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FOUCAULT, M. A vida dos homens infames 1977.pdf

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expressões rudes, através das quais elas pensavam, sem dú<strong>vida</strong>, dar às suas súplicas mais força everdade; então, em frases solenes e deslocadas, ao lado de palavras anfigúricas, brotavamexpressões rudes, inábeis, malsoantes; à linguagem obrigatória e ritual entrelaçavam-se asimpaciências, as cóleras, as raivas, as paixões, os rancores, as revoltas. Uma vibração e intensidadesselvagens abalam as regras desse discurso afetado e irrompem com suas próprias maneiras de dizer.Assim, fala a mulher de Nicolas Bienfait: ela “toma a liberdade de representar muito humildementeao Sire que o dito Nicolas Bienfait, cocheiro de aluguel, é um homem extremamente devasso que amata de pancada, e que tudo vende, tendo já causado a morte de suas duas mulheres, das quais aprimeira ele lhe matou o filho dentro de seu corpo, e a segunda, depois de a ter vendido e comido,por seus maus-tratos a fez morrer definhando, até querer estrangulá-la na véspera de sua morte... Aterceira, ele quer comer-lhe o coração sobre a grelha, sem muitos outros assassinatos que fez; Sire.eu me jogo aos pés de Vossa Grandeza para implorar Vossa Misericórdia. Espero de sua bondadeque o senhor me faça justiça, pois estando minha <strong>vida</strong> em risco a todo momento, não cessarei deorar ao Senhor pela conservação de vossa saúde...”.Os documentos que reuni aqui são homogêneos; e eles correm sério risco de pareceremmonótonos. To<strong>dos</strong>, entretanto, funcionam no disparate. Disparate entre as coisas contadas e amaneira de dizê-las; disparate entre os que se queixam e suplicam e os que têm sobre eles todo opoder; disparate entre a ordem minúscula <strong>dos</strong> problemas levanta<strong>dos</strong> e a enormidade do poderaplicado; disparate entre a linguagem da cerimônia e do poder e a <strong>dos</strong> furores ou das impotências.São textos que apontam, na direção de Racine, ou Bossuet, ou Crébillon; mas eles portam com elestoda uma turbulência popular, toda uma miséria e uma violência, toda uma “baixeza” como se dizia,que nenhuma literatura nessa época teria podido acolher. Eles fazem aparecer indigentes, pobrespessoas, ou simplesmente medíocres, em um estranho teatro no qual tomam posturas, clamores devozes, grandiloqüências, em que revestem molambos de roupagens que lhes são necessários sequiserem que se lhes preste atenção na cena do poder. Às vezes, eles fazem pensar em uma pobretrupe de saltimbancos que se enfarpelaria nem bem nem mal, com alguns ouropéis outrorasuntuosos para representar diante de um público de ricos que debochará deles. Fora isso, quedesempenhem sua própria <strong>vida</strong> e diante de poderosos que podem decidir sobre ela. Personagens deCéline querendo se fazer ouvir em Versalhes.Dia virá em que todo esse disparate estará apagado. O poder que se exercerá no nível da <strong>vida</strong>cotidiana não mais será o de um monarca, próximo ou distante, todo-poderoso e caprichoso, fontede toda justiça e objeto de não importa qual sedução, a um só tempo princípio político e potênciamágica; ele será constituído de uma rede fina, diferenciada, contínua, na qual se alternaminstituições diversas da justiça, da polícia, da medicina, da psiquiatria. E o discurso que se formará,então, não terá mais a antiga teatralidade artificial e inábil; ele se desenvolverá em uma linguagem

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