PACIENTEAPARECIDOReuniu-se a polícia, a soldadesca, ebotou-se em marcha para o arraial doProfeta. Santa Fé inteira ftíi para ajanela espiar o evento. Era primeiro deoutubro de quatro anos atrás. O poderdo Prdíeta ia ser destruído à força daforça.Enquanto isso, o Profeta rezava comos seus seguidores, no templo, e otemplo era sua casa, pequeno salãoquadrado, paredes baixas, dois janelõesque jogam um pouco de luz nasparedes de barro. O sol da terra quentede Rubinéia, terra paulista, para oslados de Mato Grosso, reflete-se noenorme crucifixo que traz no peito, enos santinhos de sua invenção.Por força de seus milagres, aliestavam quinze fiéis. Cantava-se, rezavam-sePais-Nossos, porque era à forçade oração que o Exército do Profeta —de fardas azuis e verdes copiadas dafarda que o Profeta vestiu quando erasoldado do capitão Pimpão — iria parao céu.E a terra, dizia o Profeta, estavacondenada à morte no Fogo Eterno.Era isto que ele, ruivo e barbudo,cabelos e barba pela barriga, dizia, osolhos parados, a mão fixa. Fogo quetudo devoraria, gente e terra, terra ebicho. Ai de quem não entrasse para oexército do Profeta, armado comoração e um rebenque.Até criar este exército, alguns mesesantes, Aparecidão era respeitado edesprezado como se respeita oudespreza um benzedor. Muitos o piocuravatn,fala-se em 200 pessoas por dia— embora a elite da cidade preferissetratá-lo como um louco ou um bobo:então iria Deus dar confiança a umbo iadeiro?Começa a correr que Aparecidão eseu bando preparavam uma passeatapor Rubinéia e até pela cidade maiorvizinha, Santa Fé do Sul, e que orebenque iria cantar em cima dosinfiéis.E a tudo isto somava-se a históriadas coisas que Aparecidão estava dizendo,e que cheiravam a pregaçãoilegal; coisas em torno da terra: "aterra não é propriedade de ninguém,pois foi deixada por Deus para que oshomens a tratassem e plantassem parasobreviver, e ninguém é dono dela". Etambém aos impostos: "Ninguém deve•pagar impostos porque o terreno épropriedade comum". E ainda à construçãoda barragem de Ilha Solteira:"não é certo impedir todo o percursodo rio . . . porque os homens nãopodem subir e descer livremente o rio,bem como os peixes que têm essedireito".IIQuando moço, Aparecido Galdinolutou nas tropas de certo CapitãoPimpão, no Paraná, célebre pela crueldade.Nestas histórias ele aparece comoo soldado Galdino, decidido no gatilho,impondo lei mais pelo fogo do quepela palavra. Aos 22 anos, vamosencontrá-lo em lombo de burro seguindopelo Mato Grosso e Goiás umadestinação de boiadeiro, por trilhasmínimas que se perdem nas matas,fugindo de onça, dormindo em árvore,comendo quando possível, e até, talvezexercendo o ofício de jagunço. Mas,por volta de 62, se dá o nascimento deProfeta, e começa a paixão e adesgraça de Aparecido Galdino Jachinto,por força dos mistérios tornadoAparecidão, o boiadeiro que sonhouchefiar um Exército Divino — e queterminou no pior dos hospícios.IIIComeçou a ficar ensimesmado, e abarba cresceu. Passava os dias em casa,e orava. E disse aos filhos que securasse certo cavalo, era sinal certo que4Deus lhe dera uma missão. Falavacoisas vagas em torno de urra Voz, etambém de uma Missão. A famílianada entendia, nem podia entender.Podemos imaginar o caboclo àfrente do cavalo, seus gostos, e o trotedo animal sarado. Ele não era maissimples peão, era o Predestinado.Fama que começa a correr botequins,se uns riem, outros arregalam osolhos. E lá começa a aparecer naquelaterra pobre uma romaria de peão eboiadeiro, empregadinhas, gente desenganadapelos médicos, atrás dos passesdo curador, e que achava que Deuspodia estar tanto na boca de umanalfabeto como eles, quanto na bocacheia de latim. A fama se espalha pormais léguas ainda, e até automóvelaparece no arraial do Profeta.IVMas, certo dia, a Voz que oencaminhara ao reino do Mistério lhediz que ele deveria formar um exército.... .. Porque o mundo ... o mundoterminaria antes do