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seleção de textos, fotos, quadrinhos e repressão - Memórias ...

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Então a sinuca sempre caminhou assimcomo um troço esquecido. Quandorealmente, ela representava a concentraçãode um tipo que fica muito próximodo marginal, que e o lumpen, que é ocara marginalizado mesmo. A sinuca éum negocio desconhecido e quandoaparece um cara falando disso com propriedade,é levado como pitoresco! Éum meio de divertimento, digamosassim: um lugar lúdico, e também umganha pão para outros caras que não têmmeios para grandes jogos, né? Os mesmoscaras do salão de sinuca, colocadosassim no Jóckey são uns pés de chinelo,uns caras que jogam muito pouco. Sãocaras que jamais sonharam com Bolsa deValores, eles nem sabem o que é Bolsade Valores... são caras assim que não sãodados ao pôquer, o máximo que elesjogam no baralho é jogo de ronda essesjoguinhos de 21, o ioguinho do bicho.Agora, a gravidade da sinuca taí: quenem no divertimento, nem no campo lúdicoesses caras tem assim o direito dodivertimento, porque até isso pra eles éum negócio patético, é um negócio dramático.é um negócio do dia de amanhã,entende? O camarada quando tá jogando50 contos numa partida de sinuca, ou20, ou 10, ele tá jogando é o dinheiro daxepa de amanha, do ragu, da comida. E asobrevivência dele.Esse negócio ganha uma dimensãomuito grande e isso passou desapercebido,até agora, pelo menos pela maioriados carás. E cada vez que um jornalistavai falar sobre sinuca, o cara vai procuraruma porrada de coisas que já tão escritasem outros jornais, vai conversar commeia-dúzia de malandros-chave, são osmedalhões da sinuca, são os gênios dasinuca realmente: o Lincoln, Carne Frita,o Estilingue, o Boca Murcha. Esses carasaqui e em São Paulo, esses caras dão umavisão fantasiosa da sinuca porque dasinuca eles tiraram um statuzinho social,o de jogador de sinuca. O Frita chegou aviajar pra baixo e pra cima com o dinheirode sinuca.Então, a sinuca é mais um fenômenoque escapa ao intelectual da nossa sociedade.Nosso intelectual está preocupadocom outras coisas porque já encontratodo um processo pra só pensar nessasoutras coisas,Por exemplo: os americanos, comtodos os defeitos que eles têm, com todaaquela preocupação de fazer indústriade cinema, industria de livro, indústria donão sei o quê, ainda assim eles fizeramum filme sério sobre sinuca. Com muitosdefeitos. Um filme com o Paul Newman:o "Desafio à Corrupção", É um títulobabaca, como os outros que estãoaí. Mas era um filme sério. Ele apresentavaa sinuca realmente. A realidade. Sóque não apresentava a polícia, um elementofundamental na sinuca, aparecendocomo o elemento mais sórdido,como elemento de exploração do jogador.O policial aparece no jogo da sinucacomo explorador do próprio jogador.Então, a sinuca também é uma cópiada nossa sociedade. Na sinuca existe opatrão, existe o empregado: o cavalo;existe o sujeito que tem dinheiro e nãosabe jogar, que e o sujeito que patroa ojogo. Aparentemente é um joguinho,mas se visto da angulação do malandro,daí a grandeza, se visto da angulação domalandro... tá lá no livrinho que eu fiz;ela é a própria síntese do patetismo davida, da dramaticidade, da luta. Daí porqueos caras dizem troços que me parecematé hoje meio piégas, melodramáticos:"A mesa é triste como uma bola brancaque cai."Isso é frase que apanhei de vagabundoda Lapa. Parece uma frase literária, masnão é. Você imagina: urri cassino do lúmpen.O que seria? Seria uma mesa desinuca às quatro da manhã, ou às cinco,ria hora em que a polícia já se esbaldoude aproveitar, já passaram por ali aquelesque não têm compromisso nenhum coma sinuca, os que jogam para passar o termpo, e estão os sobreviventes da sinuca,uns comendo os outros. Violentamente,tá entendendo? Você vai encontrar umcassino preto e branco, sem retoque,você vai encontrar o cassino do chamadolúmpen. Que é o lúmpen mesmo - ojogador de sinuca não é bem o malandro,nem bem o trabalhador, nem bemo operário, ele fica vizinhando a pobreza,vizinhando a miséria, não é o esmoleirotambém; pode ter algum elementoligado à prostituição, que vai lá apostar...