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seleção de textos, fotos, quadrinhos e repressão - Memórias ...

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"OQAUZAO"um jornal de serviçoj)ulho lQ74/n zeroDELINQUENCIOLOGIA:VESTIBULAREstávamos preparando nossonúmero 5, cjmo sempre debaixode um monte de problemas,quando provamos na pele querealmente desgraça pouca ébobagem: um ae nós foi preso.(Veja também Ex-15, "A Prisão".)Nosso Ex-4 tinha saído em fevereiro;a prisão aconteceu emabril; e o Ex-5 só conseguiu ir àsbancas em junho de 1974, com 4meses de atraso. Na sua página 3,dávamos esta nota:"A reportagem principal destaedição é de Hamilton AlmeidaFilho, um dos EX-editofes. O trabalhodele não foi programado.Claro, sempre esteve em nossosplanos fazer uma reportagemdentro da Casa de Detenção deSão Paulo, ou de outra prisãoqualquer. Só què isso não deveriaacontecer agora. Nem do jeitoque aconteceu."Ao virar a página, você vaiCerto dia, na cela que habitava no presídiode Presidente Wencesiau, encontrava-meà janela, absorto na contemplaçãoda paisagem que se visualisava aolonge. Localizada no andar de cima, enoslados em que o prédio tem suas janelasvoltadas lá pras bandas da cidade, acela proporcionava uma visão parcialvoltadas lá pras bandas da cidade, a celaproporcionava uma visão parcial nomundo livre. Estávamos em pleno verão.Com uma intensidade incrível; é o sole calor lhoje, sol e calor amanhã, sol ecalor depois de amanhã, e assim sucessivamente.A gente sente as característicasmetereológicas da Primavera, do verão,do outono e do inverno! E tudo numúnico dia às vezes! Era cerca de meiodia.Uma canícula terrível, sufocante,fazia transpirar até as paredes da cela,convertenao-a num forno angustiante.Além das muralhas, a pasiagem estavasob uma ofuscante luz amarela. O Sol,uma bola incandescente suspensa num'espaço de um azul cobalto reverberante,sem nuvens, incidia seus raios numa verticalde fogo enlouquecedora. No meiodeste braseiro infernal, um lavrador sulcavaa terra, manejando um aradomanual, pusado por lum cavalo branco.E o distinguia ainda uma casinha branca,com telhado vermelho, reverberante aoSol; um graríde coqueiro de um verdecinzento, que se destacava no cenário dapaisagem; duas árvores secas e um ipêamarelo, eclodindo numa exuberantefloração do estio.O que eu via, sugeria-me ora umaensolarada tela impressionista de Sis ley,ora uma torturada e vibrante tela expressionistada fase artesiana do grande cul-.tor solar, o alucinado e genial Van$pgh-Subitamente, um pontinho preto, rasgandoo espaço, projeta-se na minhadireàão, choca-se contra uma das gradesda jatiela, e cai no parapeito, provocandoum quase imperceptível baque.conhecer este mundo. Se já nãoconhece."Ao virar a página, o leitorencontrava um texto de HamiltonAlmeida; e vários outros textoscolhidos por ele dentro daprisão: crônicas, poemas, escritospor prisioneiros, cartas desuas mulheres, aqui agora reproduzidos.As ilustrações são páginasdo jornal Cadeão, feito dentroda prisão por Hamilton e peloartista gráfico Paulo OrlandoLafer de Jesus. Era um jornal deserviço para os 5.200 presos daCasa de Detenção de São Paulo(capacidade para apenas 2.500).O Cadeão, 2.000 exemplares, saiuuma vez só, e quando a experiênciafoi aprovada pela direção daCasa de Detenção, Hamilton ePaulo foram postos em liberdade.Absolvidos. Foi a primeira vezque um jornal morreu porqueseus editores, em vez de entrar,saíram da cadeia.A morte deuma abelhaAbsorvido que estava na contemplaçãoda paisagem, isso próvocou-me umgrande susto, despertando-me do devaneiono qual estava imerso. Curioso, firmeia vista no minúsculo bólide, e vi queo mesmo era uma abelhazinha, preta epeluda, que após segundos de completaimobilidade, se pôs a arrastar-se, exaustae trôpega, pelo parapeito da janela, agitandofrenetiçamente as azinhas, numadesesperada ^tentativa de alçar vôo.Logrou alcançá-lo, após muito insisistirneste objetivo, para em seguida voltar acair, desta vez para sempre: estava morta.Tal incidente, tão insignificamente -uma abelha que morre - deixou-medeveras chocado, por culpa de uma sensibilidademórbida, talvez, mas o fato éque vislumbrei, na tentativa desesperadadaquela abelhinha de alçar vôo, o própriodestino do homem que cai, se debate,se arrasta, cansado, ferido, mas mesmoassim não abandona o ideal que sepropôs a si próprio, se esforça, e lutapara novamente alçar o perdido e almejadovôo, morrendo até nesta tentativa,se necessário for, mas sem nunca abandoná-lo.DEMA"OGJDe^O"Senhor Diretor c companheiros:aCasa de Detenção de Sao Paulo,. esta