Demonstrando que as formigassão as verdadeiras rainhas dacriação (o leitor pode tomá-locomo uma hipótese ou umafantasia: de qualquer maneira lhefará bem um pouco de antropofugismo),eis aqui uma página desya geografia: (Pag. 84 do livro;assinalam-se entre parênteses ospossíveis equivalentes de determinadasexpressões, segundo a clássicainterpretação de GastonLoeb).".. . mares paralelos (rios? ). Aigua infinita (um mar?) cresceem certos momentos como umahera-hera-hera (idéia de uma paredealta, que expressaria a maré? ).Se a gente vai-vai-vai-vai (noçãoanáloga aplicada à distância) chegaà Grande Sombra Verde (umcampo semeado, um mato, umbosque? ) onde o Grande Deuseleva o celeiro contínuo para suasMelhores Operárias. Nesta regiãoabundam os Imensos Seres Horríveis(homens?) que destroemnossos caminhos. Do outro ladoda Grande Sombra Verde começao' Céu Duro (uma montanha? ). Etudo isso é nosso, mas comameaças'Juan Caizadilla, venezuelano, poeta eilustrados- ido livro Maios Modaies, Caracas, 1965)Essa geografia foi objeto dea um pequeno jardim da ruaLaprida, 628, Buenos Aires. Osmares paralelos são dois pequenoscanais de esgoto; a água infinita,uma banho para patos; a GrandeSombra Verde, um canteiro dealface. Os Imensos Seres Horríveisinsinuariam patos ou galinhas,embora não se deva descartara possibilidade de que realmentese tratem de homens. Arespeito do Céu Duro desenvolveu-seuma polêmica que nãoacabará tão cedo. A opinião deFry e Peterson, que vêem neleuma parede de tijolos, opõe-se àde Guillermo Sofovich, que presumeum bidê abandonado entreas alfaces. Júlio Cortázar4*4*4*OTERTODE MIMUm bicho é como outro qualquer,confunde-se no número ena igualdade. Na confusão, umdesigual aparece. No destaque,caminha.Havia pra mais de cinqüentasaqués no terreiro da fazenda. Aspeninhas preto-e-branco acinzentadas,bem estruturadas no corpo.Um xadrez redondo e andante.As cabeças dos bichinhos eramiguaizinhas, que semlhança:aquelas tantas carinhas de padre.Quando um gritava "tou-fraco"seguia-se um coro extensivo. Semelhantea um eco enorme, quemais escondia cada um no meioda multidão de saqués. Andavamsempre no seu grupo reunido.Trabalhando e comendo coletivamente.Ninguém sabia quandoum saqué botava ninho. Ela seescondia no mato, distante decasa, e tinha a cobertura de todose de seu corpo. Parecidíssimo.— Essas pestes não presta pracriar, não!Na sua cara, o saqué nada temde sertão. Mas difícil é a casadum alguém que não tenha saquéno terreiro, enfileirado. Ninguémsabe por que. "Essa desgraça veioda África".Nunca junto aos saqjés vivia aquantidade de galinhas: d'Angola— careca no pescoço, assemelhadaa um soldado real na sua postura,Leghom, um monte, um lote degalinha*s diferente na característica.Uma infinidade de poedeirasdivididas na raça, na cor, nocacarejo. Uma vermelha, pedrez,pintada. Uma branquinha pequena— danada no ninho — umasque eram sangue de todas. Embaralhavam-seno ciscar: pé-duro.As galinhas, ao contrário dossaqués, punham seus ovos emcasa. Eram deitadas por Darvino,ora numa cangai ha velha, oranum cesto estragado: domestica-zinhas. Os saqués cresciam aotempo, encostados à natureza. Asgalinhas, meio controladas. Noninho, no particular.O sol já deixando nuvensvermelhas, moldando círculo diário,e a gente não vendo maisdireito o que de manhã se viaclaro, se amontoavam no quintalvizinho ao curral, as cheinhas depenas, calmas. Um limoeiro grandeagarrado ao muro ficava cheiode galinhas cacarejando para seequilibrar nos galhos de espinhos.Essas eram as mais feias, isoladaspor natureza. Espalhados peloterreno os cavaletes feitos a facão— ao gosto dos bichos. Os saquésocupavam um cavalete na disputaigual de lugares. Ajeitavam tudono fim, pressão da noite escura,mistério pros animais. Outro^cavaletes ficavam com os perus,desequilibrados nos seus pés deave.Entre a aparência do saqué, dagalinha e do peru, estava um quenão era nenhum deles. Não eraoutro também. Um emio, intermediárioentre os tres sem sernenhum. Do peru tinha o tamanhoe o costume de explodir ocu. Também o modo de andardesconjuntado. A cada pedaçoandado um estampido nos fundos.Do saqué, a forma, ocontorno do ser. Uma partegrande meio oval, desprendendo-sedaí um pescoço característicoe a cara de padre, vinda nojeito do meio da África. 