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Comentário Evangelho Segundo João - Vol. 1

Comentário de João Calvino no Evangelho Segundo João - Vol. 1.

Comentário de João Calvino no Evangelho Segundo João - Vol. 1.

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SÉRIE COMENTÁRIOS BÍBLICOS<br />

JOÃO CALVINO<br />

<strong>João</strong><br />

<strong>Evangelho</strong> segundo<br />

<strong>Vol</strong>.<br />

1


C168e Calvino, <strong>João</strong>, 1509-1564<br />

v. 1 O evangelho segundo <strong>João</strong> / <strong>João</strong> Calvino ; [prefácio de<br />

Franklin Ferreira ; tradução de Valter Graciano Martins].<br />

– São José dos Campos, SP : Fiel, 2015.<br />

498 p. ; 21cm. – (<strong>Comentário</strong>s bíblicos. O evangelho<br />

segundo <strong>João</strong> ; v. 1)<br />

Tradução de: Calvin’s commentaries: the gospel<br />

according to John.<br />

Inclui referências bibliográficas.<br />

ISBN 978-85-8132-190-5<br />

1. Bíblia. <strong>João</strong> - <strong>Comentário</strong>s. I. Título. II. Ferreira,<br />

Franklin. III. Martins, Valter Graciano. III. Série.<br />

CDD: 226.5<br />

Catalogação na publicação: Mariana C. de Melo – CRB07/6477<br />

<strong>Evangelho</strong> <strong>Segundo</strong> <strong>João</strong><br />

Série <strong>Comentário</strong>s Bíblicos<br />

<strong>João</strong> Calvino<br />

Título do Original: Calvin’s Commentaries:<br />

The Gospel According to John<br />

Edição baseada na tradução inglesa de T.<br />

A. Smail, publicada por Wm. B. Eerdmans<br />

Publishing Company, Grand Rapids, MI, USA,<br />

1964, e confrontada com a tradução de John<br />

Pringle, Baker Book House, Grand Rapids, MI,<br />

USA, 1998.<br />

•<br />

Copyright © Editora Fiel 2013<br />

Primeira Edição em Português 2015<br />

Todos os direitos em língua portuguesa<br />

reservados por Editora Fiel da<br />

Missão Evangélica Literária<br />

Proibida a reprodução deste livro por quaisquer<br />

meios, sem a permissão escrita dos editores,<br />

salvo em breves citações, com indicação da fonte.<br />

A versão bíblica utilizada nesta obra é a Revista e<br />

Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB)<br />

•<br />

Diretor: James Richard Denham III<br />

Editor: Tiago J. Santos Filho<br />

Tradução: Rev. Valter Graciano Martins<br />

Revisão: Paulo César Valle<br />

Capa: Edvânio Silva<br />

Diagramação: Rubner Durais<br />

ISBN: 978-85-8132-190-5<br />

Caixa Postal 1601<br />

CEP: 12230-971<br />

São José dos Campos, SP<br />

PABX: (12) 3919-9999<br />

www.editorafiel.com.br


Sumário<br />

Prefácio à Edição em Português............................................11<br />

Epístola Dedicatória................................................................19<br />

Argumento da Epístola de Paulo aos Romanos...................25<br />

Capítulo 1<br />

Versículos 1 a 5..............................................................29<br />

Versículos 6 a 13............................................................39<br />

Versículo 14....................................................................49<br />

Versículos 15 a 18..........................................................53<br />

Versículos 19 a 23..........................................................59<br />

Versículos 24 a 28..........................................................63<br />

Versículos 29 a 34..........................................................67<br />

Versículos 35 a 39..........................................................74<br />

Versículos 40 a 42..........................................................76<br />

Versículos 43 a 46..........................................................78<br />

Versículos 47 a 51..........................................................82<br />

Capítulo 2<br />

Versículos 1 a 11............................................................87<br />

Versículos 12 a 17..........................................................96<br />

Versículos 18 a 22........................................................101<br />

Versículos 23 a 25........................................................106


Capítulo 3<br />

Versículos 1 a 6............................................................111<br />

Versículos 7 a 12..........................................................122<br />

Versículos 13 a 18........................................................128<br />

Versículos 19 a 21........................................................136<br />

Versículos 22 a 28........................................................139<br />

Versículos 29 a 34........................................................143<br />

Versículos 35 a 36........................................................150<br />

Capítulo 4<br />

Versículos 1 a 9............................................................153<br />

Versículos 10 a 15........................................................158<br />

Versículos 16 a 21........................................................163<br />

Versículos 22 a 26 .......................................................170<br />

Versículos 27 a 34 .......................................................178<br />

Versículos 35 a 38 .......................................................183<br />

Versículos 39 a 45 .......................................................187<br />

Versículos 46 a 54 .......................................................192<br />

Capítulo 5<br />

Versículos 1 a 9............................................................199<br />

Versículos 10 a 16........................................................206<br />

Versículos 17 a 19........................................................211<br />

Versículos 20 a 24 .......................................................215<br />

Versículos 25 a 29 .......................................................221<br />

Versículos 30 a 32 .......................................................227<br />

Versículos 33 a 36 .......................................................229<br />

Versículos 37 a 40 .......................................................233<br />

Versículos 41 a 47 .......................................................237<br />

Capítulo 6<br />

Versículos 1 a 13..........................................................245<br />

Versículos 14 a 21........................................................252


Versículos 22 a 25........................................................257<br />

Versículos 26 a 29........................................................259<br />

Versículos 30 a 33........................................................265<br />

Versículos 34 a 40........................................................269<br />

Versículos 41 a 45........................................................275<br />

Versículos 46 a 51........................................................280<br />

Versículos 52 a 58........................................................284<br />

Versículos 59 a 64........................................................291<br />

Versículos 65 a 71........................................................298<br />

Capítulo 7<br />

Versículos 1 a 8............................................................305<br />

Versículos 9 a 13..........................................................310<br />

Versículos 14 a 19........................................................312<br />

Versículos 20 a 24 .......................................................318<br />

Versículos 25 a 30........................................................321<br />

Versículos 31 a 36........................................................326<br />

Versículos 37 a 39........................................................331<br />

Versículos 40 a 44........................................................336<br />

Versículos 45 a 53........................................................338<br />

Capítulo 8<br />

Versículos 1 a 11..........................................................345<br />

Versículos 12 a 14........................................................351<br />

Versículos 15 a 20........................................................354<br />

Versículos 21 a 24........................................................358<br />

Versículos 25 a 29........................................................360<br />

Versículos 30 a 38 .......................................................368<br />

Versículos 39 a 42........................................................375<br />

Versículos 43 a 45........................................................378<br />

Versículos 46 a 50........................................................382<br />

Versículos 51 a 55 .......................................................385<br />

Versículos 56 a 59........................................................390


Capítulo 9<br />

Versículos 1 a 5............................................................395<br />

Versículos 6 a 12 .........................................................401<br />

Versículos 13 a 17........................................................405<br />

Versículos 18 a 23........................................................411<br />

Versículos 24 a 33........................................................415<br />

Versículos 34 a 41........................................................419<br />

Capítulo 10<br />

Versículos 1 a 6............................................................429<br />

Versículos 7 a 10..........................................................433<br />

Versículos 11 a 15........................................................438<br />

Versículos 16 a 18........................................................442<br />

Versículos 19 a 30........................................................447<br />

Versículos 31 a 36........................................................454<br />

Versículos 37 a 42........................................................458<br />

Capítulo 11<br />

Versículos 1 a 10..........................................................463<br />

Versículos 11 a 17........................................................469<br />

Versículos 18 a 27........................................................472<br />

Versículos 28 a 38........................................................477<br />

Versículos 39 a 44........................................................483<br />

Versículos 45 a 52........................................................488<br />

Versículos 53 a 57........................................................497


Prefácio à Edição em Português<br />

Este comentário de <strong>João</strong> Calvino, que o leitor tem em mãos, ocupa<br />

um lugar de destaque na história da interpretação do <strong>Evangelho</strong><br />

de <strong>João</strong>. Orígenes de Alexandria, <strong>João</strong> Crisóstomo, Agostinho de Hipona,<br />

Tomás de Aquino e Erasmo de Roterdã escreveram sermões e<br />

exposições deste evangelho, mas o comentário de Calvino se destaca<br />

sobre todos os seus predecessores. 1<br />

Calvino fez uma primeira preleção deste evangelho, em 1539,<br />

mas nenhum manuscrito destas pregações sobreviveu. Ele pregou<br />

estes sermões no tempo que passou na cidade livre franco-alemã<br />

de Estrasburgo, ministrando à comunidade francesa da cidade, nas<br />

igrejas de Saint-Nicolas, Sainte-Madeleine e Temple Neuf. Mas, ao<br />

retornar a Genebra, ele voltou a pregar este evangelho, e estas exposições<br />

se tornaram o primeiro comentário aos evangelhos publicado<br />

por Calvino, em meio às turbulências da vida política de Genebra,<br />

entre 1546 e 1553.<br />

1 Para a história da interpretação deste evangelho, cf. D. A. Carson, O comentário de <strong>João</strong><br />

(São Paulo: Shedd, 2007), p. 25-42.


12 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Desde 1541 o governo da cidade de Genebra era bipartido, com<br />

o conselho se dedicando às questões civis, e o consistório tratando<br />

das questões eclesiásticas. Em 1547 a oposição a Calvino e a outros<br />

pastores de refugiados franceses havia crescido. Esta oposição vinha<br />

de uma coalizão contrária a Calvino, conhecida como os libertinos,<br />

e que contava com a maioria dos síndicos, que eram os magistrados<br />

civis da cidade. Em junho, uma carta anônima, com ameaças, foi<br />

encontrada no púlpito da Catedral de Saint-Pierre, onde Calvino pregava.<br />

Suspeitando de uma conspiração contra a Igreja e o Estado, o<br />

conselho nomeou uma comissão para investigar o caso. Como resultado,<br />

um homem, membro da mais antiga família da cidade, foi preso,<br />

e provas incriminatórias, inclusive uma carta endereçada ao rei da<br />

França, foram encontradas quando sua casa foi revistada. Ele confessou<br />

vários crimes, incluindo ter escrito a carta deixada no púlpito da<br />

catedral. Como resultado, um tribunal civil condenou o homem por<br />

traição, e ele foi executado em julho daquele ano. Em meio a estas<br />

agitações, em meados de 1549, a esposa de Calvino, Idelette de Bure,<br />

veio a falecer, deixando seus dois filhos, nascidos de seu primeiro<br />

casamento, sob os cuidados de Calvino. 2<br />

Os libertinos intensificaram a oposição, e os insultos contra os<br />

pastores da cidade aumentaram, assim como os desafios à autoridade<br />

do consistório, que era formado por pastores e presbíteros, e<br />

que julgava as questões de disciplina eclesiástica. O conselho da cidade<br />

assumiu uma posição ambígua, alternadamente admoestando<br />

e apoiando Calvino. Foi em 1550 que ele começou a expor o evangelho<br />

de <strong>João</strong>, no púlpito da Catedral de Saint-Pierre. Mas, quando<br />

um de seus principais rivais foi eleito como primeiro síndico do<br />

conselho, em 1552, a autoridade de Calvino na cidade parecia ter<br />

chegado ao seu ponto mais baixo. De um lado, o alvo do conselho,<br />

sob a liderança dos libertinos, era controlar a disciplina eclesiás-<br />

2 Para os detalhes e o texto da carta e o medo de uma intervenção militar francesa na cidade,<br />

cf. Ronald Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma (São Paulo: Cultura Cristã, 2003),<br />

p. 73-75.


Prefácio à edição em português • 13<br />

tica e a liberdade dos cidadãos de Genebra de receber a Ceia do<br />

Senhor, exercendo, desta forma, controle sobre a igreja de Genebra.<br />

De outro lado, o francês Calvino não era cidadão genebrino, sendo<br />

apenas um empregado do conselho municipal, um professor (sacrarum<br />

literatum professor), sem poder de voto. Depois de algumas<br />

derrotas diante do conselho, ele acreditou que havia sido vencido.<br />

Então, em julho de 1553, Calvino pediu ao conselho permissão para<br />

se demitir. Embora os libertinos controlassem o conselho, o seu<br />

pedido foi recusado. A oposição percebeu que poderia reduzir a<br />

autoridade de Calvino, mas não tinha poder suficiente para bani-lo.<br />

E, em agosto, o herético espanhol Miguel Serveto, que inexplicavelmente<br />

passava pela cidade, foi preso e julgado por ordem dos<br />

síndicos libertinos, que, assim, esperavam minar o ministério de<br />

Calvino. Em meio a esta confusão, é importante ressaltar que a “influência<br />

[de Calvino] sobre Genebra foi exercita de forma indireta,<br />

através de pregações, conferências e outras formas de persuasão<br />

legítima”. 3 E, como escreveu Barbara Pitkin, “em certo sentido, portanto,<br />

este comentário [ao <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong>] pode ser visto com<br />

uma defesa singular do seu ensino e autoridade pastoral”. 4<br />

Em meio a esta situação precária, o <strong>Comentário</strong> ao <strong>Evangelho</strong><br />

de <strong>João</strong> foi publicado em 1553 e a Harmonia aos <strong>Evangelho</strong>s Sinópticos<br />

foi publicada em 1555. Os dois comentários – a Harmonia aos<br />

evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e o <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong> – foram<br />

lançados em conjunto, e apareceram em francês e holandês publicados<br />

juntamente com o comentário ao livro de Atos, que havia saído<br />

um pouco antes, em 1552. Em cerca de cinquenta anos este comentário<br />

foi publicado sete vezes em latim, doze em francês, duas em<br />

alemão, uma em inglês e uma em holandês.<br />

Reveladoramente, a epístola dedicatória do <strong>Comentário</strong> ao<br />

<strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong> foi endereçada “aos honorabilíssimos e ilustrís-<br />

3 Alister McGrath, A vida de <strong>João</strong> Calvino (São Paulo: Cultura Cristã), p. 127-137.<br />

4 Barbara Pitkin, “Calvin as a Commentator on John” em Donald K. McKim (ed.), Calvin and<br />

the Bible (New York: Cambridge University Press, 2006), p. 169.


14 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

simos senhores, os síndicos e concílio de Genebra”. Como escreve<br />

Wulfert de Greef: “Na dedicatória, ele se refere a Genebra como um<br />

centro de refúgio para os cristãos que foram forçados a fugir de onde<br />

viviam. Isto é significativo à luz da declaração de Cristo, sobre como<br />

a hospitalidade aos estrangeiros é considerada como algo feita a ele,<br />

pessoalmente. No meio da agitação, que o conselho saiba que Cristo<br />

está próximo, protegendo as cidades onde o evangelho pode ser<br />

proclamado e onde seu povo tem permissão para morar”. 5<br />

Diferente dos comentários anteriores, Calvino não entendia que<br />

este evangelho fosse uma defesa das doutrinas ortodoxas da Trindade<br />

e da Pessoa de Cristo, mas que tratava essencialmente sobre como<br />

pessoas podem ser salvas pela fé em Jesus Cristo. Para ele, como está<br />

escrito na análise introdutória à exposição do comentário ao <strong>Evangelho</strong><br />

de <strong>João</strong>, este forneceria uma chave para o entendimento dos<br />

três evangelhos sinópticos: “Por isso, tenho o costume de dizer que<br />

este <strong>Evangelho</strong> é uma chave que abre a porta para a compreensão<br />

dos outros, pois quem quiser entender o poder de Cristo, como aqui<br />

notavelmente retratado, prontamente desejará ler com proveito o que<br />

os outros relatam acerca do Redentor que se manifestou”.<br />

Mas, cuidadosamente, num eco da imagem de Ireneu de Lião<br />

do evangelho quádruplo como um “rico mosaico” que revela “o autêntico<br />

retrato do rei”, 6 Calvino escreveu que “é nosso dever agora<br />

combinar os quatro [evangelhos] por meio de uma relação mútua, de<br />

modo que nos permitamos ser instruídos por todos eles, como por<br />

uma só boca”. Portanto, para ele, o evangelho de <strong>João</strong> “é a solene<br />

publicação da graça revelada em Cristo. (...) E, visto que Cristo é o<br />

penhor da misericórdia de Deus e de seu paternal amor para conosco,<br />

assim ele é, de uma maneira peculiar, o tema do evangelho”.<br />

Calvino não estava sozinho nesta ênfase. Escrevendo um pouco<br />

antes, Martinho Lutero afirmou que o <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong> seria um dos<br />

5 Wulfert de Greef, The Writings of John Calvin: An Introductory Guide (Louisville, KY: Westminster<br />

Press, 2008), p. 81-84.<br />

6 Cf. Ireneu de Lião, Contra as heresias I.8.1 (São Paulo: Paulus, 1995), p. 52-53.


Prefácio à edição em português • 15<br />

melhores e mais belos livros do Novo Testamento, e “é o único evangelho<br />

delicado e certo, o principal, sendo que se lhe deve dar considerável<br />

preferência e dedicar-lhe respeito”. Portanto, este evangelho, considerado<br />

em conjunto com a primeira epístola de <strong>João</strong>, “te apresentam<br />

Cristo e te ensinam tudo que é necessário e bom saber, ainda que jamais<br />

visses ou desses ouvidos a qualquer outro livro ou doutrina”.<br />

Lutero também afirmou que os “melhores dentre todos os livros”<br />

do Novo Testamento seriam “o <strong>Evangelho</strong> segundo <strong>João</strong> e as<br />

epístolas de Paulo, em especial aquela aos Romanos, e a Primeira<br />

Epístola de Pedro”, e consistiriam no “bom cerne e medula dentre<br />

todos os livros” da Escritura Sagrada. Assim sendo, “cada cristão se<br />

deveria recomendar que os lesse por primeiro e com maior freqüência,<br />

familiarizando-se com eles pela leitura diária como se fosse o pão<br />

de cada dia”. Por fim, sem desconsiderar a visão elevada que <strong>João</strong><br />

oferece de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo; e da glória do Verbo<br />

encarnado, o propósito do apóstolo, segundo Lutero, seria delimitar<br />

de forma mais clara “como a fé em Cristo supera o pecado, morte e<br />

inferno e concede vida, justiça e salvação, o que, afinal, é a característica<br />

própria do <strong>Evangelho</strong>”. 7<br />

Ainda que a afirmação da superioridade do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

sobre os sinópticos possa parecer um exagero, esta noção do texto<br />

do apóstolo <strong>João</strong> como chave interpretativa dos quatro evangelhos<br />

encontra sua culminância em Calvino, que também o considerava um<br />

dos mais importantes livros da Escritura. Como Pipkin escreve,<br />

“o <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong> oferece a Calvino uma apresentação<br />

mais nuançada da fé e da recepção da fé do que fazem as<br />

7 Martinho Lutero, “Prefácio ao Novo Testamento 1546”, em Martinho Lutero: Obras selecionadas,<br />

v. 8 (São Leopoldo: Sinodal & Porto Alegre: Concórdia, 2003), p. 127. Este texto é<br />

da primeira edição de 1522 do prefácio ao Novo Testamento, mas foi omitido em edições<br />

posteriores. Para as pregações de Lutero nos capítulos 14-16 do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong>, intitulados<br />

“os sermões de despedida de Jesus”, cf. Martinho Lutero: Obras selecionadas, v.<br />

11 (São Leopoldo: Sinodal & Porto Alegre: Concórdia, 2010), p. 15-439. Estas exposições<br />

foram realizadas entre a Páscoa e o Pentecostes de 1537, em Wittenberg. Foram revisadas,<br />

resumidas e editadas no ano seguinte.


16 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

epístolas paulinas. Especificamente, ‘ela oferece um conceito<br />

mais amplo dos níveis, estágios ou tipos da fé e uma imagem<br />

mais complexa do papel dos milagres, sinais e senso externo<br />

da percepção da chegada da fé’. Em seus comentários sobre<br />

a fé, Calvino enfatiza que a fé, em última instância, vem pelo<br />

ouvir e que não repousa numa visão carnal, e que se trata de<br />

um conhecimento correto de Jesus Cristo”. 8<br />

O que torna este comentário ao <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong> mais significativo<br />

é que esta exposição bíblica é uma afirmação da força e<br />

energia do método histórico-gramatical, como estabelecido pelo próprio<br />

Calvino. 9 Há poucos vislumbres do clima beligerante em que ele<br />

estava vivendo nesta época, em Genebra. Corajosamente, ele se dedica<br />

a expor as palavras bíblicas inspiradas pelo Espírito Santo com<br />

fidelidade e atenção. Isto ocorreu porque este comentário foi escrito<br />

motivado pelo inquebrantável compromisso de Calvino com a Palavra<br />

de Deus, na medida em que seu interesse primário era o sentido<br />

próprio do texto bíblico como almejado pelo apóstolo <strong>João</strong>.<br />

Portanto, o comentário de Calvino ao <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong> é um<br />

dos exemplos que levaram Timothy George a afirmar que ele é justamente<br />

“chamado ‘o pai da erudição bíblica moderna’, e sua obra<br />

exegética é sem paralelo na Reforma”. Esta ênfase na primazia das<br />

Escrituras se deu porque “era uma convicção-chave da Reforma que<br />

o estudo cuidadoso das Escrituras, bem como o fato de ouvi-las de<br />

modo meditativo, que os monges [medievais] chamavam de lectio<br />

divina, poderia fornecer resultados transformadores de vida”. 10<br />

Que o estudo dessa exposição do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong> nos conduza<br />

não só à reflexão sobre a revelação do Verbo de Deus, do<br />

conhecimento de Deus e do advento do Espírito Santo, mas também<br />

8 Barbara Pitkin, “Calvin as a Commentator on John”, p. 181.<br />

9 Para um resumo do método hermenêutico de <strong>João</strong> Calvino, cf. Franklin Ferreira, Servos<br />

de Deus (São José dos Campos: Fiel, 2014), p.214-229.<br />

10 Timothy F. George, “Introdução geral”, em: Gerald Bray (org.), <strong>Comentário</strong> Bíblico da<br />

Reforma: Gálatas e Efésios (São Paulo: Cultura Cristã, 2013), p. 15, 28.


Prefácio à edição em português • 17<br />

faça crescer nossa fé naquele que é “o pão da vida” (Jo 6.35), “a luz<br />

do mundo” (Jo 8.12), “a porta” para o rebanho (Jo 10.7), “o bom pastor”<br />

(Jo 10.11), “a ressurreição e a vida” (Jo 11.25), “o caminho, a<br />

verdade e a vida” (Jo 14.6), a videira verdadeira (Jo 15.1), Jesus Cristo,<br />

“o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29).<br />

Franklin Ferreira<br />

Diretor do Seminário Martin Bucer, São José dos Campos-SP


Epístola Dedicatória<br />

Aos honorabilíssimos e ilustríssimos senhores,<br />

Os síndicos e concílio de genebra,<br />

<strong>João</strong> Calvino<br />

Suplica do Senhor o<br />

Espírito de sabedoria e<br />

determinação,<br />

e uma próspera administração.<br />

Nunca deixo de meditar naquela declaração de Cristo, na qual ele<br />

dá valor extremamente elevado ao dever de receber os estranhos com<br />

bondade como se fosse a si mesmo, sem deixar de levar em conta, ao<br />

mesmo tempo, a extraordinária honra que lhe aprouve conferir-vos<br />

ao tornar vossa cidade um lugar de refúgio, não de um ou de poucos<br />

indivíduos, mas de sua Igreja em geral. Entre os países pagãos, a hospitalidade<br />

sempre foi recomendada e considerada uma das virtudes<br />

capitais; e, consequentemente, quando eles intentavam denunciar alguém<br />

como bárbaro e selvagem da mais vil categoria, os tais eram<br />

chamados ἀξένους, ou – o que significa a mesma coisa – não hospitaleiro.<br />

Muito mais sublime louvor, porém, se vos deve porque, nestes<br />

tempos turbulentos e desditosos, o Senhor vos designou para serem<br />

as pessoas cujo apoio e proteção devem ser solicitados pelos piedosos<br />

e inofensivos homens banidos e expulsos de seus países de origem<br />

pela ímpia e cruel tirania do Anticristo. E não apenas isso, mas ele<br />

também dedicou ao seu nome uma sagrada habitação entre vós, onde<br />

seu culto possa ser preservado em pureza.


