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FOUCAULT, M. A vida dos homens infames 1977.pdf

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epresentativo, mas textos que desempenharam um papel nesse real do qual falam, e que seencontram, em contrapartida, não importa qual seja sua exatidão, sua ênfase ou sua hipocrisia,atravessa<strong>dos</strong> por ela: fragmentos de discurso carregando os fragmentos de uma realidade da qualfazem parte. Não é uma compilação de retratos que se lerá aqui: são armadilhas, armas, gritos,gestos, atitudes, astúcias, intrigas cujas palavras foram os instrumentos. Vidas reais foram"desempenhadas" nestas poucas frases; não quero dizer com isso que elas ali foram figuradas, masque, de fato, sua liberdade, sua infelicidade, com freqüência sua morte, em todo caso seu destinoforam, ali, ao menos em parte, decidi<strong>dos</strong>. Esses discursos realmente atravessaram <strong>vida</strong>s; essasexistências foram efetivamente riscadas e perdidas nessas palavras.Quis também que essas personagens fossem elas próprias obscuras; que nada aspredispusesse a um clarão qualquer, que não fossem dotadas de nenhuma dessas grandezasestabelecidas e reconhecidas – as do nascimento, da fortuna, da santidade, do heroísmo ou do gênio;que pertencessem a esses milhares de existências destinadas a passar sem deixar rastro; quehouvesse em suas desgraças, em suas paixões, em seus amores e em seus ódios alguma coisa decinza e de comum em relação ao que se considera, em geral, digno de ser contado; que, no entanto,tivessem sido atravessadas por um certo ardor.,que tivessem sido animadas por uma violência, umaenergia, um excesso na malvadeza, na vilania, na baixeza, na obstinação ou no azar que lhes dava,aos olhos de seus familiares, e à proporção de sua própria mediocridade, uma espécie de grandezaassustadora ou digna de pena. Parti em busca dessas espécies de partículas dotadas de uma energiatanto maior quanto menores elas próprias o são, e difíceis de discernir.Para que alguma coisa delas chegue até nós, foi preciso, no entanto, que um feixe de luz, aomenos por um instante, viesse iluminá-las. Luz que vem de outro lugar. O que as arranca da noiteem que elas teriam podido, e talvez sempre devido, permanecer é o encontro com o poder: sem essechoque, nenhuma palavra, sem dú<strong>vida</strong>, estaria mais ali para lembrar seu fugidio trajeto. O poder queespreitava essas <strong>vida</strong>s, que as perseguiu, que prestou atenção, ainda que por um instante, em suasqueixas e em seu pequeno tumulto, e que as marcou com suas garras, foi ele que suscitou as poucaspalavras que disso nos restam; seja por se ter querido dirigir a ele para denunciar, queixar-se,solicitar, suplicar, seja por ele ter querido intervir e tenha, em poucas palavras, julgado e decidido.Todas essas <strong>vida</strong>s destinadas a passar por baixo de qualquer discurso e a desaparecer sem nuncaterem sido faladas só puderam deixar rastros – breves, incisivos, com freqüência enigmáticos – apartir do momento de seu contato instantâneo com o poder. De modo que é, sem dú<strong>vida</strong>, parasempre impossível recuperá-las nelas próprias, tais como podiam ser “em estado livre”; só podemosbalizá-las tomadas nas declamações, nas parcialidades táticas, nas mentiras imperativas supostasnos jogos de poder e nas relações com ele.Alguém me dirá: isto é bem próprio de você, sempre a mesma incapacidade de ultrapassar a

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