Todas as doutrinas psicológicas derivadasde Freud dão ênfase ao impulso,ao desejo, ao instinto. São poucos osautores capazes de perceber que as chamadasresistências ou defesas psicológicassão inteligentes. São poucos, também,os terapeutas cônscios de que oprocesso curativo consiste em aprendera perceber e a refletir com clareza eamplitude.Vamos estudar aqui os modos pelosquais as pessoas são feitas medíocrespelo processo de socialização.Comecemos com exemplos.Certa vez, depois de muitas horas deconvívio e análise, eu disse para umapessoa: em você existe um gênio quevive continuamente explicando todas asações e omissões de uma débii mental.Tratava-se de uma jovem e bela mulher,com título universitário, que sofria deuma incapacidade total de organizar coisaspráticas, teóricas, manuais, corporais,sentimentais...De outra parte, era quase satânica suacapacidade de explicar as poucas tolicesque fazia e as muitas coisas importantesque não fazia.Seu Q.l. Já havia sido medido: 150.Mas vê-la falar e interagir com elacausava uma definida e acentuadaimpressão de debilidade mental.Depois, alguma coisa importanteaconteceu em sua vida. Um homemcomeçou a interessá-la. E deste momentoem diante, ela começou a realizarações muito inusitadas para conquistá-Iq. Muito inusitadas mas eficazes. A serviçodesta ligação significatica, seu Qlcomeçou a render...O exame das condições de sua formação,na infância, sugeriam com força quehavia sido melhor para ela mostrar-se ecomportar-se como uma boba. Casocontrário, as dificuldades teriam sidomuitas e talvez intransponíveis.Em outra ocasião, disse para outra pessoa:"Vejo sua cabeça como um formigueiro,porém sem formigas. O curso deseu pensamento é totalmente irregular eimprevisível".Neste caso, também era fácil distinguirna pessoa dois aspectos:De um lado, uma jovem sensível einteligente que vivia ha muito a vida quelhe parecia melhor, bem diferente aospadrões estabelecidos. De outro, umrepositórioinexaurível de frases feitas queeram repetidas interminavelmente:"porque eu preciso de uma ligação estável,porque ninguém pode viver sozinho,porque como vai ser quando euficar velha, porque o que dirão osoutros, porque mamãe fica preocupada..."Esta moça percebia muito bem oque lhe importava. Na ocasião da minhafrase, ela estava se desencantando decerto rapaz em torno do qual havia giradobastante, às vezes mais perto, às vezesmais longe. No fim de semana anterior,ela e vários amigos, inclusive o rapazcom outra namorada, haviam acampadojuntos numa praia. Minha paciente nãoteve ciúmes mas achou muito ruim ocomportamento furtivo, exclusivista ehipócrita do rapaz.Eia e ele trabalhavam no mesmo setor,e com freqüência ele a procurava nohorário de expediente para se verem econversarem um pouco. No dia da frasesobre o formigueiro, ela havia começadocom aquele sermão insuportável davelha mamãe alienada. Depois de poucosminutos, eu a proibi de falar generalidadese perguntei se ela tinha algumfato concreto a comentar. Após um curtosilêncio, ela disse: aquele rapaz - sabe- veio me ver hoje no trabalho. Ele estavacom a gravata que eu tinha dado de presentepara ele!Havia vitória e desprezo no seu tom devoz e eu apontei o fato. Solicitei a ela queexprimisse as coisas em palavras e nãocom a cara nem com o tom de voz. Entãoela se pôs séria e começou: hoje ele chegouem minha sala, perguntou como euestava, o que eu tinna achado do acampamento,como eu me sentia diantedele, eu disse que estava pouco interessada,conversamos um pouco mais,depois ele disse que ia embora, levantou-see, nesta hora, eu reparei que eleestava com uma gravata que eu tinhadado de presente para ele.Aí foi a minha vez de falar com a cara eo tom de voz.Perguntei: - só depois de todo estetempo é que você reparou na gravata?