20 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Quem quer que tente, no mais leve grau, publicamente invadir ou<br />

secretamente tirar de vós essas duas vantagens, não só laboram em<br />

privar vossa cidade de seus magníficos ornamentos, mas miram sua<br />

existência e segurança com os olhos da inveja. Pois ainda que os ofícios<br />

da bondade que são aqui exercidos para Cristo e seus membros<br />

dispersos excitem o ladrar de homens perversos contra vós, ainda deveis<br />

mirar a vós mesmos como sobejamente compensados por esta<br />

única consideração: que os anjos vos bendizem lá do céu e os filhos<br />

de Deus vos enaltecem desde os quatro cantos do mundo; de modo<br />

que possais ousadamente desprezar as imundas calúnias dos homens<br />

que não podem ser refreados nem pelo escrúpulo da consciência nem<br />

pela vergonha de derramarem ultrajantes insultos, mais sobre Deus<br />

mesmo do que sobre vós – mais ainda: quando desejam caluniar-vos,<br />

começam por blasfemar a Deus. Ainda que nessa mesma ocasião 1 se<br />

acenda a ira de muitos contra vós, contudo não tendes razão para<br />

sentir-vos amedrontados diante de algum perigo que, porventura, provenha<br />

dele, enquanto a fúria deles for neutralizada pela proteção de<br />

sua mão, que tem prometido que será o fiel guardião daquelas cidades<br />

nas quais a doutrina de seu evangelho permanece firme, e nas quais<br />

os homens piedosos, a quem o mundo não pode suportar, devem ser<br />

permitidos habitar. É desnecessário dizer que certamente enfrentareis<br />

dificuldades na tentativa de conciliarem essa classe de inimigos; pois<br />

não há homem que vos seja hostil por amor do evangelho, que não desejaria<br />

ver-vos arruinados e oprimidos por outras razões. Admitindo,<br />

porém, que não haja outra razão pela qual sois odiados pelos inimigos<br />

gratuitos da sã doutrina, senão porque vos veem decididos a defendê-<br />

-la, não obstante, não levando em conta seus estratagemas e ameaças,<br />

deveis resolutamente defender estes dois inexpugnáveis baluartes: a<br />

pureza do culto cristão e a santa solicitude de proteger a Igreja que<br />

Cristo colocou sob a proteção de vossas asas.<br />

Assim, no que diz respeito às calúnias lançadas contra nós pelos<br />

1 (“Ascavoir que l’Evngile, et ceux qui y veulent adherer, ont yci leur retraitte”) – (“isto é,<br />

que o evangelho, e aqueles que desejam permanecer nele, tenha seu refúgio aqui”).


Epístola Dedicatória • 21<br />

rixentos assalariados do papa – que apostatamos da Igreja porque nos<br />

esquivamos da sujeição à Sé de Roma –, gostaria que estivesse em<br />

nosso poder a liberdade de protestar com inabalável confiança, diante<br />

de Deus e dos anjos, que estamos a uma distância incomensurável<br />

daquele charco pútrido, ao ponto de podermos fácil e prontamente<br />

defender-nos do crime que costumam lançar em nosso débito. De fato,<br />

vangloriam-se no título Igreja Católica, ainda que em parte alguma da<br />

doutrina da Lei e do <strong>Evangelho</strong> se lhes permita permanecer livres de<br />

vergonhosas corrupções, ainda que tenham profanado todo o culto<br />

de Deus pela imundícia de suas superstições, e não tem escrúpulo de<br />

vilipendiar todas as ordenanças de Deus por meio de suas invenções.<br />

Mais ainda, tão Católica – tão universal – é a massa de erros pelos<br />

quais têm subvertido toda a religião, que seria suficiente para destruir<br />

e consumir a Igreja centenas de vezes. Portanto, nunca poderemos<br />

enaltecer, em termos tão sublimes quanto a questão merece, a infinita<br />

benevolência de Deus, pela qual temos miraculosamente escapado<br />

desse destrutivo torvelinho e fixado bem a âncora de nossa fé na sólida<br />

e eterna verdade de Deus. 2 E, assim, confio que este <strong>Comentário</strong><br />

será uma prova suficiente de que o papado nada mais é senão um<br />

monstro formado a partir do inúmeros enganos de Satanás, e que o<br />

que eles chamam igreja é muito mais confuso que Babilônia.<br />

Francamente, reconheço – o que infelizmente é verdade! – que<br />

não estamos suficientemente longe desse poço imundo, cujo contágio<br />

é terrivelmente amplo. O Anticristo se queixa de que temos nos<br />

afastado demais dele; nós, 3 porém, somos compelidos a lamentar que<br />

muito das poluições que têm infectado o mundo inteiro se insinua em<br />

nosso meio. Deus graciosamente nos 4 restaurou à imaculada pureza<br />

da doutrina, da religião em seu estado primitivo, do culto divino sem<br />

adulteração e da fiel administração dos Sacramentos, como nos fo-<br />

2 A versão francesa acrescenta: “à ce qu’elle ne flottast plus parmi les traditions des<br />

hommes.” – “para que não mais seja perturbada pelas tradições dos homens.”<br />

3 “Nous qui taschons de remettre l’estat de l’Eglise à son entier.” – “nossa luta é para<br />

restaurar a Igreja a sua condição original.”<br />

4 “Dieu par sa grace nous a restitué.”


22 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

ram transmitidos por Cristo. Mas a causa principal que nos impede de<br />

atingir essa reforma da conduta e da vida, a qual deveria existir, é que<br />

muitas pessoas, sentindo saudades daquela desenfreada licenciosidade<br />

que impeliu os papistas a oporem-se ao mandamento de Deus, não<br />

conseguem suportar o jugo de Cristo. Por conseguinte, quando nossos<br />

inimigos, a fim de incitar contra nós infundada aversão entre os ignorantes,<br />

suscitam irritantes protestos, dizendo que temos despedaçado<br />

toda a disciplina, sua calúnia é sobejamente refutada (ainda quando<br />

permanecemos em silêncio) por esta única consideração: que em nosso<br />

próprio país não temos peleja mais árdua do que nossa excessiva<br />

severidade – pelo menos assim considerado por muitas pessoas. Visto,<br />

porém, que vós sois as testemunhas mais competentes, em meu<br />

favor e de meus colegas, de que não somos tão rígidos e severos senão<br />

quando o dever nos compele a fazê-lo e quando livremente nos submetemos<br />

à decisão de vossa consciência a nosso respeito. Portanto,<br />

de um lado, facilmente percebereis, de relance, o atrevimento singularmente<br />

ridículo de nossos inimigos sobre este assunto.<br />

Agora, passo a vos dizer umas poucas palavras sobre mim mesmo<br />

como indivíduo. Embora eu espere que meus numerosos escritos<br />

sejam uma prova suficiente ao mundo de como tenho instruído esta<br />

Igreja, contudo imagino que seria de grande importância para mim<br />

redigir um registro especial sobre este com o vosso nome; pois é<br />

muitíssimo necessário que o tipo de doutrina que reconheceis ser ensinada<br />

por mim deveria ser exibida aos olhos de todos. 5 Embora em<br />

todos os livros que tenho até agora publicado, eu tenha me esforçado<br />

para que vós e o povo que ora encontra-se sob a vossa responsabilidade<br />

extraiam deles grandes benefícios, mesmo após minha morte,<br />

e mesmo que seja muitíssimo inconveniente que a doutrina que tem<br />

emanado de vossa cidade para as nações vizinhas produza frutos com<br />

muita abundância, porém seja negligenciada no lugar de sua origem,<br />

não obstante espere que este <strong>Comentário</strong>, que vos é especialmente<br />

5 A cópia francesa acrescenta: “afin qu’on n’en juge point à l’aventure, ni a credit.” – “para<br />

que não a julguemos à revelia, ou sem verificação.”


Epístola Dedicatória • 23<br />

dedicado, exerça um sólido domínio em vossa memória. Para isso, oro<br />

a Deus para que os grave tão profundamente com seu próprio dedo em<br />

vosso coração, que ele nunca venha a ser obliterado pelas estratégias<br />

de Satanás. Pois a ele pertence coroar meu labor com êxito, porque<br />

até aqui ele me deu coragem para desejar nada mais senão fielmente<br />

vigiar sobre a segurança vossa e de vosso povo. Além do mais, como<br />

espontaneamente reconheço diante do mundo que mui longe estou<br />

de possuir a cuidadosa diligência e outras virtudes que a grandeza<br />

e a excelência do ofício requer de um bom pastor, e como continuamente<br />

lamento diante de Deus os numerosos pecados que obstruem<br />

meu progresso, assim me aventuro declarar que não estou destituído<br />

de honestidade e sinceridade na realização de meu dever. E, se nesse<br />

ínterim, os homens perversos não cessarem de me aborrecer, visto ser<br />

meu dever – por meio de boa conduta – refutar suas calúnias, assim<br />

vos caberá refrear suas calúnias pelo exercício daquela sagrada autoridade<br />

com que fostes investidos. Por isso, meus ilustríssimos e mui<br />

honrados senhores, recomendo-vos à proteção de nosso bom Deus,<br />

rogando-lhe que vos dê sempre o espírito de prudência e virtude para<br />

governardes com justiça e tornardes próspera vossa administração,<br />

de modo que seu Nome seja com isso glorificado, e que o resultado<br />

seja venturoso para todos vós. 6<br />

Genebra, 1 de janeiro de 1553<br />

6 Na sentença final foi seguida a forma mais ampliada da versão francesa


Análise do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

O significado da palavra grega εὐαγγέλιον (evangelho) é bem<br />

conhecido. 1 Na Escritura, ela denota (κατ᾿ ἐξοχὴν), a alegre e<br />

prazerosa mensagem da graça a nós exibida em Cristo, a fim de<br />

instruir-nos a desprezar o mundo com suas passageiras riquezas e<br />

prazeres, a desejar essa bênção de todo nosso coração e abraçá-<br />

-la quando ela nos for oferecida. É natural em todos nós aquela<br />

conduta que percebemos em homens irreligiosos que cultivam<br />

extravagantes prazeres nos fúteis deleites do mundo, ainda que<br />

sejam poucos, de modo que alguns se deixem afetar pelos encantos<br />

das bênçãos espirituais. Com o propósito de corrigir esse erro,<br />

Deus expressamente dá o título de evangelho à mensagem que ele<br />

ordena seja proclamada concernente a Cristo. Desse modo, ele<br />

nos lembra que em nenhuma outra parte se pode obter a genuína<br />

e sólida felicidade, e que nele temos tudo de que necessitamos<br />

para a perfeição de uma vida feliz.<br />

1 “On scait assez que le mot d’Evangile signifie entre les Grees toutes bonnes nouvelles.”<br />

– “É bem notório que a palavra evangelho denota, em grego, qualquer gênero de boasnovas.”


26 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Há quem considere a palavra evangelho como se estendendo a<br />

todas as graciosas promessas de Deus que se acham espalhadas inclusive<br />

na Lei e nos Profetas. Tampouco se pode negar que, sempre<br />

que Deus declara que se deixará reconciliar com os homens e perdoará<br />

seus pecados, ao mesmo tempo exibe Cristo cujo peculiar ofício,<br />

onde quer que ele se manifeste, é jorrar por toda parte os raios de<br />

sua alegria. Reconheço, pois, que os [antigos] pais foram participantes<br />

juntamente conosco do mesmo evangelho, no que diz respeito à fé na<br />

salvação gratuita. Visto, porém, que a declaração ordinária do Espírito<br />

Santo nas Escrituras é que o evangelho foi proclamado pela primeira<br />

vez quando Cristo veio, abracemos também essa forma de expressão,<br />

bem como conservemos a definição de evangelho que tenho formulado,<br />

a saber: é a solene publicação da graça revelada em Cristo. Por<br />

isso o evangelho é chamado o poder de Deus para a salvação de todo<br />

aquele que crê [Rm 1.16], porque nele Deus exibe sua justiça. Ele é também<br />

chamado embaixada por meio da qual Deus reconcilia consigo os<br />

homens [2Co 5.20]; e, visto que Cristo é o penhor da misericórdia de<br />

Deus e de seu paternal amor para conosco, assim ele é, de uma maneira<br />

peculiar, o tema do evangelho.<br />

Por isso, ele veio para que as histórias que narram que Cristo se<br />

manifestou na carne, morreu, ressuscitou dentre os mortos e, por fim,<br />

foi assunto ao céu tivessem peculiarmente o mérito do título evangelho.<br />

Pois ainda que, por razões já expressas, esta palavra signifique<br />

o Novo Testamento, contudo o título que denota a totalidade, pela<br />

prática geral, representa aquela parte dele que declara que Cristo se<br />

nos manifestou na carne, morrendo e ressuscitando dentre os mortos.<br />

Mas, como a mera história não seria suficiente, e de fato ela seria de<br />

nenhuma valia para a salvação, o evangelista não relata simplesmente<br />

que Cristo nasceu, morreu e venceu a morte, mas também explica com<br />

que propósito ele nasceu, morreu e ressuscitou, bem como qual o benefício<br />

que recebemos desses fatos.<br />

Não obstante, existe também esta diferença entre os <strong>Evangelho</strong>s:<br />

que os outros três são mais copiosos em sua narrativa da vida e morte


Análise do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong> • 27<br />

de Cristo, e que <strong>João</strong> se delonga mais amplamente na doutrina, por meio<br />

da qual se manifesta o ofício de Cristo, associado ao poder de sua morte<br />

e ressurreição. Na verdade, eles não omitem a menção de que Cristo<br />

veio para trazer salvação ao mundo, fazer expiação pelos pecados do<br />

mundo por meio do sacrifício de sua morte, e, em suma, realizar tudo<br />

aquilo que era requerido do Mediador (como <strong>João</strong> também dedica boa<br />

porção de sua obra a detalhes históricos). A doutrina, porém, que nos<br />

salienta o poder e o benefício da vinda de Cristo é muito mais nitidamente<br />

exibida por ele do que pelos outros. E como todos eles tinham o<br />

mesmo objetivo em vista, ou, seja, destacar a pessoa de Cristo, os três<br />

primeiros salientam seu corpo, se nos é permitido usar esta expressão,<br />

enquanto que <strong>João</strong> salienta sua alma. Por isso, tenho o costume de dizer<br />

que este <strong>Evangelho</strong> é uma chave que abre a porta para a compreensão<br />

dos outros, pois quem quiser entender o poder de Cristo, como aqui<br />

notavelmente retratado, prontamente desejará ler com proveito o que<br />

os outros relatam acerca do Redentor que se manifestou.<br />

Crê-se que <strong>João</strong> escreveu primordialmente com a intenção de<br />

defender a Deidade de Cristo, em oposição às ímpias blasfêmias de<br />

Ebion e Cerinto. Isso é asseverado por Jerônimo em concordância com<br />

a opinião geral dos antigos. Mas, qualquer que tenha sido seu motivo<br />

para escrever naquele tempo, não pode haver dúvida de que Deus<br />

pretendia que sua Igreja recebesse um benefício muito mais elevado.<br />

Ele, pois, prescreveu aos quatro evangelistas o que deveriam escrever,<br />

de tal modo que, embora cada um deles tivesse sua própria parte designada,<br />

o todo poderia ser coligido em um só corpo; e é nosso dever<br />

agora combinar os quatro por meio de uma relação mútua, de modo<br />

que nos permitamos ser instruídos por todos eles, como por uma só<br />

boca. Quanto ao fato de <strong>João</strong> ser o quarto na ordem, isso foi feito em<br />

decorrência do tempo em que ele escreveu. Mas, ao lê-los, uma ordem<br />

diferente deve ser mais vantajosa, a saber, que, quando quisermos ler<br />

em Mateus e nos outros que Cristo nos foi dado pelo Pai, devemos<br />

antes de tudo ler em <strong>João</strong> o propósito para o qual ele se manifestou.


Capítulo 1<br />

[1.1-5]<br />

No princípio era a Palavra, a Palavra estava com Deus e a Palavra<br />

era Deus. Ela estava no princípio com Deus. Todas as coisas<br />

foram feitas por meio dela; e sem ela nada do que foi feito se<br />

fez. Nela estava a vida; e a vida era a luz dos homens. E a luz<br />

resplandece nas trevas; e as trevas não a abrangeram.<br />

1. No princípio era a Palavra. Neste prólogo, o apóstolo declara<br />

a eterna Deidade de Cristo, para informar-nos que ele é o eterno<br />

Deus manifestado em carne [1Tm 3.16]. Seu objetivo é demonstrar que<br />

a restauração do gênero humano deveria ser efetuada pelo Filho de<br />

Deus; porque, através de seu poder, todas as coisas foram criadas, e<br />

é tão somente ele que sopra vida e energia a todas as criaturas, para<br />

que permaneçam em sua condição. E, conquanto no próprio homem<br />

ele exibisse a maior prova de seu poder e graça, mesmo depois da<br />

queda e fracasso de Adão, ele nunca deixou de mostrar liberalidade e<br />

bondade em favor de sua posteridade. O conhecimento desta doutrina<br />

é de primordial importância, pois uma vez que, longe de Deus, jamais<br />

buscaríamos vida e salvação, como poderia nossa fé descansar em<br />

Cristo se não conhecíamos a infalibilidade desta doutrina? Nestas palavras,<br />

pois, o Evangelista nos assegura que não renunciamos ao único<br />

e eterno Deus quando cremos em Cristo, e também que a vida é agora<br />

restaurada aos mortos através da bondade daquele que foi a fonte e a<br />

causa da vida, quando a natureza ainda não estava corrompida.


30 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

O Evangelista denomina o Filho de Deus de a Palavra [Sermo]<br />

simplesmente porque, primeiro, ele é a eterna Sabedoria e Vontade<br />

de Deus; e, segundo, porque ele é a imagem expressa do propósito<br />

divino. Pois assim como no homem se denomina a linguagem como<br />

sendo “a expressão dos pensamentos”, então não é fora de propósito<br />

aplicar isso a Deus e dizer que ele nos é expresso por meio de sua Palavra.<br />

Os outros significados da palavra grega λόγος logos (logos) não<br />

são muito apropriados. Para os gregos, certamente significa definição,<br />

razão e cálculo; contudo, me recuso a filosofar além da compreensão<br />

de minha fé. E descobrimos que o Espírito de Deus está tão longe de<br />

aprovar tais sutilezas que, ao balbuciar conosco, seu próprio silêncio<br />

proclama quão sóbrio deve ser nosso acesso intelectual em mistérios<br />

tão profundos.<br />

Além do mais, visto que Deus, ao criar o mundo, revelou-se através<br />

da Palavra, anteriormente ele a conservou oculta nos recessos de<br />

seu Ser. Por conseguinte, a Palavra exerce uma dupla relação, a saber:<br />

para com Deus e para com os homens. Serveto, certo canalha arrogante<br />

pertencente a Espanha, imagina que a Palavra eterna só veio<br />

à existência quando ela entrou em ação na criação do mundo, como<br />

se antes disso seu poder não fosse notório através de sua operação<br />

externa! Aqui, o ensino do Evangelista é totalmente diferente, pois ele<br />

não atribui à Palavra um princípio temporal, senão que, ao dizer que<br />

ela era desde o princípio, tal fato transcende a todos os tempos.<br />

Conheço muito bem o ladrar desse cão e os sofismas outrora suscitados<br />

pelos arianos, a saber, que no princípio Deus criou céu e terra<br />

[Gn 1.1], os quais, contudo, não são eternos, uma vez que princípio indica<br />

sequência e não eternidade. O Evangelista, porém, antecipa essa<br />

calamidade, quando ele diz<br />

E a Palavra estava com Deus. Se porventura a Palavra tivera<br />

um princípio temporal, então seria necessário que descobrissem em<br />

Deus alguma sequência de tempo. E, aliás, com esta expressão, <strong>João</strong><br />

pretendia distingui-lo de todas as criaturas. Porquanto muitas perguntas<br />

poderiam surgir: Onde realmente estava essa Palavra? Como


Capítulo 1 • 31<br />

ela exercia seu poder? Qual era sua natureza? De que forma poderia<br />

ser ela conhecida? Por isso, o Evangelista nega que Cristo fosse parte<br />

do mundo e das coisas criadas, já que ele sempre estivera unido<br />

com Deus antes que o mundo viesse à existência. Ora, aqueles que<br />

tomam princípio como parte da criação do céu e da terra não estariam<br />

reduzindo Cristo à ordem comum do mundo, do qual ele é aqui<br />

expressamente excluído? Ao fazer isso, não só insultam horrivelmente<br />

ao Filho de Deus, mas igualmente ao seu eterno Pai, a quem privam de<br />

sua Sabedoria. Se, porventura, for errado retratar a Deus isoladamente<br />

de sua Sabedoria, devemos igualmente confessar que a origem da<br />

Palavra não deve ser buscada em algum outro lugar senão na eterna<br />

Sabedoria de Deus.<br />

Serveto objeta que a Palavra não pode ser concebida antes de<br />

Deus ser, por meio de Moisés, representado como que falando. Como<br />

se ela, porque não havia ainda publicamente se manifestado, não subsistisse<br />

em Deus! Como se ela não possuísse existência abscôndita<br />

antes que começasse a revelar-se exteriormente! O Evangelista, porém,<br />

destrói toda fenda que possibilitasse a passagem de disparates<br />

tão absurdos, quando afirma incondicionalmente que a Palavra estava<br />

com Deus. Com isso, ele nos afasta para longe de toda temporalidade.<br />

Aqueles que inferem do tempo imperfeito do verbo 1 um estado<br />

contínuo, infelizmente se colocam numa posição incômoda. Afirmam<br />

que a forma verbal era [erat] expressa melhor uma série contínua do<br />

que se <strong>João</strong> dissesse tem sido [fuit]. Tais questões, porém, demandam<br />

razões mais convincentes. O que tenho exposto deve ser suficiente, a<br />

saber: que o Evangelista nos envia ao eterno santuário de Deus e nos<br />

ensina que a Palavra estava, por assim dizer, oculta ali antes que se<br />

revelasse na estrutura externa do mundo. Portanto, Agostinho está<br />

certo quando nos lembra que o princípio mencionado aqui não teve<br />

começo, pois ainda que o Pai seja anterior à sua Sabedoria quanto à<br />

ordem, não obstante os que inventam algum ápice de tempo para essa<br />

1 “Pource qu’il est dit Estoit, et non pas N’esté.” – “Porquanto se diz Era, e não tem sido.”


32 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

precedência à sua Sabedoria o despojam de sua glória. E este é o eterno<br />

Filho [generatio] que, infinitamente anterior à fundação do mundo,<br />

esteve oculto em Deus (se me é lícito expressar nesses termos), e que,<br />

depois de ser obscuramente delineado aos patriarcas sob o regime da<br />

lei por muitos anos sucessivos, finalmente foi plenamente manifestado<br />

na carne.<br />

Sinto-me surpreso que as versões latinas tenham usado verbum<br />

para ὁ λόγος, pois esse termo é, antes, a tradução de τὸ ῥη̑μα. Mas,<br />

mesmo que admitamos que essa seja uma possibilidade, não se pode<br />

negar que Sermo [Palavra] teria sido muito mais apropriado. Isso revela<br />

a bárbara tirania daqueles teólogos da Sorbone 2 que hostilizaram<br />

Erasmo com tanta fúria apenas porque ele mudou uma única palavra<br />

para melhor.<br />

E a Palavra estava com Deus. Já deixamos expresso que o Filho<br />

de Deus está, portanto, colocado acima do mundo e de todas<br />

as criaturas e antes de todos os tempos. Ao mesmo tempo, porém,<br />

essa expressão lhe atribui uma hypostasis [pessoa] distinta da do Pai.<br />

Pois teria sido absurdo se o Evangelista dissesse que a Palavra estivera<br />

sempre com Deus, se não tivesse, em Deus, certa subsistência<br />

propriamente sua. Portanto, esta passagem serve para refutar o erro<br />

de Sabélio, pois ela demonstra que o Filho é distinto do Pai. Afirmei<br />

anteriormente que mistérios tão profundos demandam pensamento<br />

sóbrio. Os escritores da Igreja primitiva, porém, eram justificados<br />

quando, em função de não poderem de outra forma defender a verdadeira<br />

e pura doutrina contra os ambíguos sofismas dos hereges,<br />

eram obrigados a cunhar certos termos que, não obstante, nada mais<br />

expressavam senão o que está ensinado nas Escrituras em outros<br />

termos. Disseram que há três Hypostasis ou Pessoas na essência una<br />

e simples de Deus. A palavra ὑπόστασις (hypostasis) tem esse sentido<br />

em Hebreus 1, a qual corresponde à palavra latina Substantia<br />

(substância), segundo o uso que dela faz Hilário. Denominaram τὰ<br />

2 “Les Theologiens Sorbonistes.”