é um lúmpen mesmo.Acho que a sinuca é a mais característicadessas coisas, dessa faixa social meiovaga chamada lúmpen; assim talvez sótão característica quanto estes escrevedoresde jogo do bicho, que são carasrealmente lumpen, caras que só sabemfazer aquilo.Então essa gente ganha assim umpoder dramático, a partir da figura físicadeles, da magreza, aa palidez, do envelhecimentoprecoce. Entende? Não sãobem os bandidos, não são bem os marginais:são mais uns pés-de-chinelo, o pérapado,o zé-mané, o eira-sem-beira, omerduncho - aqui no Rio se usa muitoessa expressão merduncho. Quer dizer,é um depreciativo quase afetivo de ummerda, merda-merda; então, em vez deum bosta-bosta, o cara diz - "é um merduncho".É um troço da maior tragédia,que evidentemente não podia sensibilizara classe média, nem os intelectuaisbrasileiros. Não é por mau-caratice, nãoé por nada, é que eles são filhos da classemédia, jamais vão olhar essas coisas,jamais!Como é que um cara como eu - nãoescrevi sobre sinuca à toa, fechei botequimcom 16 anos! Eu jogava bem: comoé que um cara como eu cai nisso? Umcara com sensibilidade, vivendo em VilaAnastácio, em São Paulo, que é um, fimde mundo, é onde-judas-perdeu-asbotas,um problema sério, até de condução.Então esse cara, um cara de certa sensibilidade,tem desejo de aventura, temessa coisa maravilhosa da juventude, do"grande feito" - e onde é que ele vaijogar isso? Numa vidinha danada dedura, com tudo certinho, contadinho,tudo contadinho, um miserê danado portodos os lados? A sinuca era o lúdico, asinuca era a aventura, finalmente ele iafazer qualquer coisa maldita, mal comportada.Esse desejo que a juventudetem de contestar, a sinuca era - claro,minusculamente - uma forma de dizer:"Pô, não! Eu vou entrar num salão desinuca. Não pode menor de idade?Não quero nem saber!"Tinha çara na minha idade, com 16,17anos, que só achava graça em beber cervejadentro de um salão de sinuca oudentro de uma zona de meretrício...Porque ali ele via a grandeza da vida.Ali ele topava com tipos autênticos - nãotinha aquele vai-nao-vai dos lugaresonde ele vivia. Geralmente eram os lugaresonde se afirmava sua condição dehomem. Porque desaparecia toda a frivolidade,você precisava saber o que éque você estava fazendo. Você precisavasaber com quem você estava mexendo.Ao mesmo tempo, havia.um aprendizado,assim de vida, naqueles ambientesque você sabia que nada podia ser degraça. Tudo custava alguma coisa, inclusiveem termos éticos, de respeito pelooutro. Embora, como diria uma visãoburguesa, fosse um "mar de lama", umaperdição - era realmente com dramastremendos. Mas havia outra grandeza,que isso aí estonteava os caras da minhageração.Naquele tempo o cara precisava saberdançar direitinno porque ele era umduro; se fosse lá no dancing e não dançassebem direitinho, as mulheres cobrabamdinheiro dele e ele não tinha comque pagar. Então ele tinha de dançarbem pra conquistar uma mulher, praque aquela mulher ficasse camaradadele e dançasse de graça. A sinuca, comoo taxi^dancing, esse mundo todo, oscaras continuam se devorando - quenem porco-espinhoenroscandoumnooutro, vai indo.O grande momento é a tarde, a horanão percebida. A única vantagem dessescaras, esses caras jamais são obvios, sãoos caras que aprenderam a dissimulação.A dissimulação entre eles, e também odesacato. Seguindo uma partida de sinucaentre jogadores mesmo, você vai verque eles têm as armas mais sutis, as maispolíticas inclusive. O sujeito ganhar apartida do outro, desacatando o outro,encabulando o outro através da fala.Assim um desacato debochado, aquelacoisa que rumina dentro do sujeito, instigação,e a coisa não acontece por acaso.Por exemplo: um jogador de sinucanão bebe, não bebe nem café.Você assiste um cara jogar 8,10 h, elesbebem água com açúcar por incrível quépareça, ou então um suco de qualquercoisa bem acucarado, e ficam ali em voltada mesa durante todo aquele tempo,num controle de nervos danado.Ainda hoje, na