Durante muito tempo me apaixonoua pintura linear pura até que descobriVan Gogh, que pintava, em lugar delinhas e formas, coisas da naturezamorta como que agitadas por convulsões.E morta.Como sob o terrível embate dessaforça de inércia a que todos se referemcom meias palavras, e que nunca foitão obscura como desde que a totalidadeda terra e da vida presente secombinaram para esclarecê-la.Bem, são cacetadas, realmente cacetadaso que Van Gogh aplica sem parara todas as formas da natureza e aosobjetos.Desenredadas pelo punção de VanGogh,as paisagens exibem sua carne hostil,o rancor de - suas entranhas rebentadas,que não se sabe, além do mais, queforça insólita está metamorfoseando.Uma exposição de quadros de VanGogh é sempre uma data culminantena história,não na história das coisas pintadas,mas na própria história histórica.Pois não há fome, epidemia, erupçãovulcânica, terremoto, guerra, queseparem as mônadas do ar, que retorçamo pescoço da cara turva de famafatum, o destino neurótico das coisas,como uma pintura de Van Gogh, —exposta à luz do dia,colocada diretamente ante a vista,o ouvido, o tato,o aroma,nos muros de uma exposição —,lançada por fim como nova naatualidade cotidiana, posta outra vezem circulação.Em pinceladas vibrantes como as de seu biografado, Antonin Artaud revolve aalma atormentada de Van Gogh; traduz para a palavra escrita alguns de seusquadros geniais; e chega à conclusão de que o pintor de uma orelha só, não sesuicidou coisa nenhuma: foi "suicidado" por seu psiquiatra.Os corvos pintados dois dias antesde sua morte não lhe abriram, maisque suas outras telas, a porta de certaglória póstuma, mas abrem à pintura pintada,ou melhor, à natureza não pintada,a porta oculta de um mais além possível,através da porta aberta por Van Goghpara um enigmático e pavoroso maisalém.Não é freqüente que um homem,com um balaço no ventre do fuzil queo matou, ponha numa tela corvosnegros, e debaixo uma espécie deplanície, possivelmente lívida, de qualquermodo vazia, em que a cor deborra de vinho da terra se enfrentamloucamente com o amarelo sujo dotrigo.Mas nenhum outro pintor, fora VanGogh, foi capaz de descobrir, parapintar seus corvos, esse negro de trufa,esse negro de comilona fastuosa e aomesmo tempo como de excremento,das asas dos corvos surpreendidos pelosresplendores declinantes do crepúsculo.E de que se queixa a terra ali, sobas asas dos faustos corvos, faustos só,sem dúvida, para Van Gogh e, ademais,fastuoso augúrio de um mal que já nãolhe diz respeito?Pois até então ninguém como elehavia convertido a terra nesse traposujo empapado em sangue e retorcidoaté escorrer vinho.No quadro há um céu muito baixo,achatado,violáceo como as margens do raio.A insólita franja tenebrosa do vaziose eleva em relâmpago.A poucos centímetros do alto ecomo proveniente do baixo da tela,Van Gogh soltou os corvos como sesoltasse os micróbios negros de seubaço suicida,seguindo o talho negro da linhaonde o bater de sua soberba plumagemfaz pesar sobre os preparativos datormenta terrestre a ameaça de umasufocação vinda do alto.E, no entanto, todo o quadro ésoberbo.Quadro soberbo, suntuoso e sereno.Digno acompanhamento para a mortedaquele que, em vida, fez girartantos sóis ébrios sobre tantas parvasrebeldes ao exílio e que, desesperado,com um balaço no ventre, não pôdedeixar de inundar com sangue e vinhouma paisagem, empapando a terra comuma última emulsão, radiante e tenebrosaao mesmo tempo, que sabe avinho acre e a vinagre picado.O que mais me surpreende em VanGogh, o maior pintor de todos ospintores, é que, sem sair do que sedenomina e é pintura, sem se separardo tubo, do pincel, do enquadramentodo motivo e da tela, sem recorrer àanedota, ao relato, ao drama, à açãosem imagens, à beleza intrínseca dotema e do objeto, chegou a infundirpaixão à natureza e aos objetos em talmedida que qualquer conto fabulosode Edgar Poe, de Herman Melville, deNathaniel Hawthorne, de Gerard deNerval, de Achim d'Arnim ou deHoffman, não superam em nada, dentrodo plano psicológico e dramático, asuas telas de dois centavos,suas telas, por outro lado, quasetodas de moderadas dimensões, comorespondendo a um propósito deliberado.Penso que Gauguin acreditava que oartista devia buscar o símbolo, o mito,agigantar as coisas da vida até adimensão do mito,enquanto Van Gogh acreditava queé preciso aprender a deduzir o mitodas