Capítulo 1 • 33<br />

πρόσωπα ou Pessoas, propriedades [proprietates] distintivas em Deus<br />

que se apresentam às nossas mentes. Como diz Gregório Nazianzeno:<br />

“Não posso imaginar Uma isoladamente das Três [Pessoas] concomitantemente<br />

resplandecendo a meu redor.” 3<br />

E a Palavra era Deus. Para que não pairasse dúvida alguma no<br />

tocante à divina essência de Cristo, o Evangelista claramente afirma<br />

que ele é Deus. Ora, já que Deus é um só, segue-se que Cristo é da mesma<br />

essência com o Pai e, não obstante, de alguma forma distinto [do<br />

Pai]. Mas já discorremos sobre a segunda sentença. Ário se revelou em<br />

extremo perverso ao considerar a unidade de essência. Com o fim de<br />

evitar ser forçado a confessar a eterna Deidade de Cristo, ele apregoava<br />

que Deus era alguma espécie de Deidade imaginária. 4 Mas quando<br />

ouvimos que a Palavra era Deus, que direito ainda temos de questionar<br />

sua eterna essência?<br />

2. Ela estava no princípio com Deus. Para penetrar mais profundamente<br />

em nossas mentes o que já havia dito, o Evangelista condensa<br />

as duas sentenças precedentes num breve epílogo: a Palavra sempre<br />

foi e sempre esteve com Deus – para que o leitor compreenda que esse<br />

princípio existia antes que todo e qualquer tempo viesse à existência.<br />

3. Todas as coisas foram feitas por meio dela. Havendo declarado<br />

que a Palavra é Deus e havendo proclamado sua divina essência, ele<br />

prossegue provando sua Deidade à luz de suas obras. E é neste conhecimento<br />

prático que devemos especialmente ser treinados. Porquanto a<br />

mera atribuição do título Deus a Cristo, nos deixaria indiferentes, a menos<br />

que nossa fé sentisse que ele é, na verdade, Deus. Mas ele declara<br />

corretamente sobre o Filho de Deus o que justamente se harmoniza com<br />

a sua pessoa. Às vezes, Paulo, de fato, simplesmente diz que “todas as<br />

coisas pertencem a Deus” [Rm 11.36]. Mas, quando o Filho é comparado<br />

3 O leitor encontrará os pontos de vista de nosso autor, acerca da Santíssima Trindade,<br />

mui plenamente ilustrados nas Institutas da Religião Cristã, Livro I, Capítulo XIII, e ficará<br />

perplexo se admirar atentamente a agudeza ou a sobriedade do juízo por meio do qual<br />

toda a discussão é entremeada.<br />

4 “Que c’estoit je ne scay quel Dieu qui avoit esté creé, et eu commencement.” – “Que havia<br />

não que Deus que foi criado e que teve começo.”


34 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

com o Pai, geralmente é distinguido por essa característica. Consequentemente,<br />

o que se emprega aqui é a maneira ordinária de se expressar<br />

– o Pai fez todas as coisas por intermédio do Filho, e todas as coisas<br />

existem para Deus através do Filho. Ora, como eu já disse, o plano do<br />

Evangelista é mostrar que a Palavra de Deus se manifestou pela atividade<br />

externa, imediatamente a partir da criação do mundo. Pois havendo<br />

sido anteriormente incompreensível em sua essência, ela foi publicamente<br />

conhecida pelo efeito de seu poder. Até mesmo alguns filósofos<br />

descreveram a Deus como o arquiteto do mundo, de modo a estabelecê-<br />

-lo como aquela inteligência que é subjacente à edificação dessa obra.<br />

Nisso estão certos, pois concordam com a Escritura; mas, como logo se<br />

perdem em meditações pueris, não há razão por que devamos desejar<br />

seu testemunho como algo de tanto valor. Ao contrário, devemos ficar<br />

satisfeitos com este oráculo celestial, sabendo que ele diz muito mais<br />

do que nossas mentes podem conceber.<br />

E sem ela nada do que foi feito se fez. Embora este versículo<br />

tenha sido interpretado de diversas maneiras, não hesito em interpretá-lo<br />

como constituído de uma só ideia – nada do que foi feito se fez.<br />

Quase todos os manuscritos gregos (ou, no mínimo, aqueles que desfrutam<br />

de maior autoridade) concordam neste ponto. Além do mais, o<br />

sentido indubitavelmente o exige. Aqueles que separam a frase se fez<br />

da sentença anterior, de modo a conectá-la à sentença seguinte, forçam<br />

o sentido, ficando assim: o que se fez era a vida nela [a Palavra],<br />

ou, seja: “viveu” ou “foi sustentada com vida”. 5 Mas não conseguem<br />

provar que essa forma de se expressar é sempre aplicada às criaturas.<br />

Agostinho, cujo método é platonista extremado, devotou-se à<br />

5 A diferença de redações está totalmente na pontuação, e a disputa é se as palavras ὃ<br />

γέγονεν formarão a conclusão do terceiro ou o começo do quarto versículo. Calvino<br />

expressa sua concorrência com a maioria dos manuscritos, os quais conectam as<br />

palavras em questão com o terceiro versículo, assim: Καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ<br />

ἓν ὃ γέγονεν, e sem ele não se fez coisa alguma (ou, mais literalmente, bem como mais<br />

enfaticamente), e sem ele nenhuma coisa foi feita – a qual foi feita. Outros manuscritos,<br />

certamente de bem pouca autoridade, as conectam com o quarto versículo: Καὶ χωρὶς<br />

αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἓν Ο γέγονεν ἐν αὐτῷ ζωὴ ᾖν. E sem ele nenhuma coisa foi feita.<br />

O que foi feito teve nele a vida. A preferência de nosso autor repousa em bases que<br />

dificilmente podem ser questionadas.


Capítulo 1 • 35<br />

conceituação desta ideia: antes de Deus haver construído o mundo,<br />

ele delineara em sua mente a forma de toda a obra; e já que a criação<br />

do mundo fora ordenada em Cristo, a vida dessas coisas ainda<br />

não existia nele. Veremos mais adiante quão longe tal ideia estava do<br />

pensamento do Evangelista. Agora, volto à primeira sentença. Não há<br />

nenhuma redundância defeituosa (περιττολογία) como parece haver.<br />

Pois visto que Satanás aplica toda sua energia para tirar qualquer coisa<br />

de Cristo, o Evangelista propôs declarar expressamente que nada,<br />

absolutamente, se deve excetuar daquelas coisas que foram criadas.<br />

4. Nela estava a vida. Até aqui, ele nos ensinou que todas as coisas<br />

foram criadas pela Palavra de Deus. Agora, da mesma forma, atribui-<br />

-lhe a preservação do que fora criado, como se pretendesse dizer que,<br />

na criação do mundo, seu poder não apareceu meramente de súbito<br />

para, em seguida, desaparecer, mas que o mesmo se faz visível na<br />

preservação da ordem fixa e estável da natureza – exatamente como<br />

em Hebreus 1.3 está expresso que Deus sustenta todas as coisas pela<br />

Palavra ou comando de seu poder. Além do mais, essa vida pode ser<br />

ou uma referência mais extensa às criaturas inanimadas, as quais têm<br />

sua vida própria, ainda que lhes falte emoção, ou uma referência exclusivamente<br />

à vida animada. Pouco importa a escolha que o leitor faça,<br />

pois a ideia simplesmente consiste em que a Palavra de Deus não foi<br />

apenas a fonte de vida para todas as criaturas, tanto que as que ainda<br />

não existiam vieram à existência, mas que seu poder gerador de vida<br />

as fez permanecer em seu estado. Pois se sua inspiração não houvera<br />

mantido vivo o mundo, o que quer que florescesse, sem dúvida alguma,<br />

murcharia imediatamente ou se reduziria a nada. Em suma, o que<br />

Paulo atribui a Deus, que nele temos nosso ser, nos movemos e vivemos<br />

[At 17.28], <strong>João</strong> declara ser efetuado pela agência graciosa da Palavra.<br />

É Deus, pois, quem nos outorga a vida; mas ele o faz pela instrumentalidade<br />

da Palavra eterna.<br />

A vida era a luz dos homens. Deliberadamente, desconsidero<br />

qualquer outra interpretação que não esteja em harmonia com a intenção<br />

do Evangelista. Creio ser esta uma referência àquela parte da vida


36 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

na qual os homens excedem às demais criaturas animadas. É como se<br />

ele quisesse dizer que a vida outorgada aos homens não era a vida em<br />

geral, mas a vida associada à luz da razão. Além do mais, ele separa os<br />

homens dos demais seres, visto que somos cônscios do poder de Deus<br />

através do sentimento existente em nós mais do que através da visão<br />

ótica dele à distância. Daí, em Atos 17.27, Paulo nos dizer para não<br />

buscarmos a Deus como se ele estivesse longe, já que ele se revela em<br />

nosso mundo interior. E assim, quando o Evangelista pôs em evidência<br />

uma consideração geral da graça de Cristo, procurando persuadir os<br />

homens a prestarem maior atenção, ele põe diante deles o que lhes<br />

fora outorgado de forma específica – a saber, que não foram criados à<br />

semelhança dos seres brutos, senão que, ao serem dotados de razão,<br />

foram postos numa categoria muito mais sublime. Além do mais, visto<br />

que Deus eficazmente ilumina suas mentes com sua própria luz, segue-<br />

-se que foram criados para que pudessem saber que Deus é o Autor de<br />

uma benção tão singular. E, visto que essa luz nos flui da Palavra, como<br />

sua fonte, ela nos é como um espelho no qual podemos ver claramente<br />

o divino poder da Palavra.<br />

5. E a luz resplandece nas trevas. Pode-se suscitar uma objeção,<br />

dizendo que os homens são, em muitas passagens da Escritura,<br />

chamados de cegos, e que tal cegueira, à qual se acham condenados,<br />

é sobejamente notória, porquanto fracassam miseravelmente<br />

em todo seu raciocínio. Pois, donde procedem os infindáveis labirintos<br />

de erros no mundo, senão do fato de os homens serem<br />

guiados tão somente por seu próprio entendimento às ilusões e<br />

falsidades? Não obstante, se porventura nenhuma luz é visível aos<br />

homens, conclui-se que este testemunho do Evangelista acerca da<br />

divindade de Cristo fica destruído. Porque, como já disse, o terceiro<br />

passo consiste em que, na vida humana, há algo muito mais excelente<br />

do que mero movimento e respiração. O Evangelista antecipa<br />

este problema prontamente nos advertindo que a luz outorgada<br />

aos homens no princípio não pode ser avaliada em seu presente<br />

estado, visto que, nesta natureza arruinada e degenerada, a luz se


Capítulo 1 • 37<br />

converteu em trevas. E, no entanto, ele nega que a luz da razão<br />

esteja completamente extinta, porquanto na densa escuridão da<br />

mente humana brilham ainda algumas centelhas desse esplendor.<br />

Agora, o leitor poderá perceber a existência de duas ideias nessa<br />

frase. O Evangelista diz que os homens são agora muito diferentes<br />

daquela natureza íntegra com a qual foram dotados no princípio.<br />

Suas mentes, que teriam sido radiantes em todos os aspectos, se<br />

acham mergulhadas nas sombras de desditosa cegueira. E assim,<br />

nessa corrupção da natureza, a glória de Cristo está como que sombreada.<br />

Em contrapartida, porém, o Evangelista afirma que em meio<br />

às trevas ficaram ainda certos traços que de algum modo revelam<br />

o divino poder de Cristo. O Evangelista mostra, pois, que a mente<br />

humana está completamente cega, de tal modo que ela pode ser<br />

francamente considerada como que submersa em trevas. Pois ele<br />

poderia ter usado um meio termo e dizer que a luz era miserável ou<br />

sombria, mas não: ele quis expressar muito mais claramente quão<br />

depravada é nossa condição desde a queda do primeiro homem.<br />

Sua afirmação de que a luz brilha nas trevas não pretendia absolutamente<br />

exaltar a natureza corrupta. Ao contrário, pretendia despir<br />

a ignorância de toda e qualquer justificativa.<br />

E as trevas não a circunscreveram. Ainda que o Filho de Deus<br />

tenha sempre convocado os homens a si, pela instrumentalidade<br />

dessa pobre luz que ainda restou em nós, o Evangelista assevera que<br />

ela era ineficaz, porquanto, “vendo, não veem”. Porque, depois que<br />

o homem foi alienado de Deus, tal foi a ignorância que se apoderou<br />

de sua mente, que toda e qualquer luz que porventura nela restou é<br />

extinta e inútil. A experiência também comprova tal fato diariamente.<br />

Pois mesmo aqueles que não foram ainda regenerados pelo Espírito<br />

de Deus exercem certa razão, de modo que somos claramente instruídos<br />

de que o homem foi criado não só para respirar, mas que<br />

possui também entendimento. Não obstante, guiados por sua razão,<br />

o homem não alcança ou não consegue ter acesso a Deus e, assim,<br />

toda sua inteligência não prima direção alguma senão rumo à vaida-


38 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

de, donde se deduz que não há qualquer esperança para a salvação<br />

dos homens, a menos que Deus lhe proveja um novo recurso. Pois<br />

ainda que o Filho de Deus derrame sua luz sobre eles, encontram-se<br />

tão entorpecidos que sua obtusidade não lhes permite compreender<br />

a fonte dessa luz; obcecados por fascinantes e perversas fantasias,<br />

acabam na demência.<br />

Há duas partes primordiais nessa luz que ainda permanece na<br />

natureza corrompida. Alguma semente de religião está plantada em<br />

todos; existe também aquela distinção entre o bem e o mal que está<br />

esculpida em suas consciências. Afinal, qual é o usufruto disso, senão<br />

que a religião produz mil e uma superstições monstruosas, e a<br />

consciência corrompe todo o juízo, confundindo vício com virtude?<br />

Em suma, a razão natural jamais guiará os homens a Cristo. O fato de<br />

serem eles dotados de sabedoria para dirigir suas vidas e de se formarem<br />

em filosofia e ciências se reduz e resulta em nada.<br />

Além do mais, devemos ter em mente que o Evangelista está falando<br />

unicamente dos dons naturais, e não está tratando ainda da<br />

graça da regeneração. Porque há no Filho de Deus dois poderes distintos.<br />

O primeiro se manifesta na arquitetura do mundo e na ordem<br />

da natureza. No uso do segundo, ele renova e restaura a natureza<br />

caída. Ele é a eterna Palavra de Deus; e, por conseguinte, por meio<br />

dele, o mundo foi criado. Pela ação de seu poder, todas as coisas<br />

conservam a vida que uma vez receberam; de uma forma toda especial,<br />

o homem foi adornado com o dom singular do entendimento. E,<br />

conquanto, com sua queda, tenha perdido a luz do entendimento, ele<br />

ainda vê e entende, já que o que ele naturalmente possui da graça<br />

do Filho de Deus não lhe foi totalmente destruído. Visto, porém, que,<br />

mediante seu embotamento e perversidade, ele empana a luz que<br />

ainda lhe resta, cumpre ao Filho de Deus assumir uma nova função, a<br />

saber, a de Mediador, e assim renova o homem perdido através do Espírito<br />

de regeneração. Portanto, põe o carro adiante dos bois quem<br />

interpreta a luz que o Evangelista menciona como sendo o evangelho<br />

e a proclamação da salvação.


Capítulo 1 • 39<br />

[1.6-13]<br />

Houve um homem enviado por Deus, cujo nome era <strong>João</strong>. Este<br />

veio para dar testemunho, 6 a fim de testificar da luz, para que<br />

todos cressem através dele. Ele não era essa luz, mas veio para<br />

testificar a respeito da luz. A verdadeira luz era aquela que ilumina<br />

todo homem que entra no mundo. Ele estava no mundo, e o<br />

mundo foi feito por intermédio dele, e o mundo não o conheceu.<br />

Ele veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas a<br />

quantos o receberam, a esses lhes deu o poder de serem feitos<br />

filhos de Deus, a saber, os que creem em seu nome; os quais<br />

nasceram não do sangue, 7 nem da vontade da carne, nem da<br />

vontade do homem, mas de Deus.<br />

6. Houve um homem. O Evangelista começa, então, a examinar a<br />

forma pela qual a Palavra de Deus se manifestou em carne. E para que<br />

ninguém nutrisse dúvida de que Cristo é o eterno Filho de Deus, ele<br />

declara que Cristo foi publicamente proclamado por um arauto – <strong>João</strong><br />

Batista. Pois Cristo não se contentou em simplesmente manifestar-se<br />

aos homens, mas quis também fazer-se conhecido mediante o testemunho<br />

e pregação de <strong>João</strong>. Melhor ainda, Deus o Pai enviou essa<br />

testemunha adiante de seu Cristo para que todos prontamente recebessem<br />

a salvação por ele oferecida.<br />

À primeira vista, porém, parece absurdo que outro testificasse de<br />

Cristo, como se ele necessitasse de tal expediente, uma vez que ele<br />

declara não buscar o testemunho dos homens. A resposta é simples<br />

e óbvia. Esse testemunho foi ordenado não por causa de Cristo, mas<br />

por nossa causa. Se, porventura, alguém objetar dizendo que o testemunho<br />

humano é demasiadamente frágil para comprovar que Cristo<br />

é o Filho de Deus, a solução é também fácil: <strong>João</strong> Batista não é citado<br />

como uma testemunha particular, mas como alguém que, tendo recebido<br />

a autoridade divina, veio a público mais no papel de um anjo<br />

6 “Pour (porter) tesmoignage.” – “para dar testemunho.”<br />

7 “Nais de sangs, ou, de sang.” – nascido dos sangues, ou, do sangue.”


40 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

do que de um homem. Portanto, ele não é exaltado por suas próprias<br />

habilidades, mas justamente por ser o embaixador de Deus. Tampouco<br />

se contradiz o testemunho pessoal de Cristo na pregação do evangelho<br />

a ele confiada, pois a razão de ser [raison d’être] <strong>João</strong> um arauto<br />

tinha por finalidade atrair a atenção dos ouvintes para o ensino e milagres<br />

de Cristo.<br />

Enviado por Deus. Ele não menciona a vocação de <strong>João</strong>, mas simplesmente<br />

a menciona de relance. Para as pessoas que se promovem e<br />

se gabam de que são enviadas por Deus, essa garantia não é suficiente.<br />

O Evangelista, porém, tencionando dizer mais adiante sobre esse<br />

testemunho, pensou que uma só palavra seria por ora suficiente – ele<br />

recebera de Deus sua comissão. Veremos mais adiante como <strong>João</strong> declara<br />

contundentemente que Deus é o autor de seu ministério. O que<br />

temos de compreender agora é (como já mencionei) o seguinte: o que<br />

se diz de <strong>João</strong> Batista aqui é exigido de todos os mestres da Igreja:<br />

devem clamar a Deus, a fim de que a autoridade de ensinar não tenha<br />

nenhuma outra base senão unicamente Deus.<br />

Cujo nome era <strong>João</strong>. Ele expressa o nome, não só para identificar<br />

o homem, mas porque o significado do nome estava associado à sua<br />

pessoa. Pois é indubitável que o Senhor estava se referindo ao ofício<br />

para o qual fora ele destinado, quando, através de seu anjo, o Senhor<br />

ordenou que ele fosse chamado <strong>João</strong>, a fim que, desse fato, todos reconhecessem<br />

que ele era o arauto da graça divina. 8 Pois ainda que 9<br />

[Jehohannan] possa ser tomado como passivo, e, portanto, se referia<br />

a ele pessoalmente, ou, seja, que <strong>João</strong> faria a vontade de Deus, não<br />

obstante, sem qualquer hesitação, aplico-o aos frutos que dele seriam<br />

colhidos. 10<br />

7. Ele veio para dar testemunho. Ele relanceia de forma breve<br />

o propósito da vocação de <strong>João</strong> –preparar a Igreja para a chegada de<br />

Cristo. Pois, ao convidar todos a virem a Cristo, ele mostra com muita<br />

8 “Herant et ambassade de la grace de Dieu.” – “Arauto e embaixador da graça de Deus.”<br />

9 “Le nom de Jean, qui signifie Grace.” – “O nome <strong>João</strong>, que significa Graça.”<br />

10 Para o significado do nome <strong>João</strong>, derivado do hebraico Jehohannan, o leitor pode<br />

consultar de nosso autor, <strong>Comentário</strong> sobre a Harmonia dos Três <strong>Evangelho</strong>s, <strong>Vol</strong>. 1, p. 15.


Capítulo 1 • 41<br />

clareza que não viera por sua própria causa. Portanto, <strong>João</strong> Batista carecia<br />

muito pouco da enfática recomendação do Evangelista, dizendo<br />

que ele não era a luz, no caso de um imoderado esplendor a ele atribuído<br />

viesse a ofuscar a glória de Cristo.<br />

8. Ele não era a luz. <strong>João</strong> estava tão longe de depender de recomendação,<br />

que o Evangelista formula esta advertência para que seu<br />

excessivo fulgor não obscurecesse a glória de Cristo. Pois alguns se<br />

apegaram a ele de uma forma tão extremada, que chegaram ao ponto<br />

de negligenciar a Cristo. Justamente como a pessoa que, fascinada pela<br />

luz da aurora, não se digna de olhar para o sol. Agora, podemos examinar<br />

que sentido o Evangelista atribui à palavra luz. Todos os santos<br />

são “luz no Senhor” [Ef 5.8] no sentido em que, iluminados pelo Espírito<br />

Santo, não só são vistos, mas também, por meio de seu exemplo,<br />

dirigem outros no caminho da salvação. Os apóstolos são chamados<br />

luz [Mt 5.14] porque são os castiçais especiais do evangelho, dispersando<br />

as trevas do mundo. Mas aqui o Evangelista está discutindo a<br />

única e eterna fonte de iluminação, como demonstra imediatamente a<br />

seguir de maneira sobejamente clara.<br />

9. A verdadeira luz. O intuito do Evangelista não era contrastar a<br />

verdadeira luz com a falsa; ele queria distinguir Cristo de todas as demais<br />

pessoas, para que alguém não chegasse à conclusão de que a luz<br />

que ele possuía era a luz comum que possuem os anjos e os homens.<br />

A diferença consiste em que a luz celestial e a terrena procedem de<br />

um único esplendor. Cristo, porém, é a luz, irradiando-a de si mesmo e<br />

através de si mesmo, e com isso lançando seus fulgurantes raios sobre<br />

o mundo inteiro. A fonte ou causa de seu esplendor não se encontra<br />

em qualquer outro lugar. É por isso que o Evangelista o chama a verdadeira<br />

luz, uma vez que sua natureza é intrinsecamente a plena luz.<br />

A qual ilumina a todo homem. O Evangelista põe esse fator em<br />

relevo a fim de aprendermos que Cristo é a luz a partir do efeito que<br />

cada um de nós sente em si próprio. Ele poderia ter adicionado mais<br />

sutileza em seu argumento, dizendo: uma vez que Cristo é a luz eterna,<br />

ele possui um esplendor inerente, não derivado. Mas, em vez disso,


42 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

ele põe diante de nós aquela experiência que é comum a todos. Pois<br />

já que Cristo faz a todos nós participantes de seu esplendor, é preciso<br />

reconhecer que se deve atribuir exclusivamente a ele a dignidade de<br />

ser chamado luz.<br />

Quanto ao mais, este versículo é comumente explicado de duas<br />

formas. Alguns limitam o termo universal, todo homem, aos que,<br />

regenerados pelo Espírito de Deus, se tornam participantes da luz vivificante.<br />