0 bichonão cantava uma coisa sua. Nãoera o gurguiejo do peru, nem o"tou-fraco" do saqué. Era mais ocó có có da galinha. Parecia.Sexo não devia de ter. Suaindiferença nos olhos contemplandoo nada pelas laterais nãoera jeito de macho, bicho fogoso,matreiro, necessitando de fêmea acada dia. Fêmea não era: semredondeza nos fundos, sem nuncater posto ovos, assim. Já tinhadois anos naquela vida de intermédio.De existir, ele tava ali:comia o milho espalhado, tinhaas suas penas. Andava sozinhodentro dos bichos. Sua naturezaera de solidão. Só batia um galo,pato ou saqué quando era atocha-,do. Em meio ao inverno de umano de chuva forte, ele tinhamatado um pato que tentouincubá-lo. Fim do dia apareciaalgumas vezes com uma cobraenrolada no bico — saculejandona luta de escape.Por não dizer o que era,trancado no silêncio de ave, naconfusão, sem por nem repor,comendo milho atoa, ele entrouna faca. Bicho indefinível erabom na panela.Quando mordi suas coxas gordas,redondinhas, chorei um pouquinho,Gustavo Faicon (jornalista, baiano,21 anos; conto escrito em 71)
MULHERj?QUE DIZTCHAULevo comigo um maço vazio eamarfanhado de cigarros "Republicana"e uma revista velha quevocê deixou aqui. Levo comigoos dois últimos bilhetes do tremde ferro. Levo comigo uma folhade papel com a cara minha quevocê desenhou, de minha boca saium balãozinho com palavras, aspalavras dizem coisas cômicas.Também levo comigo uma folhade acácia recolhida na rua aquelanoite, quando caminhávamos separadosde todo o mundo. Eoutra folha, petrificante, branca,que tem um furinho igual a umajanela, e a janela estava veladapela água e eu soprei e ví você eesse foi o dia em que a sortecomeçou.Levo comigo o gosto do vinhona boca. (Por todas as coisasboas, dizíamos, todas as coisascada vez melhores que vão acontecerconosco)^Não levo comigo nenhumagota de veneno. Levo os beijos dequando você ia embora (eu nãoestava nunca adormecida, nunca.)E um assombro por tudo isso quenenhuma carta, nenhuma explicação,podem contar para ninguémo que foi.Eduardo Galeano (escritor, uruguaio,esteve preso recentemente,jornalista na Argentina agora)4*4*4*TISAGRAFausto entrou peidando e chacoalhandoa barra da calça, masninguém ligou pra atitude deleporque ali estavam todos maispreocupados com não-sei-o-quê.Apenas Mariana ergueu meio braçoe fez assim com o dedoindicador e o pai de todos, emforma de vê, trazendo no vérticeum toco de cinza apagado. Oambiente era de uma simplicidadeatroz: no chão liso eu vi umjornal rasgado, um suspensório, emuita fumaça. Nas quatro paredesnada vi, nem sequer umajanela. Tinha um cigarro circulandoentre dentes e dois pintasestranhamente vestidos de terno,camisa de seda e gravata babavam-seum no outro e .aindadeixavam resíduos para os próximos.— Porra, putada, estamos aí.Disse Fausto sem a mínimaconvicção.Nisso rosnou a Honda naporta, lá embaixo, e uma saiaScrreu peios degraus e já subiu devolta empunhado aquele easy-ridercaboclo que não cabia dentrodo couro.Aconteceu algumas tragadasque com toda certeza foram atéas tripas e as figuras subiram asparedes e começaram a andarpelo teto.Foi nesse fotograma que aporta estourou e os homenscaíram em cima de cassetetes,coronhas, algemas e patas, e osviajantes enguliram pacificamenteo que tinham na boca e nadamais teria ocorrido se o peterfondados pobres não tivessepuxado o revólver.Aí eu só me lembro de umpolegar grosso baixando, as pálpebrassobre meus olhos e fechandoas cortinas para o espetáculo queeu fui nessa