coisas mais rasteiras da vida,e segundo eu penso, caramba queestava certo.Pois a realidade é extraordinariamentesuperior a qualquer relato, aqualquer fábula, a qualquer divindade,a qualquer super-realidade.Não se necessita mais que o gêniode saber interpretá-la.O que nenhum pintor, antes que opobre Van Gogh, havia feito,o que nenhum pintor voltará a fazerdepois dele.Não preciso interrogar a GrandeCeifadeira para que me diga com quaissupremas obras-primas teria sido enriquecidaa pintura se Van Gogh nãotivesse morrido com 37 anos,porque, depois de "Os Corvos", nãoposso crer que Van Gogh chegasse apintar mais um quadro.Creio que morreu com 37 anosporque já tinha chegado ao termo desua fúnebre e lamentável história depossuído por um espírito maligno.Porque não foi por si mesmo, emconseqüência de sua própria loucura,que Van Gogh abandonou a vida.Foi sob a pressão, dois dias antes desua morte, desse espírito maligno quese chamava doutor Gachet, psiquiatraimprovisado, causa direta, eficaz esuficiente dessa morte.Lendo as cartas de Van Gogh a seuirmão cheguei à firme e sincera convicçãode que o doutor Gachet,"psiquiatra", na realidade , detestavaVan Gogh, pintor, e que o detestavacomo pintor, mas acima de tudo comogênio.É quase impossível alguém ser aomesmo tempo médico e homem hon-
ado, mas é vergonhosamente impossívelalguém ser psiquiatra sem estar aomesmo tempo marcado ao fogo pelamais indiscutível loucura: a de nãopoder lutar contra esse velho reflexoatávico da multidão que convertequalquer homem de ciência aprisionadona multidão, numa espécie deinimigo nato e inato de todo gênio.*No alienado há um gênio incompreendidoque cobiça na mente uma idéiaque produz pavor, e que só no delírioconsegue encontrar uma escapatóriapara as opressões que a vida lheprepara.O doutor Gachet não dizia a VanGogh que estava lá para retificar suapintura (como ouvi o doutor GastonFerdière, médico-chefe do asilo deRodez, dizer que estava lá para retificarminha poesia), mas o mandavapintar a natureza, sepultar-se numapaisagem para evitar-lhe a tortura depensar.Pois bem, tão logo Van Gogh viravaa cabeça, o doutor Gachet lhe desligavao comutador do pensamento.Como se não quisesse a coisa, masatravés de uma dessas desprezíveis einsignificantes torcidas de nariz nasquais todo o inconsciente burgês daterra inscreveu a antiga força de uinpensamento cem vezes reprimido.Van Gogh se representou a simesmo em grande número de telas, epor mais bem iluminadas que estivessemsempre tive a penosa impressão deque as haviam feito mentir a respeitoda luz, que tinham tirado de Van Goghuma luz indispensável para cavar etraçar seu caminho dentro de si.E esse caminho, não era sem dúvidao doutor Gachet a pessoa capacitadapara indicá-lo.Mas como já disse, em todo psiquiatravivo há um sórdido e repugnanteatavismo que o faz ver em cada artista,em cada gênio, um inimigo.E não ignoro que o doutor Gachetdeixou na história, com relação a VanGogh, a quem ele atendia, e queacabou suicidando-se em sua casa, aimpressão de ter sido seu último amigona terra, algo assim como um consoladorprovidencial.No fundo de seus olhos, comodepilados, de açougueiro, Van Gogh seentregava sem descanso a uma dessasoperações de alquimia sombria quetomam a natureza por objeto e ocorpo humano por proveta - ou crisol.E sei que segundo o doutor Gachetessas coisas cansavam Van Gogh.O que não era no doutor resultadode uma simples preocupação médica,mas a manifestação de zelos tãoconscientes quanto inconfessados.Porque Van Gogh tinha alcançadoesse estado de iluminação no qual opensamento em desordem reflui diantedas descargas invasoras da matéria,no qual o pensar já não é consumir-se,e nem é sequer,e no qual nada resta além de reunircorpos.Não, doutor Gachet, uma tela nuncacansou ninguém. São energias frenéticasem repouso, que não determinamagitação.Eu estou como o pobre Van Gogh;também deixei de pensar, mas dirijo,cada dia de mais perto, formidáveisebulições internas, e seria digno de sever que um médico qualquer viessedeclarar que me canso.Alguém devia a Van Gogh certasoma de dinheiro, e a propósito disso ahistória nos diz que Van Gogh estavade mau-humor fazia vários dias.As naturezas superiores têm a inclinação— sempre situadas num nívelacima do real — a explicar tudo pelainfluência de uma consciência maligna,a crer que nada se deve ao acaso, eque tudo