Agostinho lança mão do símile de um professor, dizendo: Se<br />

sua escola é a única na cidade, será chamado o professor de todos,<br />

mesmo que muitos não frequentem sua escola. Portanto, essa ala considera<br />

esta frase em termos relativos: todos são iluminados por Cristo,<br />

visto que ninguém pode gabar-se de ter obtido a luz da vida de outra<br />

forma, senão mediante sua graça. Mas, como o Evangelista menciona<br />

em termos gerais: “ilumina a todo homem que vem ao mundo”, prefiro<br />

o outro significado, a saber: que os raios dessa luz são projetados<br />

sobre toda a raça humana, como eu disse supra. Pois sabemos que os<br />

homens tem esta única qualidade acima de todos os animais, a saber:<br />

são dotados de razão e inteligência e levam a distinção entre o certo<br />

e o errado esculpida em suas consciências. Portanto, não há homem<br />

em quem não penetre alguma noção da luz eterna. Visto, porém, que<br />

os fanáticos avidamente se apoderam deste versículo e o torcem, fazendo-o<br />

afirmar que a graça da iluminação é oferecida a todos sem<br />

distinção, tenhamos em nossa memória que ele está simplesmente se<br />

referindo à luz comum da natureza, algo muito mais inferior que a fé.<br />

Pois ninguém jamais ultrapassará os umbrais do reino de Deus pela<br />

habilidade e perspicuidade de sua própria mente; o Espírito de Deus<br />

é o único que abre os portões celestiais para seus eleitos. Além do<br />

mais, devemos lembrar que aquela luz da razão que Deus comunicou<br />

aos homens se tornou tão entenebrecida pelo pecado que, em meio às<br />

densas trevas, obscena ignorância e abismos de erros, ainda há algumas<br />

poucas centelhas que não foram completamente extintas.<br />

10. Ele estava no mundo. O Evangelista acusa os homens de<br />

ingratidão, com base no fato de que eram, por assim dizer, volunta-


Capítulo 1 • 43<br />

riamente cegos; tão profundamente cegos que não sabiam qual era a<br />

causa da luz de que desfrutavam. E essa é a terrível realidade de todos<br />

os tempos. Cristo revelou seu poder por toda parte, mesmo antes de<br />

manifestar-se em carne. Portanto, esses efeitos diários devem corrigir<br />

a morosidade humana, pois o que poderia ser mais irracional do<br />

que tirar água de um ribeiro sem nunca ponderar sobre o manancial<br />

donde ela emana? Consequentemente, o mundo não tem como alegar<br />

ignorância como legítima justificativa de não conhecer a Cristo antes<br />

que ele se manifestasse em carne. Pois tal ignorância é oriunda da<br />

frouxidão e de um gênero de embotamento naqueles que sempre o<br />

tiveram ao alcance de suas faculdades. Eis a suma de tudo isso: Cristo<br />

nunca esteve tão ausente do mundo que os homens não pudessem ser<br />

despertados por seus raios e poder olhar para ele. À luz desse fato,<br />

deduz-se que eles são culpados.<br />

11. Ele veio para os seus. Aqui o Evangelista comprova amplamente<br />

a deplorável perversidade e depravação do homem, sua impiedade<br />

mais que maldita, a saber: quando o Filho de Deus se revelou visivelmente<br />

em carne (e isso aos judeus, a quem Deus havia separado para<br />

si dentre as nações para que o mesmo fosse sua propriedade peculiar),<br />

ele não foi reconhecido nem recebido. Este versículo é também<br />

explicado de diferentes formas. Há quem pense que o Evangelista está<br />

falando de todo o mundo em geral, pois não há sequer uma partícula<br />

do mundo que o Filho de Deus não possa com justiça reivindicar como<br />

lhe pertencendo. Portanto, segundo esse ponto de vista, este deve ser<br />

o significado: quando Cristo veio à terra, ele não entrou num país estrangeiro,<br />

porquanto toda a raça humana lhe pertencia por herança.<br />

Quanto a mim, porém, aprovo mais a opinião dos que afirmam que<br />

a referência aqui é exclusivamente aos judeus. O Evangelista salienta<br />

a ingratidão humana com uma comparação implícita. O Filho de<br />

Deus havia escolhido uma habitação para si numa nação específica.<br />

Ao fazer-se presente ali, foi rejeitado. E isso revela claramente quão<br />

viciosa é a cegueira humana. Ao fazer essa afirmação, o único objetivo<br />

do Evangelista era simplesmente remover a ofensa que a incredulida-


44 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

de dos judeus poderia colocar no caminho de muitas pessoas. Pois<br />

quem o reconheceria como Redentor do mundo quando era desprezado<br />

e rejeitado pela mesma nação à qual havia sido especificamente<br />

prometido? Eis a razão por que vemos Paulo se digladiando tão ardorosamente<br />

com esse mesmo problema.<br />

Além do mais, a ênfase é posta tanto no verbo quanto no pronome:<br />

ele veio. O Evangelista diz que o Filho de Deus veio para aquele<br />

lugar onde estivera anteriormente. Ele, pois, tem em mente um novo e<br />

extraordinário modo de presença por meio do qual o Filho de Deus se<br />

manifestou para que os homens o vissem bem de perto. Ao dizer, para<br />

os seus, o Evangelista está comparando os judeus com outras nações;<br />

pois foi mediante um privilégio singular que haviam sido eleitos para<br />

comporem a família de Deus. Cristo, pois, primeiro ofereceu-se a eles<br />

como se fossem sua própria família e pertencessem ao seu reino por<br />

direito legítimo. A censura de Deus em Isaías 1.3 é do mesmo teor: “O<br />

boi conhece seu possuidor, e o jumento, a manjedoura de seu dono;<br />

mas Israel não tem conhecimento, meu povo não entende.” Pois ainda<br />

que exerça domínio sobre toda a terra, seu senhorio é exercido<br />

especificamente sobre Israel, a quem ele reuniu, por assim dizer, num<br />

rebanho santo.<br />

12. Mas a todos quantos o receberam. No caso de alguém ser<br />

influenciado pelo escândalo posto pelos judeus, desprezando e<br />

rejeitando a Cristo, o Evangelista eleva até o céu a pessoa que piedosamente<br />

crê em Cristo. Ele diz que o resultado de sua fé é a glória de<br />

serem reconhecidos como filhos de Deus. O termo universal, “tantos<br />

quantos”, sugere uma antítese, ou seja: os judeus foram dominados<br />

por uma cega jactância, 11 como se Deus fosse somente deles. E, assim,<br />

o Evangelista declara que sua sorte se reverteu, pois os gentios<br />

preencheram a vaga deixada vacante pelos judeus deserdados. É precisamente<br />

como se ele houvesse transferido os direitos de adoção<br />

para pessoas estranhas. Isso confere com o dito de Paulo: a queda de<br />

11 “D’une vanterie aveuglee; c’est à dire, n’entendans pas ce qu’ils disoyent.” – “por uma<br />

cega arrogância; isto é, deixando de entender o que diziam.”


Capítulo 1 • 45<br />

uma nação significou vida para o mundo inteiro [Rm 11.12]. Pois ao<br />

ser o evangelho, por assim dizer, expulso deles, o mesmo começava<br />

a ser difundido por toda a vastidão do mundo. E, assim, eles se viram<br />

despojados da gloriosa graça divina. Sua impiedade, porém, não trouxe<br />

a Cristo nenhum dano, porquanto ele assentou as bases do trono<br />

de seu reino por toda parte e, sem qualquer discriminação, chamou à<br />

esperança da salvação todas as pessoas que anteriormente pareciam<br />

rejeitadas por Deus.<br />

Deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus. Aqui, tomo o<br />

termo ἐξουσία no sentido de um direito ou reivindicação, e seria melhor<br />

traduzi-lo assim, para que se refute a ficção papista. Sua ímpia<br />

deturpação deste versículo consiste em que nos foi dada a liberdade<br />

de escolha, privilégio este do qual somos capazes de nos valer. Encontrar<br />

livre-arbítrio nessas palavras, como fazem, é o mesmo que extrair<br />

fogo da água. À primeira vista, há certa justificativa para tal adulteração,<br />

pois o Evangelista não diz que Cristo os transforma em filhos de<br />

Deus, e sim lhes dá o poder de serem feitos filhos de Deus. Então deduzem<br />

que esta graça nos é meramente oferecida, e a capacidade para<br />

se fazer uso dela ou para rejeitá-la está em nós mesmos. O contexto,<br />

porém, pulveriza esse desprezível sofisma com uma só palavra, pois o<br />

Evangelista prossegue dizendo que são feitos filhos de Deus, não pela<br />

vontade da carne, mas por nascerem de Deus. Pois se a fé nos é dada<br />

para sermos regenerados e adotados como filhos de Deus, e se Deus<br />

sopra em nós a fé celestial, a graça da adoção que nos é oferecida por<br />

Cristo é obviamente não só em potencial, mas real, como eles dizem.<br />

Aliás, em grego ἐξουσία é tomada ocasionalmente por ἀξίωσις, ou ter<br />

direito, significado que se enquadra melhor nesta passagem.<br />

A perífrase da qual o Evangelista faz uso tende mais a enaltecer a<br />

excelência da graça do que se ele houvera dito numa só palavra que<br />

todos os crentes em Cristo são feitos por ele filhos de Deus. Pois aqui,<br />

ele está falando dos impuros e profanos que, condenados à desgraça<br />

perpétua, são arrancados das trevas da morte. Dessa maneira, Cristo<br />

revelou um extraordinário exemplo de sua graça, ao conferir essa hon-


46 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

ra a tais pessoas, de modo tal que de repente começaram a ser filhos<br />

de Deus. O Evangelista, com razão, enaltece a grandeza dessa benção.<br />

De forma semelhante, faz Paulo em Efésios 2.4. Mas, ainda que alguém<br />

prefira o sentido comum do termo, contudo, como o Evangelista o usa<br />

aqui, poder não é usado como alguma sorte de faculdade incompleta<br />

que não inclui o efeito pleno e completo. Ao contrário, significa que<br />

Cristo deu aos impuros e incircuncisos o que parecia ser impossível.<br />

Porque essa era uma mudança humanamente impossível, a saber: que<br />

Cristo, das pedras, gerasse filhos de Deus. Portanto, o poder é aquela<br />

idoneidade (ἱκανότης) de que Paulo fala em Colossenses 1.12, quando<br />

rende graças a Deus “que vos fez idôneos para participardes da herança<br />

dos santos na luz”.<br />

Que creem em seu nome. Ele indica resumidamente como Cristo<br />

deve ser recebido – a saber: através da fé nele. Implantados em Cristo<br />

mediante a fé, granjeamos o direito de adoção como filhos de Deus. E<br />

visto que ele é o unigênito Filho de Deus, esta honra de forma alguma<br />

nos pertence, exceto como membros de seu corpo. Uma vez mais, isso<br />

refuta a ficção acerca do ‘poder’. O Evangelista declara que esse poder<br />

é outorgado aos que já creem, e é indubitável que eles já são realmente<br />

filhos de Deus. Os que dizem que ao que crê só é concedido que se torne<br />

filho de Deus caso ele o queira, estão subestimando terrivelmente<br />

a fé. Substituem um resultado presente por uma capacidade indecisa.<br />

A contradição se sobressai, mesmo ao mais obtuso, à luz das próximas<br />

palavras. O Evangelista diz que aqueles que creem já nasceram<br />

de Deus. Não significa, pois, que lhes é oferecida apenas a faculdade de<br />

escolher, porquanto são premiados com a própria coisa oferecida. Embora<br />

em hebraico nome (), às vezes, seja usado em lugar de poder,<br />

aqui ele é usado em referência à pregação do evangelho. Pois cremos<br />

em Cristo quando ele nos é oferecido na pregação. Estou falando da<br />

forma usual pela qual o Senhor nos guia à fé. E é preciso observar isso<br />

com muita prudência, posto que muitos estultamente inventam para si<br />

uma fé confusa e sem qualquer discernimento do evangelho. Nenhum<br />

termo é mais trivial entre os papistas do que crer, porém é expresso


Capítulo 1 • 47<br />

sem aquele conhecimento de Cristo oriundo do ouvir o evangelho. Assim,<br />

Cristo se nos oferece através do evangelho, e nós o recebemos<br />

mediante a fé.<br />

13. Os quais não nasceram do sangue. 12 Endosso de bom grado<br />

a opinião dos que pensam que essa é uma referência indireta à presunção<br />

perversa dos judeus. A preeminência de sua linhagem estava<br />

sempre a bailar em seus lábios, como se fossem inerentemente santos<br />

só porque haviam nascido de uma descendência santa. Poderiam com<br />

toda razão orgulhar-se de que haviam descendido de Abraão, caso fossem<br />

filhos legítimos, e não filhos degenerados. Mas a glória da fé não<br />

reivindica absolutamente nada para a geração carnal, senão que declara<br />

que ela recebeu tudo o que é bom unicamente da graça divina. <strong>João</strong>,<br />

portanto, está afirmando que aqueles gentios imundos que creem em<br />

Cristo não são filhos de Deus por procederem do ventre, mas que começam<br />

a ser filhos de Deus quando são recriados por ele. Tudo indica<br />

que sangue foi expresso no plural – sangues – com o fim de realçar a<br />

ideia de uma longa sucessão de linhagem. Pois uma parte da vanglória<br />

dos judeus consistia no fato de poderem eles traçar sua descendência<br />

através de uma linhagem ininterrupta até chegar aos patriarcas.<br />

Nem da vontade da carne, nem da vontade do homem. Em minha<br />

opinião, ambas as frases tem o mesmo sentido. Porquanto não<br />

vejo por que carne deva ser considerada equivalente a mulher (como<br />

muitos supõem, entre os quais Agostinho). O Evangelista está simplesmente<br />

reiterando a mesma ideia com palavras diferentes, com o fim de<br />

imprimi-la e fixá-la mais indelevelmente em nossas mentes. E mesmo<br />

que ele estivesse pensando especificamente nos judeus, que se gloriavam<br />

na carne, pode-se depreender uma doutrina geral deste versículo,<br />

a saber: que somos reconhecidos como filhos de Deus, não por conta<br />

de nossa própria natureza, nem por nossa própria iniciativa, mas porque<br />

o Senhor nos gerou voluntariamente [Tg 1.18], ou seja, com base<br />

12 Aqui nosso autor, ou de propósito ou inadvertidamente, adotou a frase do sangue, em vez<br />

do que ele seguiu em sua versão do texto de sangues – a tradução literal, ainda que não<br />

idiomática, de ἐξ αἱμάτων, que por si só é de rara ocorrência, porém não destituída de<br />

autoridade clássica.


48 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

em seu amor imerecido. Daqui se deduz, primeiramente, que a fé não<br />

provém de nossa própria ação, senão que é fruto de regeneração espiritual.<br />

Pois o Evangelista afirma que ninguém pode crer, a não ser que<br />

seja gerado por Deus. Daqui se depreende que a fé é um dom celestial.<br />

Além do mais, a fé não é um mero e frio conhecimento, porquanto ninguém<br />

pode crer se porventura não for renovado pelo Espírito de Deus.<br />

É como se o Evangelista estivesse mudando a ordem das coisas,<br />

colocando a regeneração depois da fé, como se ela fosse o resultado da<br />

fé e, portanto, a seguisse. Minha resposta é que as duas ordens estão<br />

em perfeita harmonia: pela fé concebemos a semente incorruptível pela<br />

qual nascemos de novo para uma vida nova e de caráter divino; além<br />

disso, a fé propriamente dita é obra do Espírito Santo que não habita em<br />

nenhum outro além dos filhos de Deus. Portanto, em muitos aspectos<br />

a fé é uma parte de nossa regeneração, um ingresso no reino de Deus,<br />

para que ele pudesse incluir-nos no número de seus filhos. A iluminação<br />

de nossas mentes, efetuada pelo Espírito Santo, pertence à nossa<br />

renovação. Dessa forma, a fé flui da regeneração como sua fonte. Visto,<br />

porém, que, mediante essa mesma fé, recebemos a Cristo que nos santifica<br />

através de seu Espírito, ela é chamada o começo de nossa adoção.<br />

Naturalmente, pode-se tentar outra distinção que seja mais clara<br />

e mais completa. Quando o Senhor nos sopra a fé, ele nos regenera<br />

de uma forma íntima e secreta, a qual nos é desconhecida. Uma vez,<br />

porém, que a fé nos tenha sido outorgada, percebemos, por meio de<br />

um vivo senso da consciência, não só a graça da adoção, mas também<br />

a novidade de vida e outros dons do Espírito Santo. Pois já que, como<br />

já dissemos, a fé recebe a Cristo, em certo sentido ela nos leva a tomar<br />

posse de todas as suas bênçãos. E assim, no que tange à nossa atitude,<br />

só começamos a ser filhos de Deus depois de crermos. Porque, visto<br />

que a herança da vida eterna é o resultado da adoção, percebemos<br />

que o Evangelista atribui toda nossa salvação exclusivamente à graça<br />

de Cristo. E de fato, por mais que os homens se examinem, não encontrarão<br />

nada digno da condição de filhos de Deus além do que Cristo<br />

mesmo lhes outorgou.


Capítulo 1 • 49<br />

[1.14]<br />

E a Palavra se fez carne e habitou entre nós, cheia de graça e<br />

de verdade, e vimos sua glória, glória como do unigênito do Pai.<br />

14. E a Palavra se fez carne. Ele agora ensina a natureza da vinda<br />

de Cristo de que havia falado, a saber: que, vestido de nossa carne, ele<br />

se manifestou publicamente ao mundo. Embora o Evangelista toque<br />

apenas de leve no inefável mistério de o Filho de Deus assumir a natureza<br />

humana, tal brevidade é maravilhosamente clara. Aqui, alguns<br />

dementes se divertem de forma pueril, fazendo uso de alguns sofismas<br />

desprezíveis, tais como: diz-se que a Palavra se fez carne no sentido<br />

em que Deus enviou seu Filho ao mundo para tornar-se homem como<br />

um conceito mental – como se a Palavra fosse alguma espécie de ideia<br />

fantasmagórica. Mas já demonstramos que isso expressa uma genuína<br />

hypostasis ou existência pessoal na essência de Deus.<br />

O termo carne expressa a ideia com mais eficácia do que se o<br />

Evangelista houvesse dito que ele se fez homem. Ele queria mostrar a<br />

que estado vil e abjeto o Filho de Deus desceu, deixando a amplidão de<br />

sua glória celestial por nossa causa. Quando a Escritura fala do homem<br />

em seu caráter deprimente, ela o chama ‘carne’. Quão imensurável é<br />

a distância entre a glória espiritual da Palavra de Deus e a abominável<br />

vileza de nossa carne! Não obstante, o Filho de Deus se humilhou de<br />

forma tão extrema que tomou para si essa carne permeada de profunda<br />

miséria. Carne aqui não é usada para a natureza depravada (como<br />

em Paulo), mas para o homem mortal. Denota desdenhosamente sua<br />

natureza frágil e transitória: “toda carne é erva” [Is 40.6] e textos semelhantes<br />

[Sl 78.39].<br />

Ao mesmo tempo, porém, é preciso observar que aqui temos uma<br />

sinédoque retórica – a vileza abrange o homem por inteiro. 13 Portanto,<br />

Apolinário procedeu nesciamente ao imaginar que Cristo se vestiu<br />

com um corpo humano destituído de alma. Pois não é difícil deduzir, à<br />

13 “Car sous la chair et la partie inferieure tout l’homme est comprins.” – “pois sob a carne<br />

e a parte inferior está incluído o homem como um todo.”


50 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

luz de inumeráveis afirmações, que ele foi igualmente dotado com um<br />

corpo e uma alma. E as Escrituras, ao qualificar os homens de carne,<br />

nem por isso os apresentam destituídos de alma.<br />

O sentido pleno, portanto, é que a Palavra, gerada de Deus antes<br />

de todas as eras e habitando eternamente com o Pai, se fez homem.<br />

Temos aqui dois importantes artigos de fé. Primeiro: em Cristo as duas<br />

naturezas foram unidas numa só pessoa, de tal forma que um e o mesmo<br />

Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. <strong>Segundo</strong>: a unidade<br />

de sua pessoa não impede suas naturezas de permanecerem distintas,<br />

de tal modo que a divindade retém o que lhe é inerente, e a humanidade,<br />

de igual modo, mantém separadamente o que lhe pertence. E<br />

assim, quando Satanás usa os hereges para subverterem a sã teologia<br />

por meio desta ou daquela sandice, ele sempre introduz um ou outro<br />

destes dois erros: ou que Cristo foi o Filho de Deus e do homem de forma<br />

confusa, de modo que nem sua divindade permaneceu intacta nem<br />

foi ele circundado pela verdadeira natureza humana, ou que ele foi revestido<br />

de carne ao ponto de tornar-se um ser duplo, convertendo-se<br />

em duas pessoas distintas. Dessa forma, os nestorianos reconheciam<br />

expressamente cada natureza, porém imaginavam um Cristo que era<br />

Deus e outro que era homem. Êutico, por outro lado, reconhecia que<br />

um só Cristo é o Filho de Deus e do homem, porém o destituiu de<br />

ambas as naturezas, crendo que foram fundidas. Hoje, Serveto e os<br />

anabatistas inventaram um Cristo que é a confusa combinação das<br />

duas naturezas, como se ele fosse um homem divino. Certamente que<br />

ele declara verbalmente que Cristo é Deus, mas quando se lhe permite<br />

expressar suas insanas imaginações, descobre-se que a divindade foi<br />

temporariamente mudada em natureza humana, e agora a natureza humana<br />

foi uma vez mais absorvida na Deidade.<br />

As palavras do Evangelista foram expressas de forma a refutar<br />

ambas essas blasfêmias. Ao dizer que a Palavra se fez carne, podemos<br />

deduzir claramente a unidade de sua pessoa. Pois não faz sentido dizer<br />

que o que agora é homem seja outro diferente do que sempre foi<br />

Deus, uma vez que se diz que foi Deus quem se fez carne. Além disso,


Capítulo 1 • 51<br />

visto que ele atribui distintamente ao homem Cristo o título a Palavra,<br />

segue-se que, quando se fez homem, Cristo não cessou de ser o que<br />

sempre fora antes, e que nada foi mudado naquela eterna essência do<br />

Deus que assumiu a carne. Em suma, o Filho de Deus começou a ser<br />

homem de tal forma que ele é ainda aquela eterna Palavra que jamais<br />

teve princípio temporal.<br />

E habitou entre nós. Os que afirmam que a carne foi como que<br />

um lar para Cristo não conseguiram penetrar o pensamento do Evangelista.<br />

Ele não atribui a Cristo residência permanente entre nós, mas<br />

simplesmente diz que ele exerceu por algum tempo o papel de hóspede.<br />

Pois o termo que ele usa, ἐσκήνωσεν, é derivado de tabernáculo. 14<br />

Com isso, ele quer dizer simplesmente que Cristo desempenhou na<br />

terra seu ofício; em outros termos, ele não só surgiu por um instante,<br />

mas que viveu entre os homens enquanto cumpria a trajetória de seu<br />

ofício. É incerto se a frase “entre nós” se refere aos homens em geral<br />

ou a <strong>João</strong> e aos demais discípulos que foram testemunhas oculares<br />

dos eventos que ele narra. Prefiro a última interpretação, pois o Evangelista<br />

adiciona imediatamente:<br />

E vimos sua glória. Pois ainda que a glória de Cristo pudesse ser<br />

vista por todos, ela seria ignorada pela maioria por causa de sua cegueira;<br />

apenas uns poucos, cujos olhos o Espírito Santo abrira, viram<br />

essa manifestação da glória. A essência dela consiste em que Cristo<br />

foi reconhecido como um homem que exibia em si algo muito maior<br />

e mais sublime. Portanto, segue-se que a majestade de Deus não foi<br />

aniquilada, ainda que estivesse circunscrita pela carne. Ela ficou, de<br />

fato, oculta pela vil condição da carne, mas de modo a não impedir a<br />

manifestação de sua glória.<br />

Como do unigênito do Pai. Neste versículo, a expressão não denota<br />

uma comparação imprópria, mas, antes, uma prova genuína e forte.<br />

Precisamente como Paulo faz em Efésios 5.8, ao dizer: “Andai como<br />

filhos da luz”, querendo que realmente demos testemunho através de<br />

14 “Est deduit d’un mot qui signifie Tabernacles, c’est à dire, tentes et pavillons.” – “derivase<br />

de uma palavra que significa tabernáculos, isto é, tendas ou pavilhões.”


52 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

nossas obras do que na realidade somos – filhos da luz. Portanto, a<br />

intenção do Evangelista é que em Cristo tinha que ser vista uma glória<br />

compatível com o Filho de Deus, testemunhando sua Deidade de uma<br />

forma infalível. Assim, ele qualifica a Cristo em razão de ser ele, inerentemente,<br />

o Filho unigênito do Pai. É como se o Evangelista tivesse<br />

proposto colocá-lo acima dos homens e anjos, e reivindicar para ele,<br />

com exclusividade, aquilo que não pertence a nenhuma criatura.<br />

Cheio de graça e de verdade. Esta é uma confirmação da última<br />

sentença. A majestade de Cristo certamente manifestou-se também em<br />

outros aspectos, mas o Evangelista escolheu este exemplo em vez de<br />

outros com o fim de nos exercitar no conhecimento prático dele, em<br />

vez do conhecimento especulativo – fato este que requer observação<br />

mui criteriosa. Quando Cristo caminhou sobre as águas com seus pés<br />

enxutos [Mt 14.26; Mc 6.48; Jo 6.19]; quando ele pôs em fuga os demônios<br />

e revelou seu poder em outros milagres; então pôde realmente ser<br />

reconhecido como o Filho unigênito de Deus. O Evangelista, porém,<br />

põe no centro essa parte da prova de que a fé recebe o sazonado fruto<br />

de Cristo, declarando que ele é inquestionavelmente a inexaurível fonte<br />

da graça e da verdade. De Estevão também se diz que estava “cheio<br />

de graça” [At 7.55], contudo em outro sentido. Pois a plenitude da graça<br />

15 em Cristo é aquele bem do qual todos nós devemos beber, como<br />

sucintamente se dirá mais adiante de uma forma mais plena.<br />

Tal coisa pode ser expressa fazendo uso de uma expressão de<br />

linguagem, como sendo “a genuína graça”. Ou, segundo outra explicação:<br />

“Ele era cheio de graça, ou, seja, de verdade ou perfeição.” Visto,<br />

porém, que ele imediatamente repete a mesma forma de expressão,<br />

considero o significado como sendo o mesmo em ambos os passos.<br />

Logo a seguir, ele contrasta esta graça e verdade com a lei, o que entendo<br />

simplesmente no sentido em que Cristo devia ser reconhecido<br />

pelos apóstolos como Filho de Deus, já que ele tinha em si a plenitude<br />

15 Este deve ter sido um lapso da memória da parte de nosso autor; pois as frases aplicadas<br />

a Estêvão são diferentes, ainda que paralelas. Ele foi chamado um homem cheio de fé e do<br />

Espírito Santo [At 6.5], cheio de fé e de poder [At 6.8], e cheio do Espírito Santo [At 7.55].


