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seleção de textos, fotos, quadrinhos e repressão - Memórias ...

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Aconteceu no sertão baiano, Jequié, 340 km deSalvador. Um raio caiu, o menino Secundo José dos Santosficou desatinado. O delegado da cidadedecretou: chiqueiro nele. E a família acatou.LOUCO DEIXOU IRMÃO29 ANOSPRESONUMCHIQUEIROOs donos do mundo e do destirvpde Secundo: Antônio José dos Saltos,seu pai; Petronílio José dos Santos,seu irmão; Tenente Mota, delegadode Jequié em 1943.O CHIQUEIRO:Dois metros quadrados, toros demadeira, formiga e bosta. No seuinterior um bolo de carne uivante:Secundo, ex-louco furioso, apodrecendosua loucura. 29 anos de espinhadobrada, uivos e masturbaçao.Esta história tem começo mas ninguémsabe o fim, apenas uma passagemde um chiqueiro para outro. Emoutubro de 1972, Secundo foi transferidopara um depósito de loucos nacapital,- Quem é que manda em sua casa,homem? Faça um chiqueiro e botaeste homem lá dentro! Lugar de loucoé no chiqueiro!(Tenente Mota em 1943, falando aopai de Secundo)"... CONTAR O TEMPO NÂOCARECE ..."(Secundo, unhas de lobisomem,dedos comidos por bicho de porco,na véspera de sua viagem para o "JulianoMoreira", em Salvador,outubro de 1972).UM SANATÓRIO SERTANEJOUm chiqueiro é um pequeno cercadofeito de toros de madeira ecoberto de palha. Pouco espaço porquea gordura do porco depende dopouco movimento que ele faz dentroao chiqueiro. O chiqueiro é um lugarde engorda, de inchação.Já foi também lugar onde se guardavao medo e se aplicava justiça. Ajustiça da normalidade contra a loucura.Secundo José dos Santos foi umlouco justiçado num chiqueiro. Ficouapodrecendo na gaiola de 1943 a1972, quando um jornal de Salvadordenunciou o fato. Até então poucossabiam que um homem, sentenciadopelo medo de sua família, lutava contrauma prisão absurda encravada nacaatinga e guarnecida pela lei primitivado temor ao desconhecido. Domedo do louco, do cachorro doido,da raposa azeda.SE CACHORRO ROMPE ACORRENTE A CULPA É DO DONOEm 1943, um raio rachava a famíliade Antônio José dos Santos. O mesmoraio que desagregou a mente deseu filho Secundo ameaçava a segurançaregional. Todos temiam o loucoSecundo que começava a cometerdesatinos.Surge na história o senhor inquisidor.Um homem sem capa preta mascoberto com a farda da polícia militar.Tenente Mota, delegado deJequié, o homem que tinha a chaveda cadeia pública e idéias para criarpequenos chiqueirinhos, sanatóriosdomiciliares.A família do Secundo ouviu asordens do tenente. Construíram ochiqueiro e enjaularam ó filho misterioso.Mas a jaula era fraca para o louco moço. Um, dois, três. Secundoteve forças de destruir 3 chiqueirospara se render no quarto. De torosmais grossos e pedras bem pesadas.PETRONÍLIO, IRMÃO E GUARDAO chiqueiro foi construído na rocinhade Petronílio José dos Santos,irmão do louco. A 8 km. do chiqueirode Secundo surgiu a faixa escura daRio-Bahia, para carregar seus loucosem gaiolinnas de ferro e rodas deborracha.Em frente do chiqueiro de Secundo,guardada a distância para apagarseus uivos e diminuir o fedor da bosta,ficava a casa do seu irmão Petronílio.Petronílio, preto brilhante, analfabeto,ingênuo, covarde, pai de umarinha de secundinhos barrigudos,famintos, nus. Casa de taipa, chãobatido, fedor de bosta de menino.Menos azeda que bosta de doido. Avoz de Petronílio, guardião do irmãobicho:- O que a gente podia fazer? Ia deixarele fazendo desatinos no mato,acabando as feiras, capaz de mataruma pessoa? Dinheiro a gente nãotinha para mandar ele para um asilo. Etinha que ficar alguém tomando conta,dando de comer a ele...ESTRANHO, LOUCO NÂOENGORDA EM CHIQUEIRO!Secundo não engordou nos 29anos de cativeiro. Não podia se movimentar,a altura do chiqueiro nãopermitia que ele ficasse em