejasse tais moças: as exóticas'judiasda Europa Oriental que aqui ficaram conhecidascomo polacas.Estas trajetórias se inscrevem, portanto,em um tempo de transição: da passagementre dois séculos, da adequação entre amodernidade que o 'novo' mundo inspirae a pobreza e a perseguição religiosa aque o velho' mundo está associado. Mesteterritório de sonhos — como o que asAméricas insinuam —, onde muito suor,trabalho e pouco dinheiro trariam fortunasrápido.Do velho' mundo, contudo, tradições sepag-138.Jan/dez 1996


R V Oculares e inscritas nas normas deste grupoétnico permaneceram e foram levadaspor seu imigrantes para as terras prometidas,no bojo destes costumes, a maioriados relatos de época e mesmo as produçõesmais recentes enfocam o fenômenoda migração de mulheres judias e6suas atividades junto ao baixo meretrício,reforçando uma noção que vitima tais histórias.Por este olhar, meninas enganadassão obrigadas a se prostituir,ameaçadas por homens sem escrúpulosque só as querem enquanto são sinônimode dinheiro.Para uma maior clareza da situação realdestas mulheres, é preciso, no entanto,não esquecer de alguns fatores: 1°) aprostituição entre mulheres judias aindana Europa Oriental é um episódio conhecido.O número de bordéis gerenciadospor judeus e freqüentados por judias estáincluído em censos que destacavam suahegemonia; 2 ) a miséria e as perseguiçõesaos judeus — os pogroms — obri­7 ogaram a migração desta comunidade.Mesta leva vem o judeu trabalhador urbano,mas também vêm todas as pessoasdeste grupo étnico que já não possuíamesperanças de trabalho e de uma vidamelhor na Europa Oriental; 3 ) o peso doodote no ato do casamento dentro destegrupo excluía mulheres pobres de umaascensão econômica via matrimônio. Aimportância de casamentos entre osmembros da mesma religião cunhou umpersonagem folclórico: os agenciadoresde casamentos. Estas figuras, que podiamser homens ou mulheres, contactavamos rapazes judeus solteiros nas Américas,mandando-lhes fotos das pretendentes eacertando o negócio — casando as meninas.Muitas narrativas, ficcionais ou não,associam o tráfico a este comércio domatrimônio. A pobreza das famílias impediaque um maior controle sobre osdestinos de seus membros pudesse serexercido. Assim, muitas sabem o que vaiacontecer, e 'optam' por tal vida; 4 ) a faltaode instrução e o despreparo para o mundofabril as fizeram participar do mundode trabalho possível; 5 ) quando chegavamàs Américas, são inúmeras as histó­orias que dão conta de tentativassalvacionistas. Segundo estes relatos,membros da comunidade judaica se colocavamnos portos para avisar as moçasque tais promessas de casajnento poderiamser falsas e que seus destinos seriamos prostíbulos. Isto porque, havia acrença de que estas vinham sem saber oseu real destino. Contudo, a vida difícilde ambos os lados da comunidade judaicae a ausência de mecanismo desta parcelaoficial em oferecer uma alternativamelhor a estas moças, parece não ter conseguidofrear o fluxo de mulheres judiasque se dirigiram para a prostituição. Mãobastava só avisar.Certamente, o conjunto de histórias devida possíveis de se encontrar é proporcionalao número de pessoas quevivenciaram este tempo. Mão há comocaracterizar uma única trajetória eidentificá-la como modelar. Apenas tra-Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 137-164. Jan/dez 1996 - pag.139


A C Eços de semelhança as unem a um contextomaior. Mo fim das contas, porém, oque ficou foi um grande sentimento deretaliação e isolamento do lado positivo'da comunidade judaica para com o seulado menos nobre. Para Bashevis Singer,portanto, os mortos que Zelda e Celinaestavam reverenciando são os exemplosdo que ele, traduzindo um pensamentodo interior desse grupo étnico, denominariade escória da comunidade judaicacarioca.Mo subúrbio de Inhaúma, no Rio de Janeiro,encontra-se o primeiro cemitériojudeu desta cidade, fundado em 1916, aliestá enterrada a maior parte de uma comunidadeespecífica — homens e mulheresjudeus cuja ocupação centrou-se nomercado da prostituição estrangeira oucomo prostituta ou como caftina, ou emambos os setores.Mo âmbito dos trabalhos históricos quese dedicaram a esse fenômeno no Brasil,as análises se circunscreveram ou ao panoramada expulsão de estrangeiros peloexercício da caftinagem, ou estavam preocupadascom o universo do prazer no8baixo meretrício, seus códigos e a atuaçãoreguladora das instituições médicas,policiais e jurídicas sobre este. Assim, é9o espaço público o objeto de análise.Sugiro aqui uma inversão no olhar. A partirda metáfora de um òai/e de máscaras,dirigirei a reflexão deste episódio por umaótica interna. A singularidade da investigaçãoa que me propus, centra-se em10compreender o universo destes homense mulheres por uma percepção dos seusmundos particulares, buscando os mecanismosde sociabilidade e solidariedadetecidos ou refeitos pelo grupo, a partirdesta vivência da exclusão social e étnicaa que foram submetidos. Assim, a intençãodesse estudo foi a de perceber as redesde sociabilidade desenvolvidas no interiordeste espaço marginalizado. Ouseja, seu mundo privado.Para tal, a reflexão de Maffesoli quanto àproblemática das máfias tornou-se fundamental."Para o autor, as regras destesorganismos buscam o refazer de laçossociais, quando a "sociedade de base' estáem crise. Portanto, no interior de qualquercorpo social, inclusive e principalmentedas máfias, a noção de coagulaçãotorna-se capital. A partir desse conceito,não existe a auto-identificaçãocomo outsider, pois todos fazem parte doconjunto.É claro que pode-se distinguir o fenômenoda máfia em dois pólos: a) sua organizaçãoviolenta e b) uma "atitude máfia'. Autilizada por este trabalho vinculou-se aoitem b', onde o todo e as partes têm cadaum o seu papel; onde a vida em comunidadetem o mérito de possibilitar a cadamembro uma participação no coletivo; eonde a solidariedade é a essência do grupo.A percepção da 'grande famíliamafiosa', que não necessariamente é violenta,mas, sim, o locus da proteção e daidentificação, torna-se a imagem por excelência.Mo caso específico deste estudo, tem-sepag. 140. jan/oez 1996


Voum grupo que reúne as duas característicasdo desenraizamento — serem imigrantese marginais sociais. Fazendo, portanto,das noções de proteção e solidariedadea costura que une as entranhas desteespaço e permite sua compreensão, nestesentido, é no interior deste convíviosocial o local privilegiado para se percebera necessidade de preservar uma originalidadee uma identidade cultural enquantoimigrantes, autoprotegendo-seenquanto excluídos tanto do social — dacidade — como do seu grupo étnico.A necessidade de sair da exclusão e deauxiliar uns aos outros fez com que, emcada cidade onde chegassem, as polacasfundassem sociedades de ajuda mútua.Assim, esta pesquisa buscou apreender avida no interior deste espaço associativo.E é na profundeza deste universo que osconvido a penetrar.O MUNDO PRIVADO DE MULHERESPÚBLICAS: SUAS ASSOCIAÇÕES DE AUTO-AJUDADenominação:Associação Beneficente Funerária eReligiosa Israelita[...] com sua sede à rua Luís de Camões,68, sobrado. Sáo seus fins: [...] fundaruma sinagoga [sic] nesta capital e nelapraticar e observar todas as prescrições,cerimônias e atos [sic] da religiãoisraelita; manter uma escola primária,gratuita, para educação e o ensino morale intelectual de crianças de ambosos sexos desprotegidas e da religiãoisraelita; socorrer as suas associadas,quando enfermas; [...] fazerem às suasassociadas que vierem a falecer nestacapital os seus funerais, [...] segundodetermina a religião israelita; [...] sógozarão e terão direito aos socorros ebenefícios [...] as associadas que estiveremquites de suas mensalidades seismeses depois de suas admissões e deestar instalada e funcionando regularmentea Associação. 12A partir do trecho acima, tem-se as diretrizesfundantes que regeram por mais desessenta anos uma peculiar sociedade civilnesta cidade. A Associação BeneficenteFunerária e Religiosa Israelita (ABFRI)foi instituída no dia 10.10.1906 e registradapor sua I secretária, MatildeaHuberger, junto ao I registro especial deotítulos e documentos. Esteato marca a13institucionalização de uma ação filantrópica,socializadora e autoprotetora entremulheres, e também entre homens —como se notará mais tarde —, que participaramdo comércio e da prática da prostituiçãoestrangeira no baixo meretríciodesta cidade, e que tinham um elo emcomum, essencial para eles: serem todosjudeus.Esta associação, contudo, não é a maisantiga estrutura de caridade fundada portais pessoas. Ao que parece, a prática erarecorrente em cada cidade onde existirame/ou para onde migraram. E, assim, muitoanteriores à entidade carioca devem seras que haviam ainda na Europa Oriental— lugar de onde a maioria destas mulhe-Acervo, Fio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 137-164. jan/dez 1996 - pag-141


A C Eres vieram, nesta pesquisa, todavia, foramlocalizadas mais quatro outras associaçõessemelhantes. Todas no 'novomundo'. Destas, a mais remota data de1896 e foi fundada na cidade de nova York(EUA) com o nome de Mew YorkIndependent Benevolent Association(IBA). Uma segunda associação, talvez amais famosa delas, foi instalada no mesmoano da ABFRI na cidade de BuenosAires, com o nome de Sociedade de AjudaMútua Varsóvia, que posteriormente sedividiu, formando a Sociedade de AjudaMútua Zwi Migdal e a Asquenazim. no Brasil,foram encontradas mais duas: a SociedadeFeminina Religiosa e BeneficenteIsraelita (SFRBI), fundada na cidade deSão Paulo, em 1924, e a Sociedade BeneficenteIsraelita de Santos, de 1930. wPelos extratos dos estatutos localizados,parece que todas estas associações tinhamo mesmo objetivo: estabelecer emanter uma organização filantrópica queproporcionasse aos seus sócios uma vidaESTATUTOSDAAsiip Beneficente FieiaiiaAppro-vadds em Assembléa Oeralde 22 de Março de 1932Fundada em 10 de Outubro de 1906Rio DK,."ANEDM>TY».-T. DA UPUtUCA, S4-UOUltimo estatuto da ABFRI, 1932.pag. 142, jan/dez 1996


R V Oreligiosa judaica e, portanto, reconstruíssesuas identidades enquanto membros de ummesmo grupo étnico. Além do que, estabelecendolaços mínimos de solidariedadeem momentos difíceis, como de doença emorte. Auxiliar os necessitados de sua comunidadee se constituir como um grupo,foram as grandes metas destas entidades.Optei aqui por analisar a comunidade depolacas carioca por dois motivos: primeiro,porque não existe, até então, outra reflexãosobre esta comunidade e, segundo,porque grande parte da documentação quea institucionalizou — seus estatutos — estãoem depósito no Arquivo Macional.A trajetória da ABFRI foi longa, existindooficialmente por 62 anos. Idealizada basicamentepor mulheres, teve períodos deadministração mista. Pode-se, então, dividirseu percurso em três períodos. O primeirocompreende o intervalo da sua fundaçãoaté 1914; o segundo vai de 1915 a1932, onde homens e mulheres coordenam,em postos delimitados, as atividadesassociativas; e o terceiro, de 1932 a 1968,desenha a ascensão e declínio desta entidade.Será no primeiro momento, até 1914, quese perceberá os alicerces institucionais sendomontados. Contudo, o ato de fundaçãodesta instituição, em 1906, não pode serapreendido como o da chegada de polacasao Rio de Janeiro, ou mesmo ao Brasil. Apossibilidade da organização destas mulheresnos primeiros anos do século XX apontapara um número de pessoas envolvidasnesta atividade que, certamente, é anteriora 1906. Meste sentido, de quando é achegada das primeiras polacas cariocas?O ano de 1867 é a data maisfreqüentemente apontada para os primeirosregistros destas mulheres nopaís. Por mais que a cidade do Rio de15Janeiro, devido ao porto, fosse um pontode desembarque, nem todas ficavampor aqui. Levando-se em conta estadatação, quando a ABFRI foi instituída,esta comunidade organizada de maneirainformal já habitava a cidade por quasequatro décadas.Meste sentido, o ritual de admissão dosassociados da ABFRI é uma porta deacesso para percorrer e conhecer os labirintosdaquele universo e compreendercomo se organizou. Para ser membro,portanto, requeria-se: a) a apresentaçãofeita por um sócio antigo e empleno gozo de seus direitos, ou seja,quite com suas mensalidades; b) não serinválido e estar em perfeita saúde, jáque o caráter assistencialista da entidadenecessitava primeiro o auxílio dossócios, antes que estes precisassem dosocorro da entidade; caso contrário, aacumulação de recursos seria impossível.E, c) professar a religião judaica.Hierarquicamente, a sociedade se estabeleceuentre sócios fundadores, contribuintese remidos. E foi basicamentecom esse perfil majoritariamente femininoque a ABFRI foi dirigida até dezembrode 1914, quando se realizou umareorganização da entidade, deFinindo-seAcervo. Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 137-164, jan/dez 1996 - pag. 143


A C Ebida, o jogo, a caça a ursos e touros, osesportes dominicais, e concluía com aspalavrasE que todo este uso de rendas douradase vestimentas caras, mais apropriadoaos excêntricos do que aos homenssóbrios, que isso tudo tenha umfim e vistamos os nus e alimentemos osfamintos com o supérfluo. 7As objeçóes religiosas aos excessos naaparência eram baseadas, em parte, naopinião de que a vaidade e a excessivaatenção à aparência pessoal eram incompatíveiscom uma vida de devoção religiosa;em parte, no ponto de vista de que aobra de Deus (a forma humana) não podiaser melhorada; e, em parte, na crençade que, na ressurreição, todos teriamo corpo perfeito. A sra. Burnet, esposa dofalecido bispo de Salisbury do século XVII,publicou um manual de devoção, no qualaconselhavaSe você for menos belo. náo fique irritadonem se queixe: cuide de garantiruma feliz ressurreição e, então, vocêserá perfeito de corpo e alma.*Esta preocupação com uma aparência dedevoção religiosa certamente teve seuefeito sobre as mulheres. Mary Boyle, condessade Warwick, em sua autobiografia,tratou sumariamente a frivolidade de suajuventude, dizendo que havia feito amizadecom a jovem esposa de seu irmão,que "me ensinou a ser muito vaidosa etola, induzindo-me a gastar (como ela)meu tempo assistindo e lendo peças deteatro, e em me vestir de maneira refinadae cuidadosa". O resultado disso foique, quando ela casou com um membroda família Rich, famosa por seu puritanismo,ela erauma pessoa tão vaidosa, ociosa e semconsideração quanto possível, não seimportando com nada, senão em se vestircom cuidado e com roupas finas ericas. 9Os preceitos religiosos refletiam-se nasobras do mais conhecido comentador daconstituição Tudor, Thomas Smith, que,na década de 1560, escreveu sobre asdistintas esferas de atividade de homense mulheres:O homem severo, forte, corajoso, ousado,aventuroso, negligente com sua belezae perdulário.A mulher frágil, tímida, formosa, cuidadosacom sua beleza e econômica.Deus deu ao homem maior inteligência,mais força e coragem para obrigar amulher a obedecer pela razão ou pelaforça; e, à mulher, beleza, um rosto bonitoe palavras doces, para fazer comque o homem lhe obedecesse em retribuição,por amor. 10Os livros sobre conduta, que ofereciam conselhossobre como levar uma vida religiosa,sentiam-se obrigados a dizer algo sobrea aparência. Eles enfatizavam as virtudesda modéstia e da decência em umaesposa, como superiores à beleza, visto queela só precisava ser formosa o suficiente"para ganhar a afeição de seu marido";pag,6.jarvUez 1996


A C Eum novo estatuto.Desse recomeço e das possíveis marcasdeixadas pela administração feminina anteriorque pudesse justificar tais alteraçõesnão foi possível encontrar qualquervestígio. Localizou-se, contudo, o novoestatuto e duas publicações no Diário Oficial.Assim, em 16.1.1915, este periódicoindica a existência de uma sociedadedenominada Associação Beneficente funeráriae Religiosa Israelita, o que dá umaidéia de reinstalação. Uma semana depois,em 23 de janeiro, foi publicada umaratificação onde menciona-se que a sociedade"[...] será dirigida por um presidente,um vice-presidente, um I e um 2° secretário,um I e um 2° tesoureiro, umooprocurador e três delegados constituindoo conselho fiscal". Soma-se a esta mudançaum capítulo no novo estatuto onde16se estabelecem os direitos dos associados.Messe, é exposta a grande alteraçãoda ABFRI a partir deste momento, quandose institui que "[...] para os cargos dadiretoria não poderão ser votadas as associadas".Assim, a ABFRI passa a ser divididaem duas alas: uma administrativae outra assistencialista. A primeira pertenceà parte masculina e a segunda eradirigida pelas mulheres e seria compostapor "[...] uma presidente, uma vice-presidentee uma secretária da extinta sociedadealém de oito superioras de atosfúnebres". As funções femininas, nestemomento, resumiam-se a realizar enterrose socorros hospitalares para assócias, pois "[...] serão concedidos osmesmos favores aos sócios do sexo masculino,caso isto [seja] resolvido pela diretoriada Associação sem a intervençãodas diretoras dos auxílios do sexo feminino".17Curiosamente, as alterações da sociedadesão contemporâneas à instalação deuma legislação que orientou a existênciade sociedades civis no país. Em janeirode 1916, a partir da formulação do códigocivil, a lei 3.071 passou a reger taisA. I. F. R. ISRAELITAASSOCIAÇÃO BENEFICENTE FUNERÁRIA E RELIGIOSAISRAELITAMatriculaCB$ 20.00Sede própria :R. Afonso Cavalcante 171Fone: 48-4889MatrículaCR$ 20,00Recebi a importância de sua mensalidadecorrespondente ao mêsTMourairoModelo de rjcket. Este foi um dos últimos recursos que a Sociedade recebeu.pag. 144. jan/dez 1996


R V Oentidades. Mesta orientação, contudo, nãohá indícios que justifiquem as modificaçõesexecutadas pela ABFRI. Mas, a novalegislação, certamente, obrigou a umareestruturação das entidades de mesmofim de um modo geral.A partir deste novo quadro da Associação,algumas perguntas podem ser formuladas:quem faz o caixa da sociedade?Por que as sócias aceitam tal situação?Seriam os homens seus cáftens e no interiorda ABFRI se reproduziria a violentarelação, narrada nas obras de ficção, queregularia as atitudes entre as prostitutase seus exploradores? Ao certo, jamais sesaberá. Partindo, porém, do conceito de'atitude máfia' desenvolvido por Maffesolie que instruiu o corpo teórico deste trabalho,compreende-se que a vinculaçãoestabelecida no cerne daquele organismoenfatiza uma convivência onde o todo —o coletivo — e as partes — cada sócio —têm, cada um, o seu papel, mas uma únicafunção: a colaboração entre os membros.Portanto, seja qual for o grau deharmonia e/ou violência desenvolvida nocontexto de uma sociedade de ajuda mútuacomo esta, os envolvidos estabeleceram,com certeza, uma dinâmica que possibilitouo viver social. Cada participantequeria ter a sensação e os benefícios do"fazer parte' de um grupo e, por isso, desejavaassociar-se a uma instituição comoesta. Além do que, nesta 'atitude' é fundamentala idéia de 'família'. Assim, aABFRI deve ser encarada como uma entidadecomposta por homens e mulherescasados entre si e que reproduzem no seuinterior as regras sociais vigentes, ondeo homem era o 'cabeça' do casal.Sendo estas associações de ajuda mútuaatos coletivos entre homens e mulheres,mesmo quando ambos não eram sócioscontribuintes recebiam auxílio como umcasal, caso necessitassem. Mas, certamente,o número majoritário foi sempreo feminino. Isto fica claro tanto no livrode registro das mensalidades dos sócios,que expõe a receita da entidade, como nocartão de matrícula localizado e que pertenciaa um sócio. 18Assim, dos 1.030 nomes encontrados tantono livro de registro das mensalidadescomo no livro de registro dos óbitos ocorridosnos mais de sessenta anos da ABFRI,apenas 19% eram do sexo masculino.Meste sentido, a chegada de mulheressempre foi maior que a de homens, emuitas vêm casadas, ou se casam aquicom judeus ou não, ou estabelecem relaçõesinformais. 19O número pequeno de homens no interiordeste grupo faz com que se repense,pelo menos, dois aspectos: a) a supostarelação de violência,' retratada nas obrasficcionais, e que regularia a vida da prostitutae seu cáften, já que este, muitasvezes, é o seu marido e é visto pelo corposocial como o seu explorador. E, b) anecessidade de que se enxergue aqui, demaneira mais humana e próxima aos padrõessociais vigentes, o cotidiano destemundo. Então, nada tem de vanguardistaou de resistência uma entidade comoAcervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 137-164. Jan/dez 1996 - pag.145


A C Eesta. Ela copiará o modelo assistencialistado qual seus sócios foram excluídos.Mão se pode afirmar com exatidão, todavia,o motivo pelo qual, entre 1915 e1931, a ABFRI se estabeleceu como umasociedade mista, onde os sóciosgerenciavam o patrimônio. Pode-se apenasconjeturar. O grande número de cargosadministrativos e beneficentes estipuladospelo estatuto, e a necessidade depreenchê-los, expressa, certamente, umaépoca bastante próspera, onde o quadrode sócios e as atividades desempenhadasdeviam ser grandes.Diferente do que se poderia supor, nãohouve uma ruptura entre as duas fases dasociedade, e alguns exemplos corroboramtal idéia. Em primeiro lugar, uma iniciativaainda da gestão feminina teve suaconcretização nesta etapa: a inauguraçãode um cemitério próprio. Isto porque, emfevereiro de 1912, a então procuradorada ABFRI — Morrna Pargament — encaminhouum segundo pedido ao prefeito dacidade:[...] para que lhe fosse arrematado ouvendido um terreno junto ao cemitériode Inhaúma, para nele ser instalado ocemitério da mesma Associação a fimde ali serem enterrados [sic] todos osseus associados. 20Em agosto de 1916, em plena etapa mistada sociedade, o pedido foi concedido,e às vésperas do 10° aniversário da entidadeo primeiro cemitério judeu da cidadefoi inaugurado. Este ato representa ecorporifica o objetivo central de uma entidadecomo esta: a manutenção de umaidentidade étnico-religiosa. Além do que,dentro dos preceitos judaicos, os suicidase as prostitutas devem ser enterradosjunto a um muro interno do cemitério,como marca de sua exclusão social.Assim, neste local próprio, um segundoobjetivo institucional também se concretiza:os sócios e sócias desprendem-sedesta marca negativa, ao não serem discriminadospor suas atividades em vida.Ao que parece, estes homens e mulheresnão eram meros desconhecidos na cidadedo Rio de Janeiro. A inauguração destecemitério recebeu a coberturajornalística do A Noite, ' onde imagens2estereotipadas se misturavam aos fatosreais. A esta matéria, soma-se a respostado redator-chefe do jornal A Coluna, órgãoda comunidade judaica carioca, DavidJ. Perez. Em um tom que condenava taispessoas, Perez seguiu a perspectiva deseparar os lados da comunidade, a fim deque ondas anti-semitas e/ou moralizantesnão misturassem joio e trigo. Contudo,sua sentença definiu o comportamento dolado oficial da comunidade enquanto existiramsócios da ABFRI. Para Perez e paraquem ele representava, "[...] essa gentenão nos pertence, não nos ligamos a eles,nem em vida, nem na morte; portanto,esse cemitério ficará destinado aos 'cáftens'e às suas prostitutas". 22Um segundo indício que demonstra a noçãode continuidade entre as etapas dasociedade é o fato de vários sócios dopag.146.Jan/oez 1996


R V Osexo masculino, e que faleceram após ofim das diretorias mistas da entidade, estarementerrados no cemitério deInhaúma. Não há, portanto, uma idéia deretaliação das mulheres em relação aoshomens.Além destes dois exemplos, duas outraspistas permitem ratificar a visão de permanênciaentre os diversos momentosque a ABFRI passou. Assim, uma terceirapista encontra-se quando da reformulaçãodos estatutos, o penúltimo que a Associaçãoteve, em 1925. neste são deFinidosos emblemas que distinguem sócios ediretores, e a bandeira da entidade — comduas listas azuis paralelas, uma no alto ea outra embaixo, com uma estrela de Davino centro. Tais símbolos percorreram todaa história da ABFRI.O quarto indício é fundamental para quese compreenda a organização que a entidadetomou a partir de 1932, na sua terceirae última etapa. Isto porque, quandoo cemitério foi inaugurado, em 1916, adiretoria da entidade distribuiu ao seucorpo gestor o título de sócio benfeitor, epara as diretoras Fanny Zusman e ReginaHirsch a distinção de sócias beneméritas.Posteriormente, o nome de Fanny éreconfirmado no título e o de Regina ésubstituído pelo de Amália Schkolnik, semque qualquer explicação seja dada para ofato. Porém, essa visão de unidade entreos trabalhos das alas feminina e masculinareforça a idéia de família dentro daqueleespaço associativo. E mais, na terceiraetapa da sociedade, a noção de sóciabenemérita e os encargos que a funçãosugere definem a trajetória da entidadeaté o seu final.A versão mista da ABFRI durou aproximadamente18 anos. Após as reformulaçõesdos estatutos em 1925, foram estabelecidosmandatos de quatro anos. Assim,deve ter havido uma gestão entre 1925 e1928, e uma outra, entre 1929 e 1932.Contudo, vários diretores falecem nesteperíodo, o que talvez tenha dificultado aformação de novas chapas e a conclusãodos trabalhos desta última diretoria.Em março de 1932, contudo, a necessidadede se reestruturar a entidade obrigouà elaboração do último estatuto daABFRI. Dele se retiram as proibiçõesquanto à eleição das sócias." Portanto,deste ponto da trajetória da entidade atéo seu Fim, só mulheres estarão no comando.Uma placa inaugurada no cemitériode Inhaúma menciona que esta era a "[...]I diretoria de associados do sexo femininoeleita e empossada [sic] em 22 deamarço de 1932" e, segundo o novo estatuto,"constituída por ilimitado número deassociados de ambos os sexos, que professemo credo israelita". Por mais quefosse dirigida por mulheres, a ABFRI demarcaseu caráter misto.Desde a década de 1920, a associaçãoocupa a parte superior de um sobrado napraça da República, 54, onde também selocaliza a sinagoga. Zelda, Celina e a outrairmã, Etel, se casaram lá um ano depoisque sua mãe, uma sócia da ABFRI,mandou-as vir de Odessa, na Rússia. To-Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2, p. 137-164, Jan/dez 1996 - pag.147


A C Edas contraíram matrimônio com Filhos desócios e sócias da entidade. Celina contaque o local "[...] era um sobrado e tinhadois salões. Tinha Torá [livro de rezas],tinha tudo. Estava lindo". Já Zelda comentaque eles tinham um rabino, "[...]24tinham música. É uma pena que naqueletempo a gente não tivesse filmes e coisaspara tirar [retrato]. Era tão bonito aquelestapetes vermelhos com aquelas rosasenfeitadas em volta". 25Meste sentido, o ano de 1932 foi marcantepara a Associação, pois as mulheres retomamo comando administrativo da entidade.Porém, estas perdem uma importantefigura: a sócia benemérita AmáliaSchkolnik. Move anos depois, às vésperasda ABFRI completar 35 anos de existência,em 194-1, faleceu a outra sócia benemérita:Fanny Zusman. Fanny e Amália, emais duas outras sócias, simbolizam oclima desta terceira etapa da sociedade,onde o fundamental são as obras de caridadee a filantropia entre os associados.Algo que vem, com certeza, desde o inícioda entidade. Assim, estas mulheresfundam um corpo assistencialista denominadoas irmãs do Heiset Chell Emes —que traduzindo significa: a caridade deverdade, aquela que não busca recompensa.Desta irmandade, quatro se tornaramirmãs superioras: Fanny, Amália, AngelinaSchaffran e Rebecca Freedman. 26O 'sr. O' foi o último contador da ABFRI, entre1954 e 1968. Comentando este espíritode fraternidade que se constrói, diz que:[...] havia ocasiões em que se chamavamde irmãs. Quando [Justificandouma ausência diziam]: irmã 'fulana detal' não veio, ou está na casa da irmã'fulana de tal'. Mas isto era muito rarodentro das reuniões. [...] Às vezes euouvia na conversa [o termo] irmã, irmã.Mas eu não sabia o que era. O meu tio,que havia trabalhado antes de mim lá.me fez referência à irmandade: 'istoaqui parece uma irmandade ou é umairmandade'. 27A partir desta noção de irmandade e dodepoimento do contador, podem-se destacarfiguras deste universo. Isto porque,como funcionário da Associação, o 'sr. O'possui, entre outros documentos cedidosa esta pesquisa, o 2° e último livro de atasdas assembléias da sociedade, que compreendeo período de 1939 a 1966. Talregistro pode clarificar esta etapa final daentidade de maneira singular, pois neleencontram-se os relatos de 27 anos daABFRI. E mais do que isto, dali tem-se avoz deste mundo privado das polacas —suas preocupações e questões. Além dosnomes que construíram sua trajetória.Portanto, se em 1932 as mulheres estão nocomando novamente, o histórico da ABFRIdemonstra uma dificuldade presente emlevar a cabo seus objetivos. O tom destasociedade parece ter sido o do eterno recomeço.E quem liderou por mais tempoeste esforço foi uma mulher que no longoespaço compreendido entre o final dos anosde 1930 a 1946, e entre 1948 a 1961, to-pag. 148, Jan/dez 1996


R V Omou as rédeas e dirigiu a entidade, lutandopara cumprir seu papel. Esta pessoa foiAngelina Schaffran, e seu tempo de gestãofoi de quase metade do período de existênciada sociedade.Meste sentido, quais são as questões centraisda Associação nesta fase? Pelo relatocontido no 2° livro de atas das assembléias,fica-se sabendo que em 1939 aABFRI ocupava o endereço da rua GeneralCâmara, 337/sobrado. Contudo, umapreocupação chave no início dos anos de1940 foi o destino da sede social, já quedurante as reformas da avenida PresidenteVargas foram demolidos vários prédios,entre eles os da rua Qeneral Câmara.A ausência de recursos exigiu da administraçãoum maior controle quanto àcondição de seus associados, buscandomapear quem contribuía e quem era assistido.Tál fato expõe os limites da própriaprofissão destas mulheres, que estálonge de deixar qualquer um rico. Maisuma vez a ABFRI viveu o impasse de mantersuas atividades assistencialistas.Em 1942, contudo, compra-se a últimasede social, à rua Afonso Cavalcanti, 171,no tênue limite que separava a praça Onze— concentração da comunidade judaicana cidade — e a zona do Mangue — obaixo meretrício. Em uma casa de doispavimentos, o primeiro piso concentravaa parte administrativa e no segundo funcionavaa sinagoga. Esta aquisição foi28fruto das doações das sócias em melhorcondição Financeira.A sinagoga era uma sala com capacidadepara, aproximadamente, 120 pessoas eRio de Janeiro. Zonas do meretrido e praça Onze.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n» 1-2. p. 137-164, JanMez 1996 - pag. 149


A C Epossuía cadeiras de jacarandá e todo oconforto para seus sócios. Além do que,todos os implementos necessários para arealização dos ritos judaicos também estavamlá. Os cartões-convite, cedidos pelo"sr. O', demonstram que todas as cerimôniasreligiosas eram festejadas no templo.Contudo, o número reduzido de homensassociados obrigava a diretoria acontratar ou convocar judeus para queestas pudessem ser realizadas. Isto porqueuma cerimônia judaica necessita dedez homens judeus acima de 13 anos paracomeçar, o que se denomina minian. Estesnão eram os únicos a serem chamados.A necessidade de um rabino que conduzisseas preces era substituída por umcantor do culto (chasin). algo perfeitamentepossível em comunidades sem rabinos.Este fato demonstra que no interiorda sociedade nada existe de revolucionário.Estas mulheres queriam exatamentea cópia do espaço que lhes foi negado.Portanto, não são elas que realizam oscultos, e sim homens devidamente solicitadospara exercer tal função.As dificuldades financeiras crescentesneste período são demonstradas tanto nareinauguração oficial da sinagoga, com ainstalação de placas comemorativas nasede e no cemitério 14 anos depois dacompra da casa da rua Afonso Cavalcanti,em plena década de 1950, como tambémnas primeiras assembléias na nova sede,em 1943. Mesta data, uma importantemodificação no estatuto já sinalizava otom destes tempos. Ao suprimirem o ar-tigo 18, letra "b", que regulava a categoriade sócio remido, deixando de incorporara esta sócios que contribuíram por15 anos e os que trabalharam por cincoanos na diretoria, a sociedade demonstravaa necessidade de fazer caixa. Já que,cada vez mais, são idosas pobres cuidandode outras na mesma situação. Salvoraras exceções, a pobreza era o destinodestas senhoras. Outra alteração importantefoi o aumento do período de gestãode um para dois anos e a diminuição donúmero de componentes da diretoria, deoito para quatro. Tudo isto foi justificado[...] em primeiro lugar no ponto econômico,quanto à concessão de remissãoaos sócios efetivos. [...] Quanto à prorrogaçãodo mandato e diminuição dosmembros da diretoria [...] está justificadonas dificuldades para a composiçãoda [mesma]. 28Assim, percebe-se os obstáculos por quepassaram estas mulheres. Contudo, suasvidas possuem várias tonalidades. Damais pura miséria a um certo conforto.Ao se adentrar em um mundo privado,tem-se a oportunidade de ver rostos. Mesteprocesso, podem-se perceber as variantesde cor que o compõem. Como expoenteda tonalidade mais escura, temse,por exemplo, a vida da mãe de Zelda,que trabalhou vendendo roupas, escrevendocartas em iídiche para amigos mandaremaos familiares na Europa, comocaixa de uma padaria e[...] no fim ela vendia bilhetes. Até o fimda vida dela, ela vendia bilhetes de lo-pag. 150. jan/dez 1996


R V OEla é tão bonita quanto a natureza pretendeuque fosse, sendo talvez auxiliadaa ter uma graça mais amável peladoçura da educação, não pelos artifíciosda arte."Philip Stubbes, escrevendo na década de1580, igualou a pintura do rosto pelasmulheres à deformação da alma. "Elaspensam que assim adulteram a obra doSenhor?", rugia ele. Thomas Taylor, um12clérigo puritano, assumiu uma linha menosagressiva em 1633, quando 'estabeleceualgumas instruções gerais resumidaspara auxílio delas'Porque sei que várias mulheres tementesa Deus falham na questão de suasPleter Janssens Elinga. Mulher lendo; óleo sobre tela, c.1660Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1 -2. p. 3-15.jarvUez 1996- pag.7


K V Oteria ali na rua da Carioca, perto de umabanca de jornais. Ela vendia e ganhavamuito bem a vida dela. Tinha a freguesiadela. E ganhava muito bem. 30Tal ocupação talvez não fosse exceçãoentre ex-prostitutas quando idosas. ChajaBerliner era a sócia n° 162 e faleceu, aos80 anos, em 1962. no registro de óbitosdos sócios da ABFRI consta que sua mortese deu no Hospital Colônia Curupaiti,no bairro de Jacarepaguá, Zona Oeste doRio de Janeiro, onde estava internada,desde 1955, para o tratamento dehanseníase. rio seu prontuário, declarousedoméstica, biscateira e vendedora debilhetes de loteria. Semelhante a Chaja,quatro outras polacas também ficaraminternadas e faleceram em um outro hospitalcolônia localizado em Jacarepaguá,o Juliano Moreira, especializado em doençasmentais. Estas mulheres foram paralá por depressão e uma por reincidênciade sífilis, que pode ocasionar abalos nosistema nervoso central. Mas, basicamente,as suas condições de indigência lhesderam este triste fim.O boletim de internação de uma delasrelata as constantes visitas de suas amigas,como expõe as imagens que cercamo mundo da prostituição. A enfermeiraresponsável pelo boletim faz a seguinteanotação:[...] esta doente tem amigas polacasque já têm enviado esforços para retirála,com o fim de, segundo informes,caftinizá-la. O médico psiquiatra e o diretorda Colônia opuseram-se firmementea tal retirada.Enfrentando a distância entre a fantasiae a realidade, quando mortas, e sem quehouvesse qualquer observação sobre aexistência de parentes em suas fichashospitalares, essas quatro mulheres foramsepultadas no Cemitério Israelita deInhaúma. Duas delas, que faleceram depoisde 1954, possuíam o registro dematrícula na ABFRI feito pelo 'sr. O' e tiveramsuas contribuições mensais pagasà entidade até às vésperas de seus óbitos.Mais uma vez, portanto, a Associaçãocumpriu seu papel primordial.É a partir dos anos de 1950 que a idadeavançada destas mulheres começa a darsinais do fim próximo das polacas. Semuitas morrem de velhice, os casos desuicídio também aparecem, explicitando,mais uma vez, as dificuldades pessoaiscom a vida. Um outro exemplo desta históriaestá em Estera Qladkowicer, russanaturalizada brasileira, nascida em 20 demaio de 1907, solteira e que chega aoBrasil em 1927, com vinte anos. Estera31era a sócia n° 65 da ABFRI e morreu em1968 por ingestão de barbitúricos. Pormuitos anos foi namorada do compositorMoreira da Silva, que lhe dedicou o sambaJudia rara.Moreira da Silva, habitue da área do Manguee da Lapa, como motorista de praçae típico malandro carioca, fez questão deressaltar, na entrevista concedida a estapesquisa, que não conheceu Estera nazona de meretrício, e sim em casa deamigos, no Estácio. O affair, que durouAcervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2, p. 137-164. jan/dez 1996 - pag.151


A C E18 anos, permitiu que ele conhecesse suahistória, e soubesse da importância doCemitério Israelita de Inhaúma para aquelasmulheres. Estera foi um, dos últimossepultamentos naquele local.Se até aqui reinou a cor mais forte, escura ede pouca luz, isto não significa que trajetóriasmais luminosas não tenham existido. E ocontraponto é necessário para que não seratifique uma imagem que vitime estas mulheres.Estas estavam, literalmente, na vida.E responderam como puderam, de forma individuale/ou amparadas por uma estruturacoletiva, mesmo que por vezes frágil, aos impulsosda vida. E para demonstrar a existênciade narrativas mais bem-sucedidas, temseos exemplos de algumas empresárias daprofissão.Isto porque, este trabalho localizou 102 fichaspoliciais de prostitutas estrangeiras queforam preenchidas entre meados dos anosde 1950 até o início dos anos de 1970. Deste32total, onde existiam diversas nacionalidades,algumas polonesas, russas e argentinas possuíamregistro na ABFRI, formando um conjuntode 32 fichas — onde estava a de Estera.Dentro desta parcela, 13 fichas eram de polacaspaulistas que nos anos de 1950 migrampara o Rio — após o fechamento da zonade meretrício daquela cidade. Estas paulistasmuitas vezes possuíram bordéis no Rio de Janeiroe em São Paulo. As outras 19 são de33polacas cariocas.rio contato com este material, deve-se tera dimensão exata do seu significado: alémde registro, controle de vidas. Marcas deum estigma. Os delegados de polícia daépoca tinham, por estas anotações, o destinodestas mulheres em suas mãos. Rasgaras fichas ou mantê-las diferenciava alegalidade da ilegalidade, a boa condutado ser perigoso. Contudo, tem-se a partirNOOK :. .JBUSÜK. ca^xKCOTCja.M IZfjk.Herat (SdlttflBiatX —Mie—HUi* Ba si* Slâikwlosr , .N.KI4. tm ffr/ * / — A *** i< * ^ V - y- 8 0 *crniittio *lift táèeWílii fnlttrfrt— Iniimcío ^Prlaari» .C&r bXtaCUt Câbttet S**JU OtbM MJjftMtoftMrtti N."Sinal» cirKtefWkoi ^


R V Odelas um pouco de cada história, umaporta de acesso aos mundos privadosdessas mulheres. Ali, além do nome e/ouapelido, nacionalidade, filiação, data denascimento, endereço residencial, profissãoque declarava exercer, estado civil,grau de instrução, cor e sinais característicos,e um pouco de seu histórico de vida,havia também, no verso, observações quevão desde os prostíbulos por onde passaram,advertências recebidas, datas desuas baixas — saída da zona —, e o maisrevelador: suas fotos. Assim, embora cruéis,estas fichas permitem conhecer históriase rostos, e perceber semelhançasnas trajetórias.Selecionei algumas para demonstrar aquitonalidades mais claras nesta trajetória.Portanto, tem-se a vida de MindelBierbrair, vulgo Emília, sócia n° 128 daABFRI. Mindel nasceu na Rússia em janeirode 1893 e chegou ao Rio em 1915, aos22 anos, trabalhando como costureira.Anos mais tarde, tornou-se dona debordéis na rua da Glória, 20, rua doCatete, 26 e Conde Lage, 22. Ma sua foto3x4 da Ficha policial, surge uma mulher— já senhora — bonita e elegante, de traçosfinos, devidamente produzida para oretrato. Viúva e moradora na Glória, tornou-sesócia de Dvore Sosnowski Guimarães,vulgo Dora, na casa da rua Júlio doCarmo, 360. Dora era polonesa, viúva,moradora do bairro do Flamengo, nascidaem agosto de 1892 e sócia n° 99 daAssociação. Em sua foto da Ficha surgeuma senhora de rosto redondo e traçosgrossos, também muito bem arrumada.A situação de Mindel e Dora poderia serconsiderada boa, já que exploravam olenocínio e não trabalhavam necessariamentecomo prostitutas. Contudo, a últimalistagem elaborada pelo 'sr. O', no iníciodos anos de 1960, demonstrava quea Associação possuía 102 sócios — 61contribuintes e 41 remidos. Tanto Doracomo Mindel eram sócias remidas, ouseja, não contribuíam.Sura Pesa Gdanska era irmã de LéaGlikman, ambas enterradas em Inhaúmae prostitutas. Sura ou Paulina era polonesae também sócia da casa da Júlio doCarmo, 360, nascida em junho de 1894 eviúva. Possuía o n° 72 de matrícula naABFRI, e contribuía mensalmente, a partirde 1954, com Cr$ 200,00. Ma foto, de1960, com 66 anos, surge uma senhoraclara que aparenta a idade que tem. JáDora Bran Chinquel fez parte do últimoconselho fiscal da Associação, eleito em1966. Sócia n° 151, contribuía, nos anosde 1950 e 1960, com Cr$ 200,00 mensalmentepara a Associação. Matural daRússia, chegou ao Brasil com 23 anos, em1918. Freqüentou a zona do meretríciodesde que se separou do marido, na casada rua Afonso Cavalcanti, 61, de onde deubaixa em maio de 1961. Em sua foto 3x4,surge uma senhora baixa, de óculos, comum olhar extremamente simpático.Maria Frairman saiu da Rússia em 1911,com 17 anos, e seguiu para Buenos Aires,onde trabalhou no meretrício. Esteve emSão Paulo e no Rio nas zonas de prosti-Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 137-164. jan/dez 1996-pag.l53