- Só. Eu não costumo prestar atençãonestas coisas. Por que é que o sr. está tãoespantado?- Porque foi a primeira e a única coisaque você disse sobre o fato, quando euperguntei.- Ora...- Assim acontece sempre com você.Você percebe muito bem os fatos que teimportam, mas ao relatá-los paraoutrem, você começa do ponto que maiste convém no momento e, se a pessoanão diz nada, o relato fica por isso mesmo.-Paracada pessoa, você conta umpedaço diferente da história conformevocê queira exibir-se, provar que tinharazão, testar a resposta do outro, provarque foi vítima...- Mas eu acho que todo mundo éassim...- Eu também acho. Mas você é assimmuito nitidamente. Pior do que isso:como você faz uma porção de coisas forados bons costumes consagrados, vocêestá sempre com peso na consciência.Entendo que você recorte os fatos a seumodo, quando você fala com a, b ou c - equer se proteger de todos. Mas depoisque voce desmontou o fato em 10 pedaços,um para cada pessoa, você perdetotalmente a noção do conjunto. Você émuito inteligente mas usa a sua inteligênciapara viver perplexa, confusa esem saber o que deciair.Estes dois casos ilustrativos poderiamfacilmente ser multiplicados.Ao argumento casuístico, acrescentamoso argumento estatístico.Todo psicanalista fala (nos livros) e secomporta (segundo a técnica) como se oneu rótico fosse extremamente perigoso,cheio de ardis e de astúcia, sempre prontoa enredá-lo, a fazê-lo perder o rumoou o controle.De outra parte, o neurótico clássicoque aparecia nos livros de poucos decê-
USE BURRICEILUSTRAÇÕES: JAYME LEÃOnios atrás, com freqüência se apresentavacomo uma pessoa de recursos intelectuaislimitados. Poderíamos dizer emforma lapidar caricata que o neuróticoconscientemente era um bobo e inconscientementeum gênio - como as minhaspacientes.Em muitos estudos da época, o próprioFreud assinalava que os mecanismosde defesa inconscientes eram hábeis,astutos, precisos e tenazes.No extremo oposto, encontramos apartir de Jung, todas as Escolas espiritualistase esotéricas tanto orientais comoocidentais, todas elas declarando que defontes interiorés desconhecidas doHomem, pode surgir e surge muitasvezes um conhecimento e uma inteligênciaprofunda das coisas.Homens que tivessem o livro exercícioda maior e da melhor parte de sua inteligência,aceitariam os condicionamentossociais que sofreram?Do ponto de vista da estrutura socialautoritária e eterna, a primeira coisa afazer não é a castração mas o emburrecimento.É essencial que no lar e na Escola,através dós assim chamados processossocializantes, se consiga da criança umtotal embotamento da inteligência, noduplo sentido de destruir-lhe a lógica e ointeresse intelectual.Isto se consegue "ensinando-lhe" coisasque não a interessam de jeitonenhum, "explicando-lhe" proposiçõesgritantemente falsas, destituídas dequalquer fundamentação afora a autoridadede quem diz (pai, mãe. parentes)ou do lugar ou do nome onde são ditas(escolas, Igreja, Congresso Nacional,etc).Depois de ouvir durante anos coisassem pé nem cabeça, pouco e nada ligadosà sua experiência imediata, a criançaaprende - certamente por medo - abrincar de faz-de-conta. Faz-de-contaque mamãe tem razão, faz-de-conta quepapai sabe tudo, faz-de-conta que aEscola é importante, faz-de-conta que asleis do Congresso visam nosso bem, fazde-contaque todos são honestas, fazde-contaque os bons e os trabalhadoresirão para o céu, faz-de-conta que osmelhores lugares serão para os maisobedientes ou os mais conformados,que cada um recebe o que merece, quesomos todos culpados pelas nossas másações e todos merecemos recompensaspelas nossas virtudes.Aí se completa a Lenda do Aprendizde Feiticeiro. Depois