ano 2.000, aidaquele que não estivesse preparadopara receber o fogo eterno que tudodevoraria. Antes deste desfecho, oshomens se devorariam como lobos, emguerras civis, e uma guerra mundialirromperia entre as nações. No meio douniverso de luto e morte, o exército doboiadeiro Aparecidão esperaria o fim,orando. Rebenques carregariam apenaspara se defender das agressões, etambém dos demônios.VNaquele dia ... primeiro de outubro... esperava-se o Exército do Senhorno arraial do Profeta. Mas quemchega é a suada, a esbaforida polícia deSanta Fé. Dizem os policiais que oProfeta ergueu a mão e mandou osfiéis atacarem; dizem os fiéis que apolícia nada falou. Foi entrando,batendo, quebrando. Foi um corpo-a-corpode meia-hora dos vintepoliciais contra os quinze fiéis. Osderrotados foram levados num caminhãopara Estrela do Oeste. Os maisinfelizes foram montados como sefossem cavalos.Acusado de formar um exército, ede pregação ilegal, chegou à JustiçaMilitar. Não foi julgado, porque certospsiquiatras disseram que era um loucopor ouvir vozes. Por isso, está preso háquatro anos em um lugar que é piorque o Presídio de São Paulo, pior queo Juqueri (onde os pacientes ao menostêm uma amplidão de terra paracaminhar ou trabalhar): o ManicômioJudiciário.Os filhos que o visitam dizem queele continua calmo, porque a vida deum boiadeiro ensina paciência. Mas oboiadeiro que pregava o bem e ajustiça só sairá do Manicômio Judiciáriono dia que um homem — o seupsiquiatra —, sobre o qual não hánenhum controle possível, nem da lei,nem dos homens, nem de um possívelDeus — disser que ele está "bom". Istoé, que não ouve "vozes". Neste dia,então, talvez seja julgado — mas não épreferível o julgamento à prisão semjulgamento? O primeiro delegado queinvadiu o seu templo-casa está preso,por corrupção. O segundo delegado,Geraldo Antônio Galante Ferreira, chefeda operação final, morreu numdesastre de automóvel. O mesmo fimdo escrivão do processo, Eurico LuísCustódio. A dez minutos do lugar emque ficava o templo, hoje imerso naságuas da represa, existe uma estrada, enesta estrada existe uma árvore. Aárvore foi plantada pelo boiadeiro, quedisse aos seus filhos: "ela viverá maisdo que eu e vocês; todas as vezes quevocês passarem por esta estrada, averão, e se lembrarão de mim. Assimeu sempre viverei." (MF)
CONVOCATORIA GERALPARA UM JULGAMENTO(POR DENTRO) DO PROFETAQuem faz a convocatória é o romancista nordestino Paiilo Dantas, estudioso dasquestões da alma mística do nosso povo, autor, entre outros livros, de CapitãoJagunço, Sertão do Boi Santo, Quem foi Antônio Conselheiro e O Livro deDaniel.Convocados: psiquiatras, sociólogos, escritores, poetas, educadores, autoridades.Local: nossa redação.Agarro, com certa e carinhosa fúria,a máquina de escrever. Penso naprimavera que chegou lá fora econvoco todos os puros de coração, emmeio de impurezas tantas, inclusive doar que respiramos na cidade grande,para uma bela e nobre tarefa: realizar,na redação do jornal Ex -, umamesa-redonda sobre o caso do Aparecidão,aquele ex-boiadeiro e profeta queandou nos jornais através dos belos ecorajosos textos de Marcos Faermann(Jornal da Tarde, 2-9-74) e daqueleíndio vago, Edilson (Jornal do Brasil,sucursal paulista).0 jornal Ex-, na sua destinação de"ex-tudo", quixotescamente, comproua questão e quer mesmo fazer amesa-redonda do ex-boiadeiro, ex-curandeiro,ex-santo, ex-revolucionário,agora preso nas grades do ManicômioJudiciário.O tema alcança várias áreas sociais eemotivas: a alienação e o sofrimentodo povo brasileiro, o misticismo e aangústia popular, os direitos da Justiçae os domínios da fé ou da religiosidade,da qual brotam santos e heróis,profetas ou incompreendidos justiceiros,curandeiros e feiticeiros.Não queremos fazer movimento decontracultura, nem de antipsiquiatria,mas apenas revolver as camadas profundasde uma matéria que interessa atodos - legisladores, sociólogos, educadores,artistas, escritores, psiquiatras