A C Etuiçáo. Mo rim dos anos de 1920, já commais de trinta anos, ficou viúva e voltou aexercer o meretrício. Entre 1954 e 1959freqüentou as casas da rjja Júlio doCarmo, 382 e 360, Pereira Franco, 21 ePinto de Azevedo, 20 e 29. Associada n°258, contribuía, a partir de 1954, mensalmentecom Cr$ 50,00.Ana Qurte chegou ao Brasil em 1942, aos27 anos. Sua foto é desta época, e mostrauma moça de traços largos e aparentandomais idade. Em 1970, aos 55 anos,ainda estava na zona do Mangue, trabalhandona casa da rua Pereira Franco, 31.Solteira, era a sócia n° 273 e contribuiu,até o fim da ABFRI, mensalmente com Cr$200,00. Qenendla Kulinska ou Janete erapolonesa de Varsóvia. Solteira, nasceu emjunho de 1907, e explorava o lenocínionas casas da rua Pinto de Azevedo, 23 e30. Readmitida em julho de 1955 aos quadrosda Associação, recebeu o n° 206. 34Essas fichas permitem a visão de históriase rostos, algo tão desejado por estapesquisa, e que possibilitou adentrar emum universo até então desconhecido.Contudo, a mais marcante fisionomia daABFRI foi uma outra, e sua trajetória tambémclareia as nuanças desta entidade.Ela foi a última presidente da sociedadee a última irmã superiora, tendo 68 anosde sua vida ligados a este espaço comunitário.Rebecca Freedman ou Becca, que todosque conheceram sintetizam na mesmafrase: "que não sabia ler ou escrever, masfazia contas de cabeça", chegou ao Brasilsozinha em agosto de 1916, em plenaguerra, vinda da pequena aldeia polonesade Zacrichin. Solteira e com 35 anos,tomou o vapor São Paulo no porto de MovaYork, com uma passagem de terceira classee se declarando americana. 35A sra. D, que trabalhou no HospitalIsraelita do Rio de Janeiro, entre fins dosanos de 1960 e meados dos de 1980, recorda-sede algumas destas mulheres ede suas histórias. Assim,[...] Mo hospital, foi a primeira vez queeu soube que elas existiam. Mas o contatoque eu tinha era só de internação,alta e enterros. Pois quando elas faleciam,eu tinha que entrar em contatocom a pessoa que nós chamávamos derainha — a chefe delas —, que era aRebecca. a Becca. 36Rebecca ainda foi eleita presidente poruma gestão de quatro anos, até 1970, masnunca foi substituída. Após 62 anos deexistência, a ABFRI, como disse o sr. O',se exaure. As rendas já não cobrem asdespesas e as mensalidades já não conseguemser pagas pelos associados. Profundamentepreocupado com aritualização, o contador expõe queMão é nem dizer que ela [a sociedade]morreu. Ela se exaure. Porque ela nãoteve [este] momento [de fim]. Porquesempre há o momento de [se dizer]: Ah,então acabou. Vamos embora, entrega,paga a quem está devendo'. Mão tevenada disso. Ela foi perdendo condição,perdendo, perdendo... Deixou de terpag. 154. jan/dez 1996


RVocondições de fazer a prestação de contasporque não havia mais arrecadação.A última arrecadação foi de Cr$ 12,00.Então não havia sentido de fazer [mais]aquela reunião. Mão havendo sentido,acabou. Mão teve última reunião. Arrecadou-seCr$ 12,00. Quando tiver dinheiro,faz-se outra reunião. Mão houve,acabou. Mão houve um agrupamentopara dizer [que] encerrou. Mão houvenada disso. 37Contudo, consultando o livro de registrodas mensalidades, elaborado pelo 'sr. O',vê-se que em 1968 a sociedade contavacom 73 sócios, dos quais 32 não contribuíam,sobrecarregando os 41 restantes.A esta listagem foi acrescida uma outra,possivelmente a última, que dava contade 102 sócios. Destes, 61 eram contribuintesmensal, trimestral ou anual, de valoresque iam de Cr$ 20,00 até Cr$1.000,00. E 41 eram sócios remidos. Assim,quando a ABFRI se exaure, alguns deseus sócios continuam vivos. O 'sr. O' chegoua sugerir que as sócias de algumaposse, quando morressem, deixassemseus testamentos em nome da sociedade,como foi o caso de Becca. Este dinheiroreverteria para as associadas vivase sem recursos que não ficariamdesassistidas. Porém, não houve tempopara isto, e muitas, certamente, ficaramdesamparadas.Por volta da década de 1970, as obras dometrô desapropriam as casas na área doMangue. A sede da Associação foi entãodestruída. A ornamentação da sinagogafoi fortemente disputada por duas entidadesjudaicas cariocas e acabou compondoo templo de um clube judaico naZona Morte da cidade. Rebecca, até pelomenos 1972, continua vivendo próxima àárea do Mangue, na rua Pereira Franco,48, em um sobrado onde subloca quartos.Recebendo visita de amigos, fica sabendodo interesse da comunidade judaicapelos ornamentos de seu templo ecomenta que "[...] antigamente eles [discriminavam]a gente, e agora estão brigandopor nossa causa". Já doente, ficavaconstantemente na cama, recebendoauxílios dos antigos amigos.Mais tarde, Becca, com a saúde piorando,muda-se para uma de suas casas, nosubúrbio de Ramos. Distante de suas antigascompanheiras, ela, que sempre foium ponto de referência e auxílio, ficavaimpedida de ajudá-las. Zelda, Celina, o'sr. O' e o jornalista Zevi Qhivelder a visitaramalgumas vezes. Porém, em novembrode 1984, aos 103 anos, Becca falece.Talvez esta seja a verdadeira data de términoda ABFRI e do fim de um ciclo: o daexistência tanto de prostitutas judias queemigraram para as Américas, como da necessidadede autoproteção e sociabilidadeque agruparam estas mulheres e asfizeram fundar sociedades como esta.Mo entanto, diferente de suas companheirase certamente não por sua vontade,Becca foi enterrada no Cemitério Comunaldo Caju, uma entidade israelita que cuidaaté hoje do Cemitério Israelita deInhaúma. E, mesmo com o fim burocráti-Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 137-164, jan/dez 1996 - pag. 155


A C Eco da sociedade, no final da década de1960, este cemitério ainda recebeu sepultamentos.Nos anos de 1960, segundo aComissão de Cemitérios/do Rio de Janeiro,sua média anual era de oito enterros.O livro de registro dos óbitos dos associadosda ABFRI Finaliza seus dados emoutubro de 1967, embora outros cincosócios sejam sepultados até setembro de1970. Após este ano, pela ausência derecursos e de pessoal que cuidasse docemitério, ele Ficou abandonado.As tentativas de membros da ABFRI parasolucionar a questão chegam a um limitee a transferência do cemitério para outrasociedade israelita é narrada pelo 'sr. O'como um processo longo. Ainda no finaldos anos de 1960, foi procurado por umaoutra entidade interessada em assumi-lo,mas, principalmente, com a intenção deusar as áreas livres restantes para outrosenterros que não os dos sócios da ABFRI.Os sócios seriam concentrados numa áreadeterminada, transladando-se os corpos,o que não é permitido pela religião judaica.Anos mais tarde, já no Final da décadade 1970, a atual sociedade responsável— Sociedade Cemitério Comunal —procurou o 'sr. O'. 38O meretrício, segundo a visão da sra. D, nãogarantiu a velhice destas mulheres, pois "asque [conheceu] terminaram a vida muitopobres". Ratificando esta idéia, entre outubrode 1950 e 1967 o livro de registro dosóbitos de Inhaúma possui a inscrição dolocal de falecimento dos associados. Em umtotal de 207 sócios identificados, é possívelfazer o seguinte quadro:N° de sócios Local de falecimento102 em casa38 em hospitais públicos23 em hospitaisparticulares21 em asilos 3912 no necrotério dapolícia6 no Hospital Israelita4 no Hospital ColôniaJuliano Moreira1 no Hospital ColôniaCurupaitiA partir deste desenho, percebem-se tantoas inúmeras dificuldades por que passaramessas mulheres como também as tentativasde enfrentá-las, exposta na própriacriação e manutenção de uma vidaassociativa ao longo de mais de seis décadas.Portanto, a convivência naqueleambiente da sociedade certamente cumpriuseu maior objetivo: criou laços paraa vida toda. O 'sr. O', referindo-se ao seutrabalho, diz:[...] eu estive ali bastante tempo. De1953 até hoje, porque até a hora que[a sociedade] saiu de lá [acabou], euainda estava lá. Eu ainda me sinto ligado.Às vezes me dá vontade de ir lá [nocemitério], mas eu tenho medo. Dóimuito ver isto tudo quebrado comoestá. Agora você vê, eu nãosouisraelita, não convivi com o pessoal deoutra forma a não ser na forma de trabalho...Era [uma] gente que trabalhavae se dedicava, era com dedicação enão por obrigação. 40pag. 156. Jan/dez 1996


R V OEstes homens e mulheres organizaram umarede de auxílio mútuo baseado na caridade.Este ato tinha um único sentido: preservar,de uma maneira dinâmica, as suasidentidades culturais e religiosas. A historiadorafrancesa Michelle Perrot,* ao analisaras dificuldades em se chegar a relatos1dos excluídos sociais, comenta que a quPStáocentra-se em seus descendentes. Envergonhadoscom o passado de seus pais,tios, avós etc, tendem a desejar o silêncioe a apagar os pequenos vestígios que ficaram.Becca, representante de um grupo quese constituiu buscando solidariedade entreiguais, ao fazer um balanço de sua vida,demonstrou a legalidade e dignidade queconstruíram para si.A sensação que d. Becca me passou erade uma pessoa muito de bem consigomesma. Ela sabia que era fruto de umacontingência. Tinha vivido aquela contingência.Ela me falou [certa vez]: 'Vocêpensa o quê? Eu estou te falando a verdade.Tem aí filhos e netos de muitas queeu conheço que têm vergonha do que foia avó, do que foi a mãe. E não tem queter vergonha de nada. Hoje você encontracom essa gente e pergunta o que tuaavo era, e eles respondem que eram comerciantesde peles'."Ao longo desta pesquisa, felizmente, osencontros com alguns descendentes setornaram possíveis, como foram os casosde Zelda e Celina. Estas, diferente de outrastambém localizadas, mostraram-sepacificadas com a história de seus antepassados.Contudo, se as polacas continuamum tabu, isto certamente se devetanto a descendentes diretos, como a indivíduosligados ao histórico da comunidadejudaica de uma forma geral. Ambosnão conseguem lidar bem com a humanidadeque existe em cada trajetória devida.Por mais longa que a existência de Beccatenha sido, infelizmente, não nos alcançou.Aqui, espero ter trazido tanto elacomo suas irmãs.PARA CONCLUIR...Esta pesquisa foi ao encontro de um grupopor si só fascinante e muitas vezesenvolto em mistérios e segredos que, comcerteza, não foram criados por ele. Ao sepropor a analisar um conjunto de prostitutase caftinas judias por intermédio desuas associações de ajuda mútua, diferenciou-sedos estudos que vinculam a questãoda prostituição à busca de códigos desexualidade ou os que pensaram o imigranteindesejável, percorrendo os processos-crimede expulsão de estrangeirospor caftismo. Traçou-se aqui, então,um desenho singular. Em uma perspectivapor vezes percebida como arriscada,resolvi trilhar um caminho que me levasseao encontro das visões do grupo sobresi.O lugar privilegiado para esta análise, asassociações de ajuda mútua por eles criadase sua documentação (livros-caixa, atasdas assembléias, livros de registro deóbitos), bem como os depoimentos depessoas que vivenciaram, umas mais ou-Acervo, Rio de Janeiro, ». 9. n° 1-2. p. 137-164. jan/dez 1996 - pag.157


A C Etras menos, aquela experiência comunitária,dirigiu este estudo para apreendera trajetória de homens e mulheres judeusenvolvidos no comércio' da prostituiçãoestrangeira. Ao estabelecerem laços desolidariedade e sociabilidade, sustentaramuma identidade individual socialmentedefinida como positiva.Para isso, é fundamental compreenderque esse conceito de identidade está longede ser um dado, mas existe e se constituinas possibilidades de um construído,vivenciado nas práticas do coletivo." Assim,o perfil de uma categoria leva emconta e espelha sua visão particular acercade suas especificidades e do social doqual é fruto. Ao perceber que esses diferentesgrupos de prostitutas judias lutaramdurante toda a sua existência pelodireito de exercer no cotidiano suas convicçõesreligiosas, das quais tinham sidopostas à margem, passei a refletir sobreo quão importante eram suas experiênciasassociativas. Ali se exercitou no dia-adiaa prática da construção de uma vidadigna, da separação entre o tempo do trabalhoe o do lazer,* da busca de um espaçoreligioso e comunitário que garan­4tisse solidariedade, sociabilidade esocialidade.**Tais entidades existiram enquanto as polacasestavam vivas e necessitavam de laçosauto-protetores. Sobrevivendo por mais desessenta anos, como foi o caso da ABTRI,exaurem-se quando esse fenômeno chegaao fim. Mesmo com descendentes, já quemuitas mulheres possuem filhos, essas sociedadesnão têm herdeiros.A trajetória da entidade, certamente, é oque de mais interessante se observa. Mestepercurso, vislumbra-se que ateatralidade da vida ali exercitada tinhaum objetivo maior: construir e manteruma identidade positiva fundada naespecificidade religiosa do grupo. Estedrama, no sentido de uma encenação enão de uma dor, revela a importância daspráticas associativas. Estas têm como funçãoa inserção em um todo que representee signifique existência, possibilitandoa vivência de conjunto. Drama é antes detudo agir e representar e, no caso, é solidariedadee sociabilidade. 46Por serem percebidas comotransgressoras de uma ordem — mais porcircunstâncias do que por escolha —,muitas dessas mulheres não se deixaramcair na armadilha da exclusão. Assim, pensarame realizaram seu pertencimentopela via associativa religiosa. Suas existênciassão marcadas pela ação, conscienteou não, de conservação, transposiçãoe produção de imagens que ordenassemseus universos privados, tornando oespaço comunitário tanto a possibilidadede um muro protetor como uma forma dearticular e enfrentar as diversidades davida de uma maneira geral.A reelaboração do passado coletivo, via costumese tradições, lhes possibilitou umaexistência fora dos limites da condição marginal.Isto porque reelaboraram suas históriasconstruindo-as e reconstruindo-as medianteas necessidades do seu presente e,pag. 158. jan/dez 1996


R V Odesta forma, engajaram-se em uma herançacomum. Compreendendo que fé não temdono, exerceram no cotidiano a união entreidéia e ação, entre agir e representar,ria maioria dos casos, morreram muito pobres,e deram positividade às suas vidas nabusca constante de dignidade.Este texto é uma versão resumida domeu livro Baile de máscaras - mulheresjudias e prostituição: as polacase suas associações de ajuda mútua.Rio de Janeiro: Imago, 1996.PTAEstes não são seus verdadeiros nomes, mas a forma encontrada, segundo o pedidodas entrevistadas, para preservar suas identidades.2. SIMQER, Issac Bashevis. Escória. Rio de Janeiro: Record, 1991.Acervo, Kio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 137-164. janMez 1996 - pag.159


A C E3. É interessante ressaltar que a palavra cáften tem uma de suas origens possíveis nascaftas — longos casacos pretos —usadas pelos judeus na Europa Oriental.4. O texto acadêmico mais completo sobre o assunto, em termos de uma análise globalydo fenômeno, é o de Edward Bristow (Prostitution and prejudice: the jewish fightagainst white slave, 1879-1939. Cambridge: Oxford University Press, 1982). Mo âmbitoda Argentina, onde o fenômeno foi amplamente divulgado e onde a perseguiçãopolicial obteve maior efeito, tem-se alguns trabalhos importantes. Destaco, contudo,o mais recente de Donna J. Quy (Sex Sr danger in Buenos Aires: prostitution, familyand nation in Argentina. University of Mebraska Press/Lincoln fie" London, 1991). Atemática já recebeu uma reflexão específica do caso brasileiro, como nos textos deMargareth Rago (Os prazeres da noite: prostituição e códigos de sexualidade femininaem São Paulo, 1890-1930. São Paulo: Paz e Terra, 1991), e de Lená Medeiros deMenezes (Os estrangeirosJaneiro: Arquivo Macional, 1992).e o comércio do prazer nas ruas do Rio de Janeiro. Rio de5. Quanto à análise ficcional, a relação de obras é vasta e inclui autores judeus e nãojudeus,brasileiros e estrangeiros. Espero ter selecionado a maioria destes e os ter incluídona bibliografia de Bai/e de máscaras, que poderá saciar maiores informações.6. Refiro-me especificamente a dois textos histórico-ficcionais publicados recentementee que reforçam tais idéias, engajando suas análises a imagens preconcebidas. Sãoeles: A.P. Maryan (Quem matou "Pierrot"? Rio de Janeiro: Cátedra, 1989), que foipublicado a partir dos depoimentos do delegado da polícia de costumes do Rio deJaneiro na década de 1930, Anésio Frota Aguiar; e o texto de Ester Largman (Jovenspolacas. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992).7. O estudo de E. Bristow (1982) informa que, em 1889, o Império Russo listou 289licenças para prostíbulos; destes, 203 (70%) eram de judeus. Mo mesmo ano, das 36autorizações para o exercício do lenocínio na cidade de Kherson, no porto do MarMegro, trinta pertenciam a caftinas judias.8. MEMEZES, Lená Medeiros de. Os estrangeiros e o comércio do prazer nas ruas doRio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Macional, 1992.9. RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos de sexualidade femininaem São Paulo, 1890-1930. São Paulo: Paz e Terra, 1991.10. Faço aqui uma ressalva: tenho consciência dos perigos e armadilhas de se usar umametáfora. Isto porque o fato de se poder cair na incompreensão da imagem estarásempre presente. Contudo, o que desejo é resgatar a idéia de que, em um baile demáscaras', o que mais se busca é o seu final, quando surgem os rostos. Portanto, nãopag. 160, jan/dez 1996


K V Oqueria analisar as 'máscaras' sociais que a belle époque carioca — os médicos, juristas,policias etc. — criou para estas mulheres. Queria conhecer de perto estas históriasde vida, suas faces, suas vozes.11. Baseio-me nas reflexões do sociólogo francês Michel Maffesoli ("La Maffia. Mote sur lasocialité de base". In: Cahiers Internationaux de Sociologia. Paris: Press Universitaires,v. 73, 1982).12. Diário Oficial, Rio de Janeiro, 13.71.1906, p. 6.124 (Sociedades Anônimas — reproduçãoda Assembléia de 3.11.1906). Arquivo Macional.13. Este material pode ser recuperado no livro n° 1 do registro de sociedades civis, sobo n° de ordem 107, do dia 14.11.1906. Arquivo Macional.14. As duas sociedades estrangeiras encontram-se analisadas no capítulo 2 de Baile demáscaras. Mão foi possível localizar o material produzido no interior destes dois espaçosassociativos, e deles têm-se apenas reflexões de terceiros sobre sua existência.Assim, a estas trajetórias são confrontadas as das entidades carioca, paulista esantista. Destas três, foi localizada toda uma documentação interna (livro de atas dasassembléias, livro-caixa, registro de óbitos, estatutos e depoimentos orais de familiarese do ex-contador). Por esta ótica, pode-se traçar paralelos entre as entidadesnacionais e as estrangeiras, e entre o ficcional e a realidade, percebendo-se quantoo mundo da prostituição é envolto por estereótipos.15. Tanto J.R. Pires de Almeida (Higiene moral. Rio de Janeiro: Laemmert, 1906) comoA. Corbin (Les filies de noce. Paris: Aubier Montaigne, 1978) citam o ano de 1867.16. Diário Oficial, Rio de Janeiro, 23.1.1915.17. O estatuto da ABFRI de 1915 está em depósito no Arquivo Macional e pode ser localizadono registro de títulos e outros papéis, livro II das sociedades civis, registrogeral "B", livro 8 — n° de ordem 699, protocolo 160.056 (livro 16), data de registro:23.1.1915.18. Ambos os materiais — o livro de registro e o cartão de matrícula — pertencem aoúltimo contador da ABFRI (entre 1954 a 1968). Seguindo o seu pedido, sua identificaçãoaqui será a de sr. O'.19. Vale aqui duas ressalvas: I ) o livro registro de óbitos da ABFRI demonstrou os muitoscasais existentes no corpo social da entidade. Tal fato ocorreu também na socie­odade paulista. E, 2 ) nos capítulos 3 e 4, onde analisei a trajetória das polacas cariocase paulistas, respectivamente, existem anexos onde relacionei cronologicamenteotodas as diretorias destas entidades, anotando nome e sobrenome da sócia. Diferen-Acervo. Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 137-164. jan/dez 1996 - pag.. 161


ACte de São Paulo, que desde seu início se estabeleceu como uma sociedade femininae onde não se nota a alteração dos nomes, as sócias da ABFRI registraram a mudançados seus quando se casaram e acoplaram os sobrenomes de seus maridos, namaioria das vezes não-judeus.20. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (v. 4, p. 598, códice 58-3-22).21. "Uma festa macabra — os exploradores do judaísmo. Os 'wizugths' pagam o seutributo — o destino de Helena". In: A noite, Rio de Janeiro, 30.10.1916, p. 1.22. "A inauguração macabra de um cemitério — os verdadeiros israelitas condenam osfundadores da nova necrópole". In: A noite, Rio de Janeiro, 2.11.1916, p. 4.23. O estatuto da ABFRI, de 1932, está em depósito no Arquivo Macional, no acervo do 3 oOfício de Registro de Documentos, sociedade civil n° 166, registrado em 5.5.1932.24. Entrevista concedida à autora em 22.9.1993.25. Entrevista concedida à autora em 21.9.1993.26. Mas fotos que localizei de Fanny e Amália, ambas aparecem usando uma faixa com ainscrição de irmã superiora. Mo verso da lápide de Fanny, no cemitério de Inhaúma,a diretora Angelina mandou gravar uma homenagem com o nome das componentesdo Heiset Chell Emes. Todas estas imagens e mais as fotos de Angelina e Rebecca seencontram no anexo do capítulo 3 de Baile de máscaras.27. Entrevista concedida à autora em 4.5.1993.28. Fotos datadas de 1972, e que apresentam tanto a fachada da casa como o interior dasinagoga, compõem o anexo do capítulo 3 de Baile de máscaras.29. Livro de atas da ABFRI, p. 5.30. Entrevista concedida à autora em 22.9.1993.31. Dados retirados da ficha de inscrição de Estera Gladkowicer na delegacia de costumesdo Rio de Janeiro.32. A inexistência de um arquivo policial na cidade faz com que este material estejaperdido. A maior parte dele encontra-se nas mãos de velhos delegados de polícia,como foi o caso destas fichas, cedidas pelo delegado Armando Pereira. Algumas outrasforam localizadas na delegacia da área da Cidade Mova, onde o material encontra-sedepositado em uma sala, sem cuidados ou qualquer arrumação mínima. As102 fichas localizadas por esta pesquisa foram doadas ao Arquivo Público do Estadodo Rio de Janeiro.pag. 162, jan/dez 1996


R V O33. A análise deste material encontra-se no capítulo 4 de Baile de máscaras, quandoestudei a sociedade de polacas paulistas.34. As outras Fichas pertenciam a Minca Blesman, a Chana Minska, a Rachela Flumenbaum,a Maria ou Mindla Friesner, a Feiga Nossenchug, a Fella Srebnik, a Asna Sziff, a BrandiaLuftman e a Perla Ajdelman Peixoto de Castro. Todas possuíam número de matrículana ABFRI.35. Dados retirados da ficha de Rebecca Freedman no registro de estrangeiros. ArquivoNacional/SRE 1010048.36. Entrevista concedida à autora em 16.11.1992.37. Entrevista concedida à autora em 4.6.1993.38. Ao repassar os cuidados do Cemitério Israelita de Inhaúma à Sociedade CemitérioComunal, o 'sr. O' entregou o livro de registro de óbitos dos enterrados naquele localentre 1916 e 1967. A intenção era de que continuassem a ser registrados ali ossepultamentos ocorridos com os membros da ABFRI, o que não foi feito. Algo quechoca quando se entra no cemitério é a quantidade de lápides quebradas com osnomes apagados. Assim, paira no ar um sentimento de indigência. O oposto ao desejodaqueles homens e mulheres ao fundarem seu próprio cemitério.39. Dispensário do Méier, Asilo Santa Maria, Casa São Luiz, Asilo Cristo Redentor, CasaSão Francisco de Assis.40. Entrevista concedida à autora em 4.6.1993.41. PERROT, Michelle. "Práticas da memória feminina". In: Reuisfa Brasileira de História,São Paulo: v. 9, n° 18, ago./set. 1989, pp. 9-18.42. Entrevista de Zevi Qhivelder concedida à autora em 9.5.1993. (Grifo meu).43. LAFER, Celso. "Identidade individual e identidade coletiva: o judaísmo e os dilemasda modernidade". In: Ensaios Liberais. São Paulo: Siciliano, 1991.44. LE GOFF, Jacques. "Calendário". In: Enciclopédia Einaudi. Porto: Imprensa Macional/Casa da Moeda, v. 1, 1984.45. MAFFESOLI, Michel. "La Maffia. Mote sur la socialité de base". In: Cahiers Internationauxde Sociologia. Paris: Press Universitaires, v. 73, 1982.46. BALAMDIER, Georges. O poder em cena. Brasília: Ed. UnB, 1980.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9, ti" 1-2. p. 137-164. JarVdez 1996 - pag. 163


A C Evestimentas e atavios, pois falta-lhesorientação. 13Ele tinha conselhos um tanto mais positivosa oferecer do que muitos de seuscolegas escritores, embora para segui-losfossem necessárias muitas horas de estudosério das escrituras, visto que qualquerornamento precisava ter justificativabíblica. Ele decidiu que se deveria permitiràs mulheres usar ornamentos, porqueRebeca os havia usado e que era "legítimocobrir um defeito ou esconder umaferida ou deformidade de uma maneiradecente". 14Philip Stubbes comparou a supressão do"excesso dissoluto do vestuário" comagradar a Deus, enriquecer o país e evitarescândalos. Este ponto de vista não15era ditado somente por atitudes religiosasquanto ao decoro, mas também orientadopor idéias de decência social, emparticular por idéias acerca de vestuárioe status. A Inglaterra era um dos poucospaíses europeus que não possuía leissuntuárias para ditar o que pessoas dediferentes classes sociais podiam, ou, oque é mais importante, eram proibidas deusar. não obstante, havia convenções extremamentepoderosas acerca de definiçõesde classe e gênero, expressas nasroupas.Os devotos, fossem puritanos ouanglicanos, não eram democratas quandose tratava de afirmar distinções sociaise a lembrança visível dessas distinçõesno vestuário. Havia queixas freqüentessobre criados que imitavam seus patrõesou patroas, o que não era surpreendente,já que recebiam de presenteroupas que eram deles. 16Da mesma maneira que a subversão dosníveis aceitos podia se tornar visível pelovestuário, a subversão das barreiras aceitasdos gêneros também podia. Os conservadoresreclamavam constantementeque as mulheres haviam começado a tera aparência de homens e os homens, ade mulheres. William Harrison escreveuem 1577 que "sucedeu que as mulherestornaram-se homens e os homens setransformaram em monstros". "Encontreialgumas dessas rameiras em Londres,disfarçadas de modo tal que ultrapassouminha habilidade em discernir se se tratavade homens ou mulheres". Philip17Stubbes escreveu, após citar umainjunção do livro de Deuteronômio,Mosso vestuário foi-nos dado como umsinal de distinção entre um sexo e outro,e portanto usar o vestuário de outrosexo é participar do mesmo e adulterara veracidade de sua própria espécie.Por este motivo, essas mulherespodem, não incorretamente, ser designadascomo hermafroditas. 18Barnaby Rich, escrevendo em 1616, alegava:Mão sei...se devo acusar os homens porlhes agradar o uso de vestuário femininoou se devo acusar as mulheres porlhes agradar o uso de vestuário masculino;porém, o que é certo é que seuschapéus, suas plumas, suas cintas sãotão bordadas, tão debruadas, tão


A B S T R A C TThis text is an abridged version of the book entitled Baile de máscaras - mulheres judiase prostituição:as polacas e suas associações de ajuda mútua.yThe author particularly addresses the contents of Chapter 3 (The charity sisterhood),where she has analysed the mutual help society founded by a group of Jewish men andwomen in the city of Rio de Janeiro. What this group particularly had in common, wasthe same religious identity and the exercise of their activities in this city's foreignprostitution trade, mainly within the so-called 'red-light districts'.Certainly, it is fundamental to stress that this analyses is an innovating approach, forfocussing on an excluded group, always judged by its public appearance, since prostitutionwas located on the streets, and seeking to reflect on their private worlds. In studyingtheir philanthropic and socializing societies, she presents a different facet of these women.R É S U M ÉLe texte est une version raccourcie du libre Ba/ie de máscaras - mulheres judias e prostituição:as polacas e suas associações de ajuda mútua.Lauteur se concentre surtout sur le contenu du Chapitre 3, La fratrie de la charité, oúelle analyse la société daidc mutuelle fondée par un groupe d'hommes et de femmesjuifs à la ville de Rio de Janeiro. Ce groupe avait deux points en commun: la mêmeidentité religieuse et le fait dexercer leurs activités auprès du commerce de la prostitutionétrangère dans la ville, surtout dans la zone de la basse prostitution.Sans aucun doute, il faut observer que cette analyse est innovatrice dans son approche -car elle se penche sur un groupe marginalisé, toujours observe par son aspect public,puisque la prostitution sexerçait dans les rues -, et cherche une réflexion de leurs mondesprives. Létude de leurs sociétés philanthropiques et socialisantcs presente une facettedifférente de ces femmes.


Sucann CaulfieldProfessora de História da América Latina na Universidade de Michigan.!xie virgindade é esta?A mullier moderna e a reformado código penal no Rio de Janeiro,1918 a 1940INTRODUÇÃOOeminente jurista P PranciscoViveiros de Castro,escrevendo em lf L898,atribuiu às mudanças trazidas pelavida urbana da virada do século o assustadorincremento dos crimes contraa honra da mulher. O trabalho fabril feminino e "a educação moderna" teriamtirado as mulheres da "intimidade silenciosado lar" e as colocado diante de "todasas classes de sedução". Movas atitudesentre as mulheres seriam o efeito mais daninhodestas mudanças. Viveiros advertiuque "a mulher moderna dominada pela idéiaerrônea da sua emancipação...faz tudo paraperder o respeito, a estima e a consideraçãodo homem".'Mas, para alguns juristas nostálgicosdas décadas de 1920 e 1930,como o juiz Melson Hungria, a erade Viveiros de Castro parecia umaespécie de idade da inocência, umaépoca na qual a mulher era "zelosamentepreservada na ignorância dasmaldades do mundo". Para Hungria,2os juizes deviam adaptar o código de1890 às realidades do dia, através da "interpretaçãocriativa" de conceitos como ahonra e a virgindade, porque "o ambientesocial moderno, com as suas complacênciase licenciosidades, apresenta-nos um tipode moça bem diferente do que era há meioséculo". 3A maneira que Hungria descreveu a nova'mulher moderna', porém, teria sido fa-Acervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 165-202, jan/dez 1996 - pag.165


A C Emiliar para Viveiros de Castro. Hungriaexplicou num compêndio de 1937 queas moças modernas eníraram de participarativamente do vórtice da vida cotidiana,disseminando-se nas oficinas,nas repartições públicas, nas lojas comerciais,e foram eliminando, pouco apouco, aquela reserva feminina queconstituía o seu maior fascínio e traduzia,no mesmo passo, a força inibitóriado apurado sentimento do pudor.Subtrairam-se a vigilância e disciplinafamiliares e fizeram-se precoces naciência dos mistérios sexuais. 4A não ser pela classificação de 'moçamoderna' — operárias na época de Viveirosde Castro, comerciárias e funcionáriaspúblicas quarenta anos mais tarde —o discurso destes proeminentes representantesde duas gerações de juristas sobrea inocência perdida das mulheres independentese trabalhadoras soa bastantesimilar. Pode ser, como afirma o antropólogoMichael Herzfeld para a Gréciarural no final do século XX, que as mulheresfossem "'sempre' mais castas nageração anterior". Herzfeld acredita que5a "lamentação da virtude perdida" é ummecanismo retórico, uma maneira de justificarum sistema moral que éfreqüentemente transgredido, e que, sema alusão às tradições passadas, "pareceriaexagerado e sem base na realidade". 6Mas ironicamente. Viveiros de Castro eHungria evocaram esta retórica para finscontrários. Viveiros de Castro sustentavaque era necessário defender o que eleconsiderava os padrões civilizados contidosno código penal de 1890 contra aCaixa de uma casa comercial. Rio de Janeiro, abril de 1942. Arquivo Nacional.•pag. 166. Jan/dez 1996


R V Oameaça do trabalho operário feminino.Hungria, mesmo com grande nostalgia,expressou o consenso entre os juristas dadécada de 1930 de que o código de 1890precisava ser revogado por ser teoricamenteultrapassado e por se basear emconceitos morais antiquados. Em 1939,sob a direção do ministro da Justiça FranciscoCampos, os desembargadoresHungria, Vieira Braga e Marcélio deQueiroz, e o procurador público RobertoLyra, participaram da comissão que produziuo novo código penal de 1940.Algumas das mudanças mais dramáticase controvertidas na lei penal diziam respeitoà família e aos delitos sexuais. A'honra da família' desapareceu do textodo código. Os crimes do título VIII do códigode 1890 foram separados em duascategorias diferentes: "Crimes contra afamília" e "Crimes contra os costumes". 7A família permaneceu como uma instituiçãopatriarcal: o código civil continuou aconsiderar o marido o 'chefe do casal', eas esposas continuavam a ser 'incapazes'para fins de representação jurídica. Moantigo código, porém, que enfatizava ahonra masculina e honestidade feminina,a autoridade do pai baseava-se simbolicamenteno seu controle da sexualidadeda mulher. Em 1940, esta autoridade passoua ser justificada pelo compromissopaternal com o sustento dos seus dependentes.As ofensas sexuais não mais eramclassificadas como crimes contra a família.Estes incluíam somente adultério, bigamia,fraude matrimonial, e abandonodos Filhos. Ao definirem estupro, sedução,rapto, e atentado ao pudor como8ofensas contra os 'costumes' sociais, enão mais contra a honra familiar, os juristasque escreveram o código descartarama idéia de que a honra masculinaderivava-se da honestidade sexual feminina.Seguindo a mesma lógica, os juristaspretendiam garantir a punição dos 'crimesde paixão', que geralmente envolviamhomens que vingaram a traição sexualassassinando suas mulheres ou osamantes delas. O crime de 'defloramento'9passou a ser denominado 'sedução' (artigo217), a idade máxima para possíveisvítimas foi reduzido de 21 para 18 anos,e a vítima teria que provar que o réu aproveitara"de sua inexperiência ou justificávelconfiança". O código também distinguiasedução de "posse sexual mediantefraude", que não requeria que a vítimafosse virgem. A virgindade física permaneceucomo um dos componentes da ho­10nestidade feminina que a lei protegia, masa honestidade e a virgindade passaram aser consideradas como virtudes individuaisou uma 'idéia moral', e não mais umrecurso coletivo cuja defesa fosse vitalpara a integridade da família.Estas mudanças refletem, em parte, anova base teórica do direito penal brasileiro.O código de 1940 integrou conceitosda escola de 'direito positivo', como anoção de que a "responsabilidade criminal"devia ser avaliada conforme condiçõessociológicas, psicológicas e biológicasde cada indivíduo." Na redefinição daAcervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 165-202, jan/dez 1996 - paçj.167


A C Esedução, por exemplo — em que a investigaçãoda 'responsabilidade criminal' focalizavaa identidade da vítima — ,foi ressaltadaa importância do seu desenvolvimentopsicológico e emocional, e nãosomente sua honestidade e virgindade.Um mesmo ato podia ser crime ou não,dependendo da experiência' ou confiança'da vítima. Além disso, a fé positivistana autoridade dos profissionais em defendera coletividade inspirou os juristas adefinirem os crimes sexuais não maiscomo ofensas contra a honra privada dafamília, mas contra 'os costumes', agoraprotegidos pelos oficiais públicos.A lógica do direito positivo, porém, por sisó não explica por que, em 1940, os legisladorese juristas já concordavam queo direito penal e o significado de conceitoscomo honra e família precisavam sermudados. Este artigo pretende tratar destasquestões através de uma discussãosobre os conflitos mais amplos que inspiravamos debates jurídicos e médicolegistasacerca do significado da honrasexual e da virgindade nos anos de 1920e de 1930.Embora os significados de virgindade,sedução e honestidade já tivessem sidodiscutidos entre os juristas e médicolegistasdesde muito antes, a intensidadee publicidade destes debates chegou aoauge no Rio de Janeiro nos anos de 1920e de 1930. Em contraste com os debatesjurídicos sobre o significado da honra davirada do século, que tinham comosubtexto as tensões sociais advindas dalegitimização do poder republicano, osdebates dos anos de 1920 e de 1930 refletirambatalhas políticas que acompanharama deslegitimização do poder daRepública Velha. Mas barulhentas campanhascontra os 'crimes de paixão', o sensacionalismodos escândalos sexuais daimprensa e a 'himenolatria' (a obsessãocom o hímen), homens eminentes comoHungria, os procuradores públicos CláudioSussekind de Mendonça e RobertoLyra e o médico-legista Afrânio Peixotoatacaram a idéia de que a valorização socialda virgindade ou da honra sexual fosseum marco do avanço da civilização eda superioridade moral. Ao contrário,mantiveram que esta valorização, excessivano Brasil, era uma manifestação doatraso das instituições políticas e sociaisbrasileiras.Diante de mulheres que assumiam novasidentidades na década de 1920, os juristasreinterpretaram os conceitos de honestidadee virgindade, de maneira que podiamincluir ou excluir a mulher moderna' dependendoda posição do juiz e das circunstânciasde cada caso. Alguns juristas lamentaramo declínio da família e dos valorestradicionais e categoricamente declaravamque a mulher moderna carecia de virtude.Outros — incluindo conservadores'que deploravamo efeito da modernidade nos papéisde gênero e uma minoria de progressistasque o aplaudiam — achavam que asmulheres modernas, não mais recolhidasem casa, tinham sabedoria suficiente pararesguardar sua própria virgindade.pag. 168. jan/dez 1996


R V Olia sua maioria, porém, os juristas acreditavamna função normativa da lei, ereconceitualizaram os crimes sexuais deforma que fossem compatíveis com opaternalismo intervencionista do Estado.Articulando uma posição que acabariasendo vitoriosa em 1940, estes juristasargumentavam que o sistema judiciáriodeveria continuar a proteger a virgindade,mesmo tratando de mulheres modernas.Muitos citavam Freud para defendera teoria de que até as mulheres honestaspossuíam instintos sexuais, mesmo latentes.Assim, podia-se interpretar a seduçãocomo excitação sexual, e não apenascomo uma promessa de casamento, comoera considerado anteriormente. Comoseus colegas mais tradicionais, estes juristasacreditavam que uma "crise depudor" do período pós-guerra ameaçavaa honra feminina e, por extensão, a fa­12mília. Insistiam, porém, que o perigo nãoemanava da modernidade em si, mas dafalta de preparação da massa' brasileirapara as liberdades da sociedade moderna.Seria, então, necessário educar asmulheres para resistirem às novas tentações,e para suprimir o instinto sexualmasculino que os impulsionava a cometercrimes bárbaros e a assumir atitudessexuais predatórias que arruinavam moçasinocentes.Ao contrário de algumas mulheres profissionais(e alguns homens, tanto de tendênciasconservadoras católicas comoradicais), estes homens não propunham13a mobilização feminina para a defesa dasua própria honra, e não viam avitimização das mulheres como evidênciada necessidade de ampliar o seu podersocial e político. Ao contrário, ao modernizaremos conceitos jurídicos e médicosdo corpo da mulher, e ao tomarem o comandodas campanhas para combater oque eles consideravam noções anacrônicasda honra sexual, juristas, médicolegistas,e outros profissionais procuraramfortalecer as hierarquias do gêneroe sua própria autoridade moral ao mesmotempo que desafiavam o poder da eliteeconômica e política tradicional.A COMISSÃO DA HIGIENE SOCIAL E ACAMPANHA CONTRA OS CRIMES DEPAIXÃO'"avia um consenso amplo entreos juristas dos anos de 1920 e) V _i_L.de 1930 de que a sociedademoderna, com seus 'estímulos sensuais' —sobretudo os novos meios de comunicação— trouxera a degeneração moral. liem todosda geração de Hungria, porém, compartilhavamde sua nostalgia pela famíliatradicional brasileira. Roberto Lyra, ao contrário,via nas tradições repressivas da sociedadepatriarcal a origem do que ele emuitos outros percebiam como uma obsessãopopular com o sensacionalismo dosescândalos sexuais e com a explosão daperversão e violência sexuais no período dopós-guerra. Para Lyra, a história do Brasil,marcada pela repressão sexual excessiva,resultará numa fixação dos brasileiros pelahonra sexual e pela violência provocadas porconflitos românticos. *1Acervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2, p. 165-202, jan/dez 1996 - pag. 169