o que sucede de mau édevido a uma vontade maligna, consciente,inteligente e deliberada.Coisa em que os psiquiatras nuncacrêem.Coisa em que os gênios semprecrêem.Quando estou doente, é porqueestou enfeitiçado, e não posso considerar-medoente se não admito, poroutro lado, que alguém tem interesseem me arrebatar a saúde e tirarproveito de minha saúde.Também Van Gogh acreditava estarenfeitiçado e o dizia.No que me diz respeito creiofirmemente que estive, e um dia direionde e como-aconteceu.O doutor Gachet foi o grotescocérebro, o pustulento e purulento cérebrode jaqueta azul e roupa engomada,posto diante do mísero Van Gogh paraarrebatar suas idéias sadias. Porque setal maneira de ver, que é sadia, sedifundisse universalmente, a Sociedadejá não poderia viver, mas eu sei quaisheróis da terra encontrariam sua liberdade.Van Gogh não soube livrar-se atempo dessa espécie de vampirismo dafamília, interessada em que o gênio deVan Gogh pintor se limitasse a pintar,sem reclamar ao mesmo tempo a revoluçãoindispensável para o desenvolvimentocorporal e físico de sua personalidadede iluminado.E entre o doutor Gachet e The o,irmão de Van Gogh, houve muitosdesses hediondos conciliábulos entrefamiliares e médicos-chefes dos asilosde alienados, em relação ao enfermoque tem em mãos."Tome conta para que não tenhamais esse tipo de idéias" "Olha, foi odoutor que disse, você tem de largaresse tipo de idéias". "Faz mal a vocêpensar sempre nelas; vai ficar internadotoda a vida"."Mas não, senhor Van Gogh, vamos,convença-se de que tudo é puracasualidade; além disso não fica bemquerer examinar assim os segredos daprovidência. Conheço o senhor Fulanode Tal, é uma excelente pessoa; seuespírito de perseguição leva a gente acrer que ele pratica a magia emsegredo"."Prometeram pagar-lhe essa soma ea pagarão. O senhor não pode continuarobstinado a ponto de atribuir esseatraso à má vontade".Todas essas práticas suaves de psiquiatrabonachão, que parecem inofensivas,mas que deixam no coração algocomo a fenda de uma linguinha negra,a linguinha negra inofensiva de umasalamandra venenosa.E algumas • vezes não é preciso nadamais para levar um gênio ao suicídio.Chegam dias em que o coraçãosente tão terrivelmente a falta de saída,que é surpreendido, como uma pauladana cabeça, com a idéia de que já nãopoderá mais ir adiante.Pois foi precisamente depois de umaconversa com o doutor Gachet queVan Gogh, como se nada tivesseacontecido, entrou no quarto e suicidou-se.Eu mesmo estive 9 anos num asilode loucos e nunca tive a obsessão dosuicídio, mas sei que cada conversacom um psiquiatra, de manhã na horada visita, fazia surgir em mim o desejode me destruir, ao compreender quenão poderia degolá-lo.E Theo talvez fosse muito bom paraseu irmão, do ponto de vista material,mas isso não lhe impedia de oconsiderar um delirante, um iluminado,um alucinado, e se obstinava, em vezde o acompanhar em seu delírio, de oacalmar.Que depois tenha morrido de pesar,não muda a coisa em nada.O que mais importava a Van Goghno mundo era sua idéia de pintor, suaterrível idéia fanática, apocalíptica deiluminado.Não há ninguém que tenha jamaisescrito, ou pintado, esculpido, modelado,inventado, a não ser para sair doinferno.E para sair do inferno prefiro asnaturezas desse convulsionário tranqüiloàs formigantes composições deBreughel, o velho, ou de JerônimoBosch, que não são mais do que artistasali onde Van Gogh não é senão umpobre ignorante empenhado em não seenganar.Para que escrever um quadro deVan Gogh! Nenhuma descrição tentadapor quem quer que seja poderá seequiparar com a simples enumeraçãode objetos naturais e de tintas a que seentrega o próprio Van Gogh, tãogrande escritor quanto pintor, e quetransmite a propósito da obra quedescreve a impressão da mais desconcertanteautenticidade.8 de setembro de 1888"No meu quadro Café à Noite,tentei mostrar que o café é um lugaronde a gente pode se arruinar, ficarlouco, cometer crimes. Em resumotentei, através de contrastes de rosatênue e vermelho sangue a borra devinho, de verde suave Luís XV e.Veronês em contraste com verdesamarelentos e esbranquecidos duros,tudo junto numa atmosfera de fornoinfernal de enxofre pálido, mostraralgo como a potência tenebrosa deuma taverna."E apesar de tudo isso, assumindouma aparência de alegria japonesaunida à candura de um Tartarim . .."Que quer dizer desenhar? Como se^