Central, por exemplo,você vê partidas como essa. Você vê, porexemplo, tipos desalojados de outrosramos de malandragem. E aquilo formauma faixa de gente especial, inclusive seesconde durante o dia, nas últimas horasda manhã. O respeito com que eles tratamum otário é impressionante. Porqueeles só sé desrespeitam, se desacatamentre si; quando chega o otário, eles tratamo otário como uma majestade:como a prostituta trata o seu freguês, oseu cliente e, se quiser, o seu prostituinte- ela é mesurosa, mesurosa porque tácom tóxico na cabeça, se não ela enforcavaaquele cara. Ê mesurosa, agradável,tolera, agüenta aguele sujeito até nãopoder mais, até nao poder mais.O cara da sinuca é muito mais o carade viver a vida, de procurar sugar umpouco mais. O cara de sinuca é o caraque vive realmente, dentro do padrãoao seu limite. Então, aqui no Rio, quandocai o Lamas, não é exatamente oLamas do filé à francesa, que foi freqüentadopor Coelho Neto, por Machadode Assis e pelos estudantes não sei dequê: quando cai o Lamas, cai a sinucaatrás, separada por uma porta, separadatotalmente.O cara que freqüenta a mesa de sinucado Lamas é o cara que ntinca sentou namesa para comer aquele prato. Talvezele ate desconheça a existência daqueleprato, ele é um cara que comeu em casaou não comeu, ou defendeu um sanduíche.Ele é realmente um miserável: e ooutro, qualquer cara que freqüenta oLamas, não entra lá com menos de 50contos no bolso. Agora o cara que passadireto pelas mesas e vai lá pro fundo,esse cara não tem 50 contos não; e setiver é uma plantação que ele vai fazercom aquele dinheiro, pra investir aqueledinheiro, pra retirar 70 ou 100. Ele é umhomem muito mais fixado naquela realidade,aquela realidade não aparente doLamas, que é a realidade lá atrás, fora doquase acontecimento social.É um problema de conceito. O Rio,que é a capital do samba, o melhor carnavaldo mundo, esse negócio todo, oRio de Janeiro não tem mais casa de samba,as casas de samba eram divertimentospopulares, onde você pedia umcachaça, uma cerveja, você comia umtira-gosto qualquer e tal. Era um negócioque você fazia com pouco dinheiro. Issofoi invadido pela zona Sul, os endinheirados.Então esses divertimentos pra uma faixinhasocial, a gafieira, a casa de samba,os dancings, esses eram os divertimentospopulares. 0 mesmo processo acontecehoje em limite muito maior com as escolasde samba. Portela hoje é uma indústriade samba, a Mangueira hoje é umaescola que fatura horrores, é uma caixaregistradora.Não tem mais aquela aventurada coisa pobre, não há mais lugarpra pobre nesses lugares, como não nábotequim. O desaparecimento do botequimno Rio é um fato sensacional. Ouvocê bebe de pé, ou o botequim do Riode hoje é uma farmácia, é um negóciocom mesa de fórmica e tal. Acabouaquele negócio de você poder sentarpara tomar um café da manhã. E acaba 0botequim, acaba de você tomar cervejade noite. No momento que cai a distinçãode Zona Norte e Zona Sul, sobe a dequem tem carro e de quem não tem. AsPessoas que não têm carro não usammais a rua, elas andatn de carro pela rua.Mas elas não têm mais a praça, não têmmais o botequim porque a vida se transformaem 4 paredes. Não têm mais contatohumano com a cidade. O que acaboua praça, acabou a casa de samba,acabou a Lapa. Hoje o sujeito tem medode entrar numa boate, e vergonha porqueele não tá vestido, nem sabe o preçodo uísque, esse distanciamento de vidana rua vai te afastando.Porque rua hoie é um fato conflitante,é um elemento de desgosto, o cara sai decasa, pisou na rua, pumba! conflito. Conflito,você tá na área de conflito, te cuida,salve-se quem puder!Então o mundo da sinuca era uma ilhadentro dessa área de conflito, uma dasúltimas que restam nessa fileira de casade samba, de gafieira em geral, de botequimem geral, de praça em geral. Elaaliava o alto poder artístico à habilidade,mas também com a devoração dos carasuns pelos outros. Era o abrigo dos marginaisdo tipo "ventanistas" (ventana,janela). O cara que você chegava, tiravao paletó, e daqui a pouco não tinha maispaletó. Cadê o paletó? O