eautoridades, já que a causa'posta emquestão transcende, pela sua importância,a área da simples reportagem oudo jornalismo de danaçãó, espraiando-se em outros domínios dasciências sociais.Lembro-me das palavras de ThomasMann: "o povo alemão era uma espéciede São Sebastião trespassado de flechaspor todos os lados". E o que dizer,então, do atual e sofrido povo brasileiro,que, em meio a tantos malefícios,nem sequer tem o direito de ter o, seusanto ou o seu herói, o seu profeta,acima das suas ditas desditas ou dosseus enredos malditos?Queremos saber mais coisas da vidadesse personagem, não o deixandosoçobrar entre as grades de um ManicômioJudiciário, pois não é todo o diaque surge ou aparece um homem tãoacobertado de .espantos e de arrancos,falando e ouvindo "vozes místicas"qfíe o convocam para uma dura einocente missão social nas terras de umbóia-fria, na fronteira de três Estados— São Paulo, Mato Grosso e Paraná.Desde que li sobre o assunto, a dolorosafigura desse cavaleiro me preocupa eatormenta. Isto simplesmente porque,em meio de tantas acomodações gerais,ainda nos resta um pouco daquelacorajosa sensibilidade para não ficarmosausentes ou indiferentes aos sofrimentose às pregações evangélicas deum homem ou de um ex-homem(expressão de sabor gorkiano) que, tidocomo alienado, padece num hospital-prisão,depois de ter sonhado elutado, numa área de geografia deserdada,por uma causa de melhoria socialpara os entes viventes dos abandonosdo Oeste.Porque, como bem argumentou oadvogado não de Deus, nem do Diabo,mas simplesmente da causa em questão,dr. Alcides Silva, lá do interior,neste caso de Aparecidão estão vislumbrando"delitos onde meramente ocorremfatos psico-sociais alheios ao campopenal".Em torno dessa nova versão de umnovo Antônio Conselheiro do Oeste,precisamos realizar uma tribuna livredos sentimentos machucados, revolvendopor dentro, causas e efeitos,,delírios e fantasias, sonhos e frustrações,matéria de uma espantologiasofrida que não pertence mais aoslaudos de um processo penal, feito aosabor de cartórios provincianos, natomada de depoimentos obscuros, conduzidospela burocracia de uma justiçagasta e insensível. Agora, não cabem adelegados, soldados, fazendeiros, osdepoimentos para a formação de umdiagnóstico social mais válido e aprofundadode urn caso, como o desteboiadeiro mineiro ou goiano, queousou ser profeta em sua terra, contrariandovaticínios sagrados ou profanos.Novas iluminações do seu "infernoprivado" ou de seu "paraíso prometido"precisam ser feitas por homensque entendem ou que procuram entender,além do bem e do mal, o seu casotipicamente social ou paranormal.Aparecidão deve ser estudado pornós, membros dessa insatisfeita famíliaque — segundo as quentes dicasdaquele genial escritor nórdico, ParLagerkvist — um ser carregado dedesespero, mas cheio de esperança, nãocessa de atormentar-se, "por causa dajustiça e da injustiça, da verdade ou doerro, do bem ou do mal, por causa dasalvação, da graça e da condenaçãoeterna, por causa do diabo e de deus esuas estúpidas contendas".Feito na colônia agrícola de Porto Alegre,onde ficam os loucos-loucos, "irrecuperáveis".Tem uma seção lá, e que é a dasfotos, que se chama de Pavilhão dosSórdidos. É uma barra, com 50 homens, 1funcionário, merda, sujeira, 1 cara que élouco-surdo-mudo-cego (tudo ao mesmotempo). A maioria deles é gente feliz, istoeu notei (mas lá, só sendo louco...). Aprisão da insanidade, a liberdade da loucura.Personagens errantes, silenciosos, seminus,sem papel, sem nome, sem passado esem futuro. Comendo comida com as mãos;de pé no corredor, completamente sozinhos;o dia inteiro com a cabeça abaixada;personagens do cinema búlgaro; sem sentiremfrio nem calor; também personagens doteatro brechtiano; iluminados por raios desol/itário. Fiquei dois dias lá e não batimais que 187 fotos. Não sei mais o queC *' Zer "Leonid Streliaev(25 anos)