aqui, onde vivemos, foi criada pordecreto em 1938. Prevista para ocuparuma area.de 8.357 metros quadrados,teve o seu pavilhão 2 ina uguradoem 1956. Hoje, maior de " 3e, 1 8 anosdepois,contando com os pavilhões 5,8,9 e o recem inaugurado 6 (em maio .ultimo), tem uma população que fazinveja a muitas. cidades doBrasil. Bastadizer que,entreas 3.592cidades brasileiras, 51 6tem meriòs dé 5 milum jornal de servíço/julholQ74/rrhabitantes. A Casa de Detenção atingiuuma populaçao superior a essa, pela primeiravezjem 4 de setembro de 1972;5.002 detentos. No. ano de 73 ,no balanço. final, terminou com 4.915 habitantes.Mas fo :i nesse ano de 1974, justamenteno dia 7 de maio, que batemostodos Os recordes carcerarios do Pais:5.241. E desde janeiro ate "agora,esse numero so tende aumentar.Ontem, dia 2 de julho, haviam aqui5.189 detentos. . —Infelizmente, essa. •*»—~ "Esse nosso projeto, encara essa realida_de^emborà estejamos zero . aqui ha apenas 3meses.Sua base e a necessidade de informaçãoque o ser humano tem, sejaele qual for, desde os dias da criaçao,principio dos tempos, quan,do boca-a-t5oca,"os mais velhos ensinavamos mais novoaTrata-se de.um jornal interno, de informaçãoe serviço direto. (Informar= v. t d.Dar informe, parecer, sobre;instruir;ensichega mais,na manha:nar;conffrmar;dar' informação,noticia a;.participar;comunicar;avisar;Tomarconhecimento;inteirar-se. )O jórnalismode serviço e aquele, cujo seu conteúdoesta na necessidade real e imediatatada' informação por parte de quem le.Acreditamos que as pessoas destaCasa tem essa necessidade —- de umsem numero de informaçoe.s, para que,-mesmo cumprindo as penas impostaspela Justiça,saiam daquipela informáçao(Seguere-educadas'"51L m19 •mJ S . . mJá levei pela cara que nãosou ninguém, sou presoPreso. Bacana, né? É, sou preso porque souladrão de profissão e ambicioso por natureza.Atualmente estou cursando o vestibular dedelinquenciologia na maior Faculdade daAmérica Latina, e que é o orgulho desse enormeverde-amarelo." Já estou há quatro anosaqui e admito que é de grande proveito esseenclausuramento, pois já me especializei desdeo suborno de funcionários até ao estouro deuma burra sem dor.Como todos os burguezinhos, vocês devemsaber o grande número de alunos aqui, não? Senão sabem, leiam o jornal de receitas alimentíciasque ultimamente vem curtindo essa chinfra.Somos 5 mil e trá-tá-lá (digo trá-tá-lá porqueé impossível dar o número exato, poistodos òs dias chegam 20 ou 30, mais ou menos).Esses velhinhos da Execuções não gostam dedar diploma aos internos. Sabem como é né?Eles têm que ficar virando prontuários, vendovida pregressa. Geralmente o aluno têm algumaarbitrariedade cometida nos 10 ou 12 anosaqui; isso, sabem como é, complica. E depois,pra que mandar os meninos embora, se logoeles estão de volta? É melhor não fazer das tripascoração e passar as tardes nas salas refrigeradascom cafezinho e minerais, esperando acompulsória: o útil e o agradável.E agora com os preços - do Chivas, RoyalLabel, das camisas de seda, gravatas - altoscomo estão, deve ter diminuído a fila de familiaresdos alunos que vão lá a fim de presenteálospara que seus filhos ou maridos saiam maisrápido.Mas, de maneira geral, aqui é muito bom,muito humano, muito movimentado. Quemdisser o contrário, mente. Os nossos funcionáriosfazem todo o possível para nos enobrecer(apesar de às vezes eles quererem cantar nossasmães, irmãs que aqui vêm). Mas, tudo élucro. Eu, de maneira particular, gosto muitodos funcionários: é só .dar um ministrinho praeles e tudo bem. Quanto ao mal psíquico queessa digna sociedade cristã está me fazendo,não tem importância, pra mim tudo é lucro,não tenho filhos, não tenho compromissos. Semorrer? Pra que viver a vida só desejando ter omelhor, não ser, não ter?Desculpe, chapa, mas não sei bem se é egocentrismo,mas só sei falar de mim, de minharevolta, do meu nojo, da minha covardia, porquese eu desse vazão aos meus anseios já teriabebido o sangue de muito f... da p..., mas mevejo obrigado a por a mão pra trás e acatar asignorâncias é sacanagens. Como vocês sabemisso é uma cidade onde tudo é frio, é individual.Mas a vida está aí, logo serei gente novamente(digo gente porque já lévei pela caraque n|o sou ninguém, squ preso). Mas sairei,voltarei, e dessa vez vai ser mais cruzeiro.Quero ter dinheiro para ter liberdade, comodidade,respeito. Não sei se isso me trará felicidade,mas eu prefiro à ordem e progresso dopobre, lutando como rato por um sortido dodia-a-dia. Posso estar errado, mas quem é certo?

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