QORASÃO ABERTOINa grafia que mais tarde inventaria,seu nome de batismo era Joze Joaqimde Qampos Leão. Nasceu em 18<strong>29</strong>, emTriunfo, pequena cidade às margens dorio Jacuí, no coração da Província deSão Pedro do Rio Grande, Em 1863,alcunhou-se "O Qorpo-Santo". Morreua 19 de maio de 1883 em PortoAlegre, deixando mulher, quatro filhosvivos, e a pequena fortuna de 40contos de réis em bens imóveis.Foi caixeiro-viajante, vereador, delegadode polícia. Tornou-se professor de"Língua Pátria" (Português). Dirigiurenomados estabelecimentos de ensino.Teve alunos ilustres. Destes, alguns chegarama acompanhar-lhe o enterro. Eramonarquista convicto, adversário incansáveldos rebeldes farroupilhas que proclamaram,em 1835, a República dePiratini. Na concepção mais legítimado termo, era um "cidadão do Império".Ao certo, ninguém sabe o quehouve. A lenda conta que, por volta de1862, dois assaltantes noturnos bateram-lhemuito na cabeça, e que estadesandou. Ele próprio escreveu que, a7 de junho de 1863, José de Leãosubiu ao céu e virou santo. Seu corpoficou morto por doze horas, até quenele se infiltrou um "outro" - OQorpo-Santo.A partir daí- Qorpo-Santo fez esofreu o diabo. Tentou implantar umanova ortografia, eliminando os K, Ç,PH, SS, RR e demais inutilidades.Escreveu peças absurdamente ousadaspara o teatro da época. Escreveupoemas agressivos, sem métrica, semrima, sobre formigas, aranhas, tinteirose quinquilharias, escandalizando asmentes parnasianas. Editou sua própriaobra, pomposamente chamada Ensiqlopédiaou Seis Mezes de Huma Enfermidade.De 1862 a 1868 Qorpo-Santo foi"réu" de um processo de interdição. A17 de agosto de 1868 foi oficialmentedeclarado louco, e incapaz de gerir seusbens, sua família e a si próprio. Nafase final do processo, Qorpo-Santo foiencarcerado e enviado ao Hospício D.Pedro, no Rio de Janeiro, para melhorexame. No Hospício tomoumuitas notas. E depois publicou-as sobo irônico título de Qinze dias naCorte.Na verdade, foram quatro meses de"Corte", embora depois ele conseguissetransferência para uma casa de saúdeparticular. O que segue é um extratodessas notas, redigidas em forma dediário. O depoimento de um encarcerado.Flávio AguiarConversação com um surdo nohospícioEste (arrancando os cabelos e batendoas mãos): Que é feito dos meusbahús.l onde estão? ... tenho nelesroupa.l estou descalço ... com os pésfora das botinas (virando estes) e já haoito diasl... e não me aparecem.l?irra.l irra.l irra.l — é muito aturar.l émuito sofrer.l(Em tom mais moderado): Mas eleshão de aparecer.lEu (depois de haver conversado comalgumas Irmãs, e com o Secretário dohospício): Não se aflija, (batendolhe nohombro) não se aflija.l já se deram asprovidencias necessarias, ja se oficiou àpolicia afim de os fazer vir para esteestabelecimento. É portanto de supor-seque hoje mesmo aqui os tenha.Tranquilize-se pois.Ele: Mas os meus bahús.l a minharoupa.l os documentos e mais papeisque nele tenho ... - documentos novalor de tantos contos de reis.l Em? .isto é o diabo 1 (meneando o corpo e acabeça) Estão na policia, mandou-sebuscar, vem hoje, amanhã, depois, e haoito dias, e eu - sujo, e rôto, e nadade bahús, e estes não aparecem.lJá se vio - que diabo.l... já se vioque msrtyrio.l.. . (passeia em umlongo corredor).Eu (encostando-me a ele): Então jáestá mais tranqüilo? gosta de lêr?quer esgrever alguma couza?Ele: Não: o que preciso unicamenteé dos meus bahús para mudar (pegandono peito de um paletó preto de alpaca,e algum tanto estragado) roupa, botinas,(torcendo os pés) e para que senão perca a minha resalva, e outrospapeis.lEu: Perguntei para, se gostasseobter-lhe algum livro em que seestretenha algum tempo, ou até quelhe chegasse o que deseja.Ele (gritando): Qual entreter.lNém livro, nem penna me entretem.lSou cavalheiro da Roza, fidalgo decasa Imperial, estava em um hotel, equando menos esperava — recebi ordemdo chefe de policia para vir paraesta casa.lE então não heide estar iiidgnado.l?Eu: — tem razão, tem muita razão.Mas nada consegue indignando-se, maisque amofinar-se: é melhor esperar compaciência — que o respeitem, e cumprampara com V.S. seus deveres.Conversação com os médicos queme vião.Hum delles: - Então como passa, 1Eu: — Estou muito sentido paracom V.Sa. por não haver ainda queridodeterminar que se me dê nesta caza otratamento a que estou acostumado, eque tantas vezes lhe hei pedido.lElle: — isso é estabelecido emtabella. nós não temos culpa.Eu: — pois não deve haver tabellapara sãos, e para doentes grão de suaenfermidade e compleição?Elle: — Só se reformarmos ourriscarmos a tabella.lEu: - Se não posso ter o tratamentoque precizo, continuarei a sofreralgumas horas de incommodo quandome sento á mezapara comer, e quando sefeixa a porta do meu quarto antes dahora em que costumo deitar-me.lElle: - Adeos.l hade melhorar detratamento e de quarto.Eu: - Ficarei muito grato a V.Sa.Hospício Abril 10 de 1868.QUINZE DIAS <strong>NA</strong> CORTEUm descrente innocente.Meu Deos! todos converssam e(passeam!Só eu - não posso de triste -(passear.lPorque, meu Deos! assim me(aheeiamNeste viver — que não posso(gozar!?A todos dá gosto — o pão queE a mim ó meu Deus! - só(alimenta:(atormenta.lPorque, Senhor meu — matas-(me a vidaNesta enfadonha e horrível lida!?Todos dançam, alegres, conten(tes.Passam parece - em vida feliz.lSo eu separado destes viventes,Sinto das magoas, o toque infeliz/ATiora aprazada, trancam-me(a porta:A' mais avançada - julgo que(é morta— Aquela a quem amo no maior(extremo;A quem jurei — fé — pelo(Ente Supremo.lSenhor! Senhor/ SenhorlAcudi a — um desgraçado 1Morre, morre -- desesperado,!Se lhe não toca - o teu favor:Distração no hospícioFaz-me saudade,Saudade extrema.1Deos sabe o que.lUm tal problemaNão se resolve.l?De branca vagaQue docementeA' praia bate;Eu sinto embateEm meu coração.1Abril 12 de 1868Meigos sorrizosMe vem à menté.lDe tantas candurasDoces temurasSonhando eu gozo.lAmores meus.lMulheres minhas.lPorque azinhasDe mim fugis?Ingratas sois.l?Acaso perdi-vos.l?HOSPÍCIO, ABRIL 19 DE 1868E hoje o dia em que para mim pelaprimeira vez raiou a luz clara e pura,que nos faz ver e conhecer as brilhantese admiráveis maravilhas,• ou portentozasobras do Omnipotente.l tendo amaquina do tempo feito-me viajar nopelago- insondavel da vida trinta e seis emais tres annos.lEstamos porem com quanto muitorespeitado e estimado em um estabelecimentodo qual se nos ha permittidosahir de hoje a quatro dias; não direicomo preso em cadeia, doente emhospital; mas como alumno interno emcolegio.lPai de seis filhos, professor publico— posso dizer de duas cadeiras, com 39annos de idade, cazado, fundador deum colégio, e director de ois, proprietário,e litterato/ - Dêdeqe horrorozoscrimes contra minha pessoa, familia ebens perpetrados, que me pozerão emtal condição.! '
Carta aos diretoresdos asilos de loucosSenhores:As leis, os costumes, concedem lheso direito de medir o espírito. Estalurisdição soberana e terrível, vocêsa exercem com sou raciocínio.Não nos façam rir. A credulidade dospovos civilizados, dos especialistasdos governantes, atribui àpsiquiatria estranhas luzessobrenaturais. Antes de julgada, aprofissão de vocês já tem ganho decausa. IMão pensamos discutir aqui ovalor dessa ciência, nem a duvidosaexistência das doenças mentais. Maspara cada cem pretendidas patogenias,onde se desencadeia a confusão damatéria e do espírito, para cadacem classificações onde as mais vagassão também ns únicas utilizáveis,quantas tentativas nobres se contampara conseguir melhor compreensão domundo irreal onde vivem aqueles quevocês encarceraram?Quantos de vocês,por exemplo, consideram o sonho dodemente precoce ou as imagens que oacossam como algo mais que uma saladade palavras?Não nos surpreende ver até que pontovocês estão abaixo de uma tarefa paraa qual só há poucos predestinados.Mas protestamos contra o direitoconcedido a certos homens -incapazesou não - de dar por terminadas suiis jinvestigações no campo do espíritocom um veredito de encarceramentoperpétuo.E que encarceramento! Sabe se -nunca se saberá o suficiente -que osasilos, longe de ser "asilos", sãocárceres horrendos onde os recluscjfornecem mão de obra gratuita ecômoda, onde a brutalidade é norma.F. vocês toleram tudo isso. O hospíciode alienados, sob o amparo da ciênciae da justiça, é comparável à prisão,aos trabalhos forçados.Não nos referimos aqui às internaçõesarbitrárias, para lhes evitar oincômodo de um fácil desmentido.Afirmamos que grande parte de seusinternados — completamente loucossegundo a definição oficial — estãotambém reclusos arbitrariamente. Enão podemos admitir que se impeça oiivre desenvolvimento de um delírio,tão legítimo e lógico como qualqueroutra série de idéias e atos humanos.A repressão das reações anti-sociais,em princípio, é tão quimérica comoinaceitável. Todos os atosindividuais são anti-sociais. Osloucos são as vitimas individuaispor excelência da ditadura social.E em nome dessa individualidade, queé patrimônio do homem, reclamamos aliberdade desses condenados dasensibilidade, já que não estádentro das faculdades da lei condenarao desterro a todos aqueles quepensam e trabalham.Sem insistir 110 caráterverdadeiramente genial dasmanifestações de certos loucos, namedida de nossa capacidade paraestimá-las, afirmamos a legitimidadeabsoluta de sua concepcão darealidade e de todos os atos quedela derivam.Esperamos que amanhãde manhã, nahora da visita médica, recordem isto,quando começarem a conversar semdicionário com esses homens sobre osquais — reconheçamsuperioridade da força.só têm aAntonin Artaud