que aprendi a mágicado faz-de-conta, quando tenho umpensamento meu digo que é bobagemou que é loucura. Deste momento emdiante, serei um bom tijolo na parede daprisão social e perderei para sempre apossibilidade de encontrar minha verdade.Aviso muito importante aos que navegamhoje. Não estou falando so de umacoisa que era. Falo de uma coisa quecontinua sendo. O principal da minhahistória não é o fato dela ter começadohá 40 anos atrás, com todas aquelaspobres crianças, filhas daqueles pobrespais quadrados que eram os nossos.O método de emburrecimento sistemáticocomeça no lar, continua na Escolae na TV. mas não pára aí. Sua principalcaracterística não está na infância, masno coletivo. Em qualquer grupo quetenha a sua linguagem própria, quemaprende a linguagem, aprende o faz-decontada patota. Tanto faz que a linguagemseja Op, Pop,.Trac, Cac, ou Mec.Importante no faz-de-conta é que eleé brinquedo de grupo. Quando qualquergrupo começa inteiro a brincar defaz-de-conta, não tem mais grupo, nãotem mais gente. Só tem coletividade.Multidão de ninguéns. Opinião pública.Depois dos estudos de Korzibskysobre Semântica, surgiu nos EUA terapiado mesmo nome que consiste em ensinaras pessoas a falarem com clareza eprecisão, verificando a cada passo aconexão de cada palavra com a coisacorrespondente; recordando a cadapasso, que coisas com o mesmo nomenem por isso são a mesma coisa. Casas,por exemplo. A palavra é uma só e ascasas correspondentes são inúmeras.Aprender a pensar - é isso. Na terapiasegundo C.G. Jung, reconhecia-se explicitamenteque estavam em presençaduas personalidades basicamente semelhantes,diversificadas pela história particularde cada um. Esta história é a soma ea seqüência dos fatos que me fizeramexatamente como eu sou. Aquilo que aminha história não explica é a minhaindividualidade - precisamente minhaforma específica de responder às circunstânciasque me formaram. Isto é. alógica da minha vida é a inteligência dasminhas respostas reais e concretos atodas as perguntas que a vida, o mundo eos outros me fizeram.Ê preciso não esquecer que "tomarconsciência" é um ato essencialmenteintelectual - por definição, è uma formade conhecer - ou são muitas formas deconhecer - desde que existem muitasformas de consciência, de ser conscientee de tomar consciência.O Psicanalista não parece se dar contade que o seu famoso, criativo e curativo"insighht" é, com certeza, a mais pura elímpida ação intelectual do Universo.Claro que estou falando de uma inteligênciaviva que se desenvolve, que integrae reintegra os dados da percepção que,ao mesmo tempo, constrói grandes sistemasexplicativos do mundo e grandessistemas explicativos de si mesma. Falode uma inteligência que acompanha osfatos, que é dócil em se reformular e quevive, prazenteira, destruindo uma verdadepara construir outra.Esta compreesnão, como queremtodas as Filosofias práticas do Oriente, sópode provir do desenvolvimento lentode uma profunda capacidade de concentração- outra palavra tão confusacomo "tomar consciência" e "emocional".Tenho para mim que concentrar-sesignifica compreender cada vez maisfundamentalmente, organizar fatos cadavez mais numerosos em classes cada vezmais diversas, passíveis de arranjos erearranjos em conjuntos cada vez maiscomplicados. Tudo isto são definiçõesda inteligência como uma função viva.Tenho para mim. ainda e enfim, que ainteligência verdadeiramente viva acabadestruindo sua fé ingênua de organizartoda a experiência em um só sistema.Esta é sua etapa infantil, precisamente:destruída esta fé no sistema único, ei-laque descobre - e agora já e madura - quesua função específica é criar e destruirsistemas, que sua realização última écriar, para cada momento, para cada