pé, mastalvez pela pouca comida ele nãoadquiriu a opulência flácida dos porcos.Sabugo de milho» bicho de porco,licuri, pão seco. Mas o pouco movimentoda prisão lhe conferiu a passividadedos loucos românticos, repertóriodos justos. Bobos?Os filhos de Petronílio eram visitasconstantes deSecundo. Encostavam acabeça entre as madeiras e conversavàmcom o tio-bicho.Secundo quase não falava, murmurava^fazia caretas infantis, cantavapra lua. Quieto, Secundo ensinava ascrianças que neste mundo lugar delouco\é no chiqueiro. Que oshomenV normais são os donos absolutosdo ^estino dos loucos. Que olouco é menos perigoso do que omedo.Secundo ensinava às crianças queno chiqueiro também se vive.Comendo bosta, corpo coberto deformigas, olhps inundados de remela.Secundo ensinava às crianças queo homem se acostuma a tudo. Os quefazem os chiqueiros e os que vivemdentro dele.O CHOQUE ELÉTRICO É CARlCIAPARA QUEM PASSOU 29 ANOSNUM CHIQUEIRO?As autoridades de Jequié sentiramseenvergonhadas depois que correua notícia de que te m próximo dali umlouco estava preso, morrendo à míngua.Para que Secundo saísse foi precisodestruir o chiqueiro. Não haviaportas.Ele foi arrastado e jogado numcarro fretado pela Prefeitura e o "arrôtary"club. Horas depois abria-seum portão e Secundo ingressava noJuliano Moreira.O Juliano é um depósito de loucosexistentes em Salvador. Ocupa umquarteirão inteiro e foi modulado apartir de um casarão secular. Hoje dáimpressão de um cruzamento deengenho de açúcar com orfanato,albergue noturno e depósito decereais. A sua localização desenha omapa da obscura paranóia urbana,contida e recolhida entre encostas eapartamentos financiados por umavida inteira: O Juliano ocupa umaárea circular, completamente rodeadopor pombais do BNH. Sua populaçãoatual é de 700 internos. A dospombais deve ser de 10 vezes mais.Os pombais têm suas solitárias e oschoques rede globo. O Juliano temseus corredores, suas alas, seus fioselétricos e uma divisão radical: a pátriados tuberculosos e o país dosnão-tuberculosos.E para lá foi Secundo, saído do seuchiqueirinho. A terapia do sertãocontra os dragões elétricas dos sanatóriosurbanos. E agora Secundo?SERA QUE FIQUEI MALUCO?Secundo estava acostumado à solidão.Preso no seu chiqueiro estavaentregue somente aos seus fantásmas.Lá não tinha choque elétrico,pílulas, nem injeções de fazer bonecosduros, babões, e de olhos esbuga-Ihados. Lá tinha bosta, bicho de porcoe uma imobilidade total. As situaçõesem parte trazem semelhança, aincapacidade perante a loucura.Os diques, os açudes para conter odesaguar de águas perigosas. O quepode ter passado pela cabeça deSecundo depois de arrancada do seuchiqueiro e lançado no meio dedezenas de outros seres angustiadose torturados pelos métodos de sanatóriosurbanos? Talvez ele tenha pensadoque enlouqueceu...DEPOIS O BRANCO... OU O PRE-TO, OU O BURACO. AFINAL, ISTO ÉE NÃO É UMA FÁBULA.Existem agora poucas noticias doSecundo no Juliano Moreira. Umporteiro barrigudo, filão de cigarros,que barra as pessoas na porta, diz queele foi embora. Terá voltado para ochiqueirinho?E assim a história de um louco contido,preso e torturado em 2 chiqueirospela justiça terapêutica... oencontro e o conflito da lucidez e daloucura. Um homem preso num chiqueirocom um bicho do mato. Umhomemencolhido num sanatóriocomo um bicho da cidade.Entre os 2, e o mesmo homem, oestigma da loucura.29 mais 29 mais 29, tudo igual. Acastração. A morte. O nascimento.Secundo José dos Santos, durocomo um jumento. Forte como umlouco que assombra a passividadedos mortos-vivos. Existirá sempreuma jaula aberta-fechada para engulirum louco? Secundo, responda!Grite de dentro de seu chiqueiro!(e aqui morre o papo porque eu jáestou ricando bêbado).Texto de João SantanaFotos de Juvenal Silva

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