Capítulo 1 • 53<br />

de todas as coisas pertencentes ao reino espiritual de Deus. Em suma,<br />

em todas as coisas ele realmente demonstrou ser o Redentor e Messias,<br />

que é o característico mais importante e pelo qual ele tem de ser<br />

distinguido de todos os demais.<br />

[1.15-18]<br />

<strong>João</strong> dá testemunho 16 acerca dele, e clamou, dizendo: Esse é<br />

aquele de quem eu disse: Aquele que vem após mim é preferido a<br />

mim, porque tem a preeminência sobre mim. 17 E todos nós temos<br />

recebido de sua plenitude, e graça sobre graça. Pois a lei foi dada<br />

por meio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus<br />

Cristo. Ninguém jamais viu a Deus; o próprio Filho unigênito,<br />

que está no seio do Pai, o tem declarado.<br />

15. <strong>João</strong> dá testemunho acerca dele. O Evangelista descreve<br />

agora a proclamação de <strong>João</strong>. Ao usar o tempo presente, testifica<br />

(μαρτυρεῖ), 18 ele denota uma atividade contínua. E essa proclamação<br />

deve de fato florescer continuamente, como se a voz de <strong>João</strong> estivesse<br />

soando continuamente nos ouvidos dos homens. Pela mesma<br />

razão, ele então usa a palavra clamar para indicar que a pregação<br />

de <strong>João</strong> não era absolutamente obscura nem envolvida por ambiguidades<br />

nem sussurrada entre uns poucos. 19 Ele proclamou a Cristo<br />

publicamente e em voz altissonante. A primeira sentença refere-se ao<br />

fato de <strong>João</strong> ter sido enviado por causa de Cristo, de modo que teria<br />

sido algo estranho fosse ele exaltado enquanto Cristo era humilhado.<br />

Esse é aquele de quem eu falei. Com essas palavras, ele quis<br />

dizer que desde o princípio seu propósito era fazer Cristo conhecido<br />

e que esse era o alvo de sua pregação; pois de nenhuma outra forma<br />

16 “Jean rend (ou, a rendu) tesmoignage de luy.” – “<strong>João</strong> dá (ou deu) testemunho dele.”<br />

17 “Plus excellent que moy, out, premier que moy.” – “mais excelente do que eu, ou, antes de mim.”<br />

18 “En usant du verbe du temps present, à scavoir, Rend tesmoignage, et non pas, Rendoit.”<br />

– “fazendo uso do verbo no tempo presente, dá testemunho, e não deu testemunho.”<br />

19 “Qu’il n’a point parlé entre ses dents, et communiqué la chose comme en secret à peu de<br />

gens.” – “que ele não falou por entre os dentes, e não comunicou a matéria como se ela<br />

fosse secreta, a umas poucas pessoas.”


54 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

poderia ele levar a bom termo sua missão como embaixador senão<br />

convocando seus discípulos a vir a Cristo.<br />

Aquele que vem após mim. De fato, <strong>João</strong> era uns meses mais<br />

velho que Cristo, porém não é de idade que ele está tratando agora.<br />

Como desempenhara o ofício de profeta por algum tempo antes que<br />

Cristo aparecesse em público, ele apareceu antes quanto ao tempo.<br />

Portanto, Cristo seguiu a <strong>João</strong> no tocante à sua manifestação pública.<br />

O que vem a seguir pode ser assim traduzido: “ele veio antes de<br />

mim, porque era meu superior” [primus meus]. O significado, porém,<br />

consiste em que Cristo era merecidamente preferível a <strong>João</strong> por ser<br />

ele mais excelente. Ele, portanto, rende-se a Cristo e, como diz o provérbio,<br />

põe a tocha em suas mãos. Como Cristo, porém, veio algum<br />

tempo depois, <strong>João</strong> nos adverte que o fato de ser ele preferido não<br />

deve constituir obstáculo para a dignidade de sua posição. Portanto,<br />

todos quantos excedem, quer nos dons divinos quer em algum grau de<br />

honra, devem permanecer em sua própria condição: abaixo de Cristo.<br />

16. E de sua plenitude. <strong>João</strong> agora se põe a pregar sobre o ofício<br />

de Cristo, o qual contém uma abundância tal de todas as bênçãos,<br />

que nenhuma parcela de salvação deve ser buscada em algum outro<br />

lugar. Aliás, em Deus está a fonte de vida, justiça, poder e sabedoria;<br />

essa fonte, porém, se acha oculta e inacessível a nós. Em Cristo, contudo,<br />

a riqueza de todas essas coisas se acha exposta diante de nós<br />

para que as busquemos nele. Ele espontaneamente está disposto a<br />

fazê-las jorrar sobre nós, se apenas lhe dermos espaço pela fé. Ele declara<br />

sucintamente que não devemos buscar qualquer benção fora de<br />

Cristo. Esta oração, contudo, compõe-se de várias frases. Na primeira,<br />

ele mostra que todos nós somos totalmente destituídos e vazios<br />

de bênçãos espirituais. Pois Cristo é rico para socorrer-nos em nossa<br />

pobreza, suportar nossos fracassos e saciar nossa fome e sede. Na<br />

segunda, ele nos adverte que, tão logo nos esquecemos de Cristo, passamos<br />

a buscar em vão um ínfimo bocado de bem, visto que aprouve a<br />

Deus que todo bem que existe seja encontrado unicamente nele. Portanto,<br />

encontraríamos ressequidos anjos e homens, vazios os céus,


Capítulo 1 • 55<br />

estéril a terra e destituídas de valor todas as coisas, caso queiramos<br />

participar dos dons divinos de outra forma que não seja através de<br />

Cristo. Na terceira, ele nos lembra que não carecemos de temer que<br />

nos falte alguma coisa, uma vez que extraímos tudo da plenitude de<br />

Cristo, a qual é, em todos os aspectos, tão perfeita, que descobrimos<br />

ser ela uma fonte inexaurível.<br />

<strong>João</strong> se classifica como parte do todo, não movido por modéstia,<br />

mas para realçar ainda mais que absolutamente ninguém é excetuado.<br />

É incerto se ele está falando de toda a raça humana em geral ou<br />

apenas daqueles que, desde que Cristo se manifestou em carne, têm<br />

participado mais plenamente de suas bênçãos. É verdade que todos<br />

os santos que viveram sob o regime da lei experimentaram dessa mesma<br />

plenitude; visto, porém, que <strong>João</strong> faz uma breve distinção entre<br />

as dispensações, é mais provável que ele esteja aqui exaltando aquela<br />

abundante riqueza de bênçãos que Cristo revelou quando veio ao<br />

mundo. Pois sabemos que, sob o regime da lei, eles tinham uma experiência<br />

muito escassa dos benefícios de Deus; e quando Cristo se<br />

revelou em carne, as bênçãos foram derramadas, por assim dizer, a<br />

mão cheia, à plena saciedade. Não que algum de nós desfrute de uma<br />

maior abundância da graça do Espírito do que Abraão, mas refiro-me<br />

à dispensação ordinária de Deus e de sua forma e método. Portanto,<br />

<strong>João</strong> Batista, fazendo o máximo para atrair seus discípulos a Cristo,<br />

declara que nele é oferecido a todos a abundância das bênçãos de que<br />

carecem. Mas não haveria absurdo algum se alguém preferisse forçar<br />

um significado adicional – ou, melhor, não é absolutamente contra o<br />

curso do argumento. Desde o princípio do mundo, todos os patriarcas<br />

extraíram de Cristo todos os dons que tiveram. Pois ainda que a lei fosse<br />

dada por intermédio de Moisés, contudo não foi dele que obtiveram<br />

a graça. Mas já deixei esclarecido qual é a explicação que adoto, a saber,<br />

que <strong>João</strong> aqui nos compara com os patriarcas para que, com isso,<br />

pusesse em evidência aquela proeminência que nos foi outorgada.<br />

E graça sobre graça. É bem notória a interpretação que Agostinho faz<br />

deste versículo: todas as bênçãos que nos são continuamente outorgadas


56 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

por Deus, e extensivamente a vida eterna, são não um ressarcimento por<br />

conta de nosso crédito, como se fossem salários por nós granjeados, mas<br />

provêm simplesmente da bondade de Deus que assim nos remunera com<br />

sua graça prévia e nos coroa com seus próprios dons. Essa é uma santa e<br />

sábia observação, mas que não se adéqua bem ao presente versículo. O<br />

significado se torna mais simples quando o leitor toma a preposição ἀντὶ<br />

comparativamente, como se <strong>João</strong> estivesse dizendo que todas as graças<br />

divinas sobre nós acumuladas fluem igualmente dessa fonte. Poderia também<br />

ser tomada como indicativo de propósito final – recebemos graça<br />

agora para que Deus finalmente conclua a obra de nossa salvação, a qual<br />

é a consolidação da graça. Mas concordo mais com a opinião dos que dizem<br />

que somos regados com aquelas graças que foram derramadas sobre<br />

Cristo. Pois o que recebemos de Cristo, ele não no-lo concede como sendo<br />

Deus, mas o Pai lhe comunica o que nos deve fluir como que através<br />

de um canal. Essa é a unção que foi liberalmente derramada sobre ele<br />

para que pudesse ungir a todos nós com ele. É também por essa razão<br />

que ele é chamado Cristo (o Ungido) e nós, cristãos.<br />

17. Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés. Ele fala em<br />

termos de antecipação com o fim de realçar uma objeção que provavelmente<br />

surgiria. Pois a figura de Moisés se tornou tão proeminente para<br />

os judeus, que dificilmente permitiriam qualquer coisa que diferisse<br />

dele. O Evangelista, pois, nos ensina quão humilde era o ministério de<br />

Moisés comparado com o domínio de Cristo. Tal comparação também<br />

põe nitidamente em relevo o poder de Cristo, pois o Evangelista adverte<br />

os judeus, que rendiam a Moisés a mais elevada deferência, que sua<br />

contribuição era extremamente escassa em comparação com a graça<br />

de Cristo. Pois teria sido uma grande decepção esperar da lei o que é<br />

possível obter somente pela mediação de Cristo.<br />

Mas é preciso que observemos a antítese no contraste que ele<br />

traça da lei com a graça e a verdade; porquanto ele insinua que a lei<br />

carecia de ambas. 20 Pois, em meu entendimento, a palavra verdade<br />

20 “Que la Loy n’a eu ne l’un ne l’autre.” – “que a lei não possuía nem uma nem a outra.”


Capítulo 1 • 57<br />

denota a firme e sólida estabilidade das coisas. Pela palavra graça, entendo<br />

o cumprimento espiritual daquelas coisas das quais a mera letra<br />

estava contida na lei. Ou ambas as palavras podem referir-se à mesma<br />

coisa à guisa de hipálage, uma figura de linguagem bem conhecida,<br />

como se ele dissesse que a graça, em que consiste a verdade da lei, foi<br />

afinal revelada em Cristo. Mas, como o sentido permanece o mesmo,<br />

não importa se o leitor as conecte ou as distinga. O certo é que o Evangelista<br />

tem em mente que, na lei, havia meramente esboçada a imagem<br />

das bênçãos espirituais, mas que, em Cristo, elas são exibidas em toda<br />

sua plenitude. Daí se conclui que, se o leitor separar a lei da pessoa<br />

de Cristo, nada ficará nela senão formas vazias. Essa é a razão por que<br />

Paulo diz em Colossenses 2.17, que na lei há “sombras das coisas futuras,<br />

mas o corpo é de Cristo”. Entretanto, não se deve supor que tudo<br />

o que na lei se exibia era falso; porquanto Cristo é a alma que vivifica o<br />

que de outra forma estaria morto na lei. Aqui, porém, estamos tratando<br />

de uma questão distinta – a validade da lei, em si mesma e à parte<br />

de Cristo. E o Evangelista nega que fosse encontrado nela qualquer<br />

substância antes que Cristo viesse. Além do mais, a verdade consiste<br />

no fato de que através de Cristo obtemos a graça que a lei não poderia<br />

dar. Portanto, tomo a palavra graça em termos gerais, como sendo<br />

tanto o perdão gratuito dos pecados quanto a renovação do coração.<br />

Pois quando o Evangelista, de forma sucinta, indica a diferença entre<br />

o Velho e o Novo Testamentos (o que é mais plenamente descrito em<br />

Jr 31.31), ele inclui em suas palavras tudo quanto se relacione com<br />

a justiça espiritual. Ora, há nisso duas partes: Deus, graciosamente,<br />

nos reconcilia consigo mesmo, não nos imputando nossos pecados; e<br />

também gravou sua lei em nossos corações e transforma o coração do<br />

homem, mediante a operação de seu Espírito, para a obediência à lei.<br />

Disto se faz evidente que a apresentação da lei será incorreta ou falsa,<br />

caso ela escravize o homem a si ou o embarace de ir a Cristo.<br />

18. Ninguém jamais viu a Deus. Esta adição confirma eficientemente<br />

o que acaba de ser exposto. Pois o conhecimento de Deus é a<br />

porta pela qual temos acesso ao usufruto de todas as bênçãos. Portan-


58 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

to, visto que Deus se nos revela exclusivamente por meio de Cristo,<br />

segue-se que temos de buscar todas as coisas só em Cristo. Esta sequência<br />

doutrinal tem de ser detidamente observada. Nada parece mais<br />

óbvio do que cada um de nós tomarmos o que Deus nos oferece segundo<br />

a medida de nossa fé. Mas apenas uns poucos compreendem que<br />

o recipiente da fé e do conhecimento de Deus tem de ser restaurado.<br />

Ao dizer que ninguém jamais viu a Deus, tal expressão não deve<br />

ser entendida como uma referência à visão externa dos olhos físicos.<br />

Ele quer dizer, em termos gerais, que, já que Deus habita em luz inacessível<br />

[1Tm 6.16], ele não pode ser conhecido senão em Cristo, que<br />

é sua imagem viva. Além do mais, geralmente se expõe este versículo<br />

assim: visto que a majestade nua de Deus está oculta em seu Ser interior,<br />

ele jamais poderia ser compreendido senão até onde se revela<br />

em Cristo. Por isso, foi somente em Cristo que Deus se deu a conhecer<br />

aos antigos patriarcas. Reconheço, porém, que o Evangelista está aqui<br />

estendendo a comparação já feita – quão superior é nosso estado ao<br />

dos patriarcas, no fato de que Deus, que subsistia então velado em sua<br />

glória secreta, agora, em certo sentido, se fez visível. Pois, indubitavelmente,<br />

quando Cristo é chamado “a imagem expressa de Deus” [Hb<br />

1.3], a referência é à benção especial do Novo Testamento. Assim também,<br />

neste versículo, o Evangelista aponta para algo novo e inusitado,<br />

quando diz que o unigênito, que estava no seio do Pai, nos revelou o<br />

que de outra forma continuaria oculto. Ele, pois, enaltece a revelação<br />

de Deus, comunicada a nós pelo evangelho, por meio do qual ele nos<br />

distingue dos patriarcas como sendo superiores a eles. Paulo trata disso<br />

de forma mais ampla em 2 Coríntios 3 e 4, declarando que não resta<br />

mais nenhum véu a interpor-se à lei, mas Deus é publicamente contemplado<br />

na face de Cristo.<br />

Se, porventura, parecer ridículo que os [antigos] pais fossem privados<br />

do conhecimento de Deus, quando seus profetas empunhavam<br />

suas tochas que ainda servem para nós hoje, respondo: o que nos é outorgado<br />

não é simples ou absolutamente negado a eles, mas (como se<br />

diz) o que se faz aqui é uma comparação entre o menor e o maior; pois


Capítulo 1 • 59<br />

o que eles tinham nada mais era senão pequenas fagulhas dessa luz<br />

de vida, cuja plena resplandecência nos ilumina hoje. Se, porventura,<br />

alguém objetar, dizendo que mesmo naquela época Deus era visto face<br />

a face [Gn 32.30; Dt 34.10], digo que essa visão não era absolutamente<br />

comparável à nossa; visto, porém, que Deus, naquele tempo, costumava<br />

revelar-se por meio de figuras e cerimônias 21 e, por assim dizer,<br />

de longe, àqueles a quem ele aparecia mais claramente diz-se que o<br />

viam face a face. Eles falavam relativamente de seu próprio tempo.<br />

Apenas viam a Deus envolto em muitos véus. A visão que Moisés teve<br />

no monte [Êx 33.23] foi única e excedeu a quase todos os demais; e, no<br />

entanto, Deus declara: “me verás pelas costas; minha face, porém, não<br />

se verá.” Com esta metáfora, Deus quis dizer que o tempo para a plena<br />

e clara revelação ainda não havia chegado. Devemos também notar<br />

que, quando mesmo os pais queriam ver a Deus, sempre volviam seus<br />

olhos para Cristo. Significa não apenas que contemplavam a Deus em<br />

sua Palavra eterna, mas também volviam decidida e sinceramente seus<br />

olhos para a prometida manifestação de Cristo. Por essa razão, Cristo<br />

dirá no capítulo 8.56: “Abraão viu meu dia.” E sucessão não significa<br />

contradição. Isso, portanto, é certo – que Deus, que anteriormente era<br />

invisível, agora se tornou visível em Cristo.<br />

Ao dizer que o Filho estava no seio do Pai, ele usa uma metáfora<br />

humana. Diz-se que os homens só admitem em seu seio aqueles a<br />

quem comunicam todos seus segredos. O seio é a sede do conselho.<br />

Ele, pois, ensina que o Filho conhecia os segredos mais secretos de<br />

seu Pai, para que soubéssemos que temos, por assim dizer, o seio de<br />

Deus plenamente aberto para nós no evangelho.<br />

[1.19-23]<br />

E este é 22 o testemunho de <strong>João</strong>, quando os judeus lhe enviaram<br />

de Jerusalém sacerdotes e levitas para lhe perguntarem:<br />

21 “Envelppemens de figures et cereminies.”<br />

22 “C’est ici aussi (ou, c’est donc ci) le tesmoignage.” – “este é também (ou, este é portanto)<br />

o testemunho.”


60 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Quem és tu? E ele confessou, e não negou; confessou: Eu não<br />

sou o Cristo. E perguntaram-lhe: E então? És tu Elias? E ele disse:<br />

Não sou. És tu profeta? 23 E ele respondeu: Não. Então lhe<br />

disseram: Quem és, para que demos resposta àqueles que nos<br />

enviaram? Que dizes de ti mesmo? Ele disse: Eu sou a voz daquele<br />

que clama no deserto: 24 Endireitai o caminho do Senhor,<br />

como disse o profeta Isaías.<br />

19. E este é o testemunho de <strong>João</strong>. Até aqui, o Evangelista relatou<br />

a costumeira pregação de <strong>João</strong> acerca de Cristo. Ele agora descreve<br />

um exemplo ainda mais extraordinário disso, o qual foi dado aos embaixadores<br />

dos sacerdotes para que levassem de volta a Jerusalém. E<br />

assim ele diz que <strong>João</strong> francamente confessou por que fora enviado<br />

por Deus. Mas podemos, antes, perguntar qual fora o propósito dos<br />

sacerdotes em abordá-lo. A suposição comum é que trouxeram a <strong>João</strong><br />

uma velada manifestação de aversão por Cristo em forma de honra.<br />

Naquele tempo, porém, Cristo ainda não era conhecido deles. Outros<br />

supõem que <strong>João</strong> lhes era persona grata, visto que o mesmo procedia<br />

da linhagem e ordem sacerdotal. Mas isso é também improvável; pois,<br />

por que voluntariamente inventariam um falso Cristo para si quando<br />

buscavam de Cristo toda prosperidade? Creio que foram movidos por<br />

outra causa. Pois desde muito tempo viviam sem profetas. <strong>João</strong> apareceu<br />

súbita e inesperadamente, e a mente de todos ficou excitada<br />

e esperançosa. Além disso, todos eles criam que a vinda do Messias<br />

estava próxima.<br />

Para que não parecessem descuidosos de seus deveres, negligenciando<br />

ou ocultando um assunto de tal envergadura, os sacerdotes<br />

perguntam se porventura <strong>João</strong> era o Messias. À primeira vista, pois,<br />

eles não agiam com malícia; mas, ao contrário, movidos de anseio pela<br />

redenção, queriam saber se <strong>João</strong> seria o Cristo, porque ele está começando<br />

a mudar a ordem costumeira da Igreja. E, no entanto, não<br />

23 “Es-tu Prophete, ou, le Prophete?” – “És tu um Profeta, ou, o Profeta?”<br />

24 “De celuy qui crie au desert.”


Capítulo 1 • 61<br />

nego que a ambição, o desejo de reter sua autoridade tivesse alguma<br />

influência sobre eles; mas com certeza nada estava mais distante de<br />

suas mentes que transferir a honra de Cristo para outro. Nem estavam<br />

eles agindo de maneira incompatível com seu ofício. Pois ainda que<br />

mantivessem as rédeas do governo da Igreja de Deus, tinham o dever<br />

de se precaver para que ninguém se insinuasse repentinamente, para<br />

que não se erguesse nenhum fundador de uma nova seita, a unidade<br />

da fé não fosse interrompida na Igreja e que ninguém introduzisse cerimônias<br />

novas e estranhas. É evidente, pois, que a linguagem de <strong>João</strong><br />

era comum e excitava a mente de todos. Tal coisa, porém, foi ordenada<br />

pela maravilhosa providência divina, a fim de que este testemunho fosse<br />

mais notavelmente completo.<br />

20. Confessou. Isto é, ele confessou francamente e sem qualquer<br />

evasiva ou hipocrisia. A forma verbal confessou significa, em termos<br />

gerais, que ele declarou o fato como era. O segundo exemplo de confessou<br />

é uma repetição para expressar a forma da confissão. Portanto,<br />

respondeu definitivamente que não era o Cristo.<br />

21. És tu Elias? Por que fizeram menção de Elias e não de Moisés?<br />

Porque aprenderam da profecia de Malaquias [4.5] que, quando<br />

o Messias se manifestasse, Elias seria como sua estrela matutina. Mas<br />

formularam tal pergunta com falsa pressuposição. Pois crendo, como<br />

criam, na transmigração das almas, imaginaram que quando o profeta<br />

Malaquias anunciou que Elias seria enviado, queria dizer o mesmo<br />

Elias que viveu sob o reinado de Acabe. <strong>João</strong>, portanto, responde franca<br />

e apropriadamente que ele não é Elias, usando a palavra em seu<br />

sentido próprio. Cristo, porém, afirma que ele é Elias a partir de uma<br />

correta interpretação do profeta [Mt 11.14; Mc 9.13].<br />

És tu profeta? Incorretamente, Erasmo restringe isso a Cristo,<br />

pois a adição do artigo (ὁ προφήτης, o profeta) não recebe nenhuma<br />

ênfase neste versículo; e os mensageiros posteriores declaram com<br />

bastante clareza que tinham em mente um profeta distinto de Cristo,<br />

quando sumariaram tudo com a afirmação: “Se não és o Cristo, nem<br />

Elias, nem um Profeta” [v. 25]. Portanto, percebemos que pessoas dis-


62 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

tintas estão envolvidas. Outros pensam que eles estavam perguntando<br />

se ele era um dos profetas antigos. Mas não aprecio também essa exposição.<br />

Ao contrário, com esta pergunta estão fazendo referência ao<br />

ofício de <strong>João</strong>, como se perguntassem se ele era um profeta designado<br />

por Deus. Ao negar isso, ele não está usando de falsa modéstia, mas<br />

está honesta e sinceramente se excluindo do número dos profetas. E,<br />

no entanto, tal resposta não entra em conflito com a descrição que<br />

Cristo fez dele. Cristo conferiu a <strong>João</strong> o título de profeta e ainda acrescenta<br />

que ele é “mais que um profeta” [Mt 11.9]. Mas, ao fazer uso<br />

dessas palavras, ele simplesmente granjeia crédito e autoridade para<br />

o ensino de <strong>João</strong>, ao mesmo tempo que enaltece a excelência do ofício<br />

a ele confiado. Nesta passagem, porém, <strong>João</strong> tem um objetivo distinto<br />

– mostrar que ele não tem uma comissão pessoal, como sucedeu com<br />

os profetas, mas que foi designado para ser pura e simplesmente o<br />

arauto de Cristo.<br />

Tal fato se fará ainda mais claro à guisa de uma metáfora. Mesmo<br />

os embaixadores que são enviados com assuntos não de grande<br />

importância recebem o nome e autoridade de embaixadores, caso de<br />

fato sejam detentores de missões pessoais. Tais eram todos os profetas<br />

que, desde que tivessem profecias definidas, desempenhavam o<br />

ofício profético. Suponha-se, porém, que surja uma questão de grande<br />

importância e dois embaixadores sejam enviados, um dos quais anuncia<br />

que o outro logo virá para conduzir todos os negócios e com a<br />

responsabilidade de levar a bom termo toda a negociação. O primeiro<br />

não será considerado como que uma parte e apêndice do principal?<br />

Assim foi com <strong>João</strong>, a quem Deus nenhuma outra coisa ordenou senão<br />

que fosse o preparador de discípulos para Cristo. 25 E esse significado<br />

é facilmente extraído de todo o contexto da passagem; pois devemos<br />

considerar a sentença negativa imediatamente a seguir. Diz ele: “Eu<br />

não sou um profeta, mas uma voz que clama no deserto.” A distinção<br />

está no fato de que a voz que clama, dizendo que se prepare um cami-<br />

25 “Sinon de preparer les Juifs à donner audience à Christ, et estre ses disciples.”