ACHaviam outras diferenças entre os juristascomo Nelson Hungria e os profissionaismenos nostálgicos domo RobertoLyra. Lyra, jovem reformista socialista, viano judiciário uma instituição progressivaque se opunha ao regime policial queimperava nas ruas da cidade. Hungria, poroutro lado, iniciou sua carreira como delegadode polícia na Lapa, no início dadécada de 1920. Como delegado, eleadministrava a política policial de controlee "localização" da prostituição, que continuavaa apoiar como juiz. Esta posturaera atacada veementemente por Lyra e15seus colegas no Conselho Brasileiro deHigiene Social (CBHS), formado em1925. 16O CBHS, como mostra a historiadoraSusan Besse, era uma entre as várias organizaçõesde profissionais urbanos nosanos de 1920 que visavam a "elevar" apopulação brasileira. Mo Rio de Janeiro,17como em muitas outras cidades capitaisdo Ocidente, os movimentos para a reformasocial cresceram no período pós-Primeira Guerra, chegando a ser uma partevital da oposição à ordem política daBelle Époque. no Brasil, profissionais reformistasjuntaram-se a movimentos dediversas tendências que pretendiam acabarcom o monopólio de poder exercidopelas oligarquias rurais durante a PrimeiraRepública. Alguns chegaram a participarna revolta que trouxe Qetúlio Vargas aopoder em 1930 e na administração municipalpopulista do prefeito PedroErnesto. 18Roberto Lyra. Rio de Janeiro, década de1930.Arquivo Nadonal.A reação destes profissionais reformistasao 'problema social' e ao 'problema damulher' revelou o desejo de modernizaro Brasil para além das aparências externas.Eles pretendiam substituir as tradiçõesdo autoritarismo patriarcal, que viamcomo próprias da sociedade agráriaoligárquica, por um sistema democráticomais amplo composto por famílias nucleareshigienizadas. Em vez de resolver osproblemas sociais através da violênciapolicial, recurso utilizado com freqüênciadurante a Primeira República, os reformistaspretendiam combater a militância daclasse trabalhadora com políticas sociaisbenevolentes. Atacando as noçõeselitistas e eurocêntricas das autoridadespag.170, jan/dez 1996


Vorendadas...que não há diferença maior aser vista entre a ferradura de um cavalo ea de uma égua."William Prynne, que jamais se refreavaquanto a estes assuntos viu, em 1628, "osexo feminino masculinizado despudoradoe inconstante" como um dos sintomas dostempos degenerados' em que vivia, estandoas mulheres "hermafroditizadas e transformadasem homens" em "sua condutaimodesta, desavergonhada e audaciosa". 20Em 1645, John Brinsley usou um ataqueao 'ensino público' das mulheres para argumentara favor do vestuário pudico e dasubmissão das mulheres aos homens. Um21poema satírico de 1655 equiparava as mudançasno vestuário das mulheres a umamudança na posição destas,Gibões, como homens, elas usam.como se quisessem nos escarnecer,bordados em volta com belos pontos efitas.Porém, peço, olhemos em torno;pois uma vez que o gibão lhes cai tãobemelas usarão os culotes, se puderemobtê-los. 22A preocupação com a moda era um aspectoda frivolidade associada à preocupaçãocom a aparência pessoal. Diversos comentaristasobservaram a rapidez e o entusiasmocom que os ingleses adotavam novosmodismos. O comentarista socialWilliam Harrison investiu muito severamente,em 1577, contra "a fantástica loucurade nossa nação (...desde o cortesão aocarreteiro)...que nenhuma forma de vestuárionos agrada mais quando a usamospela primeira vez", embora, em parte,ele atribuísse isto aos truques dos alfaiates."Parece que imitamos todas asnações à nossa volta, no que nos assemelhamosao camaleão". Philip23Stubbes comentou em 1583 "que pareciaque nenhum povo no mundo era tãointeressado em novas modas quantoeles na [Inglaterra]". * Thomas Dekker,2em 1606, afirmava quecomo o homem é o imitador de Deus,procurando fazer flores artificiais, pássarosetc. semelhantes aos naturais;pela mesma razão as mulheres sãoimitadoras dos homens, pois não queremficar atrás deles na distância deuma medida de alfaiate...em qualquernova moda de novos ricos. 25A preocupação com a moda levava à extravagância,a qual, de acordo com osargumentos de um membro do Parlamentoem 1621, era responsável pelodeclínio da hospitalidade. A senhora26Burnet, em seu manual de devoção, pediaque as pessoas se vestissem com"frugalidade decente, para melhorcapacitá-las a vestir os pobres". Ela27argumentava que gastar muito tempopensando a respeito da moda encheriaa mente de "imagens vãs" e queesta solicitude a respeito do vestuárioé mais apropriada a essas infelizese desgraçadas mulheres cuja belezaé posta à venda (embora a umpreço miserável) do que às mulheresque professam devoção religiosa, comAcervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1 -7. p. 3-15.Jarvdez 1995- pag.9


K V Oda Primeira República, os reformistaspopulistas procuravam na 'massa popular'uma identidade cultural autêntica e umafonte de apoio político.Os profissionais que quiseram desafiar(mesmo de forma ambígua) as tradições patriarcaise autoritárias não foram os únicosa ampliarem seu poder político após a vitóriade Qetúlio Vargas em 1930. Fora dacapital, a maior base de apoio a Vargas veiode regiões rurais marginalizadas do poderna Primeira República e de grupos conservadoresvinculados à Igreja católica ou aoExército. Muitos destes conservadores admiravamelementos do fascismo europeue adotavam o lema 'deus, família, e pátria'.Assim como os profissionais urbanos quemilitavam por reformas sociais, estes gruposconservadores reivindicavam a autoridadepara definir e defender a honra e afamília brasileiras e para controlar as paixõespopulares. Em vez de rejeitar o passadoautoritário, porém, os conservadoresviam na 'família brasileira tradicional' ummodelo de organização social capaz demanter as hierarquias sociais estáveisdurante o processo de modernizaçãoeconômica.O discurso jurídico sobre a honra sexual revelavaas influências de ambos os extremosda coalização política de Vargas. Muitos juristas,como Lyra, que se declarava socialista,posicionavam-se firmemente ao lado dosreformistas. A maioria, porém, como Hungria,conciliava posicionamentos tradicionalistascom uma auto-imagem progressista, ao mesmotempo que acreditava que a produção deconceitos jurídicos era independente daesfera política. Além do mais, juristas devárias tendências políticas compartilharamansiedades provindas da sua posição declasse elevada e de gênero masculino sobrea força desestabilizadora das paixõesque libertariam o populismo e amodernidade. A preocupação de que a'massa popular' ou a 'mulher moderna'ameaçariam a ordem social muitas vezesamenizava as diferenças entre os juristas,permitindo que trabalhassem juntos emvárias campanhas para a regeneração dopaís. Embora a tentativa do CBHS de combatera prostituição tenha tido pouco impacto,a organização ganhou o amploapoio dos.juristas, incluindo Hungria, nasua campanha de modernizar a família etransformar as paixões desregradas emrelações sexuais racionais e higiênicas.Mesmo que para Hungria isto significassea defesa da fidelidade sexual e o casamentoindissolúvel e, para Lyra, significasse aautorização do divórcio por mútuo consentimento,ambos os juristas concordavamna necessidade de intervenção doEstado no controle do desejo erótico.O empreendimento mais bem sucedidodo CBHS foi a batalha contra a chamada'epidemia' de crimes de paixão. Estacélebre campanha apontava para umatransformação no pensamento jurídicosobre a honra sexual. Os juristas da viradado século propunham educar a populaçãopara adotar valores morais 'civilizados',incluindo a valorização dahonra sexual feminina, como uma me-Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 165-202, Jan/dez 1996 - pag.171


AOEdida de estabelecer a ordem e o progresso.Para os juristas e outros profissionaisno período pós-guerra, a excessiva valorizaçãoda honra sexual entre a 'massapopular' teria o efeito contrário. Enquantoas queixas de defloramento quase nãoexistiam mais nos países civilizados',moças brasileiras de classe baixa continuavama inundar as delegacias com estesapelos para a defesa da sua honra. Oque o médico-legista Afrânio Peixoto chamavaa 'himenolatria', ou veneração dacastidade feminina, chegou a ser associadaao aumento de bárbaros assassinatosrelacionados à honra sexual. A exaltaçãoda honra sexual não mais era vista comouma marca da civilização, nem como essencialà união da família, e, sim, como umanoção anacrônica que incentivava as tendênciaspopulares hiper-sexuais, inspiravaa desordem e a violência, estourava os laçosfamiliares e exibia o atraso nacional.Os códigos penais de 1830 e 1890 nãoincluíam a provisão do Código Filipino queperdoava os maridos que assassinassemsuas mulheres adúlteras. Os advogadosde defesa, porém, freqüentemente convenciamo júri de que seus clientes tinhamsofrido de 'completa privação dos sentidos'no momento do crime, condição queanulava a responsabilidade criminal quandorespondiam a um atentado à sua honra.Esta defesa era utilizada não somenteem uxoricídios (assassinato da esposa),mas também em outros casos de violênciaprovocada por conflitos românticos,como os de homens que matavam asmulheres que os abandonaram ou os sedutoresde suas filhas ou irmãs. Emboraa ciência criminal européia do século XIXtivesse estabelecido que as mulhereseram quatro vezes mais propensas a teremum "temperamento passional" do queos homens, a grande maioria dos crimespassionais no Rio de Janeiro, segundo osespecialistas jurídicos, eram cometidospor homens. 19Besse mostra que a campanha da CBHScontra os crimes de paixão, dirigida inteiramentepor homens profissionais, juntousea uma onda de críticas à 'proliferaçãoextraordinária' destes crimes, e à impunidadede seus autores, iniciada uma décadaantes por homens e mulheres que escreviampara revistas femininas. lia ausência deestatísticas sobre estes crimes, é difícil determinarse eles realmente tinham aumentado,ou se, na verdade, a impunidade eratão generalizada como os críticos alegavam.Certamente, porém, tanto os crimes comoas absolvições de criminosos passionais'tornaram-se mais visíveis na década de1920, quando muitos os viam comoparadigmáticos de aberrações políticas ouculturais mais amplas. A República em siera culpabilizada por esta 'calamidade pública',que demonstrava o estado de selvageriano qual o Brasil decaíra.Muitas vezes, a crítica ao Estado era implícitaem artigos que inseriam as absolviçõesde criminosos passionais no contextoda corrupção e injustiça generalizadasno país. Em alguns casos, porém,escritores atacaram explicitamente a Repag.l72.JanA)ez1996


R V Opública, tanto por manter a legislação querestringia o espaço da mulher na vidapública como por ter destruído a tradicionalmoralidade brasileira. Comentáriosque ilustram de forma particularmentenítida a dimensão política dos crimespassionais encontram-se na Revista Feminina(1914-1927), a publicação para mulheresde mais ampla distribuição no país.Em uma matéria de 1920, por exemplo,que relatava um caso em que o réu deuvivas à República quando o júri o perdooude ter matado sua esposa, a autora o atacoucomo "a mais imoral e sem vergonhainstituição da nossa crapulice político-republicana".A "famigerada" República, aodestruir "a moral, a família, a energia, acoragem cívica, e todos os atributos quefazem o apanágio das raças fortes", teriapermitido que o assassinato de mulheresse tornasse uma "instituição nacional". 20O artigo concluiu com uma chamada àsmulheres para se defenderem através damobilização pública.Esta convocação à solidariedade femininana luta contra a imoralidade das instituiçõesrepublicanas, compatível com ocatolicismo declarado da Revista Feminina,era reiterada nas suas páginas. Enquantoa editora Virgínia de Souza incentivavaas mulheres a refinarem seucharme e seus dotes domésticos paraapaziguar o lar, seu filho, Cláudio de Souza,implorava a estas a fazerem sentir asua "força oculta" como preservadoras dafamília contra sua vitimização nas mãosde bárbaros assassinos e do corrupto sistemajudiciário. Usando o pseudônimo21de Ana Rita Malheiros, Souza escreveuuma série de artigos que atacaram os júrisde São Paulo e do Rio de Janeiro. Eleargumentou, por um lado, que os júrissempre absolviam assassinos de mulheresporque os homens formavam a opiniãopública e criavam a lei. Por outrolado, culpou a corrupção que permitia queos "profissionais competentes" escapassemdo serviço do júri, deixando este encargo"ao zé povo, ao rebotalho" — istoé, a homens que, pela sua ignorância ebaixo nível social, eram facilmentecorruptíveis. A solução estava nas mãos22das mulheres, que deviam unir-se paracombater as injustiças que as vitimizavam,utilizando a sua natural superioridademoral e seu domínio na família. Aintegração da mulher na coletividade,sobretudo através de campanhas para amoralização, seria essencial para a preservaçãoda civilização brasileira contraa barbárie de homens violentos e imorais.Ao longo da década de 1920, um pequenogrupo de mulheres de classe média emédia-alta respondeu a esta convocaçãoe às novas oportunidades de entrar navida pública. Algumas ingressaram emprofissões liberais e nas artes, e organizaçõesfeministas cresceram ao lado degrupos católicos e de caridade formadospor mulheres. Os objetivos das mulheresenvolvidas em campanhas de reformassociais eram diversos, mas poucas reivindicavama transformação radical das normasdo gênero ou da moral sexual. Ao23Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 165-202. Jan/dez 1996 - pag.173


A C Econtrário, muitas assumiam a responsabilidadepela preservação das "tradiçõesbrasileiras" de religiosidade e moralidade,o que garantia a elas uma posição elevadana família. Em oposição à noção "tradicional"de que a honra da família eraresguardada através do controle da sexualidadefeminina por parte dos homens,as mulheres ativistas tomaram para si estaresponsabilidade.Haviam grandes diferenças entre as mulheresque lutavam contra ameaças sociaiscomo o anti-clericalismo, obolchevismo ou o cinema moderno, e asque reivindicavam a igualdade na políticae no trabalho, lio entanto, a percepçãode que a corrupção e a violência masculinasas vitimizavam possibilitou a identificaçãofeminina ao redor do assunto decrimes de paixão — o que preocupava osjuristas do CBHS." Começando no inícioda década de 1920, pequenos grupos demulheres presenciaram alguns julgamentosno tribunal do júri no Rio de Janeiropara pressionar os jurados a condenar osassassinos de mulheres, ou, então, paraabsolver as que defenderam a própriahonra com violência. Um dos mais célebresdestes julgamentos foi a absolviçãode Silvia Serafim, que matou RobertoRodrigues em 1929 porque o jornal depropriedade de seu pai publicara umaescandalosa reportagem sobre seu supostoadultério. Dando publicidade a casos25de violência praticadas por mulheres, escritorascomo Chrysantheme advertiramque se os crimes contra as mulheres continuassema aumentar, o crescente ressentimentofeminino estouraria em umaonda de violência ainda maior. 26Como seria de se esperar, os juristas, particularmenteos promotores, se sentiamameaçados com o aparente aumento demulheres-assassinas e com a conclamaçãoà solidariedade feminina na defesa destascriminosas. Certamente, a preocupação dosjuristas não derivava apenas do desafio queeste apelo representava ao trabalho do MinistérioPúblico. O fato das mulheres assumiremuma identidade política independentetambém lhes incomodava, como é evidentena crítica ao feminismo feito porRoberto Lyra. Este, que se considerava defensordos direitos da mulher, repreendiaas feministas que lutavam pela igualdadena política e no trabalho. Para Lyra, as mulheresdeviam apelar para a "emancipação27relativa", e "nunca pela liberdade"; deviamestudar e trabalhar para preencher seu papelnatural de companheira e inspiradorados homens e para honrar "a concepçãobíblica da costela". A "independência" tomadapelas mulheres que foram para a rua28competir com os homens no períodoentreguerras, sem esta educação e este"ideal de família", lhes deixava sem condiçãode resistir às "tentações mundanas" deluxo e prazer, e só teriam "um caminho paraatender aos frêmitos da sensibilidadeprovocada: a perdição". Articulando uma29teoria da sexualidade feminina que guiavaa reconceitualização jurídica de honra e crimessexuais, Lyra explicou que, embora oinstinto sexual da mulher fosse naturalmenpag.174. Jan/dez 1996


R V Ote latente, a sua capacidade de raciocínio ea sua elevada impressionabilidade as deixavamvulneráveis aos estímulos corruptíveis.O perigo destes estímulos era particularmentegrave no Brasil, dada a "tendênciamimética tão nossa" de tudo que vemde fora e a entrada maciça de filmes e outrosmeios de comunicação estrangeiroscom imagens de uma modernidade moralmentequestionável. 30A apreensão de Lyra em relação às mulheresindependentes fica evidenciada nasua reprovação à atuação das defensorasde criminosas passionais. Em um caso deuma grávida que matou o pai de seu filho(aparentemente porque ele a abandonara),por exemplo, Lyra denunciou um grupode mulheres que a defendia pela faltade sentimento maternal, já que a assassinateria atuado sem pensar no destinodo seu filho, que nasceria na prisão se elanão fosse absolvida. 31A exemplo de Lyra, a maioria dos juristasque se uniram à Campanha contra os crimesde paixão procurava reverter a solidariedadee mobilização de mulheres quepropunham militantes católicos ou feministas,mesmo com fins diferentes. Osjuristas concordavam com estes militantesque a epidemia de crimes passionaisdemonstrava o retrocesso do país, masrefutaram o argumento de que este problemademonstrava a necessidade de seincrementar o poder político das mulheres.Pelo contrário, eles tendiam a ver oscrimes passionais e a violência contra amulher como evidência da necessidade desubstituir o poder da elite e suas tradiçõespatriarcais por um controle mais racionalda volátil massa popular, dentroda qual acontecia a maior parte destescrimes. Escrevendo para o público nagrande imprensa, ou, mais freqüentemente,para seus pares em revistasespecializadas, juristas e médicoslegistastomaram uma posição como parteda vanguarda intelectual da sociedade,que visava suprimir o instinto sexualda massa ignorante em função da sobrevivênciacoletiva.Grande parte dos estudos de juristas eoutros profissionais sobre os crimespassionais culpabilizaram a imprensa pelaintensificação da crise. A imprensa sensacionalista,alegavam, incitava a vulgaridadee excitabilidade do povo brasileiro,num artigo publicado em 1927, porexemplo, o promotor Cláudio de Mendonçasustentou que a neurose provocadorada proliferação de crimes "por amor" eraexacerbada por "escritores pouco escrupulosos",que se serviam da imprensa"para pregar abertamente idéiassubversivas...que infiltram, facilmente,nos cérebros pouco esclarecidos" e quepublicavam dramatizações ensangüentadasde crimes, com detalhes muitas vezessurgidos da imaginação do repórter. 32Em 1933, Mendonça organizou uma conferênciasobre sensacionalismo que juntouvários profissionais e intelectuais quecompartilhavam a sua preocupação como impacto nocivo do sensacionalismo. Mapublicação que surgiu desta conferênciaAcervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 165-202, jaiVdez 1996 - pag.175


A C E— uma coletânea que juntou trabalhosacadêmicos, discursos, programas de ráydio e artigos de jornais — os diversosautores distanciavam-se da 'massa popular',ao mesmo tempo que assumiam aresponsabilidade de educá-la e suprimirseu temperamento volátil. Os autores nãotocaram nos assuntos de conflitos de gêneronem de violência contra a mulher —mesmo tendo discutido crimes caracterizadospor estes assuntos. Em várias matérias,porém, 'a massa' foi descrita comcaracterísticas femininas — era dominadapela emoção, facilmente influenciável,e vulnerável à sedução e à degeneração— enquanto os intelectuais se apresentavamcomo homens racionais responsáveispelo controle social, na sua análise sobreo poder da imprensa, por exemplo, Mendonçaempregou uma linguagem implicitamentesexual: "O jornal...desce até opúblico, corteja-lhe as paixões... Mas cedendo-lhe...insensivelmenteo enfeia, osubjuga, o domina"." Citando estas observaçõesnum programa da Rádio Sociedade,Célio Loureiro explorou a metáforamais explicitamente. "Tendo em vista sera alma coletiva que domina as massas deum primitivismo verdadeiramente feminino",ele explicou, "e, assim, do mesmomodo como nós, outros homens, escravizamosas mulheres satisfazendo-lhes oscaprichos, o jornal domina o povo saciando-lheas paixões". 54 Igual às mulheres,"o povo" não raciocinava, mas imitava ocomportamento que observavam nos outros.Sem uma orientação moral adequada,o povo ameaçaria a civilização. Comoproclamou um dos conferencistas:nada é mais perigoso, nada é mais temível,que essa facilidade de julgamentosfalsos, de intoxicações ideativas, absurdase ignorantes da massa...ou melhor,do povo, que se crê soberano eindependente! Pelo seu psiquismo inferior,inculto, pelo entusiasmo fácil...éa verdadeira Besta Apocalíptica dostempos hodiernos, o perigo das estabilidadessociais... 55A solução da iminente crise social, paraestes homens públicos, seria a maior intervençãodeles mesmos na formação damoralidade coletiva. Como primeiro passo,intelectuais deviam se ocupar da censurada mídia, sobretudo da imprensa edo cinema. "Saneemos a imprensa e ocinema", concluiu o conferencista acimacitado, "e teremos saneado o mundo econtribuído com o nosso óbolo moral...para a higiene da alma dos povos e, sobretudo,para o povo brasileiro". Esta56censura, segundo outro autor, justificava-sepela atual crise moral, já que "anoção da liberdade nos dias de hoje, deveestar...subordinada a de bem social". 37Roberto Lyra, na sua contribuição à conferência,reiterou a tese de que o povonão possuía um "nível cultural" que lhepermitisse filtrar racionalmente as informaçõesdisseminadas pelos meios de comunicação.Ele recomendou, então, ocontrole de notícias do judiciário. Deviasesilenciar sobre as fugas, perdões, eabsolvições (ou seja, as evidências de fracassosdos promotores); no seu lugar,pag. 176. Jan/dez 1996


K V Odevia-se disseminar as denúncias, pronúncias,condenações e "julgamentos cujamatéria possa atuar como elementoeducativo". 38Embora houvesse grande consenso entreesta auto-proclamada elite intelectual quetinha a responsabilidade de 'libertar' a massapopular da degradação através da censura,ela não concordava quanto ao conteúdoda educação moral a ser disseminada.Alguns, como Mendonça, acreditavamque a educação devia ser "moldada noscostumes austeros de que tanto se orgulhavamos nossos antepassados". Outros,39incluindo médicos e pedagogos envolvidosno crescente movimento pela educação sexual,apontaram para os 'costumes austeros'da tradicional família patriarcal brasileiracomo, precisamente, a causa das paixõeshiper-estimuladas e a resultante degeneração.Lyra, seguindo esta linha, vinculouexplicitamente a repressão às estruturastradicionais de dominação política.Ironizando a teoria do "caldeirão de raças"celebratória, Lyra sustentou que a "subraça"brasileira "nasceu do cruzamento detrês elementos étnicos oprimidos porrecalcamentos seculares: o negro cativo...odegradado português, e o índio despropriado".*E, o que era pior, a proclamaçáoda República em 1890 não trouxe a li­0berdade e democracia, mas sim "a ditadura,o caudilhismo e a madeira." O legadomais pernicioso do passado, para Lyra, foia sua tradição oligárquica, na qual os casamentoseram estratégias políticas e econômicase o sexo e o prazer reprimidos sepervertiam nos prostíbulos e nosconcubinatos, quando não provocavam doençasmentais. Esta "tirania" familiar, sustentadapela religião e pela lei, produziu o"desequilíbrio psíquico" do "super-ego nacional".Lyra concluiu que o sensacionalismoda imprensa era "mera modalidade...desse consciente social, da libidocoletiva".*'As "tendências anti-sociais eperturbadoras", como a perversão e o sensacionalismo,teriam resultado da "imprudênciacom que foram governados os instintosagressivos e sexuais" através de séculosde repressão política.* 2O equilíbrio social não se daria atravésda simples eliminação da repressão patriarcale da liberação do desejo individual."O interesse e a vontade do indivíduo",para Lyra, "de nada valem diante dasconveniências gerais".* Dentre estas conveniênciasestavam os "casamentos sadi­3os e equilibrados, em que a razão se associeao sentimento".** Portanto, a educaçãoracional e a orientação das autoridadesjurídicas deveriam tomar o lugarda repressão patriarcal. O Estado tinha odever de desmanchar os romances "emnome da saúde, da disciplina, damoralidade", e deveria evitar o casamentodos "loucos de paixão". Ao impedir casamentosinconvenientes, o Estado defendia"a conservação da vida, o aperfeiçoamentoda espécie, a organização social,a civilização".* 5Lyra e seus colegas no CBHS, igualmente àgeração de juristas que trabalhavam no inícioda República, viam-se como osAcervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 165-202. janMez 1996 - pag.177


A C Eforjadores da nação, intentando elevar opovo brasileiro através da disseminação denormas sexuais 'civilizadas', ria sua análisesocial, informada por novas teorias psicanalíticas,a família continuava a representara base da ordem e disciplina, e as atividadesindependentes da mulher continuavama representar uma ameaça à sua integridade.Tanto a definição da moralidadecivilizada como os meios de alcançá-la, porém,eram questionados pelos proponentesda higiene social' nos anos de 1920.Ma época de Viveiros de Castro, os debatesentre os juristas continham-se dentrode um discurso de progresso humano linear.Neste discurso, a religião cristã tinhaum papel civilizador fundamental, eo progresso da civilização era marcadopelo crescimento do pudor e do respeitopela honra sexual feminina. No períodoentreguerras, muitos juristas nacionalistas,como Lyra e Afrânio Peixoto, seu ilustrecolaborador na luta pela higiene social,contestaram a antiga visão do progresso,como também da honra.anos de atuação como médico-legista,Peixoto argumentava que a evidência fisiológicaera uma maneira pobre de seavaliar a virgindade. Ele estava particularmenteinclinado a provar que o 'hímencomplacente' era muito mais comum doque se imaginava. Portanto, era insensatodefinir-se a virgindade pela ausênciaou ruptura da flor'.A campanha de Peixoto mostra o conteúdopolítico das batalhas para reformar osconceitos científicos obsoletos incutidosna lei republicana. Por volta de 1934,quando publicou seu ataque sobre ahimenolatria', Sexologia forense, muitosmédicos-legistas brasileiros já haviamAFRÂNIO PEIXOTO E A CAMPANHACONTRA A HIMENOLATRIAAluta de Afrânio Peixoto paraerradicar a 'himenolatria' foi.uma tentativa para proporcionaruma educação racional e uma orientaçãomoral à população, bem como umataque aos conceitos de honra, civilizaçãoe corpo feminino incorporados na leida República. Baseado em sua observaçãode 2.701 hímens, ao longo de oitoAfrânio Peixoto, década de 1920.Arquivo Nadonal.pag. 178. Jan/dez 1996


criticado não só o texto do código penalcomo também os praticantes — carentesde treinamento — da medicina legal, porespalharem noções errôneas sobre ascaracterísticas do hímen. Em 1905, SouzaLima já havia argumentado que o usodo termo deflorar' no código penal (artigo267), estava entre as mais graves aberraçõestécnicas.* Souza Lima também criticoumuitos peritos legistas por incluí­6rem informações irrelevantes, tais como'flacidez' dos seios e dos órgãos genitais,como evidência de atividade sexual. Atémesmo os juristas, como Viveiros de Castro,que apoiavam o emprego do termodeflorar', reconheciam que o crime poderiaocorrer sem a ruptura do hímen. Ainterpretação literal de Qaldino Siqueiraa respeito do defloramento era uma posiçãominoritária, a qual foi amplamentedesacreditada antes da cruzada antihimenolatriade Peixoto, na década de1920. Os exames de defloramento feitosno Instituto Médico Legal por volta dosanos de 1920 e de 1930 freqüentementeconstataram a observação de hímens"complacentes", que permitiam a cópulasem quebrarem — condição quase desconhecidanas décadas anteriores. A'flacidez', geralmente considerada emexames de defloramento na década de1910, foi eliminada do vocabulário médico-legista,pelo menos no Rio de Janeiro.O próprio Peixoto concluiu que a recentejurisprudência (1931-1932) dos crimessexuais marcou o "crepúsculo dahimenolatria".* 7Se, na época em que Peixoto escreveraSexologia forense, a questão esmorecia,por que, então, ele insistiu em sua campanhaanti-himenolatria? Peixoto lamentavaprofundamente as tragédias causadaspela ignorância do público em geralsobre o hímen, como as noivas que eramdevolvidas a suas famílias ou até assassinadasporque seus novos maridos haviamconsiderado um hímen complacente(o qual possibilitava uma penetração semsangramento) como ausência devirgindade.* lio entanto, a censura de Peixotocontra a himenolatria não era moti­8vada apenas pela preocupação de SouzaLima pela acuidade científica em técnicasde exame. Mais do que educar o povosobre a morfologia do hímen, Peixotoqueria demonstrar que a verificação fisiológicada honestidade era um absurdo.Embora Sexologia forense, assimcomo seu texto anterior. Medicina legal,fosse, ao longo de décadas, um guia profissional,citado por juristas como a fontede referência sobre o assunto, pode tambémser considerado uma sátira de conteúdopolítico. Peixoto ridicularizou nãosó a ignorância generalizada sobre amorfologia do hímen, como também afixação nacional no hímen e na idéia deque o respeito pela virgindade era ummarco de progresso e ordem social. Aomesmo tempo, ele atacava a Igreja católicae a base moral das tradições político-oligárquicasda nação.Assim como seus predecessores, Peixotoofereceu uma análise histórica da evoluçãoAcervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 165-202. jan/dez 1996 - pag. 179


A c F.dos costumes sexuais, mas suas conclusõesalteraram os dogmas anteriores. Citandouma lista de tabus de várias sociedadesantigas e contemporâneas, ele chegou àconclusão de que "a promiscuidade supostapor sociólogos e doutrinários não se encontrouem povo bárbaro algum: ela é, antes,moderna e civilizada". Se a promiscuidadeera moderna, a veneração ao hímen49era uma relíquia do passado antigo e primitivo.Peixoto concordava com os juristascatólicos como Quzmão e Viveiros de Castrode que a virgindade era fundamentalpara os valores da civilização cristã, mas discordavaque isso fosse um sinal de progresso,riais do que isso, ele justificou a "culturado hímen" no Brasil como o resultado datenacidade de idéias ignorantes sobre aanatomia feminina e a persistência de rituaisbrutais praticados pelos antigos romanos,judeus e "outros povos primitivos" queatribuíam ao hímen "o que a mulher, ou ahumanidade, tem de mais sagrado". 50Esta sublimação do hímen baseava-se naidéia errônea de que era "um selo {naturascelleta, segundo Cícero) que fechava(natura perclusa, segundo Plínio) otabernáculo' feminino". Embora a crençapopular ainda mantivesse a idéia de queo hímen formava um selo inquebrantável,e um especialista europeu tivesse afirmadoter observado um hímen desse tipo,Peixoto insistia na base da evidênciaempírica de que ele não existia. A Igrejacatólica, ao fazer do casamento "um sacramentoque repousa sobre a integridadedo hímen", perpetuava uma culturabaseada na ignorância. Essa cultura religiosatambém tinha como base o "prazercruel, sadismo erótico e perverso". "Obruto orgulho de primitivos" obrigava osmaridos a serem "os sangrentos iniciadores"e a desejar "a 'vangloria' animal deromper uma membrana, causar dor, derramarsangue". 51Após descrever a bárbara história da veneraçãodo hímen, Peixoto começou acontestar as teorias anteriores acerca dovalor atribuído ao hímen pelos "povosprimitivos". Ao dividir os povos do mundoem dois grupos — "himenólatras" e"misimenistas", ou povos que desprezavamo hímen — ele colocou povos "civilizados"e "primitivos" em ambos os grupos.Himenólatras contemporâneos englobavamos descendentes culturais dosromanos, os "novos latinos da Europa eda América", cuja veneração do hímen eraderivada da antiga exaltação religiosa eda exaltação da virgindade pelo Estado.Por outro lado, os misimenistas, inclusiveos asiáticos, hindus, nórdicos e anglosaxões,representavam "os primitivos, dosquatro cantos do mundo, que se irmanam,nesse desdém, aos povos mais civilizadosdo mundo atual". Peixoto previu que esta52fraternidade não duraria por muito tempo,pois tornava-se evidente que a civilizaçãomoderna estava renunciando ahimenolatria e adotando o desprezo pelohímen. "A honra vai mudar de residência,do baixo ventre para a alma". 55A exemplo de Lyra, Peixoto refutava a idéiade que a brutalidade natural da populapag.180. Jan/dez 1996


R V Oção brasileira estava, aos poucos, sendodomesticada pelos históricos esforços decivilização das elites dominantes da EuropaCentral. Ele responsabilizava os altosescalões da Igreja e do Estado porperpetuarem e disseminarem ahimenolatria através do catecismo e dalei. Além disso, embora as mulheres classificadascomo defloradas fossem, em suamaioria, integrantes da classe trabalhadora,os exemplos de Peixoto sobre a difamaçãode mulheres inocentes, devidoàs avaliações errôneas da virgindade pelosnovos maridos, envolviam casais declasse alta. Por último, Peixoto enfatizavaque os erros nos estudos médico-legaiseuropeus eram corrigidos, em larga escala,pela pesquisa brasileira.A despeito de sua defesa das mulheresvítimas da himenolatria e de seu ataquea tradições patriarcais, Peixoto, mais umavez como Lyra, menosprezava a liberaçãosexual da mulher. Ao contrário, ele preocupava-seem substituir os códigos dehonra derivados das noções de status aristocráticase antiliberais (que caracterizavamos sistemas patriarcais através doqual o poder era manejado na Velha República)com normas modernas do gêneroburguês (os valores da classe médiaaderidos pelos reformadores sociais quese associavam na luta para fazer tombaro velho regime). A virgindade permaneciacomo um sinal de honra, porém Peixotoprocurava substituir a exaltação da"virgindade material" pela "virgindademoral". Sua distinção entre os dois tiposde virgindade pode ser considerada umarejeição da virgindade como um símbolode status atribuído ou a idéia aristocráticade honra como precedência, em favorda virgindade como um status adquirido,ou a idéia burguesa de honra comovirtude. "Um código penal moderno",54Peixoto afirmou, "deve esquecer essasidolatrias pudendas e fundar o respeitohumano na dignidade de honestos costumese de hábitos decentes". Ao julgar a55pureza de uma mulher pela sua modéstia,sua formação familiar e seu 'nível cultural',a lei iria não só disciplinar a mulhercomo também proteger os homenscontra os" crescentes números de semivirgens'ou mulheres cujos 'hábitos liberais'as faziam desonestas, embora tivessempreservado a integridade de seushímens.Apesar de os juristas da virada do século,guiando-se pelos trabalhos de Viveiros deCastro, terem investigado a virtude moraldas mulheres em casos de crime sexual,eles o fizeram, primeiramente, comouma forma de determinar se poderiamacreditar nas declarações delas de queeram virgens anteriormente: suspeitavaseda virgindade, caso a moça tivesse tidoprecedentes morais duvidosos. O apelo dePeixoto para eliminar a ênfase legal sobreo que ele chamava virgindade materiale para convencer os juristas e a populaçãoem geral a enfocar a virgindademoral apontava para um novo desenvolvimentodo pensamento legal. A jurisprudênciaque orientou o código penal deAcervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 165-202. jarUdez 1996 - pag. 181


AC1940 estabelecia que o que á lei procuravapreservar ao proteger a virgindade nãoera simplesmente a abstinência sexualentre mulheres solteiras, mas a sua retidãomoral; o código penal protegia "amembrana com virtude". Esta orientaçãoajudou os juizes a adaptar a lei às "aquisiçõescientíficas" (por exemplo, o conhecimentoda morfologia do hímen) e ao"desenvolvimento social" dos temposmodernos. 56Os TEMPOS MODERNOS E AS VIRGENSIMPURASyra e Peixoto não eram, portanto,os únicos juristas que procu-L-e^í/ravam modernizar o Brasilerradicando o que consideravam conceitosretrógrados de honra sexual. Em meadosda década de 1920, os mais poderososjuizes concordavam que o velho códigopenal deveria ser adaptado para se ajustaraos tempos modernos'. A modernidade,no entanto, era uma meta extremamenteambígua para os reformadores.Embora procurassem substituir as basesaristocráticas que serviam de atributo dopoder com noções burguesas de méritopessoal, eles estavam preocupados comos desafios do pós-guerra às hierarquiassociais que sustentavam suas próprias posiçõesprivilegiadas.Esta ambigüidade era expressada atravésda diferenciação de gênero. Em algunscasos, modernidade tinha uma conotaçãode progresso social e econômico e de relaçõessexuais e familiares saudáveis eracionais, porém podia significar, também,degeneração moral, degradação dosvalores tradicionais da família e dissoluçãodos 'costumes'. Quando atribuída aohomem, a modernidade era geralmenteentendida em seu sentido positivo deracionalidade progressiva. Por outro lado,quando atribuída à mulher, amodernidade implicava em moral licenciosae estilo de vida desregrado.Observamos como este conceito demodernidade funcionou simbolicamentepara justificar a tutela das 'massas populares'femininas pelos machos intelectuais.Ele também serviu para justificar asubordinação da mulher ao homem. Deacordo com a Revista Criminal, um periódicode tendências direitistas que cobriaatividades policiais e o sistema dejustiça criminal, os "juizes modernos",como, por exemplo, José Duarte Gonçalvesda Rocha, Eurico Cruz e BarrosBarreto, eram aqueles que consideravam,em seus veredictos, "condições sóciomoraisatuais", nos casos de crime sexual.Baseavam-se na psicologia e na sociologiaao julgar a postura moral das vítimase dos réus, e determinavam que "amulher moderna" era moralmente suspeitae não merecia proteção legal, apesarda "virgindade material" anterior. 57Este conceito de modernidade aliava juristascomo Lyra e Peixoto, que se consideravamantitradicionalistas ferrenhos, aalguns dos mais conservadores juizes doRio, homens cuja rigidez em relação aocomportamento feminino adequado e ruminaçãoatávica sobre os valores tradipag.182, Jan/dez 1996


R V Ocionais da família superaram em muito anostalgia de Nelson Hungria. Maismarcante ainda era a atitude de hostilidadecontra as mulheres independentes,comum aos reformistas e tradicionalistas.Peixoto concluiu a Sexologia forenseelogiando julgamentos que passaram porCruz, Duarte, Barreto, Ary Franco eFirmino Whitaker, cujos veredictos garantirama impunidade aos homens pordeflorarem mulheres "acostumadas àsoltura". Em veredictos precedentes, essesjuizes discutiam sobre o fato de que58a inocência atribuída às virgens da viradado século era incompatível com a sociedademoderna. Conforme Duarte argumentava,"para as raparigas modernasnão há segredos, nem ingenuidades... Avida moderna com os seus exageros, osnoticiários escandalosos dos jornais, asrevistas livres, os Filmes amorais, as dançaslúbricas...o luxo e ostentação dashetairas, os adultérios, a prole natural",conheciam muito bem "o valor da virgindade,o objetivo da copulação e as conseqüênciasde uma união sexual não precedidade casamento, uma precipitaçãoindecorosa". A aquiescência sexual das59moças demonstrava não o abuso dos homensda inocência delas, mas a sua própriadepravação ou as suas cínicas maquinaçõespara forçar um homem ingênuoao casamento.No passado, os juizes acusaram algumasmulheres de usarem casos dedefloramento para obrigar os homens ase casarem com elas. Viveiros de Castro,por exemplo, identificou dois tipos demulheres em casos de defloramento:"aquelas que sofrem e aquelas queespeculam". As "semi-virgens" das décadasde 1920 e 1930 — mulheres moder­60nas e independentes que podiam jogarcom a virgindade ou perdê-la por um capricho— eram mais negligentes. SegundoPeixoto, o comportamento libertinooferecia a metade da virgindade e a outrametade vinha fácil: "num dia de maisentusiasmo, dança ou álcool, ou, premeditadamente,para a reclamação policiale judiciária, que vale, às vezes, o casamento,vão-além, entram as 'Butantans'nos últimos 50% e deixam de ser semivirgens...".' Da mesma forma, o jurista6CA. Lúcio Bittencourt, criticando uma decisãoda corte de apelações dp DistritoFederal por sua "himenolatria retrógradae arcaica", declarou que, nos tempos modernos,as mulheres eram negligentescom sua virgindade porque "pensam todas... que a 'polícia', a lei, 'obriga' o sedutora casar-se e, entregando-se, Ficarãomais garantidas. ... É um meio indiretode 'amarrar' o namorado indeciso". 62As garotas modernas foram culpadas nãosó pela astúcia e outros conhecimentosindecorosos que os seus ambientes ofereciam,mas também por atividades queas livravam da disciplina da família. Umjuiz, citando Cruz e Duarte, explicou, emuma sentença de 1929, que "a mulhermaior de 16 anos, que freqüenta as salasmal iluminadas dos cinemas, os bailespúblicos tomando parte nas danças mo-Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n" 1-2. p. 165-202, jan/dez 1996 - pag. 185