ventana levou.Era um lugar de curtir a solidão, de assumira sua solidãd com aquela machezaqúe a solidão tem. Evidentemente qualquerantro de jogo é lugar de gente complicada,os mal-amados, os esquecidos,os abandonados, os tímidos, esses doentesnervosos todos, evidentemente asinuca é um excelente escoadouro dessagente. O lugar de curtir solidão, masaquela solidão menos doença nervosa,solidão mesmo. Aqueles caras aue ficamolhando o jogo, ficam até 3 noras damanhã, jamais jogaram sinuca, sabem,percebem alguma coisa. Especialmentevelhos, o velho não tem mais lugar, ondevai o velho? Eles ficam por aí fazendoapostas por fora, que o jogador não temnada a ver com isso; é um divertimentoonde as horas passam, quando o cara selembra já é de madrugada, vai pra casa,dorme, esquece que tá sozinho.Na sinuca existe o leite de pato, o caraque brinca em serviço - é o estudante, ocara classe média sem compromisso, quevai ali para se divertir. E há o profissional:o jogo é realmente o sustento dele, porincrível que pareça, é o sustento dele. Háuma diferença brutal de classe, quecomeça pela maneira de vestir e que acabana própria psicologia de vida. Até agíria é diferente, só eles se entendem.Que é pra poder dissimular os outros eos outros ficarem na dúvida. Isso é umsobrevivente urbano num gratí mesmode lúmpen, não chega a pertencer àmarginalidade. No máximo, você podeenquadrá-lo no artigo 59, de Vadiagem.Se você correr as bocas, vai encontrarcasos até hoje de tuberculose, de carasque estão tuberculosos. Inclusive aquelebrilho nos olhos, caras subalimentados,que passam ali dias e noites, e ao ladodisso os seus exploradores, os seus patrões,os caras que estão apostando neles,a total responsabilidade no taco.Ficou célebre aqui na Gávea a passagemdo Boca Murcha, que é um velhomalandro, cujo apelido vem do fato delenão ter dente.Elé se veste como um caipira,um matuto, mete umchapelão, uma calçalarga, e chega aqui na Gávea, e duranteuma semana ele passou perdendo.Perdia pra um, perdia pra outro, hoje 40contos aqui, 50 ali; assim ia fazendo suaplantação. Sozinho, era um lúmpen solitário,arriscado a matarem ele lá dentroou na saída.Numa bela segunda-feira, Boca Murchaapareceu no salão de madrugada, às3 h, e começou a quebrar, o que vinhaele traçava, ele ja tinha estudado asmesas, ele jogou até a tarde, ele já tinhaquebrado todo mundo, inclusive doispatrões de jogo, e lá pelas 5,6 h da tardeele conseguiu correr no meio de umapartida pro meio da rua São Vicente epegou um táxi. Conseguiu derrubar todaa curriola de um botequim que ele tinhaplantado uma semana.O Boca Murcha vai desaparecermeses, vai se mandar por aí. A vida delesé isso mesmo, eles circulam sem parar.Alguns se regeneram, ou "se regeneram",como o Carne Frita.Por exemplo o Frita, o Valfrido. consideradoo melhor taco do Brasil. Ele é umartista, um esteta jogando, é dentro damalandragem uma certa aristocracia,certo estilo de Gerson, de Nilton Santos,dessa categoria, apesar de malandro esórdido, como todos os outros. O Fritahoje tá velhinho, é um sergipano pequeninho,muito vaidoso no vestir, comotodo jogador vaidoso, mão manicurada,aquele negócio todo, trocando de terno.Isso você nota muito no jogador de futebol,nos Paulos César da vida. O cara precisaser visto. Inclusive alguns deles conseguemimpressionar como grandescaras fora do salão, justamente pela vestimentae pelo comportamentp disciplinadono meio da rua. São educados,incapazes de brigar por uma ninharia,uma pessoa de tino trato. E um pobreque mal sabe escrever, ler.Então, acabou o divertimento popular,e a sinuca é uma dessas coisas. Imaginenessa sociedade bem comportada,embora torturada sem comunicação,mas bem comportada, o cara tem vergonhade viver um grande amor. A palavraamor é ridícula, hoje não existe coisamais ridícula que o amor.Você chegar prum cara e dizer quevocê está apaixonado, é ridículo. Nãopode. Hoje e vergonhoso viver um grandeamor. É ridículo.Então a sinuca é um pedacinho dessascoisas todas. (Cravado por HAF).

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