Capítulo 1 • 63<br />

nho para o Senhor, não é a voz de um profeta, com uma função distinta<br />

peculiar a si, mas, por assim dizer, meramente um ministro assistente,<br />

e que sua pregação é apenas uma espécie de preparação para que se<br />

ouça outro mestre. Dessa forma <strong>João</strong>, embora mais excelente que todos<br />

os profetas, não é, contudo, um profeta propriamente dito.<br />

23. A voz daquele que clama. Visto que teria sido acusado de temeridade<br />

se assumisse o ofício de mestre sem que lhe fosse confiado<br />

um ministério, ele mostra qual era sua função e o confirma com o testemunho<br />

de Isaías [40.3]. Daqui, conclui-se que ele nada fazia senão o<br />

que Deus lhe ordenara. Isaías não está falando ali somente de <strong>João</strong>; mas,<br />

prometendo a restauração da Igreja, ele prediz que vozes de alegria seriam<br />

ouvidas ordenando que se aplainasse o caminho para o Senhor.<br />

Ora, ainda que ele aponte para a vinda de Deus, quando trouxe de volta<br />

o povo do cativeiro babilônico, no entanto o verdadeiro cumprimento<br />

estava na manifestação de Cristo na carne. Portanto, dentre os arautos<br />

que anunciaram que o Senhor estava próximo, <strong>João</strong> era o principal.<br />

É fútil filosofar com sutileza, como fazem alguns, sobre o significado<br />

da palavra voz. <strong>João</strong> é chamado voz por causa do dever que lhe<br />

foi imposto de clamar. Em termos figurativos, Isaías qualifica o miserável<br />

estado da Igreja de deserto, o qual parecia obstruir o regresso do<br />

povo; como se quisesse dizer que o caminho para o povo cativo estava<br />

bloqueado, mas que o Senhor encontraria uma via pelas terras inóspitas.<br />

Mas aquele deserto visível no qual <strong>João</strong> pregava era uma figura<br />

ou imagem do ermo solitário onde não havia nenhuma esperança de<br />

livramento. Se o leitor ponderar sobre esta comparação, logo perceberá<br />

que as palavras dos profetas não foram torcidas. Deus dispôs tudo<br />

de tal maneira como se pusesse um espelho desta profecia diante dos<br />

olhos de seu povo, esmagado por suas misérias.<br />

[1.24-28]<br />

E os que tinham sido enviados eram da parte dos fariseus. Portanto,<br />

perguntaram, e lhe disseram: Por que, pois, batizas, se<br />

não és nem o Cristo, nem Elias, nem um profeta? <strong>João</strong> lhes res-


64 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

pondeu, dizendo: Eu batizo com água; mas no meio de vós está<br />

um a quem não conheceis; ele é quem, vindo depois de mim,<br />

está acima de mim, cujas correias da sandália não sou digno de<br />

desatar. Essas coisas se deram em Betânia, do outro lado do<br />

Jordão, onde <strong>João</strong> estava batizando.<br />

24. Eram da parte dos fariseus. O Evangelista diz que eram fariseus,<br />

que então conservavam um lugar de muita eminência na Igreja,<br />

com o intuito de ensinar-nos que os mesmos representavam não figuras<br />

irrelevantes da ordem levítica, mas que eram homens dotados<br />

de autoridade. Essa é a razão por que perguntam sobre o batismo.<br />

Ministros ordinários teriam ficado satisfeitos com qualquer tipo de<br />

resposta; mas esses homens, já que não obtiveram a resposta que esperavam,<br />

acusam <strong>João</strong> de temeridade em ousar introduzir uma nova<br />

cerimônia religiosa.<br />

25. Por que então batizas? Seu argumento parece assumir uma<br />

forma decisiva, quando estabelecem estes três graus: “Se não és o<br />

Cristo, nem Elias, nem um profeta”. Visto que instituir a prática do batismo<br />

não é prerrogativa de qualquer um. Toda a autoridade tinha de<br />

ser deixada nas mãos do Messias. De Elias que estava para vir, formaram<br />

a opinião de que ele começaria a restauração do Reino e da Igreja.<br />

Também estabeleceram que os profetas de Deus deviam desempenhar<br />

o ofício a eles confiado. Concluem, pois, que para <strong>João</strong> batizar permitia-se<br />

a entrada de uma inovação ilícita, já que ele não havia recebido<br />

de Deus nenhum ofício público. Mas ainda que <strong>João</strong> negue ser o Elias<br />

da imaginação deles, falharam em não reconhecê-lo como o Elias mencionado<br />

em Malaquias 4.5.<br />

26. Eu batizo com água. Isso deveria ter sido suficiente para corrigir<br />

seu equívoco; mas ainda que o ensino seja suficientemente claro,<br />

ele não se destina aos surdos. Ao enviá-los a Cristo e declarar que ele<br />

já se encontra presente, é evidente que ele não só se declara divinamente<br />

designado para ser ministro de Cristo, mas também que é o<br />

genuíno Elias enviado para testificar a restauração da Igreja. A antítese


Capítulo 1 • 65<br />

completa não está expressa aqui; pois o batismo espiritual de Cristo<br />

não é distintamente contrastado com o batismo externo de <strong>João</strong>, senão<br />

que a última sentença sobre o batismo do Espírito pode muito<br />

bem ser adicionada. Aliás, logo depois o Evangelista registra ambos.<br />

Há duas ênfases nesta resposta: primeiramente, <strong>João</strong> nada reivindica<br />

além do que lhe é por direito, pois o autor de seu batismo é Cristo,<br />

em quem consiste a realidade do sinal. Em segundo lugar, ele não faz<br />

mais que administrar o sinal externo, enquanto que todo o poder e eficácia<br />

estão exclusivamente nas mãos de Cristo. Portanto, ele defende<br />

seu batismo, ainda que sua realidade dependa de outro. Mas, embora<br />

ele deixe de mencionar o poder do Espírito, contudo exalta a dignidade<br />

de Cristo, a fim de que todos olhem somente para ele. Eis a mais<br />

elevada e melhor moderação regulamentada: quando ele toma por empréstimo<br />

de Cristo a autoridade que ele reivindica para si, dizendo que<br />

o crédito é todo de Cristo mesmo, atribuindo-lhe tudo quanto possui.<br />

Entretanto, é um louco equívoco supor alguém ser o batismo<br />

de <strong>João</strong> diferente do nosso. <strong>João</strong> não está aqui argumentando sobre<br />

a utilidade e conveniência de seu batismo, mas está simplesmente<br />

comparando seu papel com o de Cristo. Assim como hoje, se formos<br />

indagados sobre qual é nossa participação no batismo e qual é a de<br />

Cristo, teremos que reconhecer que unicamente Cristo é quem realiza<br />

o que o batismo representa, e que outra participação não temos<br />

senão a mera administração do sinal. A Escritura fala dos Sacramentos<br />

de duas maneiras. Às vezes, ela nos diz que são “a lavagem de<br />

regeneração” [Tt 3.5], que ali nossos pecados são lavados [1Pe 3.21],<br />

que somos enxertados no corpo de Cristo, que nosso velho homem<br />

é crucificado e que ressuscitamos em novidade de vida [Rm 6.4-6]. E,<br />

nesses exemplos, ela une o poder de Cristo com o ministério humano,<br />

de modo que o ministro nada é senão a mão de Cristo. Tais formas de<br />

expressão revelam, não o que o homem pode realizar por si mesmo,<br />

mas o que Cristo efetua por meio do homem e do sinal como seus<br />

instrumentos. Visto, porém, que os homens tendem a cair em superstição,<br />

e movidos por seu inerente orgulho arrebatam de Deus a honra


66 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

que lhe pertence, e a guardam para si, a Escritura, para refrear essa<br />

blasfema arrogância, ocasionalmente distingue a pessoa dos ministros<br />

da de Cristo, como nesta passagem, para que aprendamos que os ministros<br />

nada são e por si mesmos nada podem fazer.<br />

No meio de vós está um. Ele indiretamente censura a estupidez<br />

deles em não conhecer a Cristo, de quem deviam ter recebido notícias<br />

em particular. E ele, sempre cuidadoso, insiste em que nada pode ser<br />

conhecido de seu ministério até que os homens venham ao encontro<br />

de seu Autor. Ele diz que Cristo está entre eles, a fim de que se empenhem<br />

entusiasticamente em conhecê-lo. A suma da ideia é que ele<br />

quer aviltar-se o máximo possível a fim de não ter o mínimo grau de<br />

honra caso inadvertidamente lhe viessem atribuir, obscurecendo assim<br />

a superioridade de Cristo. É provável que essas frases estivessem<br />

frequentemente em sua língua, ao ver-se imoderadamente enaltecido<br />

pela opinião distorcida dos homens.<br />

27. Que vem depois de mim. Aqui ele diz duas coisas: que Cristo<br />

às vezes o seguia; mas que em grau de dignidade ele estava muito<br />

acima dele. Pois, na preferência do Pai, ele era antes de todos. Logo<br />

depois, ele acrescentará um terceiro item – que a razão por que Cristo<br />

era preferido a todos os demais, se devia ao fato de que ele por direito<br />

excedia a todos.<br />

28. Essas coisas se deram em Betânia. O local é mencionado, não<br />

só com o fim de autenticar o relato, mas também para informar-nos<br />

que esta resposta foi apresentada a uma assembleia numerosa. Pois<br />

muitos iam ao batismo de <strong>João</strong>, e esse era um lugar comum para a<br />

realização do batismo. Pensa-se também que poderia ter sido numa<br />

travessia do Jordão; e derivam o nome desse fato, pois o interpretam<br />

como “a casa da travessia”. É provável que alguns prefiram a opinião<br />

daqueles que a mencionam como sendo a memorável travessia do<br />

povo, quando Deus abriu um caminho para eles no meio das águas,<br />

sob a liderança de Josué [Js 3.13]. Outros julgam que se deve ler Bethabara.<br />

O nome, Betânia, posto aqui por alguns, é fruto de um equívoco;<br />

pois leremos mais adiante quão perto Betânia ficava de Jerusalém. A


Capítulo 1 • 67<br />

localização de Bethabara que os topógrafos descrevem concorda mais<br />

com as palavras do Evangelista. Quanto a mim, porém, não discuto a<br />

pronúncia da palavra.<br />

[1.29-34]<br />

Na manhã seguinte, <strong>João</strong> viu Jesus que vinha para ele, e disse:<br />

Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! Este é<br />

aquele de quem eu disse: Após mim vem um homem que foi<br />

preferido a mim, porque era mais excelente que eu. Eu não o<br />

conhecia; mas para que ele se fizesse manifesto a Israel, por<br />

isso vim batizando com água. E <strong>João</strong> deu testemunho, dizendo:<br />

Eu vi o Espírito descendo do céu como pomba, e repousou<br />

sobre ele. Eu não o conhecia; mas aquele que me enviou a batizar<br />

com água, me disse: Sobre quem vires o Espírito descer e<br />

repousar, esse é aquele que batiza com o Espírito Santo. Portanto,<br />

tenho visto e testificado que este é o Filho de Deus.<br />

29. Na manhã seguinte. Não há dúvida de que <strong>João</strong> havia falado<br />

previamente da manifestação do Messias; mas quando Cristo se manifestou,<br />

ele quis que sua proclamação fosse divulgada rapidamente;<br />

e então chegara o tempo quando Cristo levaria o ministério de <strong>João</strong> à<br />

conclusão, precisamente como a alvorada repentinamente desaparece<br />

com o nascer do sol. Portanto, quando ele testificou à embaixada<br />

de sacerdotes que aquele em quem deviam buscar a verdade e poder<br />

de seu batismo já se encontrava presente e vivendo entre o povo, no<br />

dia seguinte ele o fez conhecido publicamente. Pois esses dois atos<br />

terão muito mais força em mover suas mentes em decorrência de sua<br />

associação temporária. Essa também é a razão por que Cristo se manifestou<br />

na presença de <strong>João</strong>.<br />

Eis o Cordeiro de Deus. O principal ofício de Cristo é explicado<br />

de forma incisiva, porém com clareza. Ao tirar os pecados do mundo<br />

por intermédio do sacrifício de sua morte, ele reconcilia os homens<br />

com Deus. Cristo certamente derrama outras bênçãos sobre nós, mas


68 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

a principal, da qual dependem todas as demais, é aquela que, ao apaziguar<br />

a ira de Deus, ele nos leva a sermos considerados justos e puros.<br />

A fonte de todos os mananciais de bênçãos consiste em que, não nos<br />

imputando nossos pecados, Deus nos recebe em seu favor. Consequentemente,<br />

<strong>João</strong>, com o intuito de nos levar a Cristo, começa com o<br />

perdão gratuito dos pecados, o qual só obtemos através dele.<br />

Pelo termo Cordeiro há uma alusão aos antigos sacrifícios da lei.<br />

Ele estava tratando dos judeus que estavam acostumados com os<br />

sacrifícios e não podiam ser instruídos sobre satisfação de alguma<br />

outra forma, a não ser que tivessem um sacrifício como mediação.<br />

Mas como havia vários tipos, ele emprega sinédoque. Provavelmente,<br />

<strong>João</strong> esteja pensando no Cordeiro Pascal. A questão primordial é que<br />

<strong>João</strong> empregou uma forma de expressão que era mais eficaz e viva<br />

para instruir os judeus. Assim como hoje, através do rito do batismo<br />

entendemos melhor o que significa o perdão de pecado através do<br />

sangue de Cristo, quando ouvimos que, por meio dele, somos lavados<br />

e purificados de todas as nossas imundícies. Ao mesmo tempo,<br />

como os judeus comumente mantinham noções supersticiosas acerca<br />

dos sacrifícios, propositalmente ele corrige o erro, lembrando-lhes o<br />

objetivo designado em relação a todos eles. Era um áspero abuso do<br />

sacrifício, quando se depositava confiança nos sinais externos. Portanto<br />

<strong>João</strong>, pondo Cristo em realce, testifica que ele é o Cordeiro de<br />

Deus, querendo dizer com isso que, quaisquer que fossem as vítimas<br />

que os judeus usassem para oferecer, sob o regime da lei, não tinham<br />

absolutamente poder algum para expiar os pecados; ao contrário, não<br />

passavam de figuras cuja realidade era revelada em Cristo mesmo.<br />

Que tira o pecado do mundo. <strong>João</strong> expressa [pecado] no singular,<br />

denotando algum gênero de iniquidade, como se ele quisesse dizer<br />

que Cristo remove toda sorte de injustiça que aliena os homens de<br />

Deus. E ao dizer: o pecado do mundo, ele estende essa benevolência<br />

indiscriminadamente a toda a raça humana, para que os judeus não<br />

imaginassem que o Redentor fora enviado exclusivamente a eles. À<br />

luz desse fato, inferimos que o mundo inteiro está submetendo-se à


Capítulo 1 • 69<br />

mesma condenação; e visto que todos os homens, sem exceção, são<br />

culpados de injustiça diante de Deus, por isso necessitam de ser reconciliado<br />

com ele. <strong>João</strong>, portanto, ao falar do pecado do mundo em<br />

termos gerais, sua intenção era fazer-nos sentir nossa própria miséria<br />

e exortar-nos a buscar o antídoto. Ora, para que nos apossemos da<br />

bênção oferecida a todos, é preciso que cada um de nós determine<br />

em seu íntimo não permitir que algo o impeça de buscar em Cristo a<br />

reconciliação divina; deixando-se guiar pela fé, encontre nele um refúgio<br />

seguro.<br />

Além disso, ele proclama um único método para a remoção dos<br />

pecados. Sabemos que desde o princípio do mundo, quando suas próprias<br />

consciências os convenciam, todos os homens se esforçavam<br />

avidamente para granjear o perdão. Daí o espantoso volume de todos<br />

os tipos de oferendas expiatórias, pelas quais erroneamente criam<br />

poder aplacar a Deus. Confesso que todos os ritos propiciatórios espúrios<br />

tiveram sua origem num princípio santo, significando que Deus<br />

havia ordenado os sacrifícios que levassem os homens a Cristo. Entretanto,<br />

todos criaram seu próprio meio de aplacar a Deus. <strong>João</strong>, porém,<br />

nos atrai de volta a Cristo tão somente, e nos informa que não existe<br />

nenhum outro método pelo qual Deus se reconcilia conosco a não ser<br />

através de sua agência, já que ele é o único que remove os pecados.<br />

Ele, pois, não nos deixa outra via de escape do pecado senão a fuga<br />

para Cristo. E, assim, exclui toda e qualquer satisfação humana, toda e<br />

qualquer expiação e redenção, visto que tais artifícios nada mais são<br />

que invenções ímpias arquitetadas pela astúcia do diabo.<br />

O verbo tirar (αἴρειν) pode ser explicado de duas formas. Ou que<br />

Cristo tomou sobre si o peso sob o qual éramos esmagados, como<br />

está expresso em 1 Pedro 2.24, que “ele levou nossos pecados no<br />

madeiro”; e Isaías 53.5, que “o castigo que nos traz a paz estava sobre<br />

ele, e por suas pisaduras fomos sarados”; ou que ele apaga nossos<br />

pecados. Visto, porém, que a última depende da primeira, de bom<br />

grado aceito a ambas – que Cristo, ao carregar nossos pecados, os<br />

elimina. Portanto, embora o pecado insista em permanecer em nós,


70 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

não obstante, no juízo divino, ele não existe, pois já que ele é abolido<br />

pela graça de Cristo, então ele não pode ser-nos imputado. Nem me<br />

desagrada o ponto de vista de Crisóstomo, a saber, que o tempo presente<br />

do verbo – ὁ αἴρων, que tira – denota uma ação contínua, pois<br />

a satisfação que Cristo ofereceu uma vez para sempre está em pleno<br />

vigor. Ele, porém, não nos diz simplesmente que Cristo tira o pecado,<br />

mas também nos apresenta o método – que ele nos reconciliou com<br />

o Pai por intermédio de sua morte; pois isso é precisamente o que ele<br />

tinha em mente dizer com o termo Cordeiro. Aprendamos, pois, que<br />

somos reconciliados com Deus por intermédio da graça de Cristo,<br />

seguindo uma única via: recorrendo a sua morte e crendo que, aquele<br />

que foi cravado na cruz, é a única vítima sacrificial por meio da qual<br />

toda nossa culpa é removida.<br />

30. Este é aquele de quem eu disse. Ele envolve tudo em poucas<br />

palavras, ao declarar que Cristo é aquele de quem ele havia dito<br />

ter a preferência acima dele. Daqui se conclui que <strong>João</strong> nada mais<br />

é senão o arauto enviado com esse expresso propósito. E daqui se<br />

estabelece uma vez mais que Cristo é o Messias. Aqui se mencionam<br />

três coisas: ao dizer que um homem estava vindo após ele, sua intenção<br />

é deixar claro que ele veio antes de Cristo no tocante ao tempo,<br />

com o fim de preparar-lhe o caminho, segundo o testemunho de<br />

Malaquias: “Eis que eu envio meu mensageiro, que preparará o caminho<br />

diante de mim” [3.1]. Ao dizer que Cristo tinha a preferência<br />

sobre ele, a referência é à glória com que Deus adornou a seu Filho,<br />

quando ele veio ao mundo exercer o ofício de Redentor. Finalmente,<br />

acrescenta-se a razão – que Cristo está muito acima de <strong>João</strong> Batista<br />

em dignidade. Portanto, a honra com a qual o Pai o revestiu não era<br />

adventícia, mas era o direito relativo a sua eterna majestade. Mas já<br />

fiz menção desta expressão: “Este é aquele que vem após mim, mas<br />

que é antes de mim.”<br />

31. Eu não o conhecia. Para que seu testemunho não fosse suspeito<br />

de proceder de amizade ou favor, ele antecipa a dúvida, negando<br />

que tivesse algum outro conhecimento de Cristo além do fato de que


Capítulo 1 • 71<br />

Deus lho enviara. A suma, pois, é que <strong>João</strong> não fala movido por sua<br />

própria iniciativa, nem com o intuito de agradar aos homens, mas instigado<br />

pelo Espírito e pelo mandato de Deus.<br />

Vim batizando com água, diz ele. Isto é, fui chamado e ordenado<br />

para este ofício, a fim de manifestá-lo a Israel. O Evangelista mais adiante<br />

explica este ponto com mais clareza e o confirma quando introduz<br />

<strong>João</strong> Batista, testificando que ele não tinha conhecimento de Cristo senão<br />

o que obtivera através de um oráculo divino, isto é, por informação<br />

ou revelação de Deus. 26 Em vez do que encontramos aqui, eu vim para<br />

batizar, ele ali declara expressamente [v. 33] que fora enviado. Pois é<br />

somente pela vocação divina que os ministros da Igreja se tornam legalmente<br />

efetivados. Quem quer que se apresente sem ser convidado, seja<br />

qual for a erudição ou eloquência que o mesmo possua, esse não recebe<br />

autoridade alguma, porquanto não veio da parte de Deus. Ora, visto que<br />

<strong>João</strong>, para batizar regularmente, tinha que ser enviado pessoalmente<br />

por Deus, assim o leitor deve entender que ninguém tem direito algum<br />

de instituir Sacramentos. Tal direito pertence exclusivamente a Deus.<br />

Por isso, Cristo em outra ocasião, para provar o batismo de <strong>João</strong>, pergunta<br />

se ele era do céu ou dos homens [Mt 21.25].<br />

32. Vi o Espírito descendo como pomba. Esta não é uma forma de<br />

expressão literal, e, sim, figurada; pois com que olhos ele veria o Espírito?<br />

Como, porém, a pomba era um sinal certo e infalível da presença do<br />

Espírito, ela é chamada o Espírito, por meio de uma figura de linguagem<br />

na qual um nome é substituído por outro; não que ele seja na realidade<br />

o Espírito, e, sim, que aponta para o Espírito, até onde a capacidade<br />

humana o possa admitir. E esta linguagem metafórica é amiúde empregada<br />

nos sacramentos; pois, por que Cristo chama o pão meu corpo<br />

senão porque o nome do elemento é propriamente transferido para o<br />

sinal? Especialmente quando o sinal é, ao mesmo tempo, um penhor<br />

genuíno e eficaz, por meio do qual somos certificados de que a própria<br />

coisa significada nos é outorgada. No entanto, não se deve entender<br />

26 “Par oracle; c’est à dire, advertissement ou revelation de Dieu.”