A C Epregada pelas feministas contemporâneaspara desafiar a subordinação da mulher— passaram a ser utilizadas de formaalternativa para significar a corrupçãoe promiscuidade das mulheres que se expunhama Filmes imorais, livros e salõesde dança. A mulher independente desconheciaos limites espacial e moral da família,renunciando a sua inocência e ingenuidadeem troca do conhecimento eda experiência disponíveis em lugarespúblicos de lazer. Como oposição à dissoluçãoda família', os juizes estabeleceram,através de jurisprudência, o conceitode que as mulheres emancipadas', aindaque não fossem prostitutas, não erampuras nem inocentes e não deveriam serconsideradas virgens.A palavra emancipação' tinha um outro significado,aparentemente menos tendencioso:a idade de maioridade legal ou idadeadulta. Homens e mulheres eram totalmente'emancipados' da tutela dos pais aos 21anos, embora as mulheres renunciassem aessa emancipação legal no ato do casamento.Juristas das décadas de 1920 e 1930davam continuidade ao debate anterior, ouseja, se a mulher que ainda não era legalmenteemancipada para outros tipos de responsabilidadesdeveria ser responsável pelapreservação de sua honra sexual. Lutandopara estabelecer uma idade na qual as moçasestariam aptas a relações sexuaisconsensuais, alguns juizes continuaram aenfatizar os critérios Fisiológicos. Argumentavamque a idade máxima para vítimaspotenciais de estupro contra as quais a vio-dernas, que faz excursões em automóvel,desacompanhada de pai, mãe, tutor ouresponsável pela sua guarda, leva umavida livre de mulher moderna". Os pais63que permitiam que suas Filhas tivessem"uma vida desorganizada que levam forado santuário do lar", não mereciam proteçãolegal em casos de crime sexual. Aliberdade, concluiu o juiz, citando umslogan' antifeminista contemporâneo,"passa da liberdade à licenciosidade" e fezda mulher moderna "responsável e novavítima ... pelos delitos ocorridos duranteas novas fases de sua atividade". Nesta64sentença, assim como em muitas outras,a modernidade para a mulher tornou-sesinônimo de independência e liberdadeque a levavam, segundo observação deRoberto Lyra em outro contexto, "para ocaminho da perdição".A associação da liberdade da mulher coma desonra sexual não era totalmente nova.A frase "mulher livre", empregada comoalternativa de "mulher pública", significavaprostituta, no uso popular ou jurídico,no Final do século XIX. Isto era uma ironia,pois muitos senhores obrigavam asescravas à prostituição, antes da aboliçãode 1888, e a importação de prostitutasestrangeiras era conhecida como "comérciobranco de escravas". No entanto, o63que antes havia sido uma associaçãoeufemística tornou-se explícita e oficial naliteratura jurídica dos anos de 1920,quando não era mais limitada à prostituição.'Emancipação', 'liberação' e 'independência'— precisamente a linguagem empag.184,jan/dez 1996


R V Olência deve ser 'presumida' ou 'fictícia' (15anos, no código penal de 1890) deveria serreduzida, pelo menos, àquela idade queconsta nos códigos penais europeus (de 12a 15 anos), pois as meninas em climas tropicaisatingem a maturidade física maiscedo do que na Europa.Mo entanto, o argumento mais prementepara a redução das idades legais de consensoera o de que os tempos modernosfaziam com que as meninas atingissemum amadurecimento psicológico maiscedo do que as meninas de gerações anteriores.De acordo com esse ponto devista, a idade máxima para vítimas potenciaistanto para violência presumida (15anos) como para defloramento (21 anos)deveria ser reduzida, porque as meninasmodernas, "precoces na ciência dos mistériossexuais", perdiam a sua ingenuidadee ficavam aptas a assumirem responsabilidadepor sua própria virgindade bemantes de chegarem à idade de maioridadelegal. Depois que a Constituição de661934 diminuiu para 18 anos a idade deresponsabilidade civil e criminal, ficouainda mais ilógico, como o ministro daJustiça Campos salientou em 1940, presumira "imaturidade psicológica" dasmulheres com menos de 21 anos. 67O conceito de emancipação como maturidadeestava claramente interligado como conceito de que a mulher livre ou experienteera moralmente suspeita. Este fatoera apenas insinuado pelo argumento deque a imoralidade dos tempos modernosfazia com que as meninas crescessemmais rápido do que a geração inocenteque as precedeu. Era, portanto, tema dosdebates jurídicos se a prática sexual comuma menor 'já corrompida' deveria ser ounão punida pela lei. Em objeção ao princípiode que a lei deveria proteger asmeninas que fossem muito imaturas, físicae emocionalmente, para relações sexuaisconsensuais, a jurisprudência dasdécadas de 1920 e 1930 firmemente estabeleceuque a violência fictícia não seaplicava a prostitutas, as quais eram, nessesentido, consideradas 'emancipadas',independente da idade. Ao se discutir quetipo de comportamento constituía uma'mulher prostituta', provou-se, nesses casos,que as meninas julgadas imoraiseram sempre consideradas livres da proteçãodo tribunal. A linguagem que osjuristas empregavam para descrever asvirgens e não-virgens também tinha umaconotação de que a maturidade e a independênciaeram incompatíveis com a virtudedo sexo. Embora a expressão 'mulhervirgem' constasse do texto da lei,raramente aparecia na literatura jurídica.Ao contrário, quando descreviam uma virgemos juristas geralmente a chamavamde menina (moça, moça virgem oudonzela). Por outro lado, o termo meninadeflorada' não parecia sequer existir;uma vez deflorada, a menina tornava-semulher (mulher deflorada ou mulherdesvirginada).A desaprovação dos juristas acerca daemancipação ou liberação da mulher revelavaa ansiedade deles sobre a rejeiçãoAcervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2, p. 165-202, jarVdez 1996 - pag.185


A C Esividade. Possível será que indivíduosdo sexo feminino, após vários congressossexuais, instigados pela lascívia,assumam, no ato de realizarem o coito,mas sempre excepcionalmente, gestose atitudes só peculiares à desembaraçadae ingênita afoiteza do macho;o que, porém, não se admite é que amulher, já no primeiro coito, renegue apassividade normal do seu mesmosexo, — o frágil —, ... tanto mais quantona primeira união sexual, mais de sofrimentoque de gozo é a partilha quelhe toca. 69É óbvio que a crença de que as mulheresmereciam sofrer durante o seu primeiroencontro sexual e de que eram naturalmentepassivas não era recente. Entretanto,juristas como Cruz não eram os únicosa se sentirem compelidos a defenderesta crença na década de 1920. Enquantoa disseminação do trabalho de Freudconduzia a uma ampla aceitação da idéiade que as mulheres normais possuíam libido,muitos estudiosos legais e médicosprocuravam evidências científicas paraapoiar a sua convicção de que mulheressexualmente assertivas eram uma aberração.O eminente especialista em medicinalegal, Oscar freire, por exemplo,publicou um estudo da "insensibilidadedos órgãos genitais femininos", cujas conclusõessobre a passividade sexual damulher coincidiam com o veredicto deCruz, do mesmo ano. Em 1930, o psicólogoJ. P. Porto Carrero expôs uma teo­70ria similar, ao argumentar que o desejodas mulheres da tutela e dependênciapatriarcal perpetuadas por essas ideologiassexuais. Para muitos, os receios deViveiros de Castro de que as idéias modernasde emancipação pudessem tornara mulher indigna da estima e do respeitodo homem realmente aconteceram. Asmulheres modernas não só trabalhavamfora de casa, como também obscureciamos limites das identidades sociais, pervertendoa feminilidade ao se misturaremcom prostitutas em lugares públicos delazer e ao exigirem igualdade com os homens.Assim como na Europa e nos EstadosUnidos, existia uma grande preocupaçãonas cidades brasileiras de que amoda e os hábitos do pós-guerra criassemum ser andrógeno, ou 'mulher-homem',que desafiaria a base mais importantee aparentemente natural da diferenciaçãosocial. *6Esta preocupação foi esclarecida pelo juizEurico Cruz naquilo que foi, sem sombrade dúvida, o veredicto mais famoso de suaépoca sobre defloramento. Justificando aabsolvição do réu, em um processo de1926, Cruz sustentava a posição de que amulher moderna se despojava de sua própriavirgindade moral, a partir do momentoem que se tornava igual ao homem einvertia o seu papel sexual natural, "riaconjunção carnal de indivíduos de sexosdiferentes", explicava Cruz,a mulher, normalmente, é, dos dois seresque se unem de maneira tão íntima,aquele ao qual a própria naturezatraçou feição toda impregnada de paspag.186.jan/ôez 1996


K V Ode "emancipação" da mulher "não eranada mais do que inveja do pênis":Se observarmos a atitude psíquica dossexos, veremos que ela não é diversada atitude física dos mesmos no atoamoroso. A mulher é o ser que espera,que a princípio se esquiva, ou resiste,que por fim se entrega, se abre, suportaa agressão; o homem é o ser queprocura, que excita, que penetra, queagride... Ela entrega-se, é 'possuída';ele busca e 'possui'. '7Entretanto, as mulheres que Cruz encontravano tribunal desafiavam este fatomédico, de forma que estimulava a suaimaginação. A ofendida no processo de1926, por exemplo, atestava que foradeflorada enquanto permanecia de pé emfrente ao seu namorado que estavasentado. Numa recriação dramática,72Cruz a descreveudominando a cena, assumindo — no atoem que deveria estar pejada de vergonhae acometida de dor física e moral— a atividade, o arremesso, e o macho,em atitude passiva, sentado, tendo-asobre seu corpo... Sem recatos, semnegaças, sem recusas, mas insolitamente,destemerosa, furiosamentedominadora, que virgindade era estaque por si mesma se desvirginava?Cruz respondeu à sua própria perguntacom uma crítica sem nexo às mulheresindependentes, à mistura social e ao retrocessoà selvageria primitiva. Emboranão houvesse evidência de que o casal emquestão freqüentava salões públicos dedança ou cabaré, e que sua relação sexualocorrera na sala de estar da mulher,Cruz culpou a imoralidade e a lascívia dadança moderna e do lazer hetero-socialpor possibilitarem "o ambiente de que segerou o caso de agora", no qual "os sexosse defrontam...como de igual paraigual". Ele usou o caso como prova de queo código penal estava obsoleto em relaçãoà virgindade. "Outra era a virgindade",concluiu ele, "há quase quarentaanos, estendia o código penal o manto desua proteção, porque naqueles tempos deantanho, era diverso o rigor das mães e atanto não se atrevia o desempenho dasjovens". Se para os juristas da virada do73século a inocência e a pureza como marcasda virgindade fossem "dogmaslegais", as mulheres modernas denegriramo gênero feminino, produzindo o que74antes era a inconcebível "virgem impura"(uma frase de efeito utilizada pelos advogadosde defesa), a medida que confundiamas normas do gênero e os papéissexuais.Cruz, Duarte e outros juizes conservadoresse juntaram na cruzada de Peixotopara banir o crime de defloramento, nãoporque concordavam com Peixoto quantoao fato de que a veneração da virgindadeera uma barbárie, mas sim porque acreditavamque as mulheres modernas nãomereciam proteção legal de sua honra. Alei deveria proteger apenas aquela jovemcuja inocência e ingenuidade a levassema acreditar em promessas de casamentoAcervo. Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 165-202, jan/dez 1996 - pag. 187


A c Ee a cometer atos que não podia compreendermuito bem. O homem, por outrolado, deveria ser liberadp de qualquerresponsabilidade por suas relações commulheres liberadas e experientes que,com total consciência das conseqüênciasde seus atos, planejavam o seudefloramento para forçar o homem adesposá-las ou, pior ainda, se rendiam "àforça dos próprios desejos recalcados edia a dia cada vez mais exacerbados". 75rio ambiente moderno, pronunciou Cruz,"não há mais a quem seduzir, nem porque seduzir, nem para que seduzir". 76A PROMESSA DE CASAMENTO OU A ARTEDE DOM JUAN: O POLÊMICO SIGNIFICADODE SEDUÇÃO^ m 1936, dez anos apos a cele-~ b r e sentença de Eurico Cruz, umoutro juiz do Distrito federal(cujo nome não consta na publicação dasentença de apelação) deu um veredictosimilar contra uma menina moderna e ousada.Antonieta Gomes acusou o seu namorado,fligialdo Gerson Lírio, de seduzi-laatravés de promessas de casamento.O juiz, achando a promessa insuficientemente"solene", absolveu o réu deacordo com os seguintes fundamentos:fora...do caso de promessa séria, decompromisso indubitável, a presunçãoque se deve tirar do fato é a de que,desde que se trata de pessoas normais,a mulher cedeu aos impulsos de seuinstinto; a sua sensualidade aceitandotodo o risco inerente ao sacrifício de suavirgindade."Embora fosse desfavorável à reclamação deGomes, o juiz expressou uma atitude novae extremamente mais benevolente em relaçãoà sexualidade da mulher do que a queexistia na jurisprudência anterior. Enquantona virada do século negava-se que asmulheres possuíssem desejos sexuais e quejuizes como Cruz, na década de 1920, rotulassema sexualidade feminina como umaaberração, este veredicto de 1936 descreviaa sensualidade feminina como um impulsoinstintivo de "pessoa normal". O juiz,porém, defendeu o precedente de que amulher que se rende a esse instinto só podeculpar a si mesma, e a sua honra não deveser protegida pela lei. Ele baseou o seu veredictode acordo com a definição expostapelo estudioso legal italiano, francescoCarrara: a sedução era uma pública e solenepromessa de casamento.Logo, esse veredicto não era totalmentenovo. A promessa de casamento como oprimeiro fator que incriminava o ato dedefloramento havia sido um sólido princípiolegal no Brasil bem antes da décadade 1920. Embora não constasse docódigo penal de 1890, os estudos e a jurisprudêncialegais da virada do séculoeram virtualmente unânimes em definir asedução e o engano — elementosconstitutivos do crime de defloramento —como uma promessa de casamento. Nãoadotavam, entretanto, os critérios dosmagistrados italianos, que determinavamque a promessa fosse pública e formal.Ao contrário, eles partilhavam da opiniãode Viveiros de Castro de que publicidadepag. 188. Jan/dez 1996


R V OUNION ''POSTAi.-UKIVCRSEtltECartolina po- ai* CARTE POSTALEBithet* po. tal í.e: 'tezo-l«p Po«U«r«i Pr larttTarjeta postalBrieflnartPai lie ri/m.tâ la tsr


A C Ee testemunhas não eram necessárias. 78Ao elaborar sobre este ponto em seu clássicotrabalho sobre os crtmes contra ahonra da mulher. Viveiros de Castro descreveuum caso hipotético de "verdadeirasedução criminal": um rapaz, tendocortejado uma moça por algum tempo, aencontra em casa sozinha. Após uma ardentedeclaração de amor eterno, ele,solenemente, vigorosamente, jura quequer casar com ela, e assim ele é capazde iludi-la. Esta foi precisamente a históriade defloramento de Gomes, em 1936,utilizada pelo juiz como evidência de queela não havia sido seduzida.Restaurando o conceito da sedução comouma promessa pública e notória de casamento,o veredicto acima citado obviamentenão foi inspirado pelos magistradosbrasileiros anteriores. Ao contrário,isso fez parte de uma nova escola de pensamentoconduzida pelos juizes contemporâneosVirgílio de Sá Pereira, Evaristode Morais, Mario Bulhões Pedreira, CA.Lúcio Bittencourt e Alcântara Machado.Igualando o defloramento à usurpaçáo decontrato, esses homens insistiam no fatode que uma promessa de casamento "públicae notória" deveria ser o único e indispensávelelemento de sedução criminal.Esta definição de sedução como umapromessa quebrada de casamento eratambém adotada em duas propostas sucessivas,a de Sá Pereira (1933) e a deAlcântara Machado (1938), que formavama base do código penal finalmente adotadaem 1940. 79A despeito do renome desses juristas, oconceito de que uma mulher podia justificar-sepor fazer sexo se ela estivesseoficial e publicamente noiva permaneceuem uma posição minoritária. A definiçãode sedução provocada esquentou os debatesna Conferência de Criminologia Brasileira,onde a proposta de Sá Pereira foirejeitada e a promessa de casamento foieliminada da proposta de Alcântara Machadopelo comitê de revisão judicial queproduziu o documento final de 1940. 80Essa revisão, aplaudida por muitos juristas,era uma resposta aos progressos najurisprudência e nos estudos legais dosúltimos vinte anos. Vários juristas tinhamatacado a idéia de que uma promessa decasamento em si justificava a aquiescênciasexual de uma mulher pois, como ojuiz Perdigão Nogueira argumentou, "admitir-sea sedução, só porque havia noivado,é admitir-se o 'direito' dos noivos àantecipação do congresso carnal". De81fato, a jurisprudência brasileira legitimou,embora de forma não intencional, a amplaprática de relações sexuais e coabitaçãopré-conjugais que a Igreja católicatentou reprimir (embora esta tentativa nãotenha sido muito incisiva) durante séculos.Isso não era considerado como umproblema, ou pelo menos não havia sidodenunciado até o final dos anos de 1930.Um argumento citado com maior freqüência,contra a limitação das vítimas potenciaisde defloramento às moças formalmenteprometidas, foi o de que a necessidadede contestar a "dissolução dos cospag.190.jan/dez 1996


R V Otumes" contemporâneos exigia que a leiexpandisse e não reduzisse a proteção davirtude feminina. Conforme declarou ojuiz José Mesquita, em oposição à propostade Sá Pereira, de 1933, "as condiçõessociais de hoje, a liberdade crescentede costumes ... não requer restrições,mas sim uma amplitude ainda maior parao conceito de sedução". A lei não deveriarebaixar seus princípios para se ajus­82tar a uma sociedade depravada, mas simampliar o conceito de crimes sexuais paraproteger as mulheres dos perigos queessa depravaçáo representava para suahonra.O argumento para uma compreensãoampla de sedução, solidamenteestabelecida na jurisprudência do DistritoFederal, no final da década de 1930,correspondia à aceitação crescente dacrítica técnica, anteriormente pouco observada,a respeito da interpretação comumde sedução como uma promessa decasamento. Em 1923, Siqueira ressaltouque a sedução não poderia ter a fraude"como o seu fundamento indispensável",(um dogma, segundo Carrara), pois issosignificaria uma redundância ilógica na leibrasileira, inaceitável para os juristas preocupadoscom a "boa hermenêutica". Se83a fraude era entendida como promessa decasamento, então, o significado de seduçãodeveria ser outro.Siqueira, rejeitando a distinção que Viveirosde Castro fazia entre os significadosjurídico e 'vulgar' de sedução, insistia nofato de que, tanto a boa hermenêuticacomo a tradição legal brasileira exigiamque a sedução fosse entendida em sua"acepção vulgar". Sedução era o "empregode meios tendentes a influir sobre avontade da menor, dispondo-a a cederunicamente para servir e ser agradável aosedutor. Isso poderia incluir o pedido, ablandícia, o influxo desnorteante de outramais exigente sexualidade". Embora84o desejo sexual fosse latente em mulhereshonestas, os homens poderiam empregara sua inteligência superior parainfluenciar as mulheres mais sentimentaise impressionáveis por natureza, incitandonelas "desejos similares aos dohomem". A definição de Siqueira foi85introduzida na jurisprudência numa decisãoda Corte de Apelação de 1925, e apareciacom uma grande freqüência durantea década seguinte. Esta tendência86jurisprudencial foi citada pelas cortes deapelação que reverteram a absolvição deEligialdo Gerson Lírio, em 1936. Censurandoo veredicto original, porque "desatendeuaos ensinamentos da jurisprudênciarelativa a conceituação da sedução",os magistrados seguiram essas diretrizes:O que... está assentado nas decisõesmais recentes das Câmaras Criminaisda Corte de Apelação é que a seduçãoque se requer para influir no ânimo damenor, resolvendo-a a ceder, não é...consistente numa promessa de casamentorevestida das solenidades... massim a sedução vulgar e genérica, é qualquersedução capaz de iludir a mulhervirgem e fazê-la aceitar o concúbito. 87Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2, p. 165-202. jan/dez 1996-pag.l91


A C EEsta nova interpretação de sedução foiclaramente influenciada não apenas pelointeresse de Siqueira pela boahermenêutica. Ao final dos anos de 1930,a jurisprudência sustentava a visão de queos juizes deviam adaptar-se aos temposatuais, não pela negação do direito dedefesa da honra às moças modernas, masampliando a definição deles sobre sedução.Os juizes foram impelidos a se apoiaremna "intuição sociológica e psicológica",a fim de integrar os conceitos modernos dasexualidade feminina e contrapor os tiposde perigo enfrentados pelas moças modernas.A oposição de Nelson Hungria àredução do limite de idade para vítimasde defloramento ilustra esta tendência.Ele argumentou que a lei protegia mulheresentre 16 e 21 anos "não...em razãode sua suposta imaturidade psíquica,mas porque, antes de tudo, nessa fase devivacidade dos sentidos, de inquietude doinstinto sexual, ela pode tornar-se frágilpresa de sedutores. Trata-se de especiaiscondições fisiológicas, independentes damaior ou menor plenitude do desenvolvimentopsíquico". Conforme argumentou88o juiz Waldemar Coutts, em 1934, a sociedademoderna "satura os homens e asmulheres com sexualismo [sic]", e o homemcontemporâneo via em cada ato,palavra ou olhar de uma mulher um conviteao ato sexual. Em virtude disso, foinecessário definir a sedução de uma formaque protegesse o frágil sexo femininodesta saturação sexual. Em 1935, com89base na interpretação de Siqueira, Hungriadescreveu a definição de sedução admitidaentre os seus contemporâneos:É o aliciamento da frágil vontade damulher por obra exclusiva da sugestão.É a súplica perseverante, é a blandíciaenvolvente, é o reiterado protesto deamor, a frase madrigalesca. a linguagemquente do desejo insatisfeito, acarícia persuasiva, o prelúdio excitantedos beijos, os contatos gradativamenteindiscretos. Numa palavra: é a refinadaarte de Dom Juan. 90Hungria aceitava a idéia de que até asmulheres honestas possuíam um instintosexual, o qual, despertado por um sedutorexperiente, poderia induzi-las a servira ele sexualmente. Assim como osjuizes menos solidários a esta idéia, queconsideravam as mulheres que demonstravamuma sexualidade ativa não merecedorasde proteção legal, Hungria temiaque o despertar sexual feminino fora docasamento resultasse em sua degradaçãoe representasse uma ameaça àmoralidade pública. No entanto, em vezde marginalizar essas mulheres, ele lutavapor uma intervenção judicial mais efetiva.A falha na punição dos sedutores quesouberam "atiçar o instinto sexual", argumentavaHungria, "é incentivar a práticados crimes contra a honestidade das famílias,é favorecer indiretamente a prostituição,é incrementar esse sobro de luxúriaque parece vir subvertendo, na atualidade,as mais preciosas e adoráveis virtudesda mulher". 91pag. 192. Jan/dez 1996


R V OA REAVALIAÇÃO DA VIRGINDADE: O DIQUEDE CONTENÇÃO MORALOs juristas tinham dificuldadepara definir a virgindade e ocomportamento feminino honesto'e continuavam a debater se a leideveria defender um padrão mínimo deética' de sociedade civilizada ou a'moralidade média' da população brasileira.Menhum deles, porém, jamais duvidouque a virgindade perdida reduziadrasticamente as chances de uma mulhersolteira de se casar e ter uma vida familiardecente e que a mulher solteira e sexualmenteativa ameaçava a ordem social.A justificativa da intervenção jurídicapara proteger a virgindade tomava porbase essas suposições. A lei estava maispreocupada com a missão reprodutiva emoralizadora da mulher do que com seusdireitos individuais. De acordo com uma92decisão de apelação de 1921, a lei puniao defloramento porque "estorva a finalidadesocial [da mulher] na família legal emoralmente constituída" e a levava àprostituição. Da mesma forma, inúmerosestudos legais e médicos sobre a pros­93tituição debatiam pela maior acusaçãodos defloradores, considerados como a"profilaxia social" para a prevenção daprostituição.Assim, os juristas justificavam a sua intervençãonos domínios da moralidade,através de crimes sexuais condenadoscomo ofensas contra as maiores instituiçõessociais e não como assaltos físicoscontra o indivíduo. Conforme já foi discutidoanteriormente, o código penal de1890 defendia a 'honra da família' processandoas ofensas sexuais, nos anos de1930, quando os juristas tacharam a honrada família' como um símbolo do poderantiliberal oligárquico, eles recomendavamsubstitui-lo pela idéia de 'costumessociais' ou costumes'. Segundo Hungria,ao explicar o novo código, a lei criminalnão protegia os direitos do cidadão perse, mas sim porque e quando eles coincidemcom o interesse público e social. 94De acordo com o ponto de vista que prevaleciano código penal de 1940, a proteçãoda virgindade feminina era feita emnome do interesse público. Muitos juristasencontraram uma nova linguagempara justificar a constante intervençãojurídica nos domínios da moralidade. Porexemplo, a idéia de que a perda da virgindadefora do casamento levava à prostituiçãoera freqüentemente explicadacomo um processo psicológico natural:uma vez que a sexualidade latente dasmulheres fosse despertada, caso não fossesublimada através dos afazeres maternaise de esposa, as mulheres seguiriamo seu impulso sexual básico para entregar-sea atividades cada vez mais depravadas,nos casos de "sedução vulgar", osquais não envolviam uma promessa decasamento, um sedutor destruía o pudorfeminino, ou a repulsa natural da imoralidadeque protegiam as mulheres honestase o "amor civilizado". Uma vez reduzidaessa proteção, a mulher se tornava95ainda mais promíscua.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9, n" 1-2. p. 165-202. jan/dez 1996- pag.193


A C EAssim, enquanto um hímen intacto nãoera um símbolo verídico de pureza, sefosse rompido fora do casamento significavao ingresso para a corrupção moral.Ao explicar como as novas teorias poderiam,ao mesmo tempo, rejeitar a veneraçãoda "virgindade material" e aindaestabelecer a sua proteção legal no códigopenal de 1940, o perito legista HélioGomes argumentou que, embora fossepossível que uma mulher solteira com ohímen rompido fosse digna, isso era umaexceção. "A preservação da integridadehimenal", dizia Gomes, "coincide com apreservação de sentimentos morais e dapureza do corpo. A integridade himenal éum poderoso dique de contenção moral.Quando a membrana se rompe fora docasamento, a observação mostra, cadadia, que a rotura física é talvez o primeirosintoma de uma rotura moral, que daípor diante se alarga até os descaminhossociais". 96Segundo várias autoridades médicas elegais, os valores culturais reforçavameste processo natural. Até mesmo os juristasque, citando Peixoto, criticavam essesvalores, concordavam que fazer prevaleceras atitudes sociais exigia que a leicontinuasse a proteger a virgindade feminina.De acordo com muitas autoridades,as famílias (em particular, os pais)sempre colocavam as filhas defloradaspara fora de casa. Assim, como nenhumhomem se casaria com uma mulher que"já está estragada" por um sedutor, elanão tinha nenhuma saída senão obordel. Portanto, seja por razões naturaisou culturais, a virgindade perdida97transformava as mulheres de anjos do lar'em seres independentes, liberados e corruptosque causavam a depravação sociale que, ao espalhar a doença venérea, causavamtambém a degeneração física dasfuturas gerações do Brasil.JuíZES MODERNOS E A ' FUNÇÃO TUTELAR'DA LEIApesar do esquema de tendênciasdistintas em julgar a honrasexual, vários precedentesnovos se tornaram axiomáticos nos discursosjurídicos sobre a honra sexual nasdécadas de 1920 e 1930, os quais, emmuitos casos, se opunham ao texto e aoespírito do código penal. Em resposta aosavanços técnicos na medicina legal, bemcomo aos costumes sociais que mudavam,os juizes subjugavam a virgindade material'à 'virgindade moral'. A sedução eraentendida tanto como uma promessa decasamento como em seu 'sentido vulgar',exigindo que os juizes fizessem uma sondagemainda mais profunda na históriapessoal e na psique da vítima.Os juristas estavam cada vez mais inclinadosa asseverar a função normativa da lei,ou, conforme as palavras de NelsonHungria, a sua "função tutelar de disciplinasocial", e sua própria autoridade para moldara lei à sociedade contemporânea atravésde interpretações casuísticas em julgamentosindividuais. Isto foi esmiuçado em98uma contundente sentença de defloramentode 1937: "Se a lei é desumana, deve o juizpag. 194. Jan/dez 1998


R V Ointerpretá-la diminuindo o rígido rigor dasfórmulas e entendendo-a de acordo com odesenvolvimento social. O juiz moderno nãoé mais ... um autômato preso às regras processuais;uma simples máquina de registrarsentenças e tresandar textos cegamenteobedecidos". 99Em conseqüência desses debates, os juristasestabeleceram uma ampla gama denovos precedentes para julgar a honestidadefeminina em casos de crime sexual.Por um lado, a diversidade de tipos femininosque encontraram em seus tribunaise nas ruas os obrigaram a ampliar os limitesdas categorias legais de mulherespara além da velha dicotomia prostituta/mãe. Por outro, os precedentes legais quesuportavam ou condenavam uma amplagama de comportamento feminino deramaos juristas, principalmente aos juizes,um poder de interpretação ainda maiorao julgar. Ma prática, conscientes ou inconscientes,eles continuariam a usar opoder para definir a honra individual comouma forma de intervir em lutas maioresacerca do papel das instituições do Estadopara definir o bem-estar social e defenderas tradições brasileiras.Agradeço a generosa ajuda de MariaFernanda Baptista Bicalho, KeilaGrinberg e Elizabeth Martins na revisãoda tradução deste texto. A segundametade do texto foi traduzida doinglês por Ivone Carvalho.M O T A S1. CASTRO, Francisco Viveiros de. Os delitos contra a honra da mulher, 2a. ed. Rio deJaneiro: Freitas Bastos, 1932, p. 21.2. HUNGRIA, Nelson. "Crimes sexuais". In: Revista Forense , 70, abr. 1937, pp. 216-227, esp. p. 220.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 165-202. Jan/dez 1996 - pag. 195


A C E3. HUNGRIA, Nelson, op.cit., p. 220.4. Idem, ibidem. '5. HERZFELD, Michael. 'Semantic slippage and moral fali: the rhetoric of chastity inrural Greece". In: Journal of Modem Qreek Studies, 1, 1983, pp. 161-172.6. HERZFELD, Michael, op.cit., p. 161.7. Título VII e título VI, respectivamente. SIQUEIRA, Galdino. Código penal brasileiro.Rio de Janeiro: Livraria Jacinto R. dos Santos, 1941, pp. 315-326.8. O código de 1940 passou a punir tanto o marido quanto a mulher pelo adultério, oqual anteriormente era crime só se praticado pela esposa. A pena foi reduzida dramaticamente,de um a quatro anos para 15 dias a seis meses. SIQUEIRA, Galdino,op.cit., p. 322.9. O novo código eliminou a possibilidade de recorrer à "completa privação dos sentidos",condição que eliminava a responsabilidade criminal conforme o artigo 27, par.4, do código de 1890. O artigo 24 do novo código estipula que "não excluem aresponsabilidade: I — a emoção ou a paixão", mesmo que estes sentimentos pudessemjustificar a redução da sentença para homicídio (artigo 121). SEVERIANO. Códigopenal. Rio de Janeiro: Livraria Jacinto R. dos Santos, 1923, pp. 57-62; SIQUEIRA,Galdino, op.cit., pp. 243, 277-278. Apesar das intenções dos seus autores, esta leinão foi eficaz em eliminar a impunidade dos 'criminosos passionais'. Após 1940, osadvogados inventaram a 'legítima defesa da honra' para justificar os assassinatospassionais. Para uma discussão da evolução desta defesa, ver CORRÊA, Mariza. Oscrimes da paixão. São Paulo: Brasiliensc, 1981, pp. 22-26.10. SIQUEIRA, Galdino, op.cit., pp. 315-318.11. Para uma discussão da tensão entre as doutrinas positivistas e clássicas no direitopenal brasileiro, ver FRY, Peter. "Direito positivo versus direito clássico: apsicologização do crime no pensamento de Heitor Carrilho". In: FIGUEIRA, Sérvulo.Cultura da psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1985; FRY, Peter e CARRARA, Sérgio."As vicissitudes do liberalismo no direito penal brasileiro". In: Revista brasileira deciências sociais, 2/1, 1986; RIBEIRO, Carlos Antônio Costa. "Clássicos e positivistasno moderno direito penal brasileiro: uma interpretação sociológica". In: Uma invençãodo Brasil moderno: medicina, educação e engenharia nos anos de 1920-1930.Herschman, Michael e Carlos Alberto Messeder Pereira (eds.). Rio de Janeiro: Rocco,1994, pp. 130-146.12. HUNGRIA, Nelson, op.cit., p. 217.13. Por uma análise das idéias do sexo livre e o desafio à família burguesa entre ospag. 196. jan/dez 1996


R V Ointelectuais, ver RAQO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar,Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.14. LYRA, Roberto. Frutos verdes. Rio de Janeiro: Brasileira Lux, 1925, p. 17.15. HUMQRIA, Melson. "Comentários ao código penal". Rio de Janeiro: Revista Forense,1947, pp. 256-257.16. LYRA, Roberto, tlovo direito penal, vol. I. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972, p. 110.17. BESSE, Susan. "Crimes of passion: the campaign against wife killing in Brazil, 1910-1940". In: Journal of Social tiistory, 22/4, summer 1989, pp. 653-666.18. COMMIFF, Michael. Urban politics in Brazil: the rise of populism, 1925-1945.Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1981.19. PEIXOTO, Afrânio. "Prefácio". In: LYRA, Roberto. O amor e a responsibilidade criminal.São Paulo: Saraiva õt Companhia, 1932, p. 11.20. PEREIRA, Carolina. "Os assassinos de mulheres". In: Revista Feminina, Vil/70, mar.1920.21. BESSE, Susan. Restructuring patriarchy. Chapei Hill: Duke University Press, 1996.Para uma análise mais ampla da imprensa feminina' desde o seu início no Final doséculo XIX, ver BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O belo sexo: imprensa e identidadefeminina no Rio de Janeiro em Fins do século XIX e início do século XX. UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, 1988. Tese de mestrado.22. MALHEIROS, Ana Rita. "Junho". In: Revista Feminina, VII/73, jun. 1920.23. Ver BESSE, Susan. Restructuring patriarchy, para uma ampla discussão de grupos'feministas' e 'femininos' no período, em São Paulo e no Rio de Janeiro.24. Ver especialmente LYRA, Roberto. "As matadoras dos homens". Ver também CORRÊA,Mariza, op.cit., pp. 50-51.25. Ruy Castro conta este episódio com detalhes na biografia de Melson Rodrigues, irmãode Roberto. Ver O anjo pornográfico: a vida de Melson Rodrigues. São Paulo:Companhia das Letras, 1992.26. VASCOMCELOS, Cecília Bandeira de Melo Rebelo de (pseud. Chrysantheme). Minhaterra e sua gente. Rio de Janeiro, 1929, pp. 22-29, citado em BESSE, Susan. "Crimesof passion", p. 654.27. LYRA, Roberto. "As matadoras dos homens".28. LYRA, Roberto. Frutos verdes, p. 33.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 165-202. jan/tle/ 1996 - pag.197


A C E29. Idem, ibidem, p. 32.30. Idem, ibidem, p. 17.31. LYRA, Roberto. Polícia e justiça para o amor! Rio de Janeiro: S. A. A. Noite, 1939, p. 38.32. MENDONÇA, Cláudio de. "Os crimes passionais: a sua repetição entre nós — algumasdas suas causas". In: Revista Criminal. 1/9, nov. 1927.33. Citado em LOUREIRO, Célio. "Conferência na Radio Sociedad". In: Sensacionalismo,ed. Cláudio Sussekind de Mendonça. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil,1933, p. 133.34. LOUREIRO, Célio, op.cit, p. 133.35. REBELLO, Fernando Castro. "Conferência". In: Sensacionalismo, p. 173.36. Idem, ibidem, p. 175.37. LOUREIRO, Célio, op.cit., p. 136.38. LYRA, Roberto. "Psicanálise do sensacionalismo". In: Sensacionalismo, p. 40.39. MENDONÇA, Cláudio de, op.cit.40. LYRA, Roberto. "Psicanálise do sensacionalismo", p. 27.41. Idem, ibidem, p. 28.42. Idem, ibidem, p. 29.43. LYRA, Roberto. Polícia e justiça para o amor!, p. 27.44. Idem, ibidem, p. 32.45. Idem, ibidem, pp. 27-28.46. PEIXOTO, Afrânio. Sexologia forense. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1934; LIMA,Augustino J. de Souza. Tratado de medicina legal, 5a. ed. Rio de Janeiro: FreitasBastos, 1933, pp. 513-581. A primeira edição é de 1905.47. PEIXOTO, Afrânio. Sexologia forense, p. 140.48. Os exemplos que Peixoto escolheu para ilustrar estas tragédias, incluindo um casoda Bahia dc mais de cinqüenta anos antes, sugere que estas cenas dramáticas nãofossem muito freqüentes. PEIXOTO, Afrânio. Sexologia forense, pp. 95-96.49. Idem, ibidem, p. 30.50. Idem, ibidem, p. 55.51. Idem, ibidem.pag. 196, jan/dez 1996


R V O52. Idem, ibidem, p. 123.53. Idem, ibidem, p. 140.54. A tensão entre estes dois sistemas de honra é descrita por PITT-RIVERS, Julian."Honor". In: International Encyclopedia of the Social Sciences, vol. VI, 1968, pp.503-511.55. PEIXOTO, Afrânio. Sexologia forense, p. 140.56. SIQUEIRA, Qaldino, op.cit, p. 12 e NOGUEIRA, Anderson Perdigão. "Jurisprudência— defloramento". In: Revista de direito penal, XVI, 1937, pp. 206-225, esp. p. 223.57. QAMEIRO, Mario. "O crime de sedução na exegese de quatro juizes modernos". In:Revista Criminal, 8/3, dez. 1934, pp. 689-690. A partir de 191 1, os crimes sexuaiseram julgados por juizes de direito, não mais pelo júri.58. PEIXOTO, Afrânio. Sexologia forense, p. 131.59. Citado em QAMEIRO, Mario, op. cit., p. 690 e HUNQRIA, Melson. "Crimes sexuais". In:Revista forense, 70, abr. 1937, pp. 216-227, esp. p: 221.60. CASTRO, Francisco Viveiros de, op. cit., p. 25.61. PEIXOTO, Afrânio. Sexologia forense, p. 131.62. BITTENCOURT, C. A. Lúcio. "Comentário". In: Revista de direito penal, XII, 1936, pp.105-114, esp. p. 113.63. FLEURY, Aldovando. "Doutrina: defloramento". In: Revista dos tribunais, 69, 1929,pp. 441-443, esp. p. 443.64. Idem, ibidem, p. 443.65. Sobre a prostituição forçada das escravas, ver QRAHAM, Sandra Lauderdale. "Slavery'simpasse: slave prostitutes, small-time mistresses, and the brazilian law of 1871". In:Comparative studies in society and history, 33/4, oct. 1991, pp. 669-694; SOARES,Luis Carlos. Rameiras, ilhoas, cocotes, polacas e bagaxas: a prostituição no Rio deJaneiro do século XIX. São Paulo: Ática, 1992; e ENGELS, Magali, Meretrizes e doutores.Para o comércio de escravas brancas, ver RAQO, Margareth. Os prazeres da noite:prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo, 1890-1930. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1991, parte IV; QUY, Donna. Sex and danger in Buenos Aires:prostitution, family and nation in Argentina. Lincoln Sr London: University of NebraskaPress, 1991, ch. I. O romance de Esther Largman, Jovens polacas (Rio de Janeiro:Rosa dos Tempos, 1993), trata das 'escravas brancas'judias no Rio de Janeiro.66. Citado em MEDEIROS, Darcy Campos de e MOREIRA, Aroldo. Do crime de sedução.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 165-202. Jan/dez 1996 - pag.199


A C ERio de Janeiro: Freitas Bastos, 1967, p. 90. Ver também QAMEIRO, Mario, op. cit.67. CAMPOS, ministro Francisco. "Exposição de motivos". In: SIQUEIRA, Qaldino, op. cit.,pp. 146-236, esp. p. 222.68. Mulher-homem' era o termo usado para ridicularizar as modas masculinizadas dasmulheres modernas dos anos de 1920, como também para denominar as mulheresque se disfarçavam de homens, das quais haviam várias reportagens na imprensadas primeiras décadas do século XX. Ver CAUFIELD, Sueann. "Getting into trouble:dishonest women, modem girls, and women-men in the conceptual language of vidapolicial, 1925-1927". In: Signs, 19/1, fali 1993, pp. 146-176; RAQO, Margareth, Osprazeres da noite, pp. 15-16.69. CRUZ, Eurico. "Sentença do juiz da 2a vara criminal, de 8 de setembro de 1926". In:PIRAQIBE, Vicente. Dicionário de jurisprudência penal do Brasil. Rio de Janeiro:Freitas Bastos, 1938, pp. 234-235. Esta sentença, que segundo Hungria logo setornou famosa, é constantemente citada por advogado e juizes em processos criminaisdos anos de 1930, como também em diversos trabalhos jurídicos sobre o assunto.Ver, por exemplo, PEIXOTO, Afrânio, Sexologia forense, p. 132; HUNGRIA,Nelson, "Crimes sexuais," p. 221; MEDEIROS, Darcy Campos e MOREIRA, Aroldo, op.cit., pp. 52-53.70. FREIRE, Oscar. "Órgãos genitais femininos — sua insensibilidade: influência nos atossexuais". In: Exames e pareceres médico-legais. São Paulo: Saraiva, 1926, p. 43.71. CARRERO, J. P. Porto. "Sexo e cultura". In: Arquivos brasileiros de higiene mental, 5,maio, 1930, pp. 157-166, esp. p. 157.72. Outros juizes também viam as posições não-convencionais para o primeiro coito'como evidência da corrupção da moça. Ver PIRAQIBE, Vicente, op. cit., p. 236; NO­GUEIRA, Anderson Perdigão, op. cit., p. 221.73. CRUZ, Eurico, op. cit., p. 234.74. CASTRO, Francisco Viveiros de, op. cit., p. 105.75. "Alegações finais pelo réu" pelos advogados Francisco de Lasses Manheiros e Mariode Andrade Neves Meireles num processo de defloramento. Arquivo Nacional, SPJ,caixa 10.869, n. 59 (1932).76. CRUZ, Eurico, op. cit., p. 235.77. BITTENCOURT, C. A. Lúcio, op. cit., pp. 103-114, esp. p. 103 (Acórdão da la. Câmarada Corte de Apelação do Distrito Federal).pag.200,Jan/ctez 1996


R V O78. CASTRO, Francisco Viveiros de, op. cit., p. 78.79. PEREIRA, Virgílio de Sá; MORAIS, Evaristo de; e PEDREIRA, Mario Bulhões. Projeto docódigo criminal. Rio de Janeiro: Imprensa Macional, 1933, p. 66; POMTES, Ribeiro.Código penal brasileiro comentado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 341.80. POMTES, Ribeiro, op. cit., p. 341.81. MOQUEIRA, Anderson Perdigão. "Doutrina: defloramento". In: Revista de direito, 123,1937, p. 52.82. Citado em POMTES, Ribeiro, op. cit., p. 341.83. Citado em CARVALHO, Francisco Pereira de Bulhões. "Conceito de estupro e de sedução".In: Revista de direito penal, IV, 1934, pp. 230-31.84. SIQUEIRA, Qaldino. Direito penal brasileiro, p. 449.85. Idem, ibidem, p. 450.86. Várias sentenças da Corte de Apelação do Distrito Federal que empregaram esta definiçãosão citadas em CARVALHO, Francisco Pereira de Bulhões, op. cit., pp. 228-232.87. BITTENCOURT, C. A. Lúcio, op. cit., p. 105.88. HUNQRIA, Nelson, "Crimes sexuais", p. 219.89. PONTES, Ribeiro, op. cit., p. 327.90. HUNQRIA, Nelson. "Em torno de um parecer". In: Reuisía de crítica judiciária, XXI/2-3,1935, pp. 81-84, esp. p. 82.91. Idem, ibidem, p. 83.92. Ver PENA, Maria Valéria Junho. Mulheres e trabalhadoras: presença feminina na constituiçãodo sistema fabril. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, pp. 150-169.93. PIRAQIBE, Vicente, op. cit., p. 229.94. HUNQRIA, Nelson. "Em torno do anteprojeto". In: Reu/sta forense, 77, 1940, p. 423,citado em MÉDICI FILHO, Atugasmin. "O crime de sedução no novo código penal". In:Revista dos tribunais, 134, 1941, pp. 399-413, esp. p. 412.95. HUNQRIA, Nelson. Comentários ao código penal, p. 80.96. GOMES, Hélio. Medicina legal, vol. II, 5a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 623.97. QOMES, Hélio. "O problema da prostituição sob o ponto de vista sanitário e jurídico".Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 165-202. Jan/dez 1996 - pag.201


In: Anais da Primeira Conferência nacional de Defesa contra a Sífilis. Rio de Janeiro:Imprensa Nacional, Í941, pp. 423-435, esp. p. 427; MORAIS, Manoel Odorico de."Estado atual da prostituição no Rio de Janeiro". In: A folha médica, 23/13, jul. 1943,pp. 148-152, esp. p. 148.98. MÉDICI FILHO, Atugasmin, op. cit, p. 401.99. NOGUEIRA, Anderson Perdigão. "Defloramento — acórdão e sentença". In: Revistade direito penal, XVI, 1937, pp. 207-226, esp. p. 223.A B S T R A C TThe article focusses the discourse and debate of two generations of jurists on the polemicmeanings of virginity, seduction, hounor and honesty. As a consequence, it is shown howthe judiciary, mainly by means of the criminal codes, used to Find a way for warrantingcontinuing intevention into the domain of morality.R É S U M ÉCet article décrit le discours et le débat entre deux générations de juristes sur lessignifications polemiques de virginité, seduction, honneur et honnêteté. II montre donccommet le pouvoir judiciaire, surtout à travers les codes pénaux, trouvait une manièrede justifier sa constante intervention dans les domaines de Ia morale.