vida.Otoniei Santos Pereira (poeta,publicitário, cineasta, paulista, 33anos, casado, 3 filhos)4*4*4*TRÕCURADe poesia não se vive, dizem.Fazer poesia é loucura. A poesiadiz umas verdades que as pessoasnão querem ouvir. Recital depoesia numa época em que ohomem vive a crise da tecnologiatalvez seja um absurdo. A médiadas pessoas prefere receber umainformação imediata e mastigada,que não obrigue a refletir. Quemperde tempo em refletir podeperder seu lugar. E no entanto,cada vez mais, pessoas comuns eincomuns escrevem poesias, quasesempre para si mesmas, no máximopara quem ama . Mas o fatoé que se expressam, sabendo,evidentemente, que disso nãosairá seu pão; dificilmente verãoas poesias publicadas, dificilmenteelas chegarão ao público envenenadopela televisão, consumidordo que a televisão manda consumir.Essas pessoas não vêemoutra saída que não a de encontraruma profissão, um saláriofixo, um emprego bom, seguro. Enão são nada insensatas ao procederassim. É o caminho normalde todos nós.A poesia (como todas as expressõesartísticas) faz parte de nós,alguns de nós que esquecemosdela, abandonamos, outros de nósque a preservamos e fazemos delaum meio de vida, agora nosentido mais gerai de vida, poisde poesia se vive, sim. E a poesiapode ser lida e pode ser ouvida,não há nada de novo nisso. Nadade revolucionário. Embora o próprioato de criação seja revolucionário:plantar, dançar, cantar,representar. Se hoje tais atos sãomuitas vezes considerados anormais,e há uma nova normalidadenas ruas, devemos estar atentos.Algo vai mal.Um recital de poesia podemelhorar a situação? Pode, pelomenos, aproximar as pessoas, e osentimento de fraternidade, tambémesquecido, pode tocar levementeas pessoas, pois elas nãoestão sozinhas como às vezespensam. Ou como às vezes querem,e acham normal.Um recital de poesia não deveser obrigatoriamente uma coisachata, velha, como nos mostraramas festinhas cívicas ou infantis.Aquela obrigação de mostrarpras visitas uma poesia decoradanão é senão uma deformação do3to de falar poesia. E mais essepequeno detalhe de nossa educaçãonos afasta da poesia, comonos afasta da realidade.O poeta pode ser um louco; seuempresário e diretor pode ser oenfermeiro; e eles dois pulam omuro do hospício, chegam aoteatro e se apresentam. O poeta,por medida de segurança, metidonuma camisa-de-força. Assim começao espetáculo; esta é umadas possibilidades de transformarum recital de poesia num acontecimentoenvolvente, amplo, fornecedorde informações quetranscendem a própria poesia, embusca de um lugar para o homemno universo.O espetáculo chama-se PRO-CURA, tem três partes, e eumesmo digo as minhas poesiasdurante quase uma hora. Vai serno Teatro de Arena, 14, 21 e 28de outubro, três segundas-feiras.me declaro clarocomo o dia iacomo a nuvem vemtroco minha cabeça-de-ventopor um par de mãos fortesmeus olhos cheios de lágrimaspor um coração em festaminha vida formalpela morte sem formasestamos na terraestamos no céuestrela és tuestrela sou eua terceira guerra já começounavios combatem nos rios de suordos marinheirosgerentes de banco atacam clientescom bombas de dinheiroem todas as casas gritos de pavoros telhados desabam sob os pésdos engenheirosacordarei dentro de tua xícara decafé com leitee me tomarás ainda quente nobalcão do barda estrada que resolvermos tomarsabendo de suas mortes, de seutrajeto vitaleu café tu leite misturados por umacolher de latanuma xícara de metal no balcãode barda estrada que resolvermos tomaras palavras da cabeça ninguém tomavou juntando e só eu sei a somatemperando e só eu sei o aromaem momentos de emergência comoesse tudo servequalquer coisa escreve sobre asepidermesnessa hora é tão difícil seguir asleissó é fácil pra quem difíceis as fezou nem esses talvez lhes escapementre os dedosjá viu dedo? um por um?e as pálpebras recortadasem forma de coração?está bemestá bemAlexandre Solnik (24 anos)