72 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

que a pomba contivesse o Espírito que enche o céu e a terra [Jr 23.24],<br />

mas que ele estava presente através de seu poder, de modo que <strong>João</strong><br />

sabia que tal exibição não se apresentava inutilmente ante seus olhos.<br />

De modo semelhante, sabemos que o corpo de Cristo não é conectado<br />

ao pão, e, no entanto, somos participantes de seu corpo.<br />

Então se suscita uma pergunta: Por que o Espírito, naquele momento,<br />

se manifestou na forma de uma pomba? É preciso ter sempre<br />

presente que há distinção entre o sinal e a realidade. Quando o Espírito<br />

foi comunicado aos apóstolos, eles viram línguas de fogo e divididas<br />

[At 2.3], significando que a proclamação do evangelho tinha de ser<br />

difundida através de todos os idiomas, e ele tinha de possuir o poder<br />

do fogo. Neste versículo, porém, Deus quis exibir publicamente aquela<br />

mansidão de Cristo que Isaías [42.3] tanto enaltece: “A cana trilhada<br />

não quebrará, nem apagará o pavio que fumega.” Essa foi a primeira<br />

vez que o Espírito foi visto descer sobre ele. Não significa que antes<br />

disso ele estivesse vazio do Espírito, mas é que agora, por assim dizer,<br />

ele está sendo consagrado numa cerimônia solene [e pública]. Pois<br />

sabemos que ele permaneceu por trinta anos oculto como indivíduo,<br />

porquanto o tempo de sua manifestação ainda não havia chegado.<br />

Quando, porém, quis tornar-se conhecido ao mundo, seu ponto de<br />

partida foi o batismo. Portanto, recebeu o Espírito naquela ocasião,<br />

não tanto por sua própria causa, mas causa de seu povo. E o Espírito<br />

desceu visivelmente para que soubéssemos que em Cristo habita a<br />

abundância de todos os dons dos quais por natureza somos destituídos<br />

e vazios. Tal fato pode facilmente deduzir-se das palavras de <strong>João</strong><br />

Batista. Pois quando ele diz: “Sobre aquele que vires descer o Espírito,<br />

e sobre ele repousar, esse é o que batiza com o Espírito Santo” [v. 33],<br />

é como se ele dissesse que o Espírito era visto de uma forma visível<br />

e repousava sobre Cristo para que ele pudesse dar de beber de sua<br />

plenitude a todo seu povo. O que significa batizar com o Espírito, eu já<br />

toquei de leve, a saber, que Cristo comunica ao batismo sua eficácia,<br />

a fim de que o mesmo não seja sem efeito e destituído de real valor; e<br />

isso ele faz mediante o poder de seu Espírito.


Capítulo 1 • 73<br />

33. Sobre aquele que vires descer o Espírito. Aqui surge uma<br />

pergunta difícil: se <strong>João</strong> não conhecia a Cristo, por que sua recusa em<br />

admiti-lo ao batismo? Com toda certeza, ele não devia dizer a ninguém<br />

que não o conhecia: “devo antes ser batizado por ti” [Mt 3.14]. A resposta<br />

de alguns consiste em que ele o conhecia tão vagamente que,<br />

embora o reverenciasse como um eminente profeta, contudo não sabia<br />

ser ele o Filho de Deus. Essa, porém, é uma solução pobre, pois<br />

qualquer um deve obedecer à vocação divina sem qualquer respeito<br />

por pessoas. Nenhuma dignidade ou excelência humana nos deve<br />

impedir de cumprir nosso dever. Portanto, <strong>João</strong> teria desrespeitado<br />

a Deus e ao seu batismo, caso ele tivesse falado assim em relação a<br />

alguma outra pessoa, e não ao Filho de Deus. Portanto, ele deve ter<br />

conhecido Cristo previamente.<br />

Primeiro, devemos notar que isso se refere a um conhecimento<br />

oriundo de familiaridade íntima e recíproca. Embora reconheça a<br />

Cristo assim que o vê, continua sendo verdade que não se conheciam<br />

mutuamente da forma usual pelo prisma da amizade humana, porquanto<br />

o princípio de seu conhecimento veio de Deus. A pergunta,<br />

porém, não está ainda totalmente respondida, porquanto ele diz que<br />

a visão do Espírito Santo seria o sinal de reconhecimento. Ele, porém,<br />

não havia ainda visto o Espírito quando se dirigiu a Cristo como o<br />

Filho de Deus. De bom grado, concordo com a opinião daqueles que<br />

pensam que esse sinal foi adicionado para confirmação, e que ele não<br />

foi dado tanto por causa de <strong>João</strong>, mas por nossa causa. Com toda certeza,<br />

somente <strong>João</strong> o viu, porém mais por causa dos outros do que de<br />

si mesmo. Bucer, com propriedade, cita Moisés em Êxodo 3.12: “E isto<br />

te será por sinal de que eu te enviei: Quando houveres tirado este povo<br />

do Egito, servireis a Deus neste monte.” Indubitavelmente, quando saíram<br />

já sabiam que Deus guiaria e dirigiria sua libertação; mas essa foi,<br />

por assim dizer, uma confirmação a posteriori. Semelhantemente, ela<br />

veio como uma adição à primeira revelação que fora dada a <strong>João</strong>.<br />

34. Eu vi e testifiquei. Ele queria dizer que não alimentava dúvida<br />

alguma; pois a Deus aprouve dar-lhe total e profundo conhecimento


74 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

daquelas coisas das quais teria que ser testemunha perante o mundo.<br />

E é digno de nota o fato de <strong>João</strong> testificar que Cristo era o Filho de<br />

Deus, porquanto aquele que desse o Espírito seria o Cristo, visto que<br />

a honra e o ofício de reconciliar os homens com Deus não poderiam<br />

pertencer a nenhum outro.<br />

[1.35-39]<br />

No dia seguinte, <strong>João</strong> estava outra vez ali, e dois de seus discípulos;<br />

e ele olhou para Jesus que passava, e disse: Eis o<br />

Cordeiro de Deus! E os dois discípulos ouviram-no dizer isso,<br />

e seguiram a Jesus. E Jesus, voltando-se e vendo que eles o seguiam,<br />

então lhes disse: Que buscais? E eles lhe disseram: Rabi<br />

(que traduzido, quer dizer: Mestre), onde moras? Então lhes<br />

disse: Vinde, e vede. Foram, pois, e viram onde ele morava, e<br />

ficaram com ele aquele dia; e era quase a hora décima.<br />

36. Eis o Cordeiro de Deus! Nesta expressão fica ainda mais evidente<br />

o que eu já disse, a saber, que quando <strong>João</strong> sentiu que chegava<br />

ao término de seu curso, ele avança sem cessar procurando pôr a<br />

tocha na mão de Cristo. Sua persistência imprime mais peso a seu testemunho.<br />

Mas, ao insistir tão ansiosamente, dia após dia, em reiterar<br />

seu louvor a Cristo, ele mostra que sua própria jornada chegava ao<br />

fim. Além do mais, vemos aqui quão impreciso e humilde foi o início<br />

da Igreja. É verdade que <strong>João</strong> preparara discípulos para Cristo, mas até<br />

agora Cristo não havia ainda começado selecionar uma igreja. Ele apenas<br />

conta com aqueles doze homens obscuros e insignificantes, mas,<br />

mesmo assim, sua glória se manifesta; de modo que, dentro em pouco,<br />

sem contar com o auxílio do poder humano ou de um forte grupo,<br />

ele expande seu reino de uma forma maravilhosa e inusitada. Devemos<br />

também observar especialmente aonde ele leva aqueles homens<br />

– a descobrir em Cristo o perdão dos pecados. E ainda quando Cristo<br />

tivesse expressamente se apresentado aos discípulos para que fossem<br />

a ele; então, ao irem a ele, benignamente os encoraja e os exorta;<br />

pois não espera que falem primeiro, e então lhes fala: “Que buscais?”


Capítulo 1 • 75<br />

Esse cativante e amoroso convite, uma vez feito a dois homens, agora<br />

pertence a todos. Portanto, não devemos temer que Cristo se afaste<br />

de nós ou que nos recuse fácil acesso, contanto que nos veja empenhados<br />

por ele. Ao contrário disso, ele nos estenderá sua mão e nos<br />

sustentará em nossos esforços. E, porventura, não apressará aqueles<br />

que o buscam, ele que sai em busca dos que andam errantes e transviados,<br />

querendo trazê-los de volta à vereda certa?<br />

38. Rabi. Este título era comumente atribuído aos homens da elite<br />

ou detentores de alguma honra especial. Aqui, porém, o Evangelista registra<br />

outro uso contemporâneo dele: com este título eles se dirigiam<br />

aos mestres e expositores da Palavra de Deus. Portanto, embora não<br />

soubessem que Cristo é o único mestre da Igreja, não obstante, movidos<br />

pelo relato que <strong>João</strong> faz acerca dele, o respeitam como um profeta<br />

e mestre, que é o primeiro passo para se receber instrução.<br />

Onde moras? À luz deste exemplo aprendemos dos próprios primórdios<br />

da Igreja a cultivar um prazer tal por Cristo, que se aguça<br />

nosso anseio por progresso. Nem devemos ficar satisfeitos com uma<br />

mera busca passageira, mas devemos buscar seu espaço permanente<br />

para que nos receba como seus hóspedes. Porque muitos simplesmente<br />

sentem o cheiro do evangelho à distância, e então deixam Cristo<br />

desaparecer como névoa, e tudo quanto aprenderam sobre ele vira fumaça.<br />

Ainda que não se tornassem seus discípulos de tempo integral,<br />

não há dúvida de que ele os instruiu mais plenamente aquela noite,<br />

para que pudesse tê-los inteiramente devotados a si logo depois.<br />

39. Era quase a hora décima. Ou, seja, a noite se aproximava,<br />

pois só faltavam umas duas horas para o pôr-do-sol. Naquela época,<br />

o dia era dividido em doze horas, o qual era mais longo no verão e<br />

mais curto no inverno. E à luz da questão de horário, deduzimos que<br />

aqueles dois discípulos se sentiam tão ansiosos por ouvir a Cristo,<br />

e conhecê-lo mais pessoalmente, que não se preocuparam com seu<br />

pernoite. Nós, porém, na maioria das vezes, somos muito diferentes<br />

deles, porque prorrogamos indefinidamente, uma vez que seguir a<br />

Cristo nunca nos é conveniente.


76 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

[1.40-42]<br />

Um dos dois que ouviram <strong>João</strong> falar e o seguiram era André,<br />

irmão de Simão Pedro. Ele encontrou primeiro a seu próprio<br />

irmão, Simão, e lhe disse: Encontramos o Messias (que, traduzido,<br />

é Cristo). Ele o levou a Jesus. Jesus, olhando para ele, disse:<br />

Tu és Simão, filho de <strong>João</strong>; tu serás chamado Cefas (que quer<br />

dizer Pedro).<br />

40. Um dos dois era André. O objetivo do Evangelista, já no final<br />

do capítulo, é informar-nos como pouco a pouco os discípulos eram<br />

levados a Cristo. Aqui ele relata acerca de Pedro, e logo a seguir acrescentará<br />

Filipe e Natanael. O fato de André trazer imediatamente seu<br />

irmão expressa a natureza da fé, a qual não mantém a luz guardada no<br />

íntimo nem a extingue; ao contrário, a projeta em todas as direções.<br />

André não tem mais que uma escassa fagulha; no entanto, com ela, ele<br />

ilumina ao seu irmão. Ai de nossa apatia, se porventura nós, muito mais<br />

iluminados que ele, não nos esforçarmos em fazer os outros participantes<br />

da mesma graça! Realmente podemos observar em André duas<br />

coisas que Isaías requer dos filhos de Deus [Is 2.3] – que cada um de nós<br />

deve tomar o vizinho pela mão e dizer-lhe também: “Vinde, subamos<br />

ao monte do Senhor, à casa do Deus de Jacó, para que nos ensine seus<br />

caminhos, e andemos em suas veredas.” Pois André estendeu sua mão a<br />

seu irmão, com um único objetivo: para que ele se tornasse com ele um<br />

colega e aluno na escola de Cristo. Além do mais, é preciso que atentemos<br />

bem no desígnio de Deus. Ele quis que Pedro, que estava para ser<br />

o mais eminente, fosse levado ao conhecimento de Cristo pela agência<br />

e ministério de André; de modo que nenhum de nós, por mais excelente<br />

que seja, recuse ser instruído por alguém inferior. Pois Deus castigará<br />

severamente àquela pessoa obstinada ou, melhor, arrogante que, por<br />

desprezar um seu igual, não se dignar em vir a Cristo.<br />

41. Encontramos o Messias. O Evangelista interpretou o termo hebraico,<br />

Messias (Ungido), para o grego, Cristo, com o fim de publicar a<br />

todo o mundo o que fora conhecido secretamente aos judeus. Era o títu-


Capítulo 1 • 77<br />

lo ordinário dos reis, visto que a unção era uma prática usual entre eles.<br />

Entretanto, estavam cônscios de que um Rei seria divinamente ungido,<br />

em quem esperavam aquela felicidade perfeita e perene, especialmente<br />

quando aprenderam que o reino terreno de Davi não teria fim. E assim,<br />

quando Deus os instigava, dominados e oprimidos com muitas tribulações,<br />

a olhar para o Messias, estava avivando em sua mente com mais<br />

nitidez que sua vinda estava próxima. A profecia de Daniel é mais clara<br />

do que as demais no tocante ao nome de Cristo [Dn 9.25, 26]. Pois ele,<br />

assim como os profetas mais antigos, não está falando de reis, mas está<br />

indicando de forma única aquele futuro Redentor. Portanto, essa maneira<br />

de falar prevaleceu de tal forma que, sempre que se mencionava o<br />

Messias ou Cristo, não pensavam em nenhum outro senão no Redentor.<br />

E assim, no capítulo 4 [deste <strong>Evangelho</strong>] lemos o que disse a mulher<br />

samaritana: “o Messias virá”, o que torna ainda mais espantoso o fato de<br />

que tantos o esperassem e dele falassem, com tão ansiosa expectativa, e<br />

tão poucos realmente o tenham recebido.<br />

42. Tu és Simão. Cristo atribui a Simão um nome, não, segundo o<br />

costume, motivado por algum acontecimento passado, nem com base<br />

no que vê nele, mas porque estava para convertê-lo em Pedro. Antes<br />

de tudo, ele diz: “Tu és Simão, filho de <strong>João</strong>.” Ele usa o nome de seu<br />

pai em sua forma abreviada, um costume bastante comum quando os<br />

nomes são traduzidos para línguas estrangeiras. No final do capítulo<br />

se fará ainda mais óbvio que ele era filho de Yohannan ou <strong>João</strong>. Tudo<br />

isso, porém, é como se Cristo houvera dito que ele seria muito diferente<br />

do que é agora. Pois a menção que Cristo faz do pai de Simão não<br />

é porque ele desfrutasse de prestígio, senão que, apesar de Pedro ter<br />

nascido de família obscura e de não desfrutar de nenhum prestígio<br />

entre os homens, Cristo declara que tal fato não o impedirá de fazer de<br />

Simão um homem de resolução inquebrantável. O Evangelista, pois, registra<br />

esse fato como uma predição, dizendo que um novo sobrenome<br />

era dado a Simão. Entendo como uma predição, não só porque Cristo<br />

previu o futuro de Pedro possuindo uma fé inabalável, mas também<br />

que estava predizendo o que estava para comunicar a Simão. E assim,


78 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

agora, na forma de aforismo, Cristo enaltece a graça que determinara<br />

comunicar-lhe mais tarde; e assim, ele não diz que esse é seu nome<br />

agora, senão que o adia para o futuro.<br />

Serás chamado Cefas, diz ele. Realmente pertence a todos os santos<br />

que os Pedros estejam alicerçados em Cristo, a fim de sejam aptos<br />

para a edificação do templo de Deus. Em sua excelência singular, porém,<br />

ele é o único a ser assim denominado. Os papistas, porém, agem<br />

de forma ridícula quando o põem em lugar de Cristo como o fundamento<br />

da Igreja, como se ele, também, não estivesse fundamentado em<br />

Cristo, como os demais. E são duplamente ridículos quando, de uma<br />

pedra, fazem um cabeça. Um cânon inconsistente traz o nome de Anacleto,<br />

entre as rapsódias de Graciano, o qual, ao mudar uma palavra<br />

hebraica por uma grega, e não distinguindo a palavra grega κεφαλὴ<br />

(kephale) da palavra hebraica Cephas, sugere que, com esse nome, Pedro<br />

foi designado a Cabeça da Igreja. Além do mais, Cephas é palavra<br />

aramaica, não hebraica, mas que era a pronúncia usual dela depois<br />

do cativeiro babilônico. Não há, pois, ambiguidade alguma nas palavras<br />

de Cristo. Ele promete a Pedro o que este jamais teria esperado,<br />

e assim exalta nele sua graça para todos os tempos, a fim de que seu<br />

estado anterior não testemunhe contra ele, uma vez que este sublime<br />

título proclama que ele foi feito um novo homem.<br />

[1.43-46]<br />

No dia seguinte, determinou Jesus ir para a Galiléia, e encontrou<br />

Filipe, e disse-lhe: Segue-me. Ora, Filipe era de Betsaida,<br />

cidade de André e Pedro. Filipe achou Natanael, e disse-lhe:<br />

Achamos Jesus de Nazaré, o filho de José, de quem Moisés escreveu<br />

na lei, e também os profetas. E Natanael disse-lhe: De<br />

Nazaré pode sair alguma coisa boa? Filipe disse-lhe: Vem e vê.<br />

43. Segue-me. A mente de Filipe foi inflamada por esta única<br />

palavra para seguir a Cristo; e daqui inferimos quão poderosa é a<br />

eficácia da Palavra, ainda que ela não se evidencie em todos indiscri-


Capítulo 1 • 79<br />

minadamente. Porquanto Deus incita muitos sem qualquer resultado,<br />

como se ele estivesse soprando em seus ouvidos sons sem sentido.<br />

Portanto, a pregação externa da Palavra é por si só infrutífera, a não<br />

ser que ela fira mortalmente os réprobos, de modo tal que os faz indesculpáveis<br />

diante de Deus. Mas quando a graça secreta do Espírito<br />

vivifica [a mente dos réprobos], todos os sentidos inevitavelmente<br />

serão afetados de tal maneira que a pessoa se sente preparada a ir<br />

aonde quer que Deus a chame. Devemos, pois, orar para que Cristo<br />

derrame em nós o mesmo poder do evangelho. É verdade que Filipe<br />

seguiu a Cristo de um modo especial, pois ele foi intimado a seguir,<br />

não só como qualquer um de nós, mas como um companheiro [contubernalis]<br />

íntimo e inseparável. Não obstante, este é um padrão geral<br />

da vocação [eficaz].<br />

44. Era de Betsaida. É provável que o nome da cidade tenha mencionado<br />

para revelar mais claramente a bondade divina para com os<br />

três apóstolos. Aprendemos de outras passagens quão veementemente<br />

Cristo ameaça e amaldiçoa aquela cidade. Consequentemente, para<br />

que alguns dentre essa raça ímpia e maligna fossem recebidos no favor<br />

divino, deve-se considerar que os mesmos foram arrebatados do<br />

inferno. E o fato de Cristo ter julgado dignos de tal honra homens que<br />

foram salvos desse abismo insondável, para que fossem designados<br />

apóstolos, se constitui numa esplendorosa e memorável benção.<br />

45. Filipe achou Natanael. Por mais que a soberba despreze esses<br />

rudimentares começos da Igreja, devemos ver neles maior glória de<br />

Deus do que se a condição do reino de Cristo tivesse sido nobre desde<br />

o início, excelente em todos os aspectos. Pois sabemos quão imensa<br />

colheita esta minúscula semente aos poucos produziu. Além disso, vemos<br />

demonstrado em Filipe a mesma solicitude pela edificação que<br />

vimos em André. Vemos também em relevo sua modéstia, anelando e<br />

se esforçando simplesmente por levar outros a aprender, juntamente<br />

com ele, do Mestre comum a todos.<br />

Achamos Jesus. A pequenez da fé de Filipe surge do fato de ele<br />

não poder dizer quatro coisas sobre Cristo sem incluir dois estúpidos


80 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

equívocos. Ele o chama o filho de José, e erroneamente faz de Nazaré<br />

sua cidade natal. E, no entanto, visto que ele realmente deseja ajudar<br />

seu irmão e fazer Cristo conhecido, Deus aprova sua sinceridade e a<br />

faz vitoriosa. Cada pessoa, na verdade, precisa conservar-se sóbria<br />

dentro de seus limites; e o Evangelista certamente não menciona o<br />

ato de Filipe desonrar a Cristo duas vezes como sendo algo louvável,<br />

mas apenas relata que seu ensino, ainda que deficitário e envolvesse<br />

erro, era útil porque, a despeito de tudo, perseguia o propósito de fazer<br />

Cristo realmente conhecido. Ele tolamente chama Jesus o filho de<br />

José e ignorantemente o faz um nazareno; mas, ao mesmo tempo, leva<br />

Natanael a nenhum outro senão ao Filho de Deus que havia nascido<br />

em Belém. Ele não forja uma imitação de Cristo, mas apenas deseja<br />

que ele seja conhecido como aquele que fora apresentado por Moisés<br />

e os profetas. Por conseguinte, descobrimos que o principal desígnio<br />

da pregação é que, os que nos ouvem, devem vir a Cristo de um modo<br />

ou de outro.<br />

Muitos há que se envolvem em obscuras inquirições acerca de<br />

Cristo, mas que lançam tanta dificuldade e o envolve em tal complexidade<br />

e sutilezas que nunca conseguem achá-lo. E assim, os papistas<br />

não dirão que Cristo é o filho de José, pois sabem precisamente qual<br />

é seu nome. Não obstante, esvaziam-no de seu poder e assim exibem<br />

um fantasma em seu lugar. Não seria melhor gaguejar ignorantemente<br />

com Filipe, e, no entanto, conservar o verdadeiro Cristo, do que introduzir<br />

uma ficção em linguagem engenhosa e imprecisa? Mais ainda,<br />

grande número de homens comuns e pobres, hoje, desajeitados e inexperientes<br />

no manejo da língua, proclamam a Cristo mais fielmente do<br />

que todos os teólogos do Papa com suas profundas especulações. Esta<br />

passagem, pois, nos adverte a não rejeitarmos desdenhosamente tudo<br />

o que as pessoas simples e incultas dizem deficitariamente sobre Cristo,<br />

desde que estejam nos levando a Cristo. Mas para que não sejamos<br />

extraviados de Cristo pelas falsas imaginações dos homens, tenhamos<br />

sempre em mãos o antídoto, a saber: busquemos aquele perfeito conhecimento<br />

dele na lei e nos profetas.


Capítulo 1 • 81<br />

46. De Nazaré pode sair alguma coisa boa? A princípio<br />

Natanael, confundido pela descrição de Filipe sobre o lugar de<br />

nascimento de Cristo, recua. Mas, antes de tudo, ele é enganado<br />

pela palavra irrefletida de Filipe. O que Filipe insensatamente pensava,<br />

Natanael tomou como certo. A isso se acresce uma crítica<br />

imponderada oriunda do ódio ou desprezo pelo lugar. É preciso<br />

observar cuidadosamente ambas essas questões. Esse santo homem<br />

não estava muito longe de fechar a porta no próprio rosto de<br />

Cristo. Por quê? Porque ele foi demasiadamente precipitado em<br />

crer na afirmação incorreta de Filipe sobre ele, e também porque<br />

sua mente estava saturada da opinião preconcebida de que não se<br />

podia esperar de Nazaré nada de bom. A não ser que nos municiemos<br />

de precaução, correremos o mesmo risco. Usando obstáculos<br />

semelhantes, Satanás diariamente se esforça para barrar nossos<br />

passos de irmos a Cristo. Pois ele se acautela em espalhar infindáveis<br />

boatos falsos, os quais tornam o evangelho detestável ou<br />

suspeito a nossos olhos, de modo que não nos aventuramos a degustá-lo.<br />

Além do mais, há outra pedra que ele não deixa de usar<br />

para fazer Cristo desprezível a nossos olhos. Pois percebemos que<br />

terrível escândalo aos olhos de muitos é a ignomínia da cruz, tanto<br />

em Cristo, o Cabeça, quanto em seus membros. Mas, visto que<br />

dificilmente seremos suficientemente cautelosos para evitar que<br />

sejamos atingidos pelas tramas de Satanás, que pelo menos recordemos<br />

das palavras de Cristo.<br />

Vem e vê. Natanael permitiu que seu duplo erro fosse corrigido<br />

pelo que disse Filipe. E assim, seguindo seu exemplo, primeiro sejamos<br />

generosos em aprender e condescendentes; e a seguir, não deixemos<br />

de inquirir quando Cristo mesmo está disposto a remover as dúvidas<br />

que insistentemente nos perseguem. Estão grandemente equivocados<br />

os que tomam esta frase no sentido afirmativo. Quão banal isso seria!<br />

Repetindo, sabemos que a cidade de Nazaré não desfrutava de bom<br />

conceito naquela época, e a resposta de Filipe claramente denuncia<br />

hesitação e desconfiança.