Beatriz Moreira MonteiroArquivista e Chefe da Seção de Documentos Privados do Arquivo nacional.Da pnsâo cor-de-rosa aosarquivos % fontes dociimentaissotre a miillier no Arquivo• NacionalAs possibilidades de seresgatar em fontes primáriasinformaçõespara o estudo da atuação femininana sociedade brasileira são infinitas.Este artigo é uma tentativade apontar ao leitor algumas delas, umroteiro preliminar, restrito à documentaçãoescrita do Arquivo Macional, que nãopretende esgotar e nem realizar um estudocrítico sobre o assunto.Durante décadas a mulher, por atitudesindividuais ou movimentos organizados,conseguiu assegurar, pouco a pouco, odireito de eleger ou ser eleita, trabalharfora, ter uma carreira, ter a educação desejada.Mas, ao se falar em direito da mulher,imediatamente se associa esta idéiaà discriminação sexual e ao quese considera o seu eterno inimigo,o homem. "O adversário da(y**** mulher não é o homem, mas a!sociedade como um todo, ondeela foi culturalmente oprimida,I**" silenciada".' A história dessa opressãopode ser recuperada até pela pequenaproporção em que as mulheres aparecemcomo agentes nos documentos, principalmentenos acervos mais antigos.Optou-se, entretanto, por privilegiar asfontes para o estudo da atuação femininaem épocas mais recentes, notadamenteaqueles conjuntos em que as informaçõespor quantidade, repetição e até qualidadesão mais constantes.O levantamento das fontes primáriasAcervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 203-224. Jan/dez 1996 - pag.203


A C Eateve-se à documentação textual, de origemprivada ou pública, que se encontrasob a custódia da Coordenação de DocumentosEscritos (CDE) desta Instituição,à exceção das fotografias integrantes dofundo Federação Brasileira para o ProgressoFeminino, sob responsabilidade daCoordenação de Documentos Audiovisuais.A seleção dos fundos e dos documentosdentro destes teve como base assuntosconcernentes ao universo femininoe que sempre foram objetos de reivindicaçõese estudos, tais como planejamentofamiliar (incluindo casamento, divórcio,contracepção, saúde da mulher eda criança), trabalho, educação e participaçãopolítica. Tais questões não são estanques,estão interligadas entre si, porémserão abordadas em separado.As fontes serão apresentadas agrupadaspelos temas já citados, conforme os fundosaos quais pertençam. Os acervos encontram-seem diversas fases de tratamentotécnico, alguns somente identificados,outros parcialmente ou totalmenteorganizados. Os instrumentos de pesquisaque lhes permitem o acesso refletemo estágio de organização.OS PRINCIPAIS FUNDOS DOCUMENTAISPARA A TEMÁTICAOs fundos privados reunidos nos acervosda Federação Brasileira para o ProgressoFeminino — FBPF, Campanha da Mulherpela Democracia — CAMDE e Comba MarquesPorto (militante feminista) são osmais representativos da participação políticada mulher na sociedade brasileira.Trata-se de fundos organizados, em bomestado de conservação, que possuem instrumentosde pesquisa e abordam todosos temas já mencionados.A Federação Brasileira para o ProgressoFeminino — FBPF (código QO) foi fundadaem agosto de 1922, por Berta MariaJúlia Lutz, no Rio de Janeiro, com o objetivode elevar o nível cultural da mulher etorná-la mais eficiente à atividade social.Seu acervo é constituído por documentossobre diversos eventos feministasocorridos no Brasil e no exterior, como acampanha sufragista e a Constituinte de1932, entre outros, compreendendo osanos de 1902 a 1979.Comba Marques Porto (código TJ) nasceuno Rio de Janeiro, é advogada, participouativamente da Constituinte de 1986. Seuarquivo é formado por documentos relativosà entidades feministas, atuação damulher na sociedade e Constituinte de1986, abrangendo o período de 1945 a1989.A Campanha da Mulher pela Democracia— CAMDE (código PE) foi criada em 1962por Leovigildo Balestieri, padre Franciscode Ipanema, Qlycon de Paiva e o generalQolbery do Couto e Silva. Organizada,custeada e orientada pelo Instituto dePesquisas e Estudos Sociais — IPÊS, tinhacomo principal objetivo a oposiçãoao comunismo. Seu arquivo é compostopor recortes de jornais e panfletos sobrevários temas, além de relatórios da entidadedo período de 1961 a 1971.pag.204. jan/dez 1996


R V OHá ainda outros fundos com documentaçãorelativa à mulher, que demonstramsua condição na sociedade, e que serãodestacados no decorrer do artigo.PLANEJAMENTO FAMILIARAté muito recentemente a mulhernão podia opinar na formaçãode sua família. Os casamentos,no tocante às classes privilegiadas,eram acertados sem a participaçãoda noiva, lias camadas mais pobres,geralmente, optava-se pelo concubinato.O desejo ou não de ter filhos, e em quequantidade, assim como a manutenção docasamento, sempre estiveram atrelados àvontade do marido e à religião.Mo fundo Marquês de Barbacena, 2 a correspondênciado titular com d. Pedro I arespeito das negociações do segundo ca-samento do imperador com alguma nobreeuropéia, muito dificultada, entreoutras razões, pela fama de péssimo maridodo candidato, demonstra o quanto amulher era tratada como mercadoria nocasamento. Uma carta do imperador aomarquês descreve suas exigências de bomberço, educação, beleza e virtude. Dadasas dificuldades, as condições foram reduzidasa duas: beleza e virtude.[...] E porque a distância é muito grandee eu desejo acelerar o quanto forpossível o meu casamento, convém quevos habilite com instruções mais amplas« positivamente minhas. O meudesejo e grande fim é obter uma princesa,quer por seu nascimento, formosura,virtude e instrução, que venha fazerminha felicidade e a do Império,quando não seja possível reunir as qua-Casal, segunda metade do século XIX. Arquivo Nadonal.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 203-22*. Jan/dez 1996 - pag.205


A C Etro condições, podereis admitir algumadiminuição no primeiro e quarto,contanto que a segunda e terceira sejamconstantes [...]. (código Ql, códice607, vol. 4).Na discussão a respeito do código civil,realizada em 1975, os fundos da Federaçãoe de Comba Marques Porto secomplementam. Através dos anteprojetosde Berta Lutz pela FBPF e do Centro daMulher Brasileira, observa-se as propostasde entidades feministas de geraçõesdiferentes em relação ao artigo do códigocivil a seguir:Art. 1.603. A direção da sociedade conjugaicabe ao marido, que a exercerácom a colaboração da mulher, sempreno interesse do casal e dos filhos.Parágrafo único. As questões essenciaisserão decididas em comum. Havendodivergência, prevalecerá a vontadedo marido, ressalvada à mulher a faculdadede recorrer ao juiz, desde que nãose trate de matéria personalíssima.A proposta e comentários de Berta Lutzforam:[...] Art. 1.603. Aos cônjuges competedirigir conjuntamente a sociedade conjugaino interesse do casal e dos filhos.Parágrafo único. Em caso de divergênciagrave óu sobre assunto essencial,haverá recurso ao juiz por um ou porambos os cônjuges [...] A exposição aodireito de família diz (p. 354) que a 'absolutaigualdade bem cedo gera umimpasse que indesviavelmente leva, àmíngua de qualquer outra solução, aodesquite'. Raciocínio absurdo. Acresceque no momento atual, em que a própriaOrganização das nações Unidasproclama a igualdade de direitos dohomem e da mulher, o ponto de vistado anteprojeto se torna anacrônico.(Q0,cx. 83, p.5).O Centro da Mulher Brasileira quanto aomesmo artigo afirma:(...) Art. 1.603. A direção da sociedadeconjugai caberá a ambos os cônjuges,que a exercerão sempre no interesse docasal e dos filhos.Parágrafo único. Havendo divergênciaprevalecerá a decisão judicial, cabendoa qualquer dos cônjuges a faculdadede recorrer ao juiz, desde que nãose trate de matéria personalíssima [...].(TJ, 9.1.6).Bastante preocupado com a dificuldade dese mapear os casamentos realizados noregistro civil, e com a preferência dos casaisde viverem em concubinato, MarioAugusto Teixeira de Freitas propõe formasde incentivo ao casamento oFiciali-3zado e de seu controle estatístico, comodenotam seus anteprojetos de medidaslegais na década de 1940.Casamento, divórcio e aborto são temasmuito recorrentes nos fundos judiciários.Nas pretorias cíveis* encontram-se livrostalõesde nascimento, casamento e óbitos.Nas varas cíveis processos de divórcio,ao passo que morte por aborto,5ocultação de feto, infanticídio são objepag.206.jan/dez 1998


R V Otos de inquéritos policiais e processos dasvaras e pretorias criminais. Contratos6pré-nupciais e de casamentos são freqüentesnos ofícios de notas e nos registrode imóveis."7Serve de exemplo um inquérito policialrealizado pela 11 pretoria do Rio de Janeiro,em julho de 1898, em que MariaaJosé Cavalcanti (29 anos, alfabetizada),casada há 14 anos com José Maurício deMatos, acusa o marido de poligamia, alegandoque o mesmo casou-se sob nomefalso com a menor Alzira. lio inquérito ficaprovado que o acusado não casou-se novamente,mas convivia com a menor, situaçãoconsentida pela sua mãe, visto queAlzira não era mais virgem. (T8 0003).Ainda sobre aborto, divórcio, proteção àmaternidade e à infância artigos e estudossão uma constante nos fundos CombaMarques Porto, Comissão de EstudosConstitucionais e decreto-leis. 9 10TRABALHOA maior parte das atividades de trabalhoda mulher na América Latina, querse orientem para o mercado, quer parao consumo familiar, são exercidas nocontexto doméstico, o que impede quesejam reconhecidas como produtivas,tanto pelas mulheres que as desempenhamquanto pelas agências e pesquisadoresque coletam dados sobre a forçade trabalho."A invisibilidade do trabalho feminino, noBrasil, é mais do que conhecida, sendono entanto possível, através das fontesprimárias, reconhecer as tentativas e osOperárias trabalhando no beneficiamento da cera de carnaúba. Pamaíba, Plaui, 1942.Arquivo Nadonal.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 203-224, jan/dez 1996 - pag.207


A C EAssembléia Nacional Constituinte de 1932a questão sempre foi relevante.Na série Educação (código IE3) destacam-sedois requerimentos de mulheres,16datados de 1909, solicitando matrícula eexame nos cursos de obstetrícia e farmáciada Faculdade de Medicina da Bahia (IE759).A correspondência (1935-1940) entre MárioAugusto Teixeira de Freitas (pasta 39)e a deputada Francisca Rodrigues, responsávelpelo projeto Bandeira Paulista de Alfabetização,mostra a preocupação destaparlamentar com a educação popular e oensino rural, projeto elogiado por BertaLutz, como se vê em um recorte de jornaldo fundo da Federação. Ainda no fundoMário Augusto, o titular elaborou um estudochamado Formação do Homem Brasileiro(1948), que é voltado para a formaçãodo trabalhador e do cidadão, nãofazendo restrição ao sexo feminino.As reivindicações do professorado, categoriaprofissional predominantemente femininae que durante anos foi a únicaaceita socialmente, sempre foram motivosde mobilização, como ressaltam osexemplos a seguir:Reivindicações do magistério primáriooficial.Os professores públicos primários doDistrito Federal e demais serventuáriostécnicos do Departamento de Educação,pelas suas associações de classe, solidáriosnas suas reivindicações que têmpleiteado, resolveram, após sessão conjunta,apresentar a V. Exa. uma síntesedas aspirações que vêm defendendo perantea esclarecida administração atual:1- Melhoria de vencimentos [...].... 11- Que se restabeleça a antiga divisãodos distritos escolares, atendendoseporém a uma distribuição de escolasmais eqüitativa [...]. (Q0, cx. 77, p.5-1935).Item IV — Carreiras apropriadas ao sexofeminino — novas oportunidades de trabalhopara o sexo feminino ...Foi também devida à Liga para Emancipaçãoda Mulher a apresentação aosrepresentantes das faculdades e escolassuperiores do Rio de Janeiro, reunidospara estabelecer as bases da novaUniversidade, da proposta em virtudeda qual todos os cargos administrativose do corpo docente, sem exceçãodo de reitor da Universidade, estão franqueadosaos dois sexos em absolutaigualdade de condições. Esta emendafoi aprovada por 62 dos 64 membrospresentes, atestando o espírito liberaldos intelectuais patrícios. Este ano tivemosa satisfação de ver nomeada aprimeira livre-docente em virtude danossa iniciativa.Itens abordados — educação e instruçãofemininas, assistência à mãe e à infância,legislação do trabalho, novasoportunidades de trabalho para mulher,direitos civis, direitos políticos, relaçõesinternacionais e paz, cooperação, orgapag.210.Jan/dez 1996


Vonizaçáo e questões de interesse público.(Relatório da FBPF, 1922 a 1924).PARTICIPAÇÃO POLÍTICASegundo Millôr Fernandes "O melhormovimento feminino ainda éo dos quadris". A visão do femininocomo objeto sexual, como esposa emãe, é uma imagem difícil de destruir. "Asociedade colonial, latifundiária eescravocrata configurou uma estruturasocial rigidamente diferenciada, de umlado a mulher branca, membro dominadoda classe dominante, do outro a escrava,a mulher negra, indígena ou mestiçaexplorada como braço escravo e comoobjeto sexual". Até o início do século XX17a situação feminina pouco se diferenciavado já exposto, sendo raras as notíciasda participação política da mulher na sociedade,como a de Mísia Floresta e deLeolinda Figueiredo Daltro, esta últimauma das fundadoras do Partido RepublicanoFeminista, em 1910.Somente com a industrialização e a PrimeiraQuerra Mundial as mulheres tiveramoportunidade de sair da prisão cor-de-rosa— seu lar — e dar os primeiros passos nomercado de trabalho, até então restrito àssalas de aula. Foi neste ambiente mais propício,por volta de 1918, que Berta Lutz,militante feminista histórica, dá, em umaentrevista concedida à Revista da Semana,seu primeiro passo de incentivo à participaçãopolítica da mulher, embora com apreocupação de resguardar a família e seupapel de esposa e mãe.lio ano seguinte, Berta e mais cinco sóciasfundam a Liga para a Emancipação Intelectualda Mulher. A participação comorepresentante brasileira na ConferênciaPan-Americana da Liga de Mulheres Eleitorasdos Estados Unidos incentiva Bertaa fundar a Federação Brasileira para oProgresso Feminino, com objetivos deproteger a mãe e a infância, obter garantiaslegislativas e proteção para o trabalhofeminino, orientar a escolha de umaproFissão, estimular o espírito de sociabilidadee de cooperação entre as mulherese assegurar seus direitos políticos. Aentidade tinha uma estrutura rígida, comuma diretoria formada por mulheres declasses sociais mais altas e com formaçãointelectual.A grande bandeira da Federação foi omovimento sufragista que, sintonizado aomovimento internacional, conseguiu em1932, através do decreto n° 21.076. de24.2.1932, o direito ao voto feminino. AConferência pelo Progresso Feminino(1922), com a presença da militante feministaamericana Carrie Chapman Catt,presidente da Aliança Internacional peloSufrágio Feminino e da Associação Pan-Americana de Mulheres, foi o primeiroevento realizado pela Federação, com tesesvoltadas para a educação, trabalho eassistência à mãe e à infância. Todas asteses apresentadas e os debates realizadosencontram-se no fundo da Federação(QO, caixa 2). A Conferência teve repercussãona imprensa e chamou a atençãopara o movimento feminista, no períodoAcervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 203-224, jaiVdez 1996 - pag.211


A C Eentre o final da década de 1910 e o inícioda de 1930, o movimento feminista estápraticamente voltado para o direito políticode voto. A documentação da Federação ériquíssima para ilustrar este período.Com a promulgação do código eleitoralde 1932, Berta Lutz e Matércia Silveira(dissidente da Federação) participam daComissão Organizadora do AnteprojetoConstitucional. Berta cria a Liga EleitoralIndependente com o objetivo de incentivara participação da mulher no processoeleitoral. Candidata em maio de 1932,não obtém o número de votos suficiente.Volta a candidatar-se em outubro de 1934,pelo Partido Autonomista, quando é eleitasuplente, assumindo a vaga do deputadoCândido Pessoa em 1936, após amorte deste último.Entre os vários panfletos da candidata,serve de exemplo o documento abaixo de1933 ou 1934:Homens e mulheresl Votem em BertaLutz porque há quinze anos ela vemlutando desinteressadamente pela defesada mulher, pela melhoria das condiçõesde vida. pelo barateamento dosgêneros de primeira necessidade, pelamaior felicidade do lar.Donas de casa e mães, mulheres e homensdo trabalho, votem em Berta Lutzporque uma representante femininacompreende melhor as necessidadesdos vossos lares e de vossos filhos [...].(QO-caixa 78, pac. 5).Ao alcançar o tão almejado direito ao voto.o movimento feminista se esvazia; não hánenhum movimento organizado, exceto osde caráter classista, que se preocupe comas questões ligadas à mulher, como trabalho,direitos civis, proteção à saúde. Aconjuntura também não é favorável, como Estado Novo os movimentosreinvindicatórios definham.Em 1962, outro movimento feminino reúnemulheres em torno da criação daCampanha da Mulher pela Democracia —CAMDE, apoiada pelo Instituto de Pesquisae Estudos Sociais — IPÊS, com o intuitode impedir a posse de Santiago Dantascomo primeiro-ministro e, por conseguinte,derrubar o governo de João Goulart.A escolha da dona de casa da classe médiacomo potencial ponta de lança para ocontra-ataque a João Goulart foi de especialimportância. Ao fazer tal escolha oIPÊS visava diretamente às esposas, irmãse mães dos militares, profissionais,comerciários e tecnoburocratas [...] Asorganizações femininas (geralmente comum corpo masculino de assessores políticose organizacionais) mostravam-seinstrumentais na campanha conduzidapela elite orgânica para infundir o temorda ameaça vermelha', ao mesmo tempoque elas eram o seu próprio alvo. Mo decorrerdos primeiros meses de 1964, asorganizações femininas e grupos católicosproporcionavam a mais visível açãocívica contra João Goulart e contra as forçasnacional-reformistas, especialmenteem Minas Gerais, São Paulo eGuanabara. 18pag.212. Jan/dez 1996


R V OPresidida por Amélia Molina Bastos, a CAMDEse harmonizava com importantes elites políticase militares, além de contar com a simpatiade parcela da imprensa. Iniciou-se comduas formas de ação: esclarecimentono meio feminino contra o comunismo, pormeio de cursos e palestras, ecriação de movimento de opinião pública,através da vigilância permanente dos atos dogoverno. O acervo é constituído basicamentede recortes de jornais, com artigos queabordam os movimentos anticomunistas, prevençãocontra a cubanizaçáo, reforma agrária,Marcha da família com Deus pela Liberdadee Revolução de 1964, textos e plataformasde expoentes do movimento católicocomo Gustavo Corção e Alceu Amoroso Lima,palestras realizadas por Roberto Campos,Hélio Beltrão, marechal Rolim etc. a respeitode reforma agrária, remessa de lucros edescentralização do Estado. Os documentosa seguir ilustram a participação da entidadena Revolução de 1964.Panfleto de convocação5 feira, dia 2 de abrilaPartida da CandeláriaMarcha da família com Deus pela LiberdadeEm nome de sua fé religiosa, compareçacom sua família (PE, caixa 41, pasta 3).Artigo "CANDE comemora o aniversárioda Revolução que ajudou a realizar"Mas comemorações desse aniversário queabrangerão o país inteiro, exprimindo umavez mais o regozijo nacional pelo retomoaos quadros da legalidade democrática, emPrimeiro Congresso Feminino Brasileiro. Ao centro, a líder norte-americana Carrie Chapman Catt, aolado de Berta Lutz. Rio de Janeiro, 1922. Arquivo Nadonal.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 203-224. janMez 1996 - pag.213


A C Everdade não poderá ser obscurecida a contribuiçãoexcepcional da Campanha daMulher Pela Democracia, responsável pelamemorável 'Marcha da família com Deuspela Liberdade', um dos instrumentos básicosno desencadeamento do processorevolucionário através do qual o Brasil sereencontrou com seus verdadeiros destinos,(jornal O Qlobo, 1965).A retomada dos movimentos sociais organizadosno fim da década de 1970 e na décadade 1980 possibilitou a criação de diversasentidades feministas voltadas paraquestões sociais, que tentam agir em conjuntocom outros movimentos como dosnegros, homossexuais, deficientes, menoresetc. Publicações específicas,criação de entidades feministas, como oCentro da Mulher Brasileira e o Grupo deSaúde Nós Mulheres, estudos, anteprojetos,projetos de modificações do código civil,código penal, CLT e da própria Constituiçãode 1988 formam o acervo acumuladopor Comba Marques Porto que militou noConselho Macional dos Direitos da Mulher— CMDM, e participou ativamente da CampanhaConstituinte Prá Valer Tem Palavra deMulher.Os anseios contemporâneos do movimentofeminista estão bem representados pelasíntese das reivindicações do CMDM à Constituintede 1986:Conselho nacional dos Direitos da MulherSíntese dos direitos da mulher para aConstituinte:1. Declaração na Constituição do princípioda igualdade entre os sexos, devendoconstar, explicitamente, quehomens e mulheres são iguais perantea lei.2. Igualdade no direito civil, especialmenteno que diz respeito aos direitose deveres dos cônjuges, bem comoem relação à prole.3. Trabalho igual, salário igual.4. Ampliação do conceito de família, quenão deve mais estar atrelado exclusivamenteao casamento.5. Eliminação de tratamento diferenciadoque importe em discriminação nomercado de trabalho.6. Garantia do emprego, cargo ou funçãosem prejuízo do livre exercício damaternidade e do aleitamento.7. Garantia de ascenção profissional combase no critério de competência e formaçãoespecífica.8. Fim do limite de idade para prestaçãode concursos públicos.9. Garantia de pleno amparo legal à trabalhadoradoméstica.10. Igualdade de tratamento entre homense mulheres perante a previdênciasocial.11. Reconhecimento da profissão da mulhertrabalhadora rural.12. Garantia de direitos e benefícios datrabalhadora rural perante a previdênciasocial.pag.214. Jan/dez 1996


R V O13. Direito de associação sindical à trabalhadorarural.14. Creches no local de trabalho e no localde moradia para trabalhadores,como um direito essencial do cidadão(criança de 0 a 6 anos).15. Direitos da reprodução entendidoscomo garantia à livre opção das mulheresquanto ao exercício da maternidade,sendo atribuída ao Estado aprestação de serviços de assistênciaintegral à saúde, nas diferentes fasesda vida da mulher.16. Garantia de que na futura Constituiçãosejam criados mecanismos de fiscalizaçãoe punição para atos de qualquernatureza que importem em discriminaçãoou lesão da cidadania dasmulheres. (TJ 1- 9.4.10).Assuntos importantes como violência e saúdeda mulher não foram abordados. Os acervosjudiciários e de Comba Marques Porto sãoabundantes em documentos sobre essastemáticas. Aliás, acervos e temas não faltampara descrever a condição feminina. Contudo,como já foi dito, não é objetivo deste artigoesgotar as fontes que registram a presençada mulher na sociedade brasileira, mastão somente evidenciar a potencialidade dessasfontes para estudos de um tema normalmentepensado como residual em instituiçõesarquivísticas. A seguir relacionamos outrosfundos da Instituição importantes para osestudos de gênero. 19Agência nacionalDatas-limite: 1935-1979Acervo textual, fotográfico, sonoro efilmográfico que registra a vida políticado país, em torno do governo federal eda administração pública brasileira. Nestesregistros, a mulher está presente sobdiversas formas, como artista, estudante,operária, dama da sociedade etc.Casa Real e Imperial — Mordomia-MorDatas-limite: 1750-1889A documentação da Mordomia-Mor registraaspectos do estilo de vida da Corte:nascimentos, casamentos, batizados,prestação de serviços e educação dosmembros da Casa Imperial, inclusive dasprincesas. Este acervo revela a visão danobreza sobre a formação ideal para asmulheres deste reduzido setor da sociedadebrasileira no século XIX.Circunscrição de Registro Civil dePessoas Naturais do Rio De JaneiroDatas-limite: 1891-1961Livros de diversas circunscrições do Riode Janeiro, com registros de nascimentos,casamentos, óbitos e habilitações decasamentos. Este acervo indica dadossobre idade, classe social, ocupação eformação de núcleos familiares na cidadedo Rio de Janeiro.Coleção EclesiásticaDatas-limite: 1789-1892Entre diversos documentos que integrameste acervo destacam-se as dispensas deimpedimentos matrimoniais e requeri-Acervo. Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 203-224. Jan/dez 1996 - pag.215


A C Ementos solicitando concessão de escravose africanos livres tutelados pelo governoimperial e licenças para venda,substituição e permuta de escravos.Coleção de Fotografias AvulsasDatas-limite: 1855-1930Coleção de fotografias de diversas proveniênciasque registra retratos de personalidadesbrasileiras e estrangeiras, vistasde cidades do Brasil, homenagens cívicas,cenas familiares, cenas rurais, exposições.Conselho de EstadoDatas-limite: 1822-1889O Conselho de Estado foi instituído oficialmentecom o I Reinado e extinto durantea Regência com a vitória dos gabi­onetes conservadores sob Pedro II. As consultase pareceres enviados e emitidospelas seções do Conselho envolvem, entreoutras questões, as sociedades artísticas,beneficentes, literárias, religiosas,compromissos de irmandades e outrosque incluem de alguma forma a participaçãofeminina em entidades associativasna sociedade imperial.Constituições e EmendasConstitucionaisDatas-limite: 1823-1989Projetos de constituições de 1823 e 1966,originais das constituições de 1824 a1988, emendas constitucionais de 1834a 1985, além das constituições de Qoiáse Pernambuco de 1989. Este acervo registraa forma como as diversas constituiçõestrataram historicamente dos direitosda mulher.Correio da ManhãDatas-limite: 1930-1974Jornal criado em 1901 e extinto em 1974,fazia parte da grande imprensa carioca.Seu acervo, com cerca de 43.000 registros,inclui recortes de jornais e manuscritosreferentes a matérias dos mais variadosassuntos. Destacam-se os registrosvisuais constituídos por ampliações fotográficasde vários formatos, negativos,charges e desenhos originais que retratamcenas da vida nacional e internacional,resultado das coberturas jornalísticasdiárias do jornal. Estes registros revelamas mulheres em todas as dimensões davida na cidade: na política, no trabalho,no lazer, nas artes.Corte de ApelaçãoDatas-limite: 1785-1921Este conjunto reúne documentação provenientede vários fundos e congrega apelaçõescíveis, criminais e comerciais,agravos, recursos cíveis, criminais, eleitoraise habeas-corpus, devassas, demarcaçõesde sesmarias e processos administrativosonde a mulher aparece comoré e vítima nos processos criminais, apelantee apelada nos cíveis.Decretos do Executivo — PeríodoImperialDatas-limite: 1808-18892 l&. j.in/tkv 1996


R V OAtos destinados a regulamentar a sociedadebrasileira em todos os seus aspectos,envolve todas as instâncias de intervençãodo Estado, incidindo sobre temascomo a instrução primária e secundária,instituições culturais, escolas superiores,casas de caridade, teatro, justiça civil ecriminal etc.Decretos do Executivo — PeríodoRepublicanoDatas-limite: 1889-1959Este acervo inclui temas como a subvençãoà entidades assistenciais e culturais,aprovação de regulamentos e regimentosde entidades públicas, reconhecimento eautorização de funcionamento de cursosuniversitários etc.Decretos LegislativosDatas-limite: 1826-1935Os atos do poder legislativo incluem documentosque tratam de temas como naturalizaçãode estrangeiros, criação derepartições públicas, aprovação de pensõesà viúvas e aposentados, escravidão,concessão de loterias para patrimônio dehospícios e hospitais.Decretos S/N.Datas-limite: 1808-1938Decretos referentes ao Ministério dos negóciosdo Império, da Justiça, da Guerra,ao Conselho de Estado, à Faculdade deSão Paulo, ao Corpo Diplomático, à Academiade Belas-Artes, à instituições culturais,províncias e ao Arsenal de Guerrasobre nomeações, aposentadorias, pensões,comutação e perdão de penas, patentese marcas, higiene e saúde pública.Delegacia Auxiliar da Polícia do Riode Janeiro, 2 aDatas-limite: 1917-1940O acervo congrega os seguintes gênerosde peças teatrais submetidas à censura:dramas, revistas, comédias, burletas, episódiose fantasias, além de programas deteatro, regulamentos etc.Divisão de Censura e DiversõesPúblicasDatas-limite: 1960-1988Processos relativos à censura de peçasteatrais, rádio, telenovelas, filmes, sériesde televisão, letras musicais, livros, revistas,vídeo e Filmes.Divisão de Polícia Marítima, Aérea ede FronteirasDatas-limite: 1875-1974Contém as relações de passageiros das diversasembarcações que chegaram aos portosbrasileiros e relações de aviões que aterrissaramem aeroportos nacionais, com informaçõesdiversas sobre o imigrante, comopor exemplo: local e data de nascimento.Filiação, profissão, foto etc.Escragnolle DóriaDatas-limite: 1825 a 1948Arquivo particular de Luís Gastão deEscragnolle Dória, advogado, professor ejornalista que colaborava com inúmerasAcerw. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2, p. 203-224, Jan/dez 1996 - pag.217


A C Erevistas e jornais. Em seu acervo constamartigos a respeito de usos e costumessociais, e de mulheres que tiveramdestaque na política, nas artes etc.Festas Chilenas no Rio de JaneiroDatas-limite: 1889Recortes de jornais, convites, cardápios,programas e partituras sobre as homenagensprestadas à marinha chilena peloImpério brasileiro. Este evento marcousimbolicamente o fim do Império e estadocumentação constitui-se um registrodos hábitos e costumes da alta sociedadecarioca do fim do século.Fisicatura-MorDatas-limite: 1808-1828Por decreto de 1808 foram criados os cargosde físico-mor e cirurgião-mor do Reinode Portugal, estados e domínios ultramarinos,além de serem instruídos os serviçosde higiene. Neste acervo destacamseas licenças, confirmações e autos deexame para o exercício das profissões demédico, sangrador, cirurgião, curandeiroe, especialmente, parteiras.Gabinete de D. João VIDatas-limite: 1808 a 1824A documentação contém requerimentos eexposições de motivos sobre sucessão daprincesa Carlota Joaquina ao trono daEspanha e dispensa consangüinidade pararealização de casamento entre a nobreza.Graças HonoríficasDatas-limite: 1808 a 1890Composto por brasões de armas de nobrezae fidalguia, medalhas humanitárias,ordens honoríficas, títulos de nobreza,títulos de conselho, concedidos noBrasil entre 1808 a 1891 aos que solicitassemou fossem considerados merecedores.Inspetoria Geral de Terras eColonizaçãoDatas-limite: 1817-1896Este acervo inclui vasta documentaçãosobre o estabelecimento de colônias agrícolas.Destacam-se as estatísticas de entradade imigrantes no porto do Rio deJaneiro, ofícios sobre colonização, correspondênciasobre colonos dirigida ao Ministérioda Agricultura, Comércio e ObrasPúblicas, cartas e recibos da agência oficialde colonização, relação de imigrantesetc.InventáriosDatas-limite: 1767-1942Coleção de documentos provenientes devários fundos do Arquivo Nacional. Inclueminventários post-mortem que constituemuma importante fonte para o estudoda vida social, econômica e culturaldo Rio de Janeiro. Estes inventários contêmtoda espécie de bens, incluindo relaçãode escravos, roupas, mobiliário, imóveis,louças, jóias etc.Irmã ZéliaDatas-limite: 1851-1947Arquivo particular de Zélia Pedreira depag.218. jan/dez 1996


R V OCastro Abreu Magalhães, irmã Maria doSantíssimo Sacramento. Contém documentosfamiliares e de sua vida religiosa.Jota EfegêDatas-limite: 1917 a 1987João Ferreira Gomes era crítico musicale escreveu diversos artigos em jornais erevistas cariocas. Temas como o trabalhofeminino e composições musicais em homenagemàs mulheres fazem parte douniverso de seus artigos.Junta Comercial do Rio de JaneiroDatas-limite: 1860 a 1915Livros de registro de sociedades, firmase companhias. Liquidação e partilha desociedades. Aprovações, sob pública forma,do imperador, da princesa regente edos poderes republicanos para os estatutosdas companhias e autorização paraseu funcionamento. Constam nos registrosnomes de muitas mulheres comodonas de sociedades.Marcos Carneiro de MendonçaDatas-limite: 1915 a 1981Mo acervo constam documentos de AnaAmélia de Mendonça — esposa do titulare militante feminina — referentes ao CongressoInternacional Sufragista e as publicaçõesde sua autoria.Mesa da Consciência e OrdensDatas-limite: 1679-1828Órgão judiciário do governo portuguêsestabelecido em 1532 e que, em 1551,incorporou as ordens militares. Extinta em1828, passa seus papéis, autos e livrospara o Supremo Tribunal de Justiça. Seuacervo inclui compromissos de irmandadese confrarias, estatutos de ordens religiosas,instruções relativas à missões eíndios etc.Mesa do Desembargo do PaçoDatas-limite: 1799-1834Ligada originalmente à Casa deSuplicaçáo ou Tribunal das Cortes, a Mesado Desembargo do Paço incumbia-se dasquestões judiciais, expedição de graças emercês, dentre elas cartas de perdão depenas. Contém documentos sobre irmandades,comutação de pena, degredo eprisão, instrução pública, revoltas públicas,crimes diversos, casamento escravo,teses ideológicas, entre outros.Ministério da Agricultura, Comércioe Obras PúblicasDatas-limite: 1859-1896Meste acervo destaca-se a documentaçãoreferente à imigração, como relação deimigrantes, mapas estatísticos, hospedagem,alimentação e transporte de imigrantes,mapas referentes a colônias etc.Ministério do ImpérioDatas-limite: 1808-1891no conteúdo deste acervo destacam-semapas demonstrativos de pessoas falecidasem epidemias na cidade do Rio deJaneiro, mapas de enfermos do HospícioPedro II, regulamentos para o Instituto deAmas de Leite e para a maternidade ins-Acervo. Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 203-224. Jan/dez 1996 - paq 219


A C Etituída pela Câmara Municipal, alvarás,leis e regimentos sobre a saída de mulheresdo Brasil para Portugal, documentosdiversos sobre a família imperial etc.Ministério da JustiçaDatas-limite: 1808-1975O acervo contém relatórios da polícia doRio de Janeiro, mapas semanais e mensaisde crimes e outras ocorrências emdiversas províncias, processos diversossobre naturalização, permanência, direitospolíticos, cidadania, comutação depena etc.Ministério da Justiça e negóciosInterioresDatas-limite: 1874-1959Este acervo inclui documentação variada naqual se destaca aquela referente à penitenciárias,serviço de informação, entrada, permanência,expulsão e deportação de estrangeiros,aquisição e perda de direitos políticos,concessão de graças e garantias individuais,extradição e repatriação, anistia,ordem política e social etc.Ministério do Reino e ImpérioDatas-limite: 1758-1848Este fundo inclui relatórios sobre epidemiade cólera, além de mapas estatísticosdiversos como: relação de número dehabitantes de províncias, nascimentos,óbitos e casamentos.Ministério do TrabalhoDatas-limite: 1930-1980Documentação diversa sobre a regulamentaçãoe fiscalização do trabalho, organizaçãoe assistência de entidades sindicais,acordo salarial, organismos internacionaisdo trabalho e previdência social,mão de obra estrangeira, entre outrostemas.Ofício de notas do Rio de JaneiroDatas-limites: 1594-1961A documentação é composta por livrosde notas que registram escrituras gerais,de compra e venda de atos nãotranslativos, livros índices de escritura,livros de registro geral, livros índices deregistro geral, livros de procurações esubstabelecimentos, livros índices de procurações,livros de substabelecimentos elivros de testamentos, onde constam datase nomes de outorgantes e outorgados.Neste acervo a mulher aparece comocompradora, doadora, herdeira ousesmeira, integrada à vida econômica dopaís, especialmente no I e 2° Ofícios deoNotas, cuja documentação é a mais antigado Arquivo Nacional.Rádio Mayrink VeigaDatas-limite: 1934 a 1966Pichas de registro de artistas e funcionários,fichas de saúde, fotos, atestados erescisões compõem o acervo.Relação do Rio de JaneiroDatas-limite: 1534-1808Forais, cartas, alvarás, provisões, leis, regimentose ordens sobre regimento da relapag.220.jan/dez 1996


R V Oção do Estado do Brasil tratando dos crimespor heresia, apostasia e cristãos novose penas para os condenados pelos Tribunaisdo Santo Ofício, incluindo mulheres.Registro Civil do Rio De Janeiro —Diversas FreguesiasDatas-limites: 1926-1961Este acervo inclui livros-talões de registrosde nascimentos, casamentos e óbitos dasdiversas freguesias do Rio de Janeiro.Registro de ImigrantesDatas-limite: 1875-1932Esta documentação abrange o registro deimigrantes na hospedaria da Ilha das Flores,Pinheiro e na Agência Central de Imigração,informando porto de saída, datada imigração, número de ordem, nome doimigrante, idade, estado civil, nacionalidade,profissão, religião, destino e datade saída.Série Agricultura — Terras Públicase ColonizaçãoDatas-limite: 1819-1890Documentação relativa ao assentamentode colonos no Brasil. Destacam-se: a relaçãode famílias espanholas imigrantesacampadas ao lado do forte de Santa Teresa,permissão para o assentamento decolonos, localização de trabalhadores nacionaise estrangeiros em várias províncias,mapas nominais de colonos alemãesvindos para o Brasil, relação dos colonosdevedores ao Estado etc.Série Saúde — Gabinete do MinistroDatas-limite: 1852 a 1930Autorização para o exercício das profissõesde parteiras, farmacêuticos e dentistas.SesmariasDatas-limite: 1714 a 1888A concessão de sesmarias que se inicioucom as capitanias hereditárias foi o sistemaescolhido para o povoamento daColônia e tornou-se a base do regime depropriedade. Regida por diversas legislaçõesentre 1375 a 1850. O fundo é constituídode cartas, autos e processos deconcessão e confirmação de sesmariasnos territórios de diversas capitanias.Tribunal de Segurança NacionalDatas-limite: 1935 a 1945Instituído pela lei n° 244, de 11.9.1936 eextinto pela lei n° 14, de 17.11.1945, oTribunal de Segurança nacional fazia parteda Justiça Militar. Cabia a ele julgar oscrimes que atentassem contra a existência,a segurança, a integridade do Estado,a guarda e o emprego da economiapopular. Este fundo é composto por processoscriminais, atas das sessões, registrosde execução de sentenças. Os processosreúnem, entre outros documentos,fotografias, correspondências pessoais,letras de músicas referentes ao levantecomunista de 1935. Destacam-se os processosde nise Silveira e Patrícia Galvão(Pagu).Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 203-224. Jan/dez 1996- pag.221


N O T A S1. Código TJ — Comba Marques Porto- texto xerocado, autor não identificado.(TJ 8.15).2. Felisberto Caldeira Brant Pontes Oliveira e Horta nasceu em 1772 e morreu em 1842.Primeiro visconde com grandeza e marquês de liarbacena, foi militar, plenipotenciárioem Londres para reconhecimento da Independência do Brasil, deputado constituinte(1823), ministro do Império (1825) e da Fazenda (1829). O acervo é formado porcorrespondências, requerimentos, avisos sobre nomeações e documentos referentesao reconhecimento da Independência, no período de 1796 a 1899. (código Ql).3. Mário Augusto Teixeira de Freitas, nasceu em 1890 e faleceu em 1956. Foi secretáriodo IBGE, diretor-geral do Diretório de Informação, Estatística e Divulgação, fundou oAnuário Estatístico do Brasil e a Revista Brasileira de Estatística. A documentação éconstituída por correspondências, anteprojetos, publicações, recortes de jornais sobrecolonização, estatística, educação, geografia, emigração etc, de 1912 a 1958.4. As pretorias cíveis tinham como competência processar e julgar causas contenciosas,inventários e partilhas, causas de divórcio por mútuo consentimento e ainda exerceratribuições não contenciosas relativas ao casamento e sua celebração. O acervo éconstituído de processos cíveis e inventários de 1891 a 1940.5. Os acervos são formados por processos cíveis e inventários de 1831 a 1939.6. Competia-lhes fazer corpo de delito, mandar lavrar auto de prisão, conceder fiança,mandado de busca e apreensão, julgar e processar infrações sanitárias de 1889 a1938. Foram extintas em 1940, quando se criou oito varas criminais.7. Aos ofícios de notas da cidade do Rio de Janeiro competia registrar os contratosFirmados por herdeiros e testamenteiros de defuntos, em virtude das vendas, escambosou aforamentos, além de dar escrituras a seus donos. Compreendem livros de notas,de registro geral e procuração de 1594 a 1961.8. Constituídos de livros-ta'ões de averbações, registros diversos, inscrições hipotecáriase transcrições de transmissões de imóveis de 1929 a 1961.9. O decreto n° 91.450, de 18.7.1985, instituiu, junto à Presidência da República, aComissão Provisória de Estudos Constitucionais. A comissão tinha por atribuiçãodesenvolver pesquisas e estudos para futura colaboração à Assembléia nacional Constituinte,sendo instalada em 20.8.1985, com o prazo de dez meses para a conclusãodos trabalhos. Destacam-se os trabalhos dos vários comitês temáticos sobre ordemsocial e ordem econômica, de 1985 a 1986.10. De competência do poder executivo, o decreto-lei está no mesmo nível das leis epag.222. jan/dez 1996


R V Ooriginou-se com a Carta Política de 1937, com a instauração do Estado novo e fechamentodo poder legislativo. A primeira série editada foi de 1937 a 1946, sendo atosrelativos à criação e extinção de cargos públicos, regulamentação de entidades públicas,instituição do salário mínimo e Consolidação das Leis de Trabalho.11. AGUIAR, neuma. "A mulher na força de trabalho: um balanço de perspectiva". In:Leôncio Martins Rodrigues et aili. Trabalho e cultura no Brasil. Ciências Sociais Hoje,1. Recife, Brasília: AnPPCS/CnPq, 1981, pp. 135-153.12. Fábio Lopes dos Santos Luz nasceu em 1864 e faleceu em 1938. Médico, colaboroucom a imprensa e exerceu o magistério. Com idéias anarquistas, tentou fundar umauniversidade popular. O fundo é composto por correspondências, poesias, recortesde jornais sobre anarquismo e documentos referentes à Academia Brasileira de Letrasde 1889 a 1933.(código PM).13. Conforme o disposto no decreto n° 8.820, de 1882, o Arquivo nacional guardavacada um dos pedidos de patentes através de depósito legal. Com o decreto n° 547,de 1891, o An deixa de receber esses depósitos, recebendo apenas os processosfindos remetidos pela Diretoria de Comércio da Sec. de Estado de negócios da Agricultura,Comércio e Obras Públicas, a quem coube a parte dos serviços antes executadospelo Arquivo. Contém relatórios solicitando concessão de patentes de invenções,muitas vezes possuindo anexos como desenhos, fotografias e amostras, de1873 a 1910. (código PI).14. (Código OC). Fichas de identificação de artistas na polícia entre 1932 a 1959.15. O Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) foi criado em 1938 e extintoem 1986, com objetivo de estudar, formular diretrizes, orientar, supervisionar econtrolar os assuntos relativos à administração do pessoal civil e dos serviços gerais,de 1932 a 1975. Seu conteúdo é formado por relatórios, requerimentos, regulamentos,processos etc.16. Série funcional que organiza a documentação de acordo com a sua função ou atividadeprincipal dos órgãos, subdividindo-a em atividades secundárias. A subsérie EnsinoSuperior contém ofícios, relatórios, processos, estatutos e pareceres sobre escolasde nível superior (1813 a 1961).17. ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil.Petrópolis: Vozes, 1980, p. 200.18. DREIFUS, Armand René. Í964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 814.19. Relação organizada pelas historiadoras Claudia Heynemann e Dilma Cabral da Seçãode Pesquisa do Arquivo nacional e por Beatriz Moreira Monteiro.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2, p. 203-224, jan/dez 1996 - pag.223


A B S T R A C TThis article draws up a list of documentary funds for studying women's action withinBrazilian society, existing at the National Archives, and approaching issues such as familyplanning, education, work and political participation.R É S U MLauteur dresse Ia liste des documents existant dans les Archives liationales, scénariopermettant 1'étude de laction féminine dans Ia société brésilienne, et analyse des thèmestels que le planning familial, léducation, le travail et la participation politique.


P E R F I LI N S T I T U C I O N A LCoiisellio Nacional dosDireitos da IMjLillierRosiska Darcy de OliveiraPresidenteOBrasil busca a democracia comodestino. A defesa dos direitosde cidadania para as mulheresconstitui condição sine qua rxon da própriademocracia. Cabe ao Conselho Macional dosDireitos da Mulher assegurar que a Constituiçãose faça cumprir sem que nenhumretrocesso fira as garantias que um sólidomovimento de mulheres conquistou.Cabe também ao CMDM lutar para queganhem forma e visibilidade os direitosdas mulheres não reconhecidos, emsuma, a tarefa de, em permanência, assegurarque o Estado brasileiro chame asi a luta contra a discriminação das mulheressob a forma que ela se manifeste,explícita ou implicitamente, confessa oudissimulada.É função do CMDM catalisar a formidávelenergia de regeneração do pensamentoe ação que vem sendo desperdiçada pelamarginalização das mulheres dos processosde tomada de decisão, onde quer queeles se dêem, no aparelho de Estado ounos esforços da sociedade civil.Multiplicam-se os sinais de que a comunidadeinternacional começa, finalmente,a integrar as mulheres no debate sobre oseu destino, não só dedicando-lhes umaconferência mundial como a que vivemosem 1995, em Beijing, sob o signo daigualdade e da paz, mas garantindo-Ihesuma ressonância cada vez mais forte nodiálogo das Mações, de onde brotam aguerra e a paz, a prosperidade ou a miséria,enfim os projetos de civilização.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 225-227. Jan/dez 1996 - pag 225


A C EAo CNDM, a Conferência de Beijing legouuma plataforma de ação cujo compromissotem sido seu cotidiano. O intenso diálogocom os ministérios da área social, transformadosem protocolos de cooperação, vemimpulsionando políticas públicas nas áreasde saúde, educação, trabalho e justiça.Antigas reivindicações das mulheres brasileiras— tais como o acesso a umavariada gama de contraceptivos na redepública de saúde, a generalização do examepreventivo de colo de útero e demama, a inclusão do estupro e dos abusossexuais como crimes contra a pessoa,a ótica de gênero atravessando desde olivro didático até o treinamento de professores,novas oportunidades decapacitação para jovens do sexo feminimoem situação de risco — se transformamem políticas públicas.Ma medida em que o Brasil se engajecomo um todo na causa das mulheres, asmulheres como um todo se engajarão nacausa do Brasil.AsCONQUISTAS DE BEUTNG TAMBÉM SE TRANSFORMAM EM POLÍTICAS PÚBLICAS MUNICI­PAIS E EM CAMPANHAS DE MÍDIA, INTEGRANDOA AÇÀO DO CNDMProtocolos municipaisAs mulheres de Campinas, interior de SãoPaulo, já podem usar o cartão mulher,uma espécie de caderneta de vacinaçãocom todas as informações sobre a suasaúde, desde a adolescência. Esse é o resultadoda adesão do município à Declaraçãoda IV Conferência Mundial da ONUsobre a Mulher, realizada em 1995, naChina. Campinas foi a primeira cidadebrasileira a adotar as recomendações.Além do cartão, a prefeitura lançou tambéma cartilha da mulher, com orientaçõessobre planejamento familiar, aids,adolescência, menopausa, gravidez, direitoshumanos e de trabalho.A segunda cidade a assinar formalmenteum protocolo de adesão foi Recife. E osprincipais objetivos foram claros:reformular os conceitos da relação homem-mulherno dia-a-dia das escolas darede municipal de ensino e garantir a assistênciaintegral à saúde da mulher.A prefeitura de Salvador, que foi ocupadapor uma mulher, Lídice da Mata, tambémadotou como diretrizes da Administraçãoos compromissos firmados na China. Alémdas medidas na área da saúde, no atendimentoàs mulheres carentes, a prefeituraanunciou um programa específico decombate à violência: a criação do Centrode Referência para a Prevenção e Atendimentoàs Mulheres em Situação de Violência.Em Porto Alegre, outro município a seguiras recomendações da Conferência,foram anunciadas ações nas áreas de educação,cultura, esporte, comunicação, serpag.226.jan/dez 1996


R V Oviço social e saúde. Todas elas tem o objetivode garantir que os direitos da mulhere da menina sejam parte integrantedos direitos humanos universais.Foram também assinados protocolos nascidades de Londrina, Belo Horizonte eCongonhas do Campo. Em várias outrascidades, como Natal, Santa Luzia eCuritiba, serão assinados protocolos deadesão que representam um compromissopela eliminação da discriminação damulher.Campanhas de mídiaFazem parte do plano de mídia do CNDMa elaboração de peças para rádio e TVdivulgando não só o conteúdo dos protocolosfirmados com os principais ministériosda área social, como também chamandoa atenção da opinião pública parao papel fundamental que as mulheres vêmdesempenhando na sociedade brasileira.Assim, uma série de spots radiofônicosestá sendo veiculada nas principais emissorasnacionais e na Radiobrás tratandotemas tais como: estupro, violência noambiente de trabalho, violência doméstica,prevenção do câncer de mama e colode útero e necessidade de integrar os homensno planejamento familiar. Para oCNDM, rádio e TV são canais fundamentaisde sensibilização da sociedade sobrea condição da mulher. Entre os próximostemas a serem abordados nas campanhasdo Conselho estão a participação política eas oportunidades no mercado de trabalho.A B S T R A C TThis article describes the importance of Conselho Nacional dos Direitos da Mulher - CNDM(National Women's Rights Council), its achievements within civil society and its efforts toassure women the rigths of citizenship and the fulfillment of their claims. Some of theseachievements are a reality today, such as including rape and sexual abuse as crimesagainst persons, the struggle for equal opportunity in politics and at work.R É S U M ÉTexte qui décrit limportance du Conselho Nacional dos Direitos da Mulher - CNDM (ConseilNational des Droits de la Femme), ses conquêtes à 1'intérieur de la société civile et sesefforts dans le sens d'assurer aux femmes des droits de citoyenneté et la satisfaction deleurs revendications. Quelques unes de ces luttes sont déjà une victoire, comme le violet les abus sexuels, maintenant des crimes contre 1'individu, la lutte pour 1'égalité dansla politique et dans le travail.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 225-227, Jan/dez 1996 - pag 227


P E R F I LI N S T I T U C I O N A LFundação Carlos CliagasCristina BruschiniPesquisadora sêniorAFundação CarlosChagas (FCC) éuma entidade dedireito privado, sem fins lucrativos,sediada em São Paulo. Fundadaem 1964, com o objetivo de preparar vestibulares,passou a atuar, posteriormente,no campo da seleção de recursos humanos,em órgãos públicos e empresasprivadas. Projetou-se também como centrode pesquisas, a partir de estudos quebuscavam a caracterização sócio-econômicados candidatos e a avaliação de suacompetência. Atualmente, a FCC desenvolvesuas atividades em duas áreas, seleçãode recursos humanos e pesquisa.O Departamento de Pesquisas Educacionais(DPE) é um núcleo que, desde 1969,tem como objetivo realizarpesquisas e estudos científicosna área da educação edas hierarquias de gênero,raça e idade. Mais recentemente, foi implantadoem seu interior, o Núcleo de AvaliaçãoEducacional-NAE. Desde 1974, umaequipe de pesquisadoras provenientes dediversos campos das ciências sociais, psicologiae educação vem se dedicando aosestudos sobre mulher e relações de gênero.Dentro dessa linha, as pesquisas desenvolvidas,centradas inicialmente na desigualdadeentre os sexos na área da educação,abriram-se para um amplo lequetemático, abrangendo as áreas do trabalho,família e cotidiano, saúde e sexualidade,participação política e outras, fo-Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, ti" 1-2. p. 229-233. jan/dez 1996 - pag 229


A C Ecalizando a desigualdade nas relações degênero ligadas às de idade e raça.A busca permanente do conhecimento rigoroso,no DPE, sempre que possível visacontribuir para a formulação eimplementação de políticas sociais, tantoquanto para a atuação de movimentossociais. Suas pesquisadoras tornaram-sereferência em questões que afetam a vidadas mulheres, crianças e jovens, e recebemsolicitações de consultoria por parteda academia, mídia, órgãos governamentaise não-governamentais, grupos demulheres de todas as regiões do país einstituições ou organismos estrangeiros.As pesquisas realizadas seguem variadasorientações teórico-metodológicas, refletindoa diversidade na composição dasequipes. Os estudos quantitativos ou qualitativos,incluindo pesquisas participantes,estudos de caso, diagnósticos e perfis,bibliografias acompanhadas de análiseou textos de orientação didática voltam-separa os seguintes temas:• trabalho feminino, família, cotidiano;• saúde da mulher, sexualidade e educaçãosexual, direitos reprodutivos;• mulher negra, negros e educação;•juventude, mulher jovem;• educação, educação infantil, creche epré-escola, literatura infanto-juvenil;• movimentos sociais, movimentos demulheres, políticas públicas.Além das atividades de pesquisa propriamentedita, as linhas de atuação do DPE,no que diz respeito a gênero, incluemassessorias, capacitação de recursos humanos,documentação e divulgação.CAPACITAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS ETREINAMENTO EM PESQUISAAequipe de pesquisadoras organizacursos, treinamentos,.seminários e eventos similares,por iniciativa própria ou solicitaçãodos interessados, para públicos variados,pag.230, jan/dez 1996


R V Oque incluem desde integrantes de movimentossociais ou universitários a funcionáriospúblicos ou educadores infantis. Aspesquisadoras coordenam e administramprogramas de dotações para pesquisaapoiados por instituições nacionais e/ouestrangeiras.O programa Relações de Gênero na SociedadeBrasileira, de incentivo e de formaçãoem pesquisa sobre a mulher, tem porobjetivo apoiar a realização de estudossobre a mulher e as relações de gêneropor pessoas ou equipes residentes noBrasil. Apoiado pela fundação Ford, vemsendo realizado desde 1978 e até agorajá financiou 155 projetos, vinte recentementeapoiados no VII Concurso.A originalidade desse programa, em relaçãoaos das demais agências de fomentoà pesquisa, reside no seu papel educacional,na medida em que tem por objetivoa formação de pesquisadores e prevêum acompanhamento sistemático das diferentesetapas das pesquisas Finaciadas,através de seminários e da publicação deuma coletânea de textos ao final do programa.Os concursos de pesquisa sobrea mulher já produziram seis livros:Viuéncía; Trabalhadoras do Brasil; Mulher;Mulheres, rebeldia e submissão; Entre avirtude e o pecado e riovos olhares: mulherese relações de gênero no Brasil,além de um número especial do Cadernosde Pesquisa, revista trimestral da FundaçãoCarlos Chagas. O programa é coordenadopor Cristina Bruschini, sociólogae pesquisadora da FCC e conta com aassistência técnica de Heloísa Padula.O PRODIR/Programa de Treinamento emPesquisa sobre Direitos Reprodutivos naAmérica Latina e Caribe, que teve inícioem 1990, atua com recursos da FundaçãoMacArthur e está em sua segundafase. Seu objetivo é contribuir para aconstrução de um modo alternativo de lidarcom questões sobre população,enfatizando a necessidade de incorporaras desigualdades sociais baseadas nosexo, na classe e na raça, no desenho ena implementação de políticas sociais. OPRODIR I apoiou 18 projetos de 11 paísesda América Latina e resultou na publicaçãodo livro Direitos reprodutivos e alternativasescassas: saúde, sexualidade ereprodução na América Latina. No PRODIRII participam 21 projetos de 11 países, selecionadosentre 198 concorrentes. OPRODIR é coordenado por Albertina deOliveira Costa, socióloga e pesquisadorada FCC.A equipe de pesquisa sobre creche constitui-senum grupo de pesquisadores quetêm por meta principal a melhoria da qualidadedo atendimento à criança de zeroa seis anos em nosso país. Neste sentido,o trabalho tem sido desenvolvido em váriasdireções: orientação das políticaspúblicas e atualização teórica permanente;pesquisa histórica, estudo das relaçõesde gênero, raça e idade e sua repercussãonesta faixa etária; intercâmbio comoutros países; estudo de alternativascurriculares para creches e pré-escolas;formação dos professores de educaçãoAcervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2, p. 229-233, jan/dez 1996 - pag 231


A C Einfantil. Esta equipe é coordenada porFúlvia Rosemberg e Maria Malta Campos,dela fazendo parte, também, MoysésKuhlmann Jr. e Maria Lúcia Machado.O projeto Formação do Educador Infantil,de Belo Horizonte, é, atualmente, oprincipal empreendimento desta equipe.Sua Finalidade é a melhoria da qualidadedo atendimento realizado na rede de crechesconveniadas na capital mineira. Dentreas ações encaminhadas temos: a definiçãode uma política de conveniamentoe de supervisão; o estabelecimento de padrõesbásicos de atendimento; a realizaçãode cursos de formação para as equipestécnicas locais; a produção de materiaisespecíficos (textos e vídeos); a criaçãode um curso supletivo de I grau paraoas educadoras das creches conveniadas,com um componente específico para habilitaçãoem educação infantil - uma iniciativapioneira em nosso país. Este projetotem como parceiros a prefeitura municipalde Belo Horizonte, através das Secretariasde Desenvolvimento Social e deEducação, o Instituto de Recursos HumanosJoão Pinheiro e a Associação Movimentode Educação Popular Paulo Englert,contando com o apoio da Fundação Vitae.DOCUMENTAÇÃO E DIVULGAÇÃOAberta ao público para consultas,a BAMP/Biblioteca Ana MariaPoppovic possui amplo acervonas áreas de estudos da Fundação CarlosChagas. É sede da REDUC, uma rede cooperativade informações sobre educação daqual participam importantes centros de pesquisaeducacional da América Latina eCaribe. Dispõe de ampla e diversificada basede dados sobre mulher e relações de gênero,bem como educação infantil (creche epré-escola). Atualmente está implantandoo tesauro para estudos de gênero e sobremulheres, instrumento que garante aosdocumentalistas e pesquisadores a padronizaçãoda linguagem nesse campo de estudos,e que foi elaborado por uma dasequipes de pesquisa.pag.232, jan/dez 1996


R V OAUDIOVISUAISUm acervo de diapositivos, audiovisuais,vídeos e curta-metragens sobre a educaçãoda criança menor de seis anos em crechese pré-escolas de diversos países,mulher e educação sexual, formado a partirdas pesquisas realizadas ou por meiode aquisição de outras instituições, constituirecurso para a utilização em debatesou aulas, podendo ser solicitado por empréstimo.PUBLICAÇÕESAlém dos relatórios de pesquisa à disposiçãona biblioteca e das publicações individuaisdos pesquisadores, os projetos desenvolvidosresultam em diversas publicações,seja de artigos ou números especiais na revistaCadernos de Pesquisa e na revista Estudosem Avaliação Educacional, ou númerosda série Textos FCC, seja em livros, geralmenteem co-edição com editoras comerciais.A B S T R A C TFundação Carlos Chagas, established 1964, at first for the purpose of preparing universityadmission contests, later carne to act in the field of human resource selection, in governmentalagencies and private enterprises. A non-profit private law entity, it engages in research, advisory,human resource qualification, publishing, documentation and divulging activities.R É S U M ÉLa Fondation Carlos Chagas, créée en 1964 pour élaborer des examens d'accès à1'Université (les vestibulares), a ensuite dirige ses activités vers Ia selection de ressourceshumaines, dans des organismes publics et des entreprises privées. Organisation à butnon lucratif et de droit prive, Ia Fondation se consacre à Ia recherche, formation deressources humaines, publication, documentation et diffusion.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 229-233. jan/dez 1996 - pag 233


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A C Edos de reclusão para os deveres sagrados,ela fazia honra ao marido e aos pais,no que dizia respeito à sua aparência pessoal.A despeito da doutrina freqüentementepregada de que todos osdefeitos físicos seriam debelados no julgamentofinal, os maridos devotos se preocupavamtanto quanto quaisquer outrosem ter mulheres de boa aparência. E adespeito da cantilena acerca de belas almas,as mulheres devotas não estavammenos sujeitas a pressões terrenas a respeitode sua aparência e a argumentosmisóginos sobre a sujeição das mulheres,do que quaisquer outras.Tradução de Nariana Erikatleynemann.N O T A S1. Esta versão foi adaptada pelo conhecido martirologista puritano Samuel Clark, extraídado sermão fúnebre pronunciado em 1664 por Simon Ford. CLARKE, Samuel.The lives of sundry eminent persons in this later age. London: 1683, p. 200.2. KEM, Thomas. A sermon preached at the funeral of the right honourable lady MargaretMalnard. London: 1682, p. 14.3. WALKER, Anthony. Eureka, eureka: the virtuous woman found...with...the life of thatnoble lady. London: 1678, p. 50.4. QLASCOCK, John. Mary's choice, or, the choice of the truly godly person opened,and justified. London: 1659, p. 79.5. PRYNNE, William. The unloveliness of love-lockes. London: 1628, p. 51.6. Idem, ibidem, p. 55.7. Q. F. To the Parliament of the Common wealth of England: 59 particulars laid downfor the regulating things. London: 1659, p. 13.8. BI! RN ET, Mrs. A method of devotion. Segunda edição. London: 1709, pp. 99-100.9. RICH, Mary, countess of Warwick. Autobiography. Ed. T. Crofton Croker, Percy Society,22, 1848, pp. 4, 21.10. SMITli, Thomas. The Commonwealth of England, and the manner of governmentthereof. London: 1612, p. 13.11. The mirrour of complements, or, a manual of choice, requisite and compendiouscuriosities. Quarta edição. London: 1650, pp. 175, 177.12. FURNIVALL, F. J. (ed.). Philip Stubbes's anatomy of the abuses in England inpag, W.JarvHez 1996


A C Eboas obras; cujo objetivo, no vestir, deveser a limpeza e a decência."As mulheres puritanas eram louvadas pelamodéstia de seu vestuário, como sinal desua religiosidade. Dizia-se de KatharineStubbes que ela abominava o orgulho daindumentária e de Elizabeth Wilkinson,,esposa do diretor do Oxford College duranteo Commonwealth, que ela náo queriater "vestidos extravagantes e fúteiscom© ornamento". O viúvo puritano enlutado,Samuel Clark, louvava sua faleci­29da mulher de cinqüenta anos por sua modéstia,até mesmo frugalidade, no vestir.Pela forma, era grave e exemplar, semmodismos nem leviandade...E qualquerque fosse o vestuário que ela tivesse,tinha o cuidado de protegê-lo de manchase rasgos e, tão logo houvesse algoestragado, de imediatamente consertálo,de tal maneira que ela fazia com quedurasse muito tempo e, no entanto, parecessesempre inteiro e bem cuidado. 30Algumas mulheres davam provas de suasconvicções políticas no vestuário. AnneMicklethwaite, que faleceu em 1658, nãohavia usado um vestido de seda desde oinício da guerra civil e declarava sua intençãode não fazê-lo, antes de ser alcançadoum acordo. A condessa de Suffolk,31esposa de- um comandante realista naguerra civil, haviafeito votos de náo usar roupas que nãofossem pretas enquanto vivesse, nãoapenas pressagiando o que aquelestempos trágicos pudessem necessitar,mas por serem as mais sérias e maisadequadas ao seu temperamento. 32O acompanhamento da moda era muitodepreciado, mas, ao mesmo tempo, adecência exigia que as mulheres náo parecessemgrotescamente fora de moda,o que teria reflexos negativos sobre suasfamílias. Dizia-se de Mary Porbes, que faleceuem Devon em 1565, quesuas vestimentas não eram sórdidasnem extravagantes, não estavam na últimamoda. nem fora de moda; diferentementedaquela pequena nobreza arrivista,que declara sua recente ascensãodo campesinato e da pobreza atravésda heráldica da torpeza e dos traposque veste. 33Anne Micklethwaite observava uma "gravedecência", dizendo que "não seria aprimeira a usar uma moda, nem seria aúnica". 34O cabelo era um assunto que provocavagrande alarido por parte dos puritanos.O texto bíblico favorito era o da primeiraepístola de Paulo aos Coríntios.Julgai por vós mesmos: porventura éconveniente que uma mulher ore a Deussem usar véu? A própria natureza nãovos ensina porventura que é indecorosopara o homem usar cabelos compridos?Ao passo que é uma glória para amulher, pois a cabeleira lhe foi dada àmaneira de véu. 35A vergonha a que uma mulher que cortavaseus cabelos estava exposta era um dostemas do ataque apoplético de WilliamPrynne à moda dos cachinhos de amor.pag, lO.janAIez 1996


R V OTrata-se da coisa mais infame,antinatural e vergonhosa que possaatingir uma mulher, (náo uma graça ouornamento),ou seja, cortar ou apararseus cabelos. 38Em 1641 dizia-se que uma mulher deLondres havia tido uma visão na qual aprofetisa Ana a havia visitado e orientadoa pregar. O texto que ela escolheu parapregar em uma reunião de outras mulhereseraQue o cabelo de uma mulher era paraela um adorno, mas que era vergonhosopara um homem ter cabelos longos.37Por trás da noção de vergonha do cortede cabelos pelas mulheres, estava a idéia,tirada da primeira epístola de Pedro, deque o cabelo longo era um distintivo daobediência da mulher, nas palavras deWilliam Prynne,seu véu natural, sua glória feminina e aprópria insígnia e caráter de sua sujeiçãoa Deus e ao homem. 38Gravura de Wenzel Hollar, c.1650. A moda Inglesa em meados doséculo XVII conferia às mulheres um efeito de recato elegante.Acervo. Rtode Janeiro, v. 9, rr 3 1-2. p.>15,jarvtíez 1996 - pag, 11


A C ESamuel Clark comentou, a respeito de suaesposa, que "ela obedecia às ordens quePedro deu às mulheres cristãs em suaépoca", querendo presumivelmente dizerque ela mantinha seus cabelos longos esua cabeça coberta. E a devota, porém39realista condessa de Suffolk, que faleceuem 1649, também gostava desse texto. 40Essas censuras não ficaram limitadas aoapogeu do puritanismo em meados doséculo. Em 1688, Thomas Wall escreveusobre como o homem foi criado com cabeloscurtos, enquanto às mulheres foramdados cabelos longos como um sinalpara distingui-las do homem e"ensiná-las a sujeição". 41Os antigos, notadamente Aristóteles eHomero, argumentavam que as mais belasalmas eram encontradas nos mais beloscorpos. Porém isto divergia das idéias cristãsde salvação e, mais especificamente, dasidéias acerca do julgamento final, quandotodos os crentes seriam ressuscitados emcorpos perfeitos, ainda que estes tivessemsido imperfeitos em vida.Isso não impedia que os escritores tentassemanalisar o que constituía a beleza feminina,especialmente quando as visitas deeuropeus ao Novo Mundo os tornavam maisconscientes da variedade da forma humana.Em 1654, John Bulwer publicou A viewof the people of the whole world." Tratava-sede uma tentativa de classificação daaparência física de todas as raças conhecidas no mundo, ilustrada com xilogravurasde diferentes tipos raciais e físicos. Bulwerrelacionou as diversas características físicasque uma mulher inglesa deveriaidealmente possuir:uma bela testa branca, sem marcas derugas ou linhas... um rosto redondo,agradável e de aparência elegante...uma boca pequena... pequenos dentesbrancos...lábios um tanto cheios, de corcoral, imitando cinabre... o nariz, de tamanhomédio, reto, limpo... narinaspequenas...uma pequena língua curta,cor de púrpura... as sobrancelhas deviamser negras e suavemente arqueadas...as maçãs do rosto redondas... esemelhantes às maças vermelhas do solde outono.Ele invectivava contra o uso, pelas mulheresinglesas, de pintura e sinais, descrevendo-ocomo "bárbaro". Ele se admiravade que não houvesse leis eclesiásticasou civis contra a pintura, tanto parahomens quanto para mulheres. 43A noção de Bulwer do barbarismo de certostipos de adorno pessoal retoma umtema abordado por Roger Williams, o puritanoda Nova Inglaterra. Em um poemade 1643, ele juntou o barbarismo e o cristianismoem um conceitoA verdade é uma beleza nativa, nua;porém as invenções mentirosas são apenaspinturas de índios.Dissimulando os corações, sua belezaé apenas uma mentira.A verdade é a beleza própria dos santosde Deus. 44Muito do que havia por trás da crítica dapreocupação com moda e adorno pessopa&12.jarvrjezl996


Voal era a idéia de que a obra de Deus nãopoderia ser melhorada. Entretanto, o casoera também que as mulheres nobres doséculo XVII tinham o hábito de exibir seustatus em forma de roupas, jóias e maquilagem.Portanto, o que uma devotanobre haveria de fazer? A condessa deWarwick, que faleceu em 1678 e ficou célebrepelos volumes de reflexões espirituaisque manteve durante sua vida, "nuncase permitiria o auxílio da beleza artificial(pois não usava sinais ou pintura)",mas "ninguém estava mais longe de censuraroutros ou de julgar as liberdadesde outros". A pintura era particularmenteexecrada. Mesmo o relativamente rela­45xado Thomas Taylor dizia que não se podiajustificar colorido algum, por "desfiguraro trabalho de Deus e estampar orgulhona face delas". 46Muitas dessas severas críticas da vaidadee do excesso no vestuário datam da primeirametade do século XVII e dos anosde guerra civil e do Commonwealth. Apósa restauração da monarquia, em 1660, eo estabelecimento de uma corte real emque a busca do prazer e a admiração dabeleza feminina eram atividades menosexecradas, desenvolveu-se um mercadode livros com conselhos sobre as maneirasde se melhorar a aparência. O autorde um deles, publicado em 1665, adotoua linha de que a alma, como "moradorado corpo, não deve tê-lo como prisão,mas como palácio". Ele prosseguia, argumentandoque no caso das almas aprisionadasem um corpo imperfeito, "a arteabria seu armazém de medicamentos, esforçando-separa unir todas as partes docorpo em concordância graciosa de feiçõessedutoras". Dez anos mais tarde,47acreditava-se que o superficial havia sefirmado demais,a virtude...está atualmente eclipsadapela beleza externa do corpo, visto quea virtude e a piedade (a verdadeira belezainterior) não podem brilhar; sendoque uma boa alma nada é hoje em dia,em comparação com um belo rosto.* 8As objeções à excessiva preocupação coma aparência pessoal, ao dispêndio extravaganteem roupas e à interferência naobra de Deus pelo uso de pintura e docorte de cabelo não eram levantadas apenaspelos puritanos, mas por homens emulheres devotos de todas as tendênciasreligiosas. As mulheres que transformavamem exemplo sua própria aparênciaganhavam elogios do clero. Entretanto,era preciso atingir um delicado equilíbrioentre a exibição indecorosa e a insuficiênciade cuidados com o decoro. A aparênciapessoal não era apenas urrfa questãoindividual; ela se refletia seriamentena família da pessoa. Ela podia ser usadapor mulheres, bem como por homens,para fazer uma declaração política. Porém,embora fosse importante não ultrapassara marca na retificação da obra deDeus, a falta de preocupação com a aparênciarefletia mal no caráter da pessoa.Voltando a lady Elizabeth Langham: seumemorialista desejava assegurar a seusleitores que, apesar de seus longos perío-Acervo. Rio de Janeiro, v. 9, rf> 1-2. p. 3-15.jan/dez 1996- pag.13


A C Etraços da sua participação no mercado detrabalho.no arquivo Fábio Luz, Maria de Lacerda12Moura, militante feminista, em correspondênciacom o titular entre os anos de 1921e 1922, narra sua dificuldade em se estabelecerno mercado de trabalho em SãoPaulo, para onde fora acompanhar seumarido, problema só vencido com a fundaçãoda revista A Renascença.nos já destacados fundos documentais domovimento feminista existe grande materialsobre o trabalho feminino. Um trecho do relatóriode Berta Lutz sobre a Conferência Pan-Americana da Liga de Mulheres Eleitoras dosEstados Unidos, conhecida também comoConferência de Baltimore (1922), ilustra apreocupação internacional com as garantiasdos direitos no trabalho, o que serviu, entreoutros motivos, como pontapé inicial para aorganização da Liga para Emancipação Intelectualda Mulher, embrião da Federação.no [sic] dia seguinte foi dedicado àsquestões referentes as mulheres na indústriae à supressão da escravaturabranca ...Tive ocasião de delinear levementea situação das operárias brasileirasprestando homenagens a essaclasse de mulheres que considero dasmais dignas. (Ql, cx.l).Talvez com a preocupação de facilitar suavida doméstica, muitas mulheres, brasileirase estrangeiras, desenvolveram, nofinal do século XIX e início do XX, inventoscomo coletes para senhoras, remédios,perfumes, sabonetes, processadores deesterilização de águas, processo deempacotamento do sal refinado, e os registraramno Ministério da Agricultura,Comércio e Obras Públicas, compondo ospedidos dessas patentes parte do fundoPrivilégios Industriais. De maneira esporádica,aparecem algumas patentes fora13desse universo doméstico como porexemplo "nova construção de carros depassageiros para estrada de ferro", deautoria de Alvina Kilmann, em 1907.O chamado 'lado marginal' do trabalhofeminino pode ser percebido pelos inquéritospoliciais e processos das diversaspretorias criminais, os quais enquadravamas mulheres nos artigos presentesno código penal em vigor entre 1890a 1940, principalmente vadiagem,curandeirismo, contravenção. Exemplodisso é o processo 1.289 da 7 pretoriaacriminal — RJ, em que Firmina MariaFerreira (34 anos, analfabeta), por não terdomicílio, meio de subsistência e profissão,é presa após denúncia de um soldado,que sempre a via em uma rua deMadureira fazendo gestos obscenos eusando linguagem chula. Várias testemunhasforam ouvidas confirmando a denúncia,e a mulher é presa. Apesar de alegarque exercia a profissão de lavadeira, éenquadrada no artigo 399, vadiagem, em1914. (72-1279).Com o objetivo de exercer maior controleem relação às atividades artísticas, adelegacia de costumes e diversões do Riode Janeiro'* fichava os artistas em geral,inclusive mulheres, registrando nome,pseudônimo, dados biográficos,pag..208. Jan/dez 1996


R V Ocaracteres cromáticos (olhos e cabelos),estatura, marcas particulares e informaçõesligadas ao exercício profissional.No dossiê do concurso para provimento decargos da classe inicial da carreira de cônsul,do quadro único do Ministério das RelaçõesExteriores, fundo Departamento Administrativodo Serviço Público (DASP), 15cujo edital não explicita a exclusividademasculina, há um parecer de Mário de Britoque torna claro a discriminação existente,com o seguinte texto:[...] Proponho a aprovação das inscriçõesde todos os candidatos, com exceção dosnúmeros (...) por serem do sexo feminino(o decreto-lei n° 791, de 14.10.1938, quereorganiza o Ministério das Relações Exteriores,no parágrafo do art. 30 veda a inscriçãode pessoas do sexo feminino paracarreira de diplomata) [...] 19.10.1938.EDUCAÇÃON^o segundo reinado, com avinda da corte portuguesapara o Brasil e a abertura dossalões no Rio de Janeiro, os pais começama investir na educação das filhaspara assegurar-lhes melhor casamento,fornecendo-lhes pinceladas de cultura.Tãl comportamento envolvia classes sociaismais privilegiadas com algum reflexonas demais. Lentamente as mulheresforam entrando para cursos tradicionalmentemasculinos, como direito emedicina, visando não somente um bomcasamento como também o mercado detrabalho.Um dos objetivos principais da PBPF aoser criada foi incentivar o acesso da mulherà educação. Em seu estatuto, no relatóriodo Congresso de Baltimore e naCerimônia de formatura, s.d. Arquivo Nadonal.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 203-224. Jan/dez 1996 - pag 209


R V OShakespeare's youth, part 1. New Shakespeare Society: series VI, n° 4, 1877, p. 64.13. TAYLOR, Thomas. Three treatises: the pearle of the gospell, the pilgrims professionand a glasse for gentlewomen to dress themselves by. London: 1633, p. 195.14. Idem, ibidem, pp. 196, 202, 205.15. FURNIVALL, F. J., op. cit., pp. 38-9.16. KENT, Joan. "Attitudes of members of the House of Commons to the regulation of'personal conduct' in late Elizabethan and early Stuart England". In: Bulletin of theInstitute of Historical Research, 46, 1973, p. 44.17. WITHINQTON, Lothrop (ed.). Elizabethan England from 'A description of England' byWilliam Harrison, Camelot Series. London: 1890, p. 110.18. FURNIVALL, F. J., op. cit., p. 73.19. RICH, Barnaby. My ladies looking glasse. London: 1616, p. 21.20. FRYNNE, William. The unloveliness, epístola do leitor.21. BRINSLEY, John. A looking glasse for good women held forth by way of counsel andaduice. London: 1645, pp. 1, 2, 12, 13.22. F. W. Fairholt (ed.). Satírica/ songs and poems of costume, Percy Society 27, 1849,pp. 147-8.23. HARRISON, William. A description of England, pp. 107-8, 109-10.24. FURNIVALL, F. J., op. cit., p. 32.25. Citado em Stubbes's anatomy, p. 77.26. NOTESTEIN, W.; RELF, F. H.; SIMPSON, Hartley (eds.). Commons debates 1621. YaleUniversity Press. New Haven: 1935, p. 467.27. BURNET, Mrs., op. cit., pp. 99.28. Idem, ibidem, p. 101.29. STUBBES, Philip. Christal glasse for christian women, London, 1626, epístola;STAUNTON, Edmund. A sermon preacht at Qreat Milton in the county of Oxford. Oxford:1659, p. 23.30. CLARKE, Samuel, op. cit., p. 155.31. HUNTER, Jos. Dorcas revived the second time. London: 1660, p. 3732. CLARKE, Samuel, op. cit. , p. 212.33. MOORE, Francis. Tiatures goodnight, or, a sermon. London: 1656, p. 29.34. HUNTER, Jos, op. cit., p. 37.35. I Coríntios 11, 13-15.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, rt°l-2,p.3-15,janAiez 1996-pag.l5


36. PRYNNE, William, op. cit., p. 39.37. A discoverie of stx women preachers, in Middlesex, Kent, Cambridgeshire andSalisbury. London: 1641, p. 2.38. PRYMME, William. The unloveliness, epístola ao leitor , op. cit.39. CLARKE, Samuel, op. cit., p. 155.40. Idem, ibidem, p. 213.41. WALL, Thomas. Spiritual armour: to defend the head from the superfluity ofnaughtiness...wherein is proved, that it is unlawful for women to cut their hair polledor shorn; and men to wear the same to cover their heads. London: 1688, p. 3.42. Ampliado de Anthropometamorphosis: man transform's or the artificial chageling.London: 1650, 1653.43. BULWER, John. A view of the people of the whole world. London: 1654, pp. 131-2,261, 267.44. Editado em H. T. Meserole, W. Sutton, B. Weber (eds.). American literature: traditionand innovation, vol. 1, Early American Literature, D. C. Heath. Lexington, Mass.: 1969,p. 166.45. CLARKE, Samuel, op. cit., p. 169.46. TAYLOR, Thomas. Three treatises, p. 205.47. M. S. Artificial embellishments, or, arts best directions how to preserve beauty orprocure it. Oxford: 1665, pp. 1, 2-3.48. A protestant antidote against popery...written in a letter to a young lady, by a personof honour. London: 1674, p. 20.A B S T R A C TThe aim of this article is the discussion which took place in England during the seveteenthcentury: does a beautiful soul require a beautiful body? The text analyses Anglican Churchpositions and the dilemma of godly women who had to have a virtue appearance thatmust be also charming and pleasaut to the society and to their husbands and relatives.R É S U M ÉLe point principal de cet article est la discussion qui sest emparé de la société anglaiseau XVIIè siècle: la beauté de 1'âme serait-elle plus importante que la beauté physique? Letexte presente les positions de 1'Eglise Anglicane sur le sujet et le dilemme des femmespieuses, qui devraient faire preuve de vertu, se montrer belles à la société et plaire à leurmari et à leur famille.


Angela de Castro GomesProfessora titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense.A guardiã da memóriaComo todos os textos,este tambémtem uma história e,no caso, não é supérfluo por elainiciar. Em meados do ano de 1991,coordenando o Setor de História Oral doCentro de Pesquisa e Documentação emHistória Contemporânea do Brasil(CPDOC) da Fundação Qetúlio Vargas, fuisurpreendida com a notícia de que AlziraVargas do Amaral Peixoto estava dispostaa nos conceder uma entrevista. O fato nãoteria em si nada de especial, não fosse d.Alzira particularmente resistente à concessãode entrevistas, incluindo-se aí aprópria gravação de um depoimento paracompor o acervo histórico do CPDOC. Maverdade, ela já realizara, entre abril emaio de 1979, (portanto fazia mais de dezanos), uma gravação quefora interrompida pelos afazeresde sua atribulada vidae nunca mais retomada. As evasivassempre foram numerosas e ve­1rossímeis, mas uma certa experiência notrato com depoentes nos indicava — a mime aos demais pesquisadores — que haviarazões mais profundas para que ela não sedispusesse a reiniciar os trabalhos.Portanto, sua deliberação era plena designificados, só que nós não avaliávamoso quanto. Aos 77 anos de idade, ela convocavao CPDOC a refazer os contatos por2tantas vezes afastados, mas mantinha amesma motivação e condição anteriores:não desejava falar sobre si mesma, massobre seu pai, cuja memória vinha sendosistematicamente deturpada e esquecida.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 17-30. Jan/dez 1996 - pag.17


A C Ecom forte colaboração da imprensa dopaís. Ela reiterava que se considerava cansadae desiludida de jornalistas e nãomais disposta a, como antes o fizera, concederentrevistas a revistas ou jornais. Odepoimento oral se transformava em formaútil de recomeçar um trabalho de redaçãosobre o Ciclo Vargas, iniciado muitotempo atrás e cujo resultado fora o livroGetúlio, meu pai, publicado em 1960,reunindo suas memórias sobre um períodoque vai até o fracassado golpeintegralista de 1938. A idade mais avançadapermitia-lhe maior disponibilidade3para o trabalho de rememoração. OCPDOC, depositário do arquivo privado deseu pai, de seu esposo e dela própria,afigurava-se como instituição capaz decorresponder a seu projeto: registrar averdade' política sobre o pai.Como se vê, náo foi tarefa fácil entrevistarAlzira Vargas que, sistematicamente,recusava-se a debater temas que consideravapessoais, insistindo num relatoonde o personagem principal era GetúlioVargas e onde ela buscava inserir-se comoum dentre os demais coadjuvantes. Apenas,como ela mesma, passou a concordar,um coadjuvante especial não só porseus vínculos familiares, como principalmenteporque — e ela compreendia bem— era sob sua ótica que os acontecimentoseram narrados, o que sem dúvida iriacorrigir os inúmeros equívocos a respeitoda biografia de Getúlio.Neste sentido, a própria linguagem usadapor ela é muito esclarecedora. Comfreqüência, fala na terceira pessoa do singular,como que tomando o lugar do paie reconstituindo suas ações. Com freqüência,também, encena os diálogos quetravou com o pai, intercalando-os comcomentários explicativos sobre sua personalidade.Desta forma, 'falando sobreGetúlio', como queria, vai delineando otipo e a evolução de sua inserção na políticae vai nos permitindo identificar elementosfundamentais de sua visão demundo — de mundo político, em particular—, fundada em muita sensibilidade einformação privilegiada.Este depoimento, lamentavelmente, nãochegou a ser concluído, sendo interrompidopor sua doença e morte, em 26 dejaneiro de 1992. Examinando a posterioria dinâmica da entrevista, é razoável suporque d. Alzira tinha conhecimento deseu estado de saúde, e o desejo dereiniciar sua tarefa com o auxílio doCPDOC, bem como alguns comentáriosdispersos, sobretudo nos intervalos dasgravações, são indicativos nada desprezíveis.Mas nós, as entrevistadoras, emborapercebêssemos sua fragilidade física,não imaginávamos a gravidade da situaçãoe fomos surpreendidas com o cursodos acontecimentos.Como o depoimento ficou a meio caminho,torna-se difícil avaliar até que pontohaveria grandes novidades' tanto em relaçãoao que a própria d. Alzira já haviarevelado, quanto em relação à bibliografiasobre o período. Mas, a despeito destefato, algumas considerações podem epag. 18. jan/dez 1996


R V Odevem ser traçadas. Em primeiro lugar, oexame cuidadoso e comparativo de suasduas etapas, separadas por um longo intervalode tempo, revela um trabalho desolidificação' da memória muito grande.Ou seja, d. Alzira construiu uma certa interpretaçãodos principais eventos queenvolveram a figura do pai (e dela mesma),elegendo estruturas narrativas quese repetem, alterando-se de forma apenassecundária. Assim, ela sustenta umamesma versão de acontecimentos, daação de personagens e do sentido de conjunturaspolíticas ao longo de todo o depoimentoque, cotejado com o texto dolivro e também com o de várias entrevistas,apresenta uma extrema convergência.Se tal característica remete à existênciade um discurso fechado', que precisaser questionado e testado pelo historiador,remete igualmente a um solo fértilpara reflexões sobre o modo de pensar eatuar da depoente, o que certamente foisendo decantado ao longo do tempo.Foi justamente tendo como base este soloque nasceu a proposta inicial deste texto.Ele tinha como objetivo específico examinara trajetória de Alzira Vargas como estratégiapara pensar as relações entremulher e política no Brasil, destacandoalgumas dimensões relevantes de umaexperiência peculiar e, por isso,paradigmática.Considerando que até hoje são pouconumerosas as mulheres que participam davida pública do país com repercussão ereconhecimento, seria esclarecedor trabalharcom a trajetória de uma mulher que,durante cerca de meio século — dos anosde 1940 aos anos de 1980 —, participouintensamente da política de forma extremamentesingular. Esta singularidade estariademonstrada pela forma de acessoà política e pelas condições de fazer políticaque marcaram seu desempenho eque náo podem ser dissociadas de seusvínculos familiares. Isto porque, foi nasituação de filha e de esposa que ela participouprivilegiadamente dos círculosmais restritos do poder, podendo conhecere acompanhar "de dentro de casa' atrama e os personagens principais da vidapolítica do Brasil.Contudo, se esta situação, em tese, poderiaconduzir à sugestão de uma personalidadea reboque, sem autonomia deidéias e de ação, foi efetivamente o quenão ocorreu. Ou seja, foi exatamente nestasituação sui generis de filha e esposa,que ela teve condições de construir umacarreira política com visibilidade e eficáciapróprias e indissociável de sua inscriçãofeminina. Essa mulher, por casamentoAlzira Vargas do Amaral Peixoto, queficou conhecida no folclore político brasileirocomo Alzirinha', diminutivo quebusca caracterizar a força de sua presençaem vários momentos cruciais da vidapolítica do país, seria um exemplo privilegiadopara situar as relações entre mulhere política na sociedade brasileira.Mas, dando início ao trabalho de análiseda entrevista e reexaminando o texto deseu livro, uma outra temática passou aAcervo, Rio de Janeiro, v. 9. n» 1-2. p. 17-30. jan/dez 1996 - pag. 19


A C Ecada vez mais ganhar espaço em seu relato,impondo-se como principalvinclusivepara iluminar a questão eleita originalmente.Isto porque, tratava-se de umadepoente que explicitamente se atribuíao dever de guardar e reproduzir a memóriade seu pai: de 'falar' por ele comopessoa privada e pública, já que Qetúlioera um dos mais importantes personagensda história do Brasil. Em o fazendo,portanto, ela não só reconstruía a memóriade sua família, como a de toda umaépoca estratégica para nossa história.Entretanto, seu relato, ao delinear o perfildo pai — pois não era casual que a entrevistasobre ele se estruturasse — instauravauma imagem de Alzira sobre elamesma, cuidadosamente conformadaatravés do tempo: a de guardiã da memória.Alzira Vargas nasceu em 1914, filha de QetúlioDornelles Vargas e Darcy Vargas, emuma casa onde já se fazia política. Com aRevolução de 1930, ela se tornaria a filhadileta daquele que por 15 anos governariao país, sendo sucessivamente chefe doGoverno Provisório, presidente eleito indiretamentee mais uma vez chefe de um governode exceção: o Estado Movo.É exatamente neste período que ela fazsua entrada na política, não só por suacondição de filha do presidente, comotambém porque se torna uma das auxiliaresde gabinete do pai. É também nesteperíodo, em 1939, que se casa comErnani do Amaral Peixoto, entãointerventor do estado do Rio de Janeiroque, após 1945, tem longa e destacadavida política como governador de estado,senador da República e líder partidário.Desta forma, a partir dos anos de 1940,era de conhecimento geral (nacional einternacional) que Qetúlio Vargas tinha nafilha um de seus interlocutores privilegiados.Esta condição ganharia ainda maiordestaque no período do segundo governoVargas (1950-1954) quando, eleitopelo povo por voto direto, Qetúlio voltaao poder para dele sair através do trágicoepisódio do suicídio.Nestes anos e sobretudo neste episódio,a figura de Alzira se inscreve de formaparticular, uma vez que teria tido acessoa informações e a debates de que poucosparticiparam. Sua intervenção pessoal naúltima reunião ministerial realizada porQetúlio para discutir a hipótese de suarenúncia, e sua presença no Palácio nomomento da morte do pai, dão bem amedida do tipo de participação e de forçapolítica que ela então possuía. A partir de1954, portanto, a atuação política deAlzira Vargas sofre transformações, nãoporque ela abandone o cenário público oudeixe de ser vista como uma de suas figurassignificativas, mas porque muito desua energia e paixão políticas passam aser canalizadas para um projeto no qualjá estava envolvida, mas que passa a recebernova atenção. É neste momento queela se dedica à redação do livro já mencionado,escrito sob o impacto do suicídioe como uma estratégia pessoal de,através da memória, recompor uma idenpag.20,jan/dez 1996


R V Otidade fortemente abalada.A memória é um trabalho. Como atividade,ela refaz o passado segundo os imperativosdo presente de quem rememora,resignificando as noções de tempo e espaçoe selecionando o que vai e o quenão vai ser dito', bem longe, naturalmente,de um cálculo apenas consciente eutilitário. Quem aceita fazer o trabalho damemória, o faz por alguma ordem de razõesimportantes, dentre as quais estãoa busca de novos conhecimentos, a realizaçãode encontros com outros e consigomesmo, de forma a que os resultados sejamenriquecedores sob o ponto de vistaindividual e coletivo. A rememoração podeser um difícil processo de negociaçãoentre o individual e o social, pelo qualidentidades estejam permanentementesendo construídas e reconstruídas, garantindo-seuma certa coesão à personalidadee ao grupo, concomitantemente. 4A guarda de uma memória comum é fatoressencial na formação e manutençãode grupos (de tamanhos e tipos variados),bem como é elemento base de sua transformação.Por isso, não pode sofrer mudançasabruptas ou arbitrárias, sob o riscode desintegrar referenciais fundadorese ameaçar a própria manutenção da identidadedo grupo. Esta dimensão da memória,que lhe dá limites e demandareelaboração permanente, vincula-se aum fenômeno que a literatura especializadachama de 'trabalho de enquadramento'da memória. Por conseguinte, oenquadramento e a guarda da memóriacomum se retroalimentam, estando ligadosà presença de uma figura especial —porque singular no grupo e porque especializada— , que se reconhece e é reconhecidacomo o guardião da memória.O guardião ou o mediador, como tambémé chamado, tem como função primordialser um 'narrador privilegiado' da históriado grupo a que pertence e sobre o qualestá autorizado a falar. Ele guarda/possuias 'marcas' do passado sobre o qual seremete, tanto porque se torna um pontode convergência de histórias vividas pormuitos outros do grupo (vivos e mortos),quanto porque é o 'colecionador' dos objetosmateriais que encerram aquela memória.Os 'objetos de memória' são eminentementebens simbólicos que contêma trajetória e a afetividade do grupo. Sejamdocumentos, fotos, filmes, móveis,pertences pessoais etc, tudo tem em comumo fato de dar sentido pleno, de 'fazerviver' em termos profundos o própriogrupo. Tais objetos podem ser, assim, umbom exemplo do que Pierre Nora consagrou,em sua metodologia, com a designaçãode lugares da memória'. Este acervo,que também inclui, com destaque,relatos preciosamente recontados, é aprópria identidade do grupo materializada':é sua riqueza, poder e emoção. 5O guardião, nesta perspectiva, é um profissionalda memória. No meio familiar, écomum que os avós assumam esta função.Em outros grupos sociais, a questãodeve ser examinada em particular e podeter variações. O que de certa forma é co-Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 17-30. Jan/dez 1996 - pag.21


A C Emum, e interessa em particular a este texto,é que há momentos e motivações especiaisque marcam o início da carreirade um guardião da memória. Eles sãoemblemáticos e passam a dominar a trajetóriade vida daqueles que se imbuemde tal tarefa. Ser guardião tornam-se um'projeto', como Gilberto Velho nosrelembra: "uma conduta organizada paraatingir finalidades específicas". Um projeto,portanto, imprime sentido duplo à6vida de um indivíduo: dá-lhe direção esignificado. Um projeto organiza o relatodo narrador quando ele fala de si e dogrupo a que pertence e representa.Alzira Vargas é uma guardiã da memóriade seu pai, de sua família e de seu país.Foi esta obviedade, sobre a qual não mehavia dado conta em toda a extensão, queela me impôs com seu depoimento. Aofalar a 'verdade' sobre seu pai e , portanto,sobre a história do Brasil, ela indiscutivelmenteconstruía uma imagem sobresi mesma como pessoa preocupada e ocupadacom a questão da memória. Se euestava interessada em sua imagem comomulher e em suas relações com a política,não poderia deixar de reconhecer quetudo o que d. Alzira dizia e fazia, quandoda entrevista, sofria a inflexão fundamentalde seu papel precípuo de guardiã.Por isso, analisar sua iniciação e trajetóriapolíticas, é também refletir sobre ascondições que a introduziram na carreirade guardiã, ilustrando um exemplo bemcomplexo pelas interrelações entre memóriada vida familiar e memória da vidapolítica nacional.A iniciação política de Alzira Vargas ocorreuem meados dos anos de 1930, quandofreqüentava a Faculdade de Direito doRio de Janeiro e quando o voto foi concedidoà mulher no Brasil. Getúlio, segundoela, tinha concepções modernas a respeitoda mulher e foi quem praticamenteexigiu que ela fizesse o curso de direito.Mulher, para ele, fala d. Alzira, tinha quesaber três coisas: datilografia, dirigir automóvele falar inglês. Ela preencheriaperfeitamente estas demandas, cultivandocom orgulho, até o Fim da vida, umaimagem de mulher audaciosa para os padrõesde sua época. Mos anos de 1930,por exemplo, não gostava de usar chapéu,casou-se sem vestido de noiva e absolutamentenão se incomodava com etiquetasou com o que 'os outros' poderiampensar. Sua descontração de postura novestir e no falar tinha continuidade nocampo das idéias, evidenciando sua independênciano que fora, aliás, sempreestimulada pelo pai.É, portanto, com naturalidade que pontuasua nomeação para auxiliar de gabinetedo pai, em inícios de 1937, quandopassa formalmente a se incumbir dos serviçosde intérprete, de correspondênciapara os Estados Unidos, de toda a partedos cifrados (fundamentais no contexto daSegunda Guerra Mundial) e, muito particularmente,da tarefa de organizar a bibliotecae o arquivo pessoal de GetúlioVargas. Em seu relato, fica muito claro o7quão capital é esta experiência em terpag.22.jan/dez 1996


R V Omos existenciais e políticos: "A primeiravez que tomei conhecimento de fatos,quando papai entregou-me a primeirafornada de papéis, levei um susto. O queera corrente no público era mentira. Averdade estava ali, nos papéis". O susto foirealmente muito grande — "fiquei com medode mim mesma..." — e os cuidados para sepoliciar não foram menores: "havia aquelaclássica crença de que a mulher é indiscreta,gosta de fofoca".É a partir deste momento e desta fornadade papéis, que Getúlio passa a entregar-lhe'coisas que não contava para ninguém'e que ela se transforma numa 'espéciede depósito' do pai ou em 'sua segundaconsciência'. Como narra:Muitas vezes queria rasgar um papel,eu não deixava. E muitas vezes se aconselhavacomigo. [...] Despachava comele, com os ministros, havia certos ministériosque ficavam afetos a mim; eraeu quem despachava.!...] Por essas coisas,comecei a ter a confiança de muitaDa esquerda para a direita: Aimée Sotto Mayor Sá, Alzira Vfergas e Manuel dos Anjos,em São Lourenço (MG), na segunda metade da década de 1930. CPDOC.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 17-30, janAlez 1996 - pag. 23


A C Egente, porque tinha a dele. Pensavamque eu mandava e desmandava nele, oque não era verdade.Sem dúvida, é este episódio que inauguraa carreira de 'Alzirinha', não tanto porintroduzi-la nas lides do trabalho político,mas pela forma como isto foi feito evivenciado. Por ter aberto as portas —como seu relato induz a pensar — para a'outra' tarefa: a de guardiã da memória.Isto porque, embora a função de auxiliarde gabinete seja um cargo de confiançapessoal do presidente, ele não se traduznecessariamente, mesmo no Brasil, porvínculos familiares. Mas, a organização dabiblioteca e, sobretudo, do arquivo particularé algo distinto, possibilitando umcontato com a política e com os políticosmuito particular. A perspectiva oferecidapelos papéis pessoais de uma personalidadepolítica — o acesso à sua correspondência,por exemplo — é de algumaforma semelhante à da confidencia. A correspondênciaoferece uma visão 'por dentro',onde os movimentos dos indivíduose suas motivações são explicitados de formamuito íntima. A condição de filha parao desempenho desta função talvez tenhasido fundamental: uma mulher com ligaçõesacima de quaisquer suspeitas e capazde pôr ordem no interior da trama política,ao mesmo tempo privada e pública;capaz de 'arrumar a política' nos seusmínimos detalhes e sem indiscrições.Toda essa forma de socialização comeventos, personagens e lugares foi defi-Alzlra Vargas dirigindo o carro de seu pai, nos anos de 1930. CPDOC.pag.24, jan/dez 1996


R V Onitiva para d. Alzira. Sua ótica sobre a Esta construção política fica bempolítica ficaria marcada por duas característicasfundamentais. O personalismo, tratar o pai: 'patrão'. É desta maneira que,traduzida na fórmula que encontra paraisto é, uma ênfase interpretativa no papeldos atores, que não só 'explica' mais designar Getúlio e a organizar seu pró­desde os anos de 1940, ela passaria ae melhor que a conjuntura e os processospolíticos, como tem precedência sodoNovo (1937-1945), em especial osprio mundo da política. Os anos do Estabreas instituições. Ou seja, os homens acontecimentos que envolveram o Brasilmoldam as instituições, muito mais do na Segunda Guerra Mundial, projetaramque são por elas moldados. Assim, ao d. Alzira e também seu marido-interventormenos em grande parte, os problemas no cenário político nacional, transformando-osnos articuladores privilegiados paraestão nos homens — nas elites políticas— que se avultam na história. A outra característicaé uma espécie de divisão cana em Natal, em troca da construçãoo estabelecimento da base norte-ameri­bipolar do campo da política que, sem da primeira indústria siderúrgica do Brasil.O fim da guerra e a morte do presi­dúvida, é visto como um campo de lutaacirrado, onde é preciso ter firmeza e clareza.Ou seja, para d. Alzira havia os que mente sua ótica personalista e bipolar:dente Roosevelt reforçariam definitiva­estavam com o pai e com ela mesma, e não fora isto, o Brasil talvez estivesse noaqueles que eram seus adversários: os Conselho de Segurança da ONU.inimigos, os traidores, e os suspeitos profissionaisou eventuais. 8 d. Alzira numa nova esfera deMas o fim do Estado Novo também lançaatuaçãoCasamento de Alzira Vargas com Ernanl do Amaral Peixoto em jullho de 1939. Ao lado de Alzira.Getúlio Vargas e sua irmã, Jandira. CPDOC.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n- 1-2. p. 17-30. JanAlez 1996 - pag.25


A C Epolítica, na qual ela se mostra exímiaarticuladora e líder: a esfera político-partidária.Aí é preciso destacar o que talvezseja a grande marca da carreira desta política'sui generis. Ela não se Filia a qualquerpartido e muito menos ocupa qualquercargo público eletivo ou não, excetuando-seas funções que, na qualidadede esposa/mulher de um político, é formalmenteobrigada a desempenhar. Mocaso da tradição brasileira, estas funçõesligam-se a atividades assistencialistas,normalmente vinculadas à proteção dacriança e da mãe pobre ou de setores desamparadosda população.Embora tal escolha possa parecer 'natural',é preciso refletir sobre as razões quea orientaram e que estão bem longe deter prejudicado d. Alzira por ausências deengajamento reclamadas. Meste sentido,a falta do vínculo partidário é bemreveladora e potencializadora da atuaçãode 'Alzirinha'. Em sua entrevista, esclareceque não quis filiar-se a um partido "pelosmesmos motivos do meu pai. Muncaconsiderei o Brasil como uma parte, umpartido. Eu via o Brasil como um todo.Então, achava que se eu pertencesse a umpartido, teria que ser leal a ele. Da mesmamaneira, nunca quis ser bandeirante,nem filha de Maria, nem coisa alguma". Aherança de uma proposta globalizadorade cunho nacional é muito clara. Os brasileirosdevem pertencer ao partido daMação e, nesta lógica, 'lealdades' a partidospolíticos podem ser ameaçadoras. Ob/as antipartidário, aí subentendido, é aindamuito forte no Brasil, até hoje, reforçadoque foi por um bailado de siglas quenão conseguiram tempo de vida suficientepara criar tradição e para formar identidadesreconhecidas, afastando acusaçõesde ameaça à unidade política do paíspor inépcia ou má-fé.D. Alzira é um exemplo paradigmáticopara se pensar esta dimensão da vidapolítica do país. Mão filiada a qualquerpartido, conversa e tem ascendência sobreinúmeros políticos de vários partidosda República do pós-1945 e até, emboramuito menos, do pós-1964. Afinal, ela conheceramuitos deles intimamente (pelospapéis de seu pai) e pessoalmente, quandonão havia partidos no Brasil. Esta experiênciaestá na raiz do trânsito e dasegurança das ações políticas desta mulherque afirmava entender de política,possuindo ampla consciência de seu sabere poder.Mais uma vez, sua condição feminina édeterminante para esta atuaçãosuprapartidária. D. Alzira era uma igualinteiramente diferente. Meste mundo masculinoda política que ela freqüentava, nãocompetia, ao menos eleitoralmente. Contudo,havia um preço a pagar por tantotrânsito e prestígio políticos: "Eu era chamadaquinta coluna em todos os partidos,porque me dava com gente da UDM, doPSD, do PTB, do PR...".Apesar de todos estes contatos, ela passariaironicamente a ser conhecida no folclorepolítico como a 'babá do PTB', oPartido Trabalhista Brasileiro, organizadoem 1945 para ser o partido das massaspag.26. jan/dez 1996


R V Otrabalhadoras do Brasil: "[...] eu vim paracá — Rio de Janeiro — e fiquei tomandoconta do partido. Então, toda vez que haviauma encrenca maior, eles recorriam amim. O que eu podia resolver eu resolvia,e o que não podia eu mandava, numcódigo que tinha com papai, para que eleresolvesse". Entretanto, se ela era a "babádo PTB', os próprios petebistas a consideravama 'mãe do PSD', partido do qualErnani do Amaral Peixoto chegou a serpresidente nacional.rio caso, vale a pena a citação, apesar delonga:Mesta época o Jango — João Goulart —já era presidente do partido — do PTB.Eu disse: olhe, Jango, a UDN do estadodo Rio anda feroz contra nós —PSD —, contra o Ernani e contra mim.Se você quiser fazer acordo com a UDNpor baixo da capa, você faz onde bementender, mas no meu estado você nãopode fazer. Oficialmente, não precisodos seus votos. Se for necessário, voupara a praça pública fazer campanha.Agora, oficialmente você não tem o direitode ser contra o Ernani, portantocontra mim, filha do presidente de honrado partido. [,..]de fato, no estado doRio o PTB só fez um deputado. 9Desta forma, pode-se afirmar que o tipode acesso e de exercício da política qued. Alzira experimentou, marcou decisivamentesua ação e visão políticas de mundoaté o fim da vida.É compreensível, e já foi muito comentado,o impacto que o episódio do suicídiotem sobre d. Alzira. Segundo sua secretáriaparticular, houve de fato duas Alzirase a 'verdadeira' era a primeira, que eu nãoAlzira Vargas do Amaral Peixoto trabalhando em sua residênda, provalvelmente, no finalda décadade 1950. CPDOC.Acervo. Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 17-30, janAlez 1996 - pag.27


A C Econheci, como ela amavelmente me esclareceu.Pela profundidade da perda,10ainda pelo mesmo relato, d. Alzira foraaconselhada a escrever, ainda que, comoo comentário acima encaminha, o resultadodo trabalho fosse a produção de umaoutra Alzira, como aliás ocorre com todosos que experimentam este percurso.Quando em 1960 seu livro é publicado,ela mais uma vez tomava em suas mãosos 'papéis' do pai e do país, reatualizandoo encargo que dele recebera em meadosdos anos de 1930: ela tornava-se, emdefinitivo, uma guardiã da memória. Aextensão e volume do encargo, apenas emtermos materiais, podem ser avaliadospelo conjunto da documentação que abarcaos arquivos privados de Qetúlio Vargas,Ernani do Amaral Peixoto e dela própria,todos no CPDOC."os tais cadernos e sorria, desconversando,quando era abordada mais diretamentesobre o assunto. Com sua morte, como épúblico, eles foram encontrados porCelina Vargas do Amaral Peixoto 'escondidos'pela casa, numa última tática daguardiã, desejosa de exibir e manter segredos.Os diários de Vargas são hoje12uma fonte publicada. Neles, aqui e acolá,sente-se o lugar ocupado por esta fi­13lha no projeto do pai. Contudo, eles seencerram em 1942 e muito mais iria aindaocorrer na vida de Qetúlio e de'Alzirinha'. Neste caso, vida intensa e repletade acontecimentos singulares, sejana perspectiva feminina, seja na política.Porém, antes da existência desta instituição,diversos pesquisadores nacionais einternacionais consultavam este acervo,com arranjos que ela própria produziu eem sua residência. Depois de feita a doação,sabia-se que havia ainda materialcom d. Alzira e que ela não desistira deseu projeto de escrever sobre o CicloVargas. A entrevista, solicitada em 1991,integrava uma estratégia de viabilizaçãomais rápida de seu desejo, que acabariapor frustrar-se. Assim, só a morte encerrasua missão, mas não sem surpresas.Sabia-se, como mencionado, que d. Alziraguardava 'coisas e, como ela mesma contava,que Qetúlio tinha uns 'caderninhos'onde fazia notas. Mas, ela não mostravaAlzira Vargas do Amaral Peixoto na IX Reunião doConselho de Doadores do CPDOC/FGV em 19 dedezembro de 1979. CPDOC.pag.28, jan/dez 1996


R V OMas, se houve um eixo a estruturar osfragmentos com os quais se compõemtodas as vidas, para Alzira Vargas ele foia tarefa de guardar uma memória que elaentendia como vital para si e para os outros,não creio que tenha se enganado naavaliação ou no desempenho.Esta é uma versão revista e ampliada deuma comunicação apresentada no II En-contra Nacional de História Oral - HistóriaOral e Multidisciplinaridade -, realizado noRio de Janeiro, em abril de 1994. A seleçãode fotos para este texto foi realizadaentre mais de uma dezena de álbuns defamília, chegados ao CPDOC após a mortede Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Agradeçoa Monica Almeida Kornis e Aline Lopesde Lacerda a orientação rápida e segura.N O T A S1. Alzira Vargas do Amaral Peixoto trabalhou na Casa do Pequeno Jornaleiro, criada porsua mãe, Darcy Vargas, até sua morte.2. Mão participei da primeira série de entrevistas, tendo trabalhado na segunda com apesquisadora Maria Celina D'Araujo. Todo o depoimento, totalizando cerca de vintehoras, foi realizado entre abril e maio de 1979, como mencionado, e entre setembroe outubro de 1991. As citações de falas de d. Alzira a ele se referem e não contêmmaiores indicações por terem sido colhidas quando estava em processamento. Odepoimento encontra-se no CPDOC, mas sua segunda parte não está aberta à consulta.3. PEIXOTO, Alzira Vargas do Amaral. Qetúlio, meu pai. Rio de Janeiro: Globo, 1960.4. Muitos textos discutem as questões aqui brevemente mencionadas. Entre eles, valemencionar como indicação POLLAK, Michael. "Memória, esquecimento, silêncio". In:Estudos Históricos. Rio de Janeiro: vol. 2, n. 3, 1989, pp. 3-15; e LEVI, Giovanni."Les usages de la biographie". In: Annales ESC. Paris: n. 6, nov./dec. 1989, pp. 1325-1336.5. Sobre a figura do mediador, além do texto de Pollak acima citado, ver, na mesmaobra, BARROS, Myriam Moraes Lins de. "Memória e família". In: Estudos Históricos,pp. 29-42.6. VELHO, Gilberto. "Memória, identidade e projeto". In: Projeto e metamorfose. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 1994. Ver sobre o tema os artigos de BOURDIEU, Pierre. "Lailusion biográfica" e CLOT, Yves. "La otra ilusion biográfica". In: Historia y FuenteOrai, n.2, Barcelona, 1989, pp. 27-39.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2. p. 17-30, janMez 1996 - pag.29


7. Alzira foi convidada para o cargo por Luís Vergara, secretário da Presidência, e nelepermaneceu até o fim do Estado Novo, em novembro de 1945. Após esta data, enquantoQetúlio esteve no Rio Grande, ela foi um dos elos mais importantes para suacomunicação com a política nacional.8. D'ARAUJO, Maria Celina. 'tflós e eles". In: Jornal do Brasil, 29.1.1992, p. 11, comentatambém este aspecto.9. João Goulart assume a presidência do diretório nacional do PTB em maio de 1952.10. Zilda Carneiro Leal. Depoimento, CPDOC/FGV, 1992.11. Sobre o arquivo de Getúlio Vargas, ver SILVA, Suely Braga da. "O legado documentalde Getúlio Vargas". In: GOMES, Angela de Castro. Vargas e a crise dos anos 50. Riode Janeiro: Relume-Dumará, 1994.12. Não é casual que a filha de Alzira Vargas tenha sido criadora do CPDOC, diretora doArquivo Nacional, e seja figura de destaque nas questões que envolvem legislação deacesso a informações no Brasil.13. Qetúlio Vargas: diário. São Paulo/Rio de Janeiro: Siciliano/FGV, 1995.A B S T R A C TThis text seeks to reflect on the relations between women and politics in Brazilian society.Considerir.g that even nowadays, there are few women whose participation in the country'spolitical life is widely disseminated and acknowledged, it is enlightening to follow thepath of a woman, Alzira Vargas do Amaral Peixoto, who for about half a century — fromthe 1940's to the 1980's — participated intensively in politics, in an extremely uniqueway. The major reason for this uniqueness is that she assumed the task of preserving herfather's and her family's memory, and in so doing, she played a prominent role inpreserving the national heritage.R É S ü M ÉCe texte essaye de montrer les rapports entre Ia femme et Ia politique dans Ia sociétébrésilienne. Vu que, jusqu' à nosjours sont peu nombreuses les femmes qui ont participeactivement à Ia vie publique du pays, qui ont joué un role reconnu et de granderépercussion, rien de plus juste que d'écrire sur Ia trajectoire d'une femme, Alzira Vargasdo Amaral Peixoto, qui pendant presquun demi siècle - des années 1940 aux annés 1980- a participe intensivement à ia politique et dune manière absolument singulière. Cettesingularité se doit au fait d'avoir assume la mission de gardienne de la mémoire de sonpère, de sa famille et, en ce faisant, d'avoir joué un role important dans la préservationde la mémoire nationale.


Sandra Lauderdale GrahamProfessora da Universidade do Texas, Austin.O impasse Ja escravatiiFasprostitutas escravas, suassenlioras e a lei trasileira«le 1871Ajovem escravaHonorata, em marçode 1871, foi àpolícia, no Rio de Janeiro, nafreguesia do Sacramento, paradar queixa formal contra suasenhora, por tê-la forçado a seprostituir desde a idade de 12anos. Em seu depoimento, ela1disse ter sido mandada, em várias ocasiões,para casas notoriamente mal-afamadas,"para Picar na janela, recebendovisitantes". Em outras ocasiões, sua senhoraplanejava, ela própria, os encontros,instruindo Honorata a se vestir e saircom um cliente. Entre as temporadas detrabalho em bordéis e, às vezes, ao mesmotempo, ela era alugada como doméstica,geralmente como lavadeiraou cozinheira. Os autos judiciaisdescreviam Honoratacomo tendo 19 anos de idade,negra, crioula nascida na provínciada Bahia e trazida para oRio de Janeiro por sua senhoraalguns anos antes, solteira e criadadoméstica.Honorata foi apenas uma, entre dúzias deescravas estimuladas pela polícia a seapresentarem para contar suas históriase fazer audaciosas propostas de liberdade,como parte de uma ação punitiva contradonos de escravos proxenetas duranteo final do verão e o começo do outonode 1871. Pelo fato da prostituição no Riode Janeiro não ter sido ilegal ou regula-Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 53-66, Jan/dez 1996 - pag.31


A C Ementada, não existem fontes policiais oumédicas de rotina a partir das quais pudéssemosconstruir um relato geral daprostituição. Ao invés, temos uma safrarara, porém abundante, de'processos judiciaise registros notariais, geradas poruma investigação policial nas práticascaracterísticas da prostituição escrava,que envolveu mais de duzentas mulheresem uma única freguesia. 2Não obstante, o uso destas fontes ricas etalvez singulares exige um certo cuidado.No Brasil, um julgamento consistia doexame de provas e argumentos escritosque os advogados da causa submetiam aum juiz ou a juizes do tribunal. Por conseguinte,não ocorria uma acareação emjuízo entre o acusador e o acusado; nãohavia drama social representado peranteum júri, no qual uma declaração surpresapor uma testemunha ou um advogadopudesse exercer efeito. Embora um juizpudesse convocar as partes para um interrogatóriomais detalhado, um comissáriode polícia tomava o depoimento iniciale preparava as acusações. Por estas3normas, uma lista de perguntas e respostas,registradas na terceira pessoa, fixavao teor e a ordenação do testemunho. Ficamentão perdidas as nuanças do relatoda escrava de sua própria história atravésda fala característica, das descriçõesiniciais que incluíam repetições e digressões,momentos de hesitação ou emoçãoou insinuações por gestos oumaneirismos.A despeito deste achatamento e da diminuiçãoda realidade, quando traduzida emlinguagem jurídica, podemos reunir, apartir dos testemunhos, um corpo substanciale persuasivo, se bem que circunstancial,de provas que permite uma visãodas práticas cotidianas e das relaçõessociais de uma sexualidade comercial quenegociava com mulheres escravas.* Destemodo, podemos chegar mais perto deuma possibilidade geralmente obscurecidade entender o que poderia significarser mulher e escrava no cenário da cidade.E, evidentemente, não eram somenteos escravos que depunham. Quando os5donos - especialmente as senhoras - respondiamàs acusações feitas contra elas,aprendemos algo sobre as mulheres livrespobres, normalmente imigrantes, solteirase analfabetas.Contudo, quero ir além da comercializaçãoda sexualidade das escravas,para entender a campanha no contextodaquele ano agitado. Ao processar os donose retirar-lhes a propriedade dos escravos,as autoridades ameaçavam públicae seriamente solapar a premissa dapropriedade privada na qual se apoiava aescravatura. Pode-se ver que suas açõesrefletiam o dilema enfrentado de modosemelhante pelos legisladores, ao debateremcom urgência e incerteza a regulamentaçãoda escravatura naquele inverno.Em ambos os casos, constituiu-se apercepção de que a autorização da possede escravos estava em risco; e em ambosos casos, as estratégias de defesa levaramao impasse. Os historiadores do Brapag.32.jan/dez 1996


R V Osil do século XIX ficaram tentados a entendero debate do Parlamento e a lei deledecorrente, que libertou os filhos subseqüentementenascidos de escravas, comoparte de uma seqüência de decisões queconduziu claramente (ainda que tardiamente)à abolição da instituição da escravaturaem 1888. Ao invés disso, querosalientar o modo pelo qual a decisão doslegisladores não propiciou tal resoluçãosatisfatória ou previsível aos contemporâneos.A campanha para livrar a cidadeda prostituição forçada concede-nos umacompreensão revisada das apreensõesdeles.A PROSTTTUIÇÀOOs relatos feitos por escravas epor seus senhores fornecemum apanhado do procedimentorotineiro e dos eufemismos praticadosda prostituição forçada. O baixo meretríciopertencia à parte notoriamente rudeda cidade, que se estendia a oeste e aosul da zona portuária, no trecho que iada rua Uruguaiana até o Campo deSantana, entrando pela Cidade nova, limitadaao norte pela rua Larga de SãoJoaquim e ao sul, pela praça da Constituição.Correspondente mais ou menos àfreguesia do Sacramento, a área havia setornado um local densamente povoado deprédios comerciais mal construídos,indiscriminadamente justapostos a casasparticulares de fachada estreita e era apinhada,úmida, barulhenta e malcheirosa. 6A "pior classe de mulheres", inclusive escravas,havia se concentrado ali pelo menosdesde 1845, quando um jovem médicoapresentou sua tese sobre prostituiçãoà Faculdade de Medicina. Em 1873, odr. Francisco Ferrez Macedo publicou umcenso de prostitutas. Embora não fizessedistinção entre mulheres escravas e livres,ele confirmou que, das quatro freguesiaspor ele investigadas, só a do Sacramentorespondia por 1.059, ou seja, por cercade 90% de todas as mulheres públicas. 7A concentração em uma única zona geográficapossibilitou uma organização bastantefirme, se bem que informal, do negócio.A presença estabelecida de comerciantesde escravos na área significavaque as escravas que chegavam de outrasprovíncias, a bordo de navios do comérciocosteiro de escravos e destinadas àprostituição, poderiam ser convenientementetratadas por intermediários, comoa firma de Duarte, Fonseca e Companhia. 8Algumas iam diretamente para uma senhoraque tinha providenciado pessoalmentea compra ou o transporte, atravésde um agente, em um porto distante. Umadas mulheres viajou sozinha da Bahia emum vapor inglês, levando os documentosforjados de uma pessoa livre. Outras mulheres,ainda, iam parar em casas deconsignação,onde podiam permanecerdurante semanas ou mesmo meses. Pelomenos um comerciante não fez segredoda natureza especializada de seu negócio:disse que quando sabia que uma certamadame comprava escravas regularmentepara "expor na vitrine", entrava emacordo com ela para ser seu fornecedor. 9Acervo. Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 53-66. jan/dez 1996 - pag.33


A C Eco lembrou que o bordel da Barbuda estavaentre os mais famosos e que ela erauma "mulher negra, de cerca de 55 a 60anos, em 1878, relativamente gorda e deestatura mediana, que tinha um espessobigode e quase um cavanhaque", dondevinha seu apelido, Barbuda. Ele descreveu,de modo excitante, os bordéis delacomo sendo de "alto luxo", onde ela"enfileirava escravinhas mulatas de extremabeleza", que comprava sem regatearo preço e em breve libertava condicionalmente,sendo todas elas de pele mais oumenos clara, mais ou menos lindas, porémtodas jovens, quase 'franguinhas' e,portanto, eram exibidas com vestidos curtose calções". Outros encontros começavamno quarto alugado de uma senho­12ra (de escravos) e, mais tarde, acabavamem um hotel, como o Amazonas (no qualos quartos evidentemente eram alugadospor hora). Simplícia freqüentemente seencontrava com seus clientes na própriacasa de sua dona. 13Honorata figurava entre as numerosas mulherespostadas nas janelas de casas menosluxuosas, para atrair clientes dentre oshomens que passavam ali casualmente.Fosse na casa junto à farmácia na rua daAlfândega ou, posteriormente, na ruaUruguaiana ou no estabelecimento da espanhola,os clientes habituais sabiam comoprocurar Honorata na janela. Uma testemunhaexplicou que as roupas elegantes deHonorata eram expressamente fornecidaspara que ela aparecesse lá. 'ria janela' erauma frase precisamente codificada que seTodos os tipos de bordéis serviam de instrumentoao mercado, desde os colégiosdescritos como sendo de "dimensõesamplas e arquitetura regular, decentementemobiliados e decorados", em quea "patroa era mais velha e geralmente tinhaconhecimentos acerca de doençasvenéreas", passando pelas casas menosimponentes, que retinham a aparênciaexterna de residências respeitáveis, comduas ou três mulheres como "inquilinas",até os miseráveis zungús, ou cortiços demá reputação. 10As escravas conheciam a todos. Ma malafamadarua da Conceição, GenuínaMoreira de Castro dirigia uma "magníficacasa de dois andares...sempre brilhantementeiluminada à noite". Alguns númerosadiante, ficava o grande bordel conhecidopopularmente como bordel da Barbuda,no qual "uma legião de infelizesescravas destinadas ao imoral comérciodos homens" podia ser vista a qualquerhora do dia, porém, especialmente, desdea tarde até "duas ou três da madrugada".Para ser admitido, um homem precisavade "dinheiro e somente dinheiro".Uma das escravas de lá acusou a proprietária,Ana Valentina da Silva, de "obtergrande riqueza com este comérciolibidinoso...impelida por horrível ganância".Ana Valentina calmamente defendiaseu estabelecimento como colégio (escola),dizendo que empregava escravas"para costurar e fazer doces"." Ao escrever,em 1906, acerca de "perversões einversões do instinto genital", um médipag.M,Jan/dez 1996


R V Oreferia a mulheres públicas ou mulheres queeram mantidas no interior das casas e quenão perambulavam pelas ruas. A distinçãoera importante. As mulheres que Ficavamna janela não podiam ser presas como vagabundassem residência Fixa, nem como*6***t*ttt*Mmf% at. Afd*'* «o. cU 9* «nu a. ^^y^u/m.•Ia. , -M aaya. •i 1 «i»a^t* df*f* A * ^ *


escravas fugitivas ou abandonadas e tampoucopodiam ser interrogadas pela políciacomo escravas que estavam fora tarde danoite. Quando de uma retirada da rua, estasmulheres podiam debruçar-se provocantementede janelas abertas, anunciando-separa serem alugadas, praticando os atosgrosseiros "típicos de uma prostituta". '*Em contraste, aquelas que eram indiferentementemandadas para perambularpelas ruas ou Ficar paradas em esquinas,eram rotuladas como estando em prostituiçãopública, sendo as mulheres maisfáceis e baratas e as mais vulneráveis àprisão.A maioria dos proprietários não assumiatais riscos com relação a suas escravas.Porém, aqueles que assim procediam, tinhamque conceder-lhes liberdade defato, visto que, como argumentou umadvogado da acusação, "não é possívelque uma mulher seja empregada nestetipo de prostituição sem gozar de liberdade",liberdade esta que ele posteriormentedescreveu como "liberdade licenciosaconferida às escravas por suas senhorasem um contrato de evidente letargia[moral]". A escrava Brasília demonstrouque vivia independentemente,15como se fosse livre. Ao dar seu endereço,ela apresentou recibos de aluguel emitidosem nome de Brasília Leopoldina deOliveira (ela havia assumido o sobrenomede sua proprietária) durante um períodode vários meses. O inspetor daquelequarteirão concordou que ela era conhecidana vizinhança como "pessoa livre",acrescentando que ela tinha "bom comportamento".Cleria Leopoldina de Oliveira,insistindo que Brasília era sua escravapara a qual ainda não tinha recebidoos documentos de propriedade, descreveu-acomo morando "fora de minhacasa... na casa de um açougueiro, quedizem já ter uma concubina....[e] devolvendo[dinheiro que] diz ganhar passandoroupa". O advogado da acusação apresentou-acomo mulher livre, que "moraem sua própria casa ... com homens livresque compartilham sua cama". 16Na causa contra sua senhora, Honorataacusou-a de abandono. Ao invés da relaçãodeterminada culturalmente, na qualo proprietário provia o escravo com pelomenos a manutenção material básica,Honorata descreveu as condições de umarelação puramente monetária. Ao alugarHonorata e retirando uma quantia17especiFicada de seus ganhos diários, MariaElentéria Borges de Albuquerque obtinhauma renda. Honorata tinha que sevestir e até mesmo se alimentar por contaprópria. Maria Elentéria não apenas deixavade fornecer remédios, como cabia auma senhora correta, mas punia sua escravaquando esta ficava doente. Tendoficado "doente do peito", Honorata saiude uma das casas para pedir tratamentoà sua senhora. Ao invés disso, MariaElentéria, furiosa, ordenou que ela fosseespancada (Honorata não disse porquem). De outra casa, na qual Honoratadeveria "lavar e passar de dia e recebervisitantes à noite", ela saiu, de maneirapag.36.jan/oez 1996


R V Odesafiadora, passando seus ganhos parasua senhora e declarando que não poderiatrabalhar o dia todo e ficar exposta na janelaà noite. Dessa vez, ela foi repreendidae mandada de volta. Maria Elentéria nãocumpria com o recolhimento noturno,quando todos os escravos deviam ser chamadosde volta à jurisdição de seus senhores.Honorata freqüentemente voltava tarde.Ma casa de Bebiana, o comissário depolícia precisou advertir a madame pormantê-la na janela após as dez da noite.Maria Elentéria permitia mesmo queHonorata vivesse com um moço brasileirona casa dele, em troca de dinheiro. Durantecerto tempo, José Mota cuidou deHonorata e satisfez "as exigências de suasenhora". Porém, quando as "circunstânciasdele mudaram [e] ele não podia maispagar como antes, a senhora rapidamentechamou sua escrava de volta para casa".Outras mulheres ampliaram as acusações deabandono para as de maus tratos continuadose graves. O tratamento médico prolongadoproporcionado à escrava Corina pelamadame-proprietária de um dos resplandecentesbordéis, foi citado como prova demaus tratos. O dr. Luiz Delfino dos Santos,da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,relatou que Corina sofria de uma úlcera sifilítico-escorbúticaem uma das pernas, de tumoresescrofulosos supurados na parte superiorinterna das coxas, de adenite, uma inflamaçãodas glândulas linfáticas e, dois anosantes, de sifilides virulentas, erupçõescutâneas indicativas da primeira fase infecciosada sífilis, que ele acreditava terem "cedidoa um tratamento prolongado e rigoroso".O testemunho do médico reforçou aacusação do promotor de que a "saúdede Corina [havia sido] completamente colocadaem risco ... por doenças adquiridasnesse vil comércio". Corina acusou,18ainda, a proprietária do bordel de privá-lade seu Filho, nascido em junho de 1870,pouco depois dos tratamentos da sífilis.Segundo Corina, a criança foi deixada na"roda dos expostos" no orfanato público,de modo que, ao invés de amamentar seuFilho, ela pudesse novamente "prestar seusserviços alguns dias após o parto". 19É digno de nota o fato de que, entre umaamostra de aproximadamente 150 jovensmulheres em idade reprodutiva,encontro apenas duas mencionadascomo tendo Filhos. Entretanto, o nascimentode crianças e a pressa de fazeras mulheres voltarem ao trabalho, evidentementeeram freqüentes o suflcientepara que o chefe de polícia Fizesse aacusação de que "por meio de [compressas]frias, elas são forçadas a deter oescoamento vaginal que se segue aoparto". Tampouco uma escrava menstruadaera dispensada, visto que ela, segundoafirmava a acusação elíptica, "temque receber qualquer um que apareça,mesmo se a natureza exigir abstinência".20Apresentada pelo advogado deHonorata, Maria Elentéria Borges deAlbuquerque foi chamada a comparecerperante o tribunal, para prestar contassobre o "mau estado e o tratamento bru-Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 53-66, jan/dez 1996 - pag.37


A C Esado, corroboraram e pormenorizaram asacusações dela. Eles lembravam-se de terseguido Honorata de casa em casa "nasquais ela recebia visitantes para prazeresdesonestos" ou combinava "encontrosamorosos" na presença de sua senhora;descreveram ter-lhe pago dinheiro extrasem o conhecimento da senhora, de modoque ela tivesse "algumas moedas" que ficassempara ela. O jovem cocheiro que aapanhava toda tarde, cerca de seis horas,e a trazia de volta à casa à noite, informouque havia repetidamente ouvido repreensõesa ela feitas por sempre trazerpouco dinheiro. Às vezes, ele lhe emprestavadinheiro, para completar a quantiaque ela deveria entregar. Todos concordavamque Honorata se vestia luxuosamente.Alguns diziam que ela podia comprarroupas elegantes "porque os quegostavam dela pagavam-lhe a mais". Osargento descreveu as roupas dela comosendo feitas de "lã, seda e musselina fina".Ela usava "flores nos cabelos, jóias deouro e luvas". O cocheiro apenas comentouque ela "se vestia do modo luxuosopróprio daquela vida".Os depoimentos deles apontam as pequenasregularidades de uma vida irregular.Porém, apresentam-nos também um enigma:porque, tendo tais aliados com osquais podia contar, Honorata já não haviafugido de sua senhora há mais tempo?Talvez ela calculasse que as dificuldadesda fuga eram demasiadas, a despeitodas freqüentes oportunidades quese lhe ofereciam através da movimenta-tal" de sua escrava. Pelo fato da prostituiçãonão ser ilegal, a acusação formalmenteexpressa permanecia necessariamenteoblíqua: o 'uso ilícito e imoral da propriedade'.Evidentemente, significavaprostituição. As acusações concretas eramque Honorata "vivia como se fosse livre,vestia-se luxuosamente, passando a noitefora de casa ... e buscava prazeres desonestosna casa de sua senhora". Comestas alegações cuidadosamente formuladas,o advogado argumentou que a donahavia abandonado Honorata, ao entregarsua escrava à prostituição, infringindo, assim,duplamente seus deveres e responsabilidadesde proprietária. Por esses argumentos,ele se apoiava no ponto de vistade que um escravo abandonado nãotinha um proprietário efetivo, sendo assimlivre por omissão. Por lei, a pessoa,21uma vez livre, não podia ser novamenteescravizada. A seguir, veio seu disparo final:os atos da dona haviam comprometidosua autoridade e "enfraquecido a relaçãode respeito e obediência que deverialigá-la" à sua escrava. Em razão de quea proprietária havia invalidado todo o direitode guarda da escrava, ele solicitouao tribunal que concedesse a liberdade àmesma.A despeito de nenhuma mulher ter comparecidocomo testemunha de Honorata,três clientes leais confirmaram, por juramento,a sua situação de prostituta. Umsargento reformado do exército e dois trabalhadoresavulsos, todos brasileiros, entre24 e 39 anos de idade, um deles capag.38,Jan/dez 1996


K V Oçáo casual pela cidade ou das multidõesde mulatos e negros livres em cuja presençacamufladora um fugitivo poderiadesaparecer. Se ela ultrapassasse furtivamenteos limites da vizinhança, perderiao apoio necessário para viabilizar a fuga;entretanto, se permanecesse nas ruasconhecidas, porém apinhadas e com janelasde persianas abertas, onde poucose passava desapercebido, então ela searriscava a ser reconhecida e recapturada.Algumas tentaram: Feliciana, por exemplo,por algum tempo, conseguiu "escaparda vigilância de todos", somente paraser finalmente apreendida. Inicialmente,Honorata fugiu de condições de trabalhoque lhe pareciam intoleráveis, antes definalmente ir à polícia para depor, porémnão correu para fugir da escravização atéa sentença em favor de sua liberdade tersido revogada. Mesmo então, ela vacilou,indo somente até a rua Mata Porcos, nolado mais afastado do Campo de Santana,que ainda se encontrava perigosamentedentro do círculo dos endereços anterioresonde era conhecida."Em resposta às acusações, Maria Elentériade Albuquerque empreendeu uma lutadecidida, alegando ignorância. Ela admitiuque às vezes alugava sua escrava, porémsomente para serviços domésticos eapenas para "pessoas decentes, no comércioou a famílias honradas" e isso aosalário padrão das domésticas. Ela explicouque certa vez havia mandadoHonorata para uma casa de prostituição,tendo entendido erroneamente tratar-sede uma oficina de costura, onde ela iriacosturar, cozinhar e passar roupa. Emoutra ocasião, o companheiro de MariaElentéria, Carlos Luiz, descobriu a escravadela na casa da negra livre Bebianaonde, como insistiu a senhora, Honoratahavia se alugado por conta própria comoprostituta - um ato de logro e desobediênciadeliberados, como ela alegou,pelo qual ela imediatamente ordenou queHonorata voltasse para casa e a castigou.Ela descreveu as roupas de Honoratacomo caprichadas e limpas. Ela andavadescalça, como escrava que era. MariaElentéria dava algumas roupas aHonorata, visto supor que outros empregadorestambém o faziam. Afirmou nãoter perguntado onde Honorata obtinha oresto.Além da falta de conhecimento, a viúvaMaria Elentéria insistia na inocência darespeitabilidade. Ela alegou jamais terrecebido rendimentos provenientes de"atos imorais ou indecentes" e protestouque ela própria vivia "honestamente, commodéstia, tendo ordem, respeito e decência".Apresentou uma série de testemunhasmoderadamente respeitáveis - senhorios,operários especializados, negociantes- que a retrataram como exercendouma justa autoridade sobre a escrava.Eles concordavam que Honorata era bemtratada; que a relação entre MariaElentéria e Honorata era familiar porémcorreta, "como entre senhora e escrava";a escrava havia sempre "prestado a obediênciade escrava", não era punida, ten-Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 53-66, Jan/dez 1996 - pag.39


A C Edo-lhe sido prometida liberdade final.Contudo, ela enfraqueceu concretamentequalquer pretensão à respeitabilidade,citando uma sucessão de endereços decortiços e de amantes - um inglês, umbrasileiro, um francês e um português - oque indicava uma vida indecorosa paraseus contemporâneos.Porque, então, podemos perguntar, umamulher como essa empreenderia umabatalha judicial até o último recurso? Porquenão deixar a escrava ir embora? Insegura,apanhada entre uma respeitabilidademal atingível e uma sordidezindisfarçada, Maria Elentéria fez uma declaraçãode respeitabilidade. Ela sabiaapresentar-se como a senhora apropriadamenteresponsável e modesta: chamandosua escrava para a bênção semanal,fornecendo algumas roupas, cuidando(diziam alguns) da escrava quando estaficava doente e dependendo dela quandoela própria adoecia. Através dos depoimentosjudiciais, observamos a construçãodeliberada da persona da viúva pobreporém decente, ameaçada pela imagemde uma mulher que desesperadamenteextraía uma subsistência da vendade sua escrava em um tráfico geralmentevisto como vil. Mo caso de mulheres comoRozalina Bandeira, que confessou prostituirsua escrava ou de Julia CatarinaCortai, acusada, ela própria, de prostituição,o fingimento de decência mal poderiaser mantido, enquanto que as donasde bordel profissionais, tendo desistidode qualquer pretensão séria deaceitabilidade, poderiam, no máximo,apresentar-se como generosas, caridosasou justas. Tendo somente uma escrava esem casa própria, Maria Elentéria pôdeapresentar um caso plausível. Porém, oque estava em jogo era mais do que areputação, porque, de fato, MariaElentéria precisava da renda. Vivendo,como afirmava, "dos ganhos de sua negrae da lavagem de roupa" e a despeitode jogar Honorata de um lugar para outro,ela mal conseguia se manter. A perdade sua escrava significaria uma graveperda de rendimento. 23Em setembro de 1871, o juiz pronunciousua decisão a favor de Honorata. Ele faloude "abuso imoral" e "degradação moralcometida" contra ela. A suplicante,concluiu, "fica declarada livre do cativeiroe restabelecida a sua liberdade natural".Como se verificou, a sentença nãofoi mantida. A senhora dela rapidamenterecorreu, obtendo a reversão da decisão.Honorata então interpôs recurso e perdeu.Em dezembro de 1872, seu recursotendo sido negado, Honorata, que viveracomo mulher livre durante mais de umano, recebeu ordem de voltar para suaproprietária. Evidentemente, ela se recusou,pois em fevereiro de 1873, MariaElentéria apresentou perante o juízo doishomens que afirmaram tê-la visto em umcortiço onde ela morava no quarto número4. O juiz ordenou que ela fosse "encontradae apreendida". Mão sabemos seHonorata finalmente fugiu de sua senhorae como ela ganhava sua subsistência. 24pag.40, jan/dez 1996


R V OConsideremos resumidamente um segundocaso contrastante, no qual a suplicantenovamente procurou provar serprostituta. Belmira, uma mulata que se25descrevia como sendo solteira e "com 17anos, mais ou menos", contou que duranteum mês havia ficado na casa de Julia,onde recebeu visitas de diversos homens.26lião sabia seus nomes; apenas ia comqualquer um que Julia mandasse. Ummédico depôs afirmando que durante essetempo Belmira o procurou em várias ocasiões,"sofrendo de diarréia e congestãopulmonar". Seu advogado pediu que elafosse libertada sob o fundamento de queseu senhor, abusando de seu domíniosobre ela, a tinha forçado a uma vida deprostituição, do que ele "retirava umaconsiderável soma pecuniária".Apesar de citadas, não compareceram testemunhaspara Belmira. A defesa do senhorfoi mais fácil: 48 anos de idade, casado,comerciante, que residia em umbairro confortável da cidade, Francisco daVeiga Abreu herdara a escrava de seuspais cinco anos antes, empregando-a desdeentão como doméstica, para fazercompras ou vender frutas e legumes deporta em porta. Ele disse que achava poucoprovável que ela fosse prostituta, vistoque "além de ser bem comportada, ela éfraca e de má aparência". Porém, se fosse,"não foi com [meu] consentimento".Três dos vizinhos de Abreu - apresentadoscomo donos de loja,de inteiracredibilidade e alfabetizados - lembraramter visto Belmira na rua, na rotina do trabalhocaseiro, levando a filha de Abreu apassear ou cumprindo incumbências. Elesconcordaram que o "elevado caráter" deAbreu lhe tornaria impossível mandar suaescrava se prostituir. Eles também a descreveramcomo "feia, fraca e doente","quase sempre em tratamento das doenças[de que ela] sofre", dificilmente omaterial para uma prostituta bem-sucedida.Meste caso, um juiz decidiu queBelmira deixara de provar as alegações.Um ano depois, seu recurso chegou aoSupremo Tribunal e ela perdeu novamente.Caso encerrado, ela permaneceriacomo escrava.A CAMPANHADestes dois casos, emerge umacontra-alegação inicialmentesurpreendente de conspiração.Um senhorio, depondo a favor de MariaElentéria, havia perguntado com exasperaçãoporque Honorata fazia acusaçõescontra sua senhora, "tirando proveito [dalei] como as outras escravas". Abreu tambémalegara que as acusações contra eleeram uma "armação". Argumentou que,pelo fato de Belmira sair freqüentementeda casa para fazer compras, "era provávelque em uma dessas saídas ela tivessesido persuadida por alguém mal-intencionadoa se deixar prender como prostituta".Seu advogado descreveu Belmiracomo "esperta e bem treinada", alguémque "se prestava a manipulação para sever libertada de graça". E atrás disso tudo,acusou ele, estava uma "rede estabelecidaAcervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 53-66. Jan/dez 1996- pag.41


A C Emento. Tendo-lhe sido fornecido, pela políciada vizinhança, uma lista de todas asescravas "postas na janela por dinheiro"e auxiliado pelo chefe de polícia, ele providencioua designação de advogadospara a apresentação do testemunho delase em seguida as defender em juízo,na tentativa de obter a sua liberdade. SegundoTavares, senhores culpados haviamcomeçado a libertar suas escravas, aoinvés de se arriscarem a ser processadosapós a publicidade resultante nos jornais:dentro de um período de dois meses, haviasido registrado o extraordinário númerode 150 cartas de alforria nos cartóriosda cidade. Tavares calculava que maisde duzentas escravas estavam apresentandoacusações legais, acrescentandoque já havia obtido a liberdade de 186mulheres. 29As cartas de alforria, atestadas eregistradas por tabeliães em grandes livrosnumerados, mencionadas porTavares não eram totalmente incomuns.Estas cartas, de modo típico,transmitiam a recompensa da liberdadea escravos mais velhos e favoritos,freqüentemente em linguagem que exprimiaafeto ou consideração ou simplesmenteacusavam o pagamento de dinheiropela liberdade do escravo. Porém, a30partir de meados de fevereiro até o finalde março de 1871, o teor das cartas sedesviou radicalmente das declaraçõescostumeiras e culturalmente apropriadas.Sempre de novo, os escravos que estavamsendo libertados eram mulheres jo-pelo comissário de polícia para libertarescravos às custas de seus senhores".Somos certamente levados a nos perguntarpor qual motivo casos que envolviamas mais humildes das mulheres ocuparama mais alta corte do país durante doisanos - só o caso de Honorata chegou amais de trezentas páginas manuscritas.Porque ambos os casos foram iniciadosno mesmo ano, 1871? Porque se permitiao testemunho de escravos, quando alei lhes negava personalidade jurídica?Além disso, os advogados, em ambos oscasos, basearam suas acusações no princípiodo direito romano de que um senhorque abusasse do domínio sobre escravosde sua propriedade deveria perdêlos.É surpreendente que Miguel José27Tavares tenha servido, simultaneamente,como juiz na Segunda Vara Municipal ecomo comissário de polícia do segundodistrito da cidade, que incluía a freguesiado Sacramento. Como ocupante das duasfunções, Tavares havia solicitado depoimentodas escravas, e a seguir as tinhaouvido e decidido sobre seus casos. O28advogado de Abreu havia acertado emparte: o comissário de polícia e juiz estavapor trás de tudo.Porém, o que a defesa identificava comoconspiração, Tavares e seus partidáriosentendiam de modo diferente. Em cartaao chefe de polícia do Rio de Janeiro,datada de 18 de março, Tavares descreveusua estratégia para livrar a cidade daprática de destinar escravas a uma vidaimoral, em plena atividade naquele mopag.42,jan/dez 1996


R V Ovens, com idades entre 12 e 28 anos, nãonegras, porém mulatas, invariavelmentesolteiras e quando ocasionalmente lhesera atribuída uma profissão, era sempreRetrato de Gllcéria da Conceição Ferreira, 1872. Arquivo Nacional.Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 53-66, Jan/dez 1996 - pag.43


ACa de serviços domésticos. Muitas haviamsido vendidas para o sul, para o Rio deJaneiro, das províncias da Bahia,Pernambuco, Ceará ou Maranhão comojovens adultas. Elas pouco se parecemcom as "escravas da casa", nascidas nolocal, criadas desde a infância e mantidaspor uma família única, que podiam contarcom os laços complexos de dever, cuidadoou gratidão, formados através deanos de convivência próxima. Porém, oque liga de modo persuasivo este corpode provas, sob outros aspectos, em grandeparte circunstancial, à prática da prostituiçãoe à afirmação de Tavares de queum número excepcional de mulheres estavasendo libertado, era o fato de queescravas na melhor idade para o trabalhoeram libertadas gratuitamente - sem pagamentoa seus senhores. O fato dos31senhores cederem seu capital ou fonte derenda só fazia sentido sob a pressão doempenho público de Tavares de processaraqueles que mantinham suas escravasna prostituição.As identidades daqueles que libertavamas escravas são reveladoras. Os proprietárioseram principalmente (embora nãoexclusivamente) mulheres, que eram, elaspróprias, analfabetas (dependendo deoutros para assinar por elas), pobres (àsvezes, indicando uma profissão como ade lavadeira, que era uma declaração exataou, então, a única plausível, porém, emqualquer caso, de difícil averiguação, vistoque lavagem de roupas significava teruma clientela diversificada e variável), nãocasadas (capazes de transacionar benssem o consentimento legalmente registradode um cônjuge) e freqüentementeimigrantes da Europa ou de outras partesdo Brasil (isto é, mulheres socialmentevulneráveis, que tinham que fazer seu caminhoem uma sociedade estratificada,que atribuía posição social à família e àsrelações consangüíneas, mais do que porriqueza). Segundo os endereços que elasdavam, todas moravam dentro da área doSacramento, conhecida por seus bordéis.As cartas de alforria - e posso dar contas,em confiança, de cem e, possivelmente,até 121 das 150 mencionadas por Tavares- fornecem provas convincentes de queexistia um comércio ativo de escravas deprimeira linha entre províncias distantese a capital, na qual pequenos proprietáriosas destinavam à prostituição.A imigrante francesa Fortunée Levy aprendeutarde demais que Tavares cumpririasua ameaça. Ma ocasião em que ela tomouprovidências para se livrar de suasjovens escravas mulatas (a mais jovemcom 14 anos), libertando apressadamentetrês no mesmo dia, em três cartóriosdiferentes e sem pagamento, outras três- conforme ela reconheceu nas cartas dealforria - já haviam sido "colocadas emcustódia pública por ordem do juiz daSegunda Vara Municipal, de modo queeste pudesse tratar dos casos da liberdadedelas". Ela não tinha opção senão32conceder-lhes "plena e geral liberdade dehoje para sempre" ou enfrentar um processo.Mão obstante, ela ousou acrescen-pag.44, jan/dez 1996


K V Otar: "e faço isto de minha livre e espontâneavontade". Alternativamente, algumas- até dezessete - enxergavam a van­33tagem de conceder liberdade condicional.Ao mesmo tempo em que evitavam serprocessadas, elas retinham os serviçosdas mulheres durante tempo suficientepara recuperar o preço de compra e, talvez,algum lucro. Maria Madalena de Jesuslibertou cinco escravas sob a condiçãode que elas continuariam sob suaguarda durante um período que variavade dois anos para Cristina, uma mulatade 20 anos, a quatro anos para Joana, de16 anos. Tendo registrado uma carta dealforria para uma terceira escrava em fevereiro,somente dois meses depois elaassinou o contrato, obrigando a escravaa pagar, por cinco anos, uma quantia queexcedia de um terço o preço padrão parauma mulher de sua idade. 34A medida que a campanha ganhava impulso,a reação pública a Tavares variava.Desde o início, homens poderosos o haviamapoiado. O chefe de polícia, Franciscode Faria Lemos, em seu relatório noano anterior, havia reservado uma mençãoespecial pela dedicação de Tavares aodever. Em particular, Lemos o defendeuperante o ministro da Justiça contra acusaçõesfeitas na imprensa, explicandoque, embora certas pessoas tivessem espalhadoo boato de que o juiz lidava malcom os casos, eles assim procediam porque"as atividades, a independência e aenergia dele [são] um grande impedimentopara o comércio [deles]". Quando acampanha estava prevista, embora aindanão tivesse decolado, o influente e respeitadopresidente da Junta de HigienePública, José Pereira Rego, expressou oficialmentea esperança de que "as medidasde Tavares podem produzir efeitosbenéficos". Cartas de aprovação apareciamno jornal e centenas de cidadãos35desfilaram com música e bandeiras parahomenagear Tavares em seu vigésimoquartoaniversário. Eles o aplaudiram porconfrontar os "sórdidos interesses e a vilaniadestes avarentos" e renderam elevadotributo à sua pobreza, honestidade,juventude e sabedoria. De modo previsível,entretanto, nem todos concordavam36que Tavares merecia a "brilhante carreira"que agora era seguramente sua. Algunsachavam que ele havia posto emmovimento novos excessos que apenassubstituíam os que ele procurava extinguir,criticando-o pelo uso arbitrário daautoridade, que transgredia abertamenteos direitos de propriedade. Perguntavamansiosamente sobre o que ele faria emseguida. 37Essa foi a campanha. Como, então, devemosentender o sentido de suas manobrasdramáticas e sem precedentes? Pararesponder a esta pergunta, quero afastarmedas ações imediatas e, em primeirolugar, examinar o que ela não era. A campanhanão era dirigida principalmente àregulamentação da prostituição, emboraos médicos brasileiros, a exemplo de seuscolegas europeus, se preocupassem com osriscos médicos da prostituição. Dirigindo-Acervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 53-66. jan/dez 1996 - pag.45


A C Ese aos colegas médicos e aos funcionáriospúblicos em 1869, acerca das medidas quepoderiam adotar contra ar"propagação dasdoenças venéreas", Luiz Corrêa de Azevedo,que considerava que a sífilis se espalhavapor "contato e infecçáo hereditária" eque ligava a mortalidade infantil ao "vírussifilítico", via a sífilis se combinando comnossa "infecçáo miasmática" para produzirum tipo de morbidez que atacava "em grandeescala todas as classes sociais". Ele pensavaque as circunstâncias especiais nasquais se encontravam os brasileiros comrelação a "raça, local, costumes, hábitos,clima e conexões mercantis" se acrescentavamà disseminação da infecção. Emborareconhecesse que homens de família pudessempassar o vírus para esposas que denada suspeitavam, ele se concentrava nasmulheres, especialmente no crescente númerode prostitutas, como as transmissoras.Azevedo concluiu que os métodos tradicionaise rigorosos de tratamento da sífilis,tais como arsênico ministrado internamentea cada seis horas, extrato de beladona,tinturas de ópio ou morfina (ministrados aescravas, conforme revelam casos judiciais)eram ineficazes e impunham riscos agudospróprios. Ele preferia os "banhos mornos ealimentos de fácil digestão" dos tratamentoshomeopáticos, os quais, dizia ele, se nãocuravam pelo menos não destruíam aindamais o corpo. MComo outros brasileiros antes e depoisdele, entretanto, Azevedo resistia a exigiruma lei que tornasse ilegal a prostituição.Ao invés, ele clamava por lugares - domesmo modo que havia mictórios públicospara "eliminações corporais"- onde o"organismo pudesse aliviar-se destas descargasde sensualidade e licenciosidadeengendradas pelo vício e que os fracospreceitos da vida social não conseguemrestringir". A prostituição, reconhecidacomo necessária, deveria ser circunscritae sanitarizada. Ao invés de esperar que"a imundície da prostituição" produzissesuas conseqüências, ele clamava por medidasque regulamentassem sua prática,pela "aplicação de higiene ... a essas infelizesmulheres". A exemplo dos europeus,ele defendia a intervenção a fim dedeter a disseminação da sífilis. A polícia,auxiliada por médicos, devia organizar aprostituição, registrando as mulheres esubmetendo-as a exames médicos;deveriam ser passadas leis regulamentadoras.39O que importa aqui é que no Brasil estasrecomendações não produziam resultados.A despeito de um senso expresso deescândalo e indignação moral, da percepçãode atentado à decência pública e domedo de doenças, as raras tentativas deregulamentação fracassaram, de modoque não foi passada qualquer lei ou postura.Em 1871, o chefe de polícia lembrousua própria tentativa fracassada, em 1869e a de seu antecessor em 1867, de persuadira assembléia legislativa a legislarcontra a consignação das escravas à prostituição,não estando disposta a concederà polícia os poderes necessários parafazer cumprir a lei ou á assumir os cus-


R V Otos, a assembléia esquivou-se. Um chefede polícia subseqüente, em 1875, opôssecabalmente a medidas legais, comotentativas intromissivas de registrar mulheres,que "dariam lugar a injustiças, tratandocomo prostituição o que não passade uma simples afronta ao pudor, confundindoprostitutas com mulheres de vidaequívoca". De acordo com a lei brasileira,argumentava ele, poder-se-ia no máximoexigir que as prostitutas assinassem"um juramento de bom comportamento".E assim foi deixada a questão da40prostituição.O contraste do caso brasileiro com outroslugares, a respeito da questão deregulamentação pelo estado, é digno denota. Desde 1802, sob riapoleão, funcionáriospúblicos franceses haviam procuradodefinir e conter a prostituição comoproblema de saúde pública, primeiro pelaexigência de exames médicos para prostitutas,a seguir pelo registro delas e finalmentecom um esquadrão de moralpara forçar o cumprimento dos regulamentoslocais e prender as mulheres quese recusavam a cumpri-los. ria Itália, em1860, medidas semelhantes - examesmédicos, registro na polícia, confinamentocompulsório de mulheresinfectadas em hospitais de doenças venéreas- estavam entre os miríades deregulamentos através dos quais o primeiro-ministroprocurava consolidar o poderna nação recém-unificada. As leis dedoenças contagiosas da Inglaterra - promulgadasna década de 1860 como esforçopara proteger marinheiros e soldadosem portos e guarnições dos efeitosdebilitantes da sífilis e da gonorréia e assimproteger as forças dos militares britânicos- declaravam que qualquer mulheridentificada pela polícia como prostitutapodia ser examinada quanto adoenças venéreas e posta em uma enfermariaseparada para tratamento. Em todosos três países, o alcance do Estadohavia sido estendido a novas esferas deconduta. 41A intervenção do Estado colocava uma sociedadeescravista em situação particularmentedifícil. A escravatura no Brasil durantemuito tempo implicara no exercícioprivado, pessoal e doméstico da autoridadepor uma classe de pessoas sobreoutra, de modo que a intromissão do Estadona regulamentação da vida cotidianaera considerada como uma competiçãoe, portanto, uma erosão dessa autoridade.A intervenção, como tal, não eranovidade. Os senhores, há muito tempo,haviam reivindicado essa prerrogativasobre os escravos, porém estes mesmossenhores ficavam perturbados pela atribuiçãode novos poderes de investigaçãoa funcionários públicos, como a polícia,os médicos, os inspetores da vizinhança.Os brasileiros de elite preferiam correr orisco de doenças a qualquer solução quehabilitasse o Estado a limitar, ou, comoeles o viam, a se intrometer contra a vontadede chefes de família. Os esforços deTavares, então, não tinham por objetivoregulamentar a prostituição como ques-Acervo, Rio de Janeiro, v. 9, n° 1-2, p. 53-66, jan/dez 1996 - pag.47


tão de saúde pública.Devemos, ao invés disso, entender a campanhacomo uma experiência precoce naestratégia abolicionista? Embora algunsadvogados isoladamente se referissem àemancipação, não há provas sistemáticasde que os advogados ou juizes mais diretamenteenvolvidos a favor das escravastivessem se oferecido como porta-vozesvoluntários de interesses abolicionistasnascentes. Ao contrário, cabia a Tavareslocalizar advogados dispostos a trabalhar.Em seu ofício ao chefe de polícia, ele expressoualívio pelo fato de, dos advogadossolicitados a preparar ações para asescravas queixosas, "somente dois ou trêsse recusarem, felizmente poucos".* Entretanto,em outubro, outro juiz observou,2desanimado, que os advogados "destasinfelizes mulheres ... retardam os processos[ou] os abandonam por completo".* 3Entre os que apresentaram ações em1871, não posso identificar quaisquer quetivessem se tornado célebres o bastantecomo abolicionistas, para que seus nomesfossem lembrados. A única exceção foiJoaquim Saldanha Marinho que em 1879se tornou sócio-fundador, juntamentecom os célebres Joaquim liabuco e AndréRebouças, da Sociedade Brasileira Anti-Escravatura. Porém, em 1871, SaldanhaMarinho recusou-se a prosseguir com aúnica causa na qual ele apareceu por poucotempo.** lia época, ele era conhecidocomo um dos republicanos que em dezembrodo ano anterior haviam publicadoum manifesto no qual evitavam notoriamentequalquer menção da escravatura,porém cuja defesa da federação implicavaem que cada província deveriater permissão para decidir sobre a questãoda escravatura, de acordo com as convicçõeslocais. 45As opiniões políticas e a carreira subseqüentedo chefe de polícia Francisco de FariaLemos permanecem obscuros, porém oministro da Justiça, mais visível, Franciscode Paula riegreiros Sayão Lobato, a quemLemos e Tavares entusiasticamente relataramseus primeiros êxitos e que ofereceupelo menos apoio tácito, foi descrito poruma historiadora recente como "defensorda escravatura". O jovem e enérgico46Tavares permanece enigmático, visto que,apesar da promessa de uma brilhante carreiraapós 1871, ele desaparece de nossavisão. Tudo que pode ser dito em confiança,é que através de todo o ano de 1871,nada, em suas deliberações públicas, oidentificou como abolicionista.Se a campanha não foi uma pressão pelaregulamentação da saúde pública nempela abolição, o que significou então? Deforma sucinta, porém simples, Tavarespag.48, Jan/dez 1996


nos diz: pela exposição e limpeza dos "visnegócios" dos senhores que prostituíamsuas escravas, ele tinha por objetivo "moralizar"a sociedade. Por moralizar eleteria entendido não somente a moralidadeem nosso sentido de conduta ética ou legal,porém algo mais próximo da persuasãoou legitimidade moral, que se distinguiada confiança na força. Temos, apenas,uma declaração reflexiva feita por eleem outubro, quando seu mandato de juizhavia terminado e a campanha havia seexaurido: "Acredito ter prestado um serviçoà moralidade pública". Seu apelo inicialpara que fossem reconhecidos "o recatoe a decência, aos quais toda mulhertem direito, mesmo que seja escrava" nãofoi o prelúdio a uma demanda pela abolição,porém uma reafirmação de autoridademoral dentro de uma sociedadeescravista.* E é aqui que podemos descobriro que significou a campanha.7Escrevendo sobre a França do século XIX,Alain Corbin nos apresenta a imagem daprostituta como um esgoto: a sujeira entravae era depois evacuada através de seucorpo pútrido e mal-cheiroso. O corpo delasimbolizava e encarnava a infecção, queameaçava contaminar a sociedade. Tratasede uma imagem apropriada da Paris do48século XIX, na qual o higienista Parent-Duchâtelet reformou primeiro o sistema deesgotos e a regulamentação da prostituição,como questões de higiene pública. A49imagem do corpo-esgoto é útil neste caso,precisamente por focalizar as característicascontrastantes do caso das escravas brasileiras.A prostituta escrava, antes de serculpada como depravada ou promíscua e,portanto, a causa da prostituição, era, aoinvés disso, identificada como vítima. Forçadaa atos libidinosos pela "maldita ganância"de seu senhor, seu corpo crivado desífilis era citado, não como evidência de contaminaçãocorporal ou de poluição moral,porém como prova do abuso excessivo queos outros lhe infligiam. Como escrava, ao50mesmo tempo propriedade e um ser moralque estava sendo privado da liberdade defazer escolhas morais, ela estava sendo forçadaa uma vida imoral. Essa transmissãode responsabilidade desviou a atenção daprostituição e de sua regulamentação paraa escravatura. O senhor de escravos, não aprostituta, tornou-se a Figura central na tentativafeita por Tavares e seus seguidoresde resgatar relações decentes de escravosenhorda imagem prejudicial causada poruns poucos repulsivos.Para moralizar a sociedade, Tavares haviaperspicazmente caído em cima dossenhores de escravos mais frágeis e vulneráveis.Ele poderia ter escolhido tornarpública a condição de escravos homens -Acervo, Rio de Janeiro, v. 9. n° 1-2. p. 53-66, Jan/dez 1996 - pag.49


A C Ede carregadores, por exemplo, cujas articulaçõesdos joelhos e dos quadris ficavamestropiadas após seis ou sete anosde transporte de sacos de café pesando60kg do armazém para a doca ou de umescravo, como Sebastiano, cujo senhorhavia "aberto a chicotadas suas costas"por insolência." Ter agido assim, importariaem atacar a escravatura em seu núcleo,expondo famílias de latifundiários,ricas e proeminentes, cujos escravos rurais,como o expressou o ministro da JustiçaSayão Lobato, "constituem o capitalmais precioso da agricultura brasileira, omais indispensável para estimular a indústria,para produzir e sustentar a famíliae o Estado". Era mais seguro (e não52inexato) atribuirá pequena proprietária opapel de violadora típica do desempenhocorreto da autoridade.Assim procedendo, Tavares recorreu a umpreconceito bastante notório contra o forasteiro.Embora mulheres brasileiras depele escura figurassem perceptivelmenteentre os que comerciavam com a sexualidadeescrava, a aversão pública rapidamentese fixou nas mulheres imigrantes.Aureliano Cândido Tavares Bastos, críticoimpiedoso da escravatura, comentou emsuas anotações, em fevereiro de 1871, queos "portugueses estavam muito envolvidos"na especulação com prostitutas escravasque persistia no Rio de Janeiro. Mesmo umjornal editado por estrangeiros, o Anglo-Brazilian Times, em março descrevia o comérciocomo exercido "somente [por] estrangeiros,somente de duas nacionalidades",ou sejam, imigrantes portugueses efranceses." Esta convicção era tão comum,que as cartas dos leitores para os jornaispediam que fosse feita uma distinção entreportugueses honestos como eles e os outros,que "nos envergonham". * Mão há5maneira de se saber, com certeza, quais asmulheres ou quantas mulheres entre os traficanteseram imigrantes, porém a acumulaçãode pequenas informações que se entremeavamatravés das provas conferiamcrédito à opinião local. A medida que europeuspobres se aglomeravam no Brasil,através do porto do Rio de Janeiro, competindono comércio e ocasionando a multiplicaçãode favelas, a presença deles tornava-seperturbadora. Como forasteiras queganhavam dinheiro com a escravidão, porémse recusavam a cumprir com as normasinformais que a regulamentavam, asmulheres portuguesas (como seuscorrelativos masculinos anteriores no tráficotransatlântico de escravos) tornaram-sebodes expiatórios, ao mesmo tempo desprezíveise perigosas.Embora se destinasse a eliminar negóciosinescrupulosos em uma única freguepag.50,janAlez 1996


neste númeroAngela de Castro GomesAnne LaurenceBeatriz KushnirBeatriz Moreira MonteiroEni de Mesquita SamaraQeorgina Silva dos SantosMaria Beatriz Nizza da SilvaRaquel SoihetSandra Lauderdale QrahamSueann CaufieldESTUDOS DE GÊNEROMINISTÉRIO DAJUSTIÇA2-7 ARQUIVO NACIONAL BRASILGOVIBHOfíDÍKAl

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