82 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

[1.47-51]<br />

Jesus viu Natanael vindo para ele, e disse-lhe: Eis aqui um verdadeiro<br />

israelita, em quem não há dolo. Disse-lhe Natanael:<br />

Donde me conheces? Respondeu Jesus, e disse-lhe: Antes que<br />

Filipe te chamasse, quando estavas debaixo da figueira, eu te<br />

vi. Respondeu Natanael, e disse-lhe: Rabi, tu és o Filho de Deus;<br />

tu és o Rei de Israel. Respondeu Jesus, e disse-lhe: Só porque eu<br />

disse que te vi debaixo da figueira, tu crês? 27 Ainda verás coisas<br />

maiores que essas. E disse-lhe: Em verdade, em verdade vos<br />

digo: Daqui em diante vereis o céu aberto, e os anjos de Deus<br />

subindo e descendo sobre o Filho do homem.<br />

47. Eis aqui um verdadeiro israelita. Cristo não dirige esse enaltecimento<br />

particularmente à pessoa de Natanael, mas, apoiado em sua<br />

pessoa, ele ministra uma lição de cunho geral. Pois, visto que muitos<br />

dos que se denominam crentes sejam tudo menos crentes de fato e<br />

de verdade, é importante que se tenha algum sinal para distinguir o<br />

verdadeiro e honesto do falso. Sabemos quão arrogantemente os judeus<br />

se gloriavam em seu pai Abraão, quão ousadamente ostentavam<br />

a santidade de seus antepassados. E, no entanto, raramente se achava<br />

um em cem que não fosse completamente degenerado e totalmente<br />

alienado da fé dos patriarcas. Cristo, portanto, com o intuito de rasgar<br />

a máscara dos hipócritas, diz sucintamente o que é ser um israelita<br />

autêntico, e ao mesmo tempo remove a ofensa que logo fluiria da ímpia<br />

obstinação da nação. Pois aqueles que desejavam ser tidos na conta<br />

de filhos de Abraão e do santo povo de Deus, logo depois se tornariam<br />

os implacáveis inimigos do evangelho. E assim, para que a impiedade<br />

que permeava quase todas as classes não desalentasse ou afligisse alguém,<br />

ele ministra em tempo uma advertência, dizendo que há apenas<br />

uns poucos israelitas autênticos entre aqueles que reivindicavam o<br />

título de israelitas.<br />

27 “Tu crois, ou, crois-tu?” – “Tu crês, ou crês tu?”


Capítulo 1 • 83<br />

Além do mais, visto que esta passagem é também uma definição<br />

de Cristianismo, não devemos ignorá-la precipitadamente. Ora, a<br />

fim de sumariar em poucas palavras o que Cristo tinha em mente, é<br />

preciso observar bem que dolo é contrastado com sinceridade. 28 Daí<br />

ele chamar de astuciosos 29 ou dolosos aqueles que, em outras partes<br />

da Escritura, são caracterizados como tendo coração doble [Sl 12.2].<br />

Tampouco tal referência se restringe apenas à hipocrisia daqueles que<br />

são cônscios de que, sendo perversos, pretendem passar por bons,<br />

mas também àquela hipocrisia secreta, quando os homens são tão<br />

cegados por seus pecados, que enganam não só aos outros, mas até<br />

mesmo a si próprios. O que faz um cristão é a integridade aos olhos de<br />

Deus e a retidão diante dos homens. O que Cristo está principalmente<br />

enfatizando é aquele engano de que fala o Salmo 32.2. ἀληθῶς [verdadeiramente]<br />

aqui significa algo mais que certamente. O termo grego é,<br />

às vezes, usado como uma simples afirmação; mas, como devemos<br />

apresentar uma antítese entre a realidade e o mero título, ao dizer, “em<br />

verdade”, é a realidade que está subentendida.<br />

48. Donde me conheces? Embora Cristo não tivesse a intenção de<br />

lisonjeá-lo, contudo queria ganhar a atenção para uma nova pergunta,<br />

por meio de uma resposta que provaria ser ele o Filho de Deus. Nem<br />

é fora de propósito a indagação de Natanael, donde Cristo o conhecia,<br />

pois um homem tão sincero que se vê isento de dolo é um modelo<br />

raro, e o conhecimento dessa pureza de coração pertence tão somente<br />

a Deus. A resposta de Cristo, contudo, parece destituída de sentido.<br />

Ter visto Natanael debaixo de uma figueira não é prova suficiente de<br />

que ele pudesse penetrar os recônditos mais profundos do coração.<br />

A razão, porém, é outra. Assim como pertence a Deus conhecer os<br />

homens quando não são vistos, assim também [lhe pertence] ver o<br />

que é invisível aos olhos [humanos]. Visto que Natanael percebeu que<br />

Cristo pôde vê-lo não da forma como os homens veem, mas por meio<br />

de uma visão verdadeiramente divina, assim pôde deduzir que Cristo<br />

28 “Rondeur et syncerité.”<br />

29 “Canteleux et Frauduleux.”


84 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

não estava falando agora como um mero homem. Portanto, a prova<br />

é extraída das coisas que são semelhantes; porquanto não pertence<br />

menos a Deus ver o que está além da vista do que julgar a pureza do<br />

coração. Devemos extrair também desta passagem uma lição prática,<br />

ou, seja, que mesmo antes de pensarmos em Cristo, já estamos sendo<br />

observados por ele; e é preciso que seja assim, para que ele nos traga<br />

de volta quando suceder nos desviarmos da reta vereda.<br />

49. Tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel. O fato de Natanael<br />

reconhecer ser ele o Filho de Deus, à luz de seu divino poder, é<br />

algo que não surpreende. Entretanto, por que ele o chama Rei de Israel?<br />

As duas coisas não parecem ter conexão. Natanael, porém, ergue seus<br />

olhos mais ao alto. Ele já ouvira que Cristo é o Messias, e para que isso<br />

fosse crido, ele adiciona a confirmação que lhe fora dada. Ele sustenta<br />

também outro princípio: que o Filho de Deus não virá sem revelar-se<br />

como Rei sobre o povo de Deus. E, no entanto, a fé não deve apreender<br />

somente a essência de Cristo, por assim dizer, mas deve também atentar<br />

para seu poder e ofício. Porque seria de pouco proveito saber quem<br />

é Cristo, a menos que o segundo elemento seja adicionado, isto é, o que<br />

ele deseja ser em relação e com que propósito foi ele enviado pelo Pai.<br />

Daí suceder que os papistas nada possuem senão um Cristo esotérico,<br />

porque toda sua solicitude está posta na apreensão de sua essência nua.<br />

Seu reino, que consiste no poder de salvar, esse eles têm negligenciado.<br />

Além disso, quando Natanael declara ser ele o Rei de Israel, ainda<br />

que seu reino se estenda até os confins da terra, a confissão se limita<br />

à medida da fé. Pois ele não havia ainda avançado tanto que soubesse<br />

que Cristo fora designado para ser o Rei sobre o mundo inteiro; ou,<br />

melhor, que de todas as regiões fossem reunidos os filhos de Israel, de<br />

modo que o mundo inteiro fosse reconhecido como o Israel de Deus.<br />

Nós, a quem a extensão do reino de Cristo já se revelou, devemos exceder<br />

esses tacanhos limites. Não obstante, que sigamos o exemplo<br />

de Natanael e apliquemos nossa fé em ouvir a Palavra e a fortalecê-la<br />

por todos os meios possíveis, não permitindo que ela fique sepultada,<br />

senão que, impetuosamente, saia em confissão.


Capítulo 1 • 85<br />

50. Jesus respondeu. Ele não dirige reprovação a Natanael,<br />

como se ele fosse demasiadamente crédulo. Ao contrário, por seu<br />

assentimento aprova sua fé, promete a ele e a todos os demais uma<br />

confirmação por meio de argumentos mais contundentes. Além disso,<br />

era algo peculiar ser alguém visto por Cristo debaixo de uma figueira,<br />

quando ausente e distante dele; mas agora Cristo apresenta uma prova<br />

que seria comum a todos, e assim, como se interrompesse seu discurso,<br />

ele se volta de um para todos.<br />

51. Vereis o céu aberto, diz ele. Em minha opinião, incorrem em<br />

erro os que avidamente inquirem quanto ao lugar onde, e o tempo<br />

quando Natanael e os outros viram os céus abertos. Pois ele está, ao<br />

contrário, indicando algo contínuo que seria sempre existente em seu<br />

reino. Por certo que reconheço que os discípulos, às vezes, viam anjos,<br />

os quais não são vistos hoje. Reconheço ainda que a manifestação<br />

da glória celestial, quando Cristo ascendeu ao céu, foi diferente do que<br />

é agora para nós. Mas se ponderarmos com mais atenção, veremos<br />

que o que aconteceu então é de perpétua duração. Pois o reino de<br />

Deus, outrora fechado para nós, foi verdadeiro aberto em Cristo. Um<br />

exemplo visível desse fato foi mostrado a Estevão [At 7.55] e aos três<br />

discípulos no monte [Mt 17.5], bem como aos demais discípulos na<br />

ascensão de Cristo [Lc 24.51; At 1.9]. Mas todos os sinais pelos quais<br />

Deus se mostra presente conosco estão relacionados com essa abertura<br />

do céu, especialmente quando Deus se comunica conosco para<br />

ser nossa vida.<br />

E os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem.<br />

Esta segunda sentença está relacionada com os anjos. Aqui se<br />

diz que “sobem e descem”, pois é assim que eles exercem seu ofício<br />

como ministros da benevolência divina em relação a nós. Portanto,<br />

com esta expressão nota-se uma comunicação recíproca entre Deus e<br />

os homens. Ora, é preciso reconhecer que este benefício foi recebido<br />

em Cristo, porque sem ele os anjos nutririam mais mortal inimizade<br />

contra nós do que um amigo cuidando em nos proteger. Diz-se que eles<br />

“sobem e descem” sobre ele, não porque ministrem exclusivamente


86 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

a ele, mas porque, por sua causa e sua honra, incluem todo o corpo<br />

da Igreja em seu cuidado. Tampouco ponho em dúvida que ele esteja<br />

fazendo alusão à escada que foi mostrada ao patriarca Jacó em sonho<br />

[Gn 28.12], pois o que aquela visão esboçava é realmente cumprido em<br />

Cristo. Finalmente, a suma desta passagem consiste em que, embora<br />

toda a raça humana estivesse excluída do reino de Deus, o portão celestial<br />

está agora aberto a todos nós, de modo que somos concidadãos<br />

dos santos e companheiros dos anjos [Ef 2.19]; e que eles, designados<br />

guardiães de nossa salvação, descem daquele bendito repouso da glória<br />

30 celestial para amenizar nossas misérias.<br />

30 “De la glorie celeste.”


Capítulo 2<br />

[2.1-11]<br />

E, ao terceiro dia, 1 houve um casamento em Caná da Galileia; e<br />

estava ali a mãe de Jesus. E foram também convidados para o casamento,<br />

Jesus e seus discípulos. E, havendo acabado o vinho,<br />

a mãe de Jesus lhe disse: Não há mais vinho. E Jesus lhe disse:<br />

Mulher, o que tenho eu a ver contigo? Minha hora ainda não chegou.<br />

Sua mãe disse aos servos: Fazei tudo quanto ele vos disser.<br />

Ora, havia ali postas seis talhas de pedras para as purificações<br />

dos judeus, contendo duas ou três metretas. Jesus lhes disse:<br />

Enchei as talhas de água. E encheram-nas até a borda. E então<br />

lhes disse: Tirai agora e levai ao administrador da festa. E as levaram.<br />

E, quando o administrador da festa provou a água agora<br />

transformada em vinho, e não sabendo donde viera (se bem que<br />

o sabiam os servos que tiraram a água), o administrador da festa<br />

chamou o esposo, e lhe disse: Todo homem primeiro põe o<br />

vinho bom; e quando todos já tenham bebido espontaneamente,<br />

então se serve o pior; tu conservaste o vinho bom até agora. Jesus<br />

começou assim seus sinais em Caná da Galileia, e manifestou<br />

sua glória; e seus discípulos creram nele.<br />

1. Houve um casamento em Caná da Galileia. O fato de esta história<br />

relatar o primeiro milagre realizado por Cristo é suficiente razão<br />

para considerá-la com extrema prudência, ainda que, como veremos<br />

1 “Tertio die” – “trois jours apres.”


88 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

mais adiante, haja outras razões que incitam a nossa atenção. Mas sua<br />

multiforme utilidade será demonstrada quando avançarmos mais. O<br />

Evangelista, antes de tudo, denomina o lugar – Caná da Galileia. Não<br />

aquela situada nas proximidades de Sarepta, entre Tiro e Sidom, e<br />

chamada “a maior”, em comparação com a outra Caná, a qual alguns<br />

situam na província da tribo de Zebulom e outros a designam como<br />

pertencente à tribo de Aser. Porque Jerônimo também declara que<br />

ainda em seu tempo existia uma cidadezinha com esse nome. É provável<br />

que seja aquela que ficava nas proximidades da cidade de Nazaré,<br />

visto que a mãe de Jesus pôde atender ao casamento. No capítulo 4<br />

se verá que ela ficava cerca de um dia de viagem de Cafarnaum. Sua<br />

proximidade à cidade de Betsaida pode também inferir-se do fato de<br />

que o Evangelista nos informa que o casamento foi celebrado três dias<br />

depois de Cristo haver estado naquele distrito. É possível que houvesse<br />

também uma terceira Caná, não muito longe de Jerusalém, ainda<br />

que fora da Galileia; contudo deixo essa questão em aberto, porquanto<br />

não tenho como saber.<br />

E a mãe de Jesus estava ali. É bem provável que fosse algum parente<br />

de Cristo que se casava, porque este é mencionado como tendo<br />

acompanhado sua mãe. À luz do fato de que os discípulos foram também<br />

convidados, podemos deduzir quão simples e modesto era seu<br />

modo de viver, já que vivia em comum com eles. Pode-se concluir ser<br />

algo incongruente que alguém, de forma alguma rico ou possuidor de<br />

certos recursos (como se fará evidente pela falta de vinho), convide<br />

outros quatro ou cinco por causa de Cristo. Mas os pobres são mais<br />

prontos e mais francos em seus convites; pois, ao contrário dos ricos,<br />

eles não temem ser humilhados caso não consigam tratar seus convidados<br />

de forma suntuosa e magnificente. O pobre é quem conserva o<br />

antiquado costume da mútua hospitalidade.<br />

Além disso, pode parecer descortês que o noivo deixasse seus<br />

convivas sem vinho em meio ao jantar. Porquanto não passa de irresponsável<br />

aquele que não provê sua festa de quantidade suficiente de<br />

vinho. Respondo que, o que é relatado aqui, às vezes sucede, especial-


Capítulo 2 • 89<br />

mente quando o vinho é de uso diário. Além disso, o contexto revela<br />

que o vinho começou a faltar já no final da festa, quando é comum que<br />

todos já se serviram bem. O administrador da festa diz outro tanto:<br />

“Todos servem primeiro o melhor vinho, e, depois que os convidados<br />

já beberam bastante, serve-se o vinho inferior.” Além do mais, não tenho<br />

dúvida de que tudo isso foi premeditado pela divina providência,<br />

para que houvesse ali um momento oportuno para o milagre.<br />

3. A mãe de Jesus lhe disse. É de se perguntar se, porventura, ela<br />

esperava ou pedia alguma coisa a seu filho, quando ele não havia ainda<br />

realizado nenhum milagre. E é possível que, sem esperar qualquer<br />

providência desse gênero, ela lhe pedisse que tranquilizasse o ânimo<br />

dos convivas com algumas exortações piedosas, ao mesmo tempo assim<br />

amenizasse o embaraço do noivo. Além do mais, considero suas<br />

palavras como συμπαθεία, ou ardente compaixão. Pois quando a santa<br />

mulher viu que a festa poderia ser perturbada pela suspeita de que os<br />

convivas pudessem estar sendo tratados com desrespeito, e viessem<br />

a murmurar contra o noivo, ela procurou algum meio de amenizar a situação.<br />

Crisóstomo lança-lhe a suspeita de ser movida por seu instinto<br />

feminino de ir após não sei que sorte de favorecimento para si e para<br />

seu Filho. Tal conjectura é destituída do apoio de qualquer argumento.<br />

Por que, pois, Cristo a repele com tanta severidade? Minha resposta<br />

é que, embora ela não fosse motivada por nenhuma ambição, nem<br />

por outra qualquer afeição carnal, todavia pecou em ir além de seus<br />

próprios limites. Sua solicitude sobre a inconveniência suportada por<br />

outros, e seu desejo de remediá-la de alguma forma, eram provenientes<br />

da bondade e devem receber seu crédito; não obstante, ao promover-<br />

-se, ela poderia ter obscurecido a glória de Cristo. Portanto, devemos<br />

observar que Cristo falou assim, não tanto por ela, mas por causa dos<br />

demais. Sua modéstia e generosidade eram imensas demais para que<br />

merecessem reprovação tão severa. Além disso, ela não estava pecando<br />

consciente e voluntariamente; Cristo, porém, apenas mostra o perigo de<br />

que as palavras de sua mãe fossem mal interpretadas, como se estivesse<br />

nela ordenar que ele, a partir daí, operasse o milagre.


90 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

4. Mulher, o que tenho a ver contigo? O grego literalmente significa:<br />

“O que a mim e a ti?”. Mas a fraseologia grega vem a ser a<br />

mesma coisa que o latim: Quid tibi mecum? (“O que tens tu a ver comigo?”).<br />

O antigo tradutor [Vulgata] desorientou a muitos, dizendo<br />

que Cristo considerou a falta de vinho como algo que não interessava<br />

nem a ele nem a sua mãe. À luz da segunda cláusula, porém, podemos<br />

facilmente concluir quão longe isso estava da mente de Cristo, pois<br />

ele se reveste desse cuidado e declara que isso era de seu interesse<br />

quando acrescenta que sua hora não ainda não chegara. Essas duas<br />

coisas devem estar juntas, ou seja, que Cristo entende o que lhe seria<br />

necessário fazer, e, no entanto, nada fará a esse respeito seguindo a<br />

sugestão de sua mãe.<br />

Esta é uma passagem notável. Ora, por que ele absolutamente<br />

recusa à sua mãe o que depois graciosamente admitiu tão amiúde a<br />

toda sorte de pessoas? Além disso, por que ele não se satisfaz com a<br />

mera recusa, mas ainda a coloca na categoria comum de mulher, nem<br />

mesmo honrando-a com o título de mãe? É indubitável que este dito<br />

de Cristo adverte pública e francamente aos homens a terem o cuidado<br />

de não transferir a Maria o que pertence a Deus, exaltando de<br />

modo tão supersticioso a honra do nome maternal da Virgem Maria. 2<br />

Cristo, pois, se dirige a sua mãe nesses termos com o fim de transmitir<br />

uma lição perpétua e geral a todas as gerações, para que alguma<br />

honra extravagante prestada a sua mãe não viesse a obscurecer sua<br />

divina glória.<br />

Quão necessária se fez esta advertência, em consequência das<br />

grosseiras e abomináveis superstições que se seguiram mais tarde,<br />

o que é sobejamente notório. Pois Maria se transformou em Rainha<br />

do Céu, a Esperança, a Vida e a Salvação do mundo. E, de fato, seu<br />

insano desvario foi tão longe que despiram Cristo de suas prerrogativas,<br />

e o deixaram quase nu. E quando condenamos essas malditas<br />

blasfêmias dirigidas ao Filho de Deus, os papistas nos chamam de ma-<br />

2 “En la vierge Marie.”


Capítulo 2 • 91<br />

liciosos e invejosos. Não só isso, mas disseminam a perversa calúnia<br />

de que somos letais inimigos da honra da santa Virgem, como se ela<br />

não possuísse ainda todas as honras que lhe são devidas, a menos<br />

que ela se converta em deusa; como se devesse tratá-la com respeito,<br />

adornando-a com títulos sacrílegos e pondo-a em lugar de Cristo! Portanto,<br />

são os próprios papistas que fazem a Maria uma cruel injúria<br />

quando, a fim de desfigurá-la com falsos louvores, arrebatam de Deus<br />

o que lhe pertence.<br />

Minha hora ainda não chegou. Significa que ele até então nada<br />

fizera não por displicência ou indolência, e ao mesmo tempo insinua<br />

que ele cuidaria do problema quando o tempo oportuno chegasse.<br />

Como ele reprova sua mãe por pressa imponderada, assim, em contrapartida<br />

apresenta-lhe motivo para esperar um milagre. A santa Virgem<br />

reconhece ambas essas intenções, pois desistiu de pressioná-lo. E, ao<br />

aconselhar os servos que fizessem tudo quanto ele mandasse, com isso<br />

ela demonstra que agora ela está à espera de algo. Esta lição, porém,<br />

tem uma aplicação ainda mais ampla: sempre que o Senhor nos mantém<br />

em suspenso e retarda seu socorro, não significa que ele esteja inativo,<br />

mas, ao contrário, que regula suas operações de tal modo que só age no<br />

tempo determinado. Os que têm aplicado esta passagem com o intuito<br />

de provar que o tempo dos eventos é designado pelo Destino são ridículos<br />

demais para que mereçam sequer uma que os refute.<br />

A hora de Cristo às vezes significa a hora que lhe foi designada<br />

pelo Pai; e mais tarde ele chama seu tempo o que era conveniente e<br />

oportuno para a concretização dos mandamentos do Pai. Aqui, porém,<br />

ele reivindica o direito de dispor e decidir o tempo de trabalhar e exibir<br />

seu poder divino. 3<br />

5. Sua mãe disse aos servos. Aqui a santa Virgem dá um notável<br />

exemplo da genuína obediência que ela devia a seu Filho, 4 quando a<br />

questão relacionada era não os deveres humanitários, mas de seu divino<br />

poder. Portanto, ela modestamente aquiesce à resposta de Cristo e<br />

3 “De bonongner et desployer sa virtue Divine.”<br />

4 “a son Fils.”


92 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

exorta aos demais a que obedeçam às injunções dele. Reconheço que<br />

o que a Virgem agora afirma se relacionava com a presente ocorrência,<br />

e era como se ela estivesse, neste caso, negando a si qualquer autoridade,<br />

e que Cristo faria, segundo seu próprio beneplácito, tudo quanto<br />

quisesse. Mas, se o leitor atentar bem sua intenção, notará que sua<br />

afirmação tem uma aplicação ainda mais ampla. Pois, primeiramente,<br />

ela renuncia e descarta o poder que aparentemente usurpara, e em<br />

seguir atribui a Cristo toda autoridade, quando os incita a fazer tudo o<br />

que ele mandasse. Daqui, por estas palavras, somos instruídos, em termos<br />

gerais, que, se desejarmos alguma coisa de Cristo, não obteremos<br />

resposta às nossas orações, a menos que dependamos inteiramente<br />

dele, buscando-o e, em suma, fazendo tudo o que ele ordenar. Em contrapartida,<br />

ele não nos encaminha a sua mãe, mas, ao contrário, nos<br />

convida a irmos a ele próprio.<br />

6. Ora, havia ali seis talhas de pedra. <strong>Segundo</strong> a computação<br />

de Budaeus, deduzimos que essas talhas eram muito grandes; pois,<br />

visto que uma metreta 5 (μετρητὴς) equivale a vinte congii, cada uma<br />

contendo pelo menos um sextarius em nossa medida. 6 Portanto, Cristo<br />

os supriu com uma grande abundância de vinho; aliás, o suficiente<br />

para mais de cento e cinquenta pessoas numa festa de núpcias. Além<br />

disso, tanto o número quanto o tamanho das talhas servem para confirmar<br />

a veracidade do milagre. Se tivessem retido apenas duas ou<br />

três congii, muitos poderiam ter levantado suspeitas se porventura<br />

aquele vinho não fora trazido de algum outro lugar. Se a água transformada<br />

em vinho estivesse em apenas um vaso, a autenticidade do<br />

milagre não teria sido tão evidente e indisputável. Portanto, não é<br />

sem uma razão plausível que o Evangelista mencione seu número e<br />

seu conteúdo.<br />

5 O tamanho exato do barril não pode ser facilmente averiguado. Se μετρητὴς é aqui<br />

usado pelo Evangelista meramente como uma palavra grega, devemos concluir ser<br />

ela uma medida Ática, a qual era quase igual a nove galões ingleses. Se, repetindo, for<br />

colocado aqui como um substituto da palavra hebraica, Bath (), como fez a Septuaginta<br />

em 2 Crônicas 4.5, provavelmente será calculado em sete galões e meio.<br />

6 “De ce pays de Savoye” – “deste país, Savoy.”


Capítulo 2 • 93<br />

A presença de vasos tão numerosos e tão grandes, postos ali, procedia<br />

da superstição. Haviam recebido da lei de Deus a cerimônia da<br />

lavagem. Uma vez, porém, que o mundo seja tão inclinado aos excessos<br />

externos, os judeus, não satisfeitos com a simplicidade ordenada por<br />

Deus, divertiam-se com constantes aspersões. E já que a superstição é<br />

ambiciosa, indubitavelmente conduziu à ostentação. Da mesma forma,<br />

vemos no papado de hoje que tudo quanto se diz pertencer ao culto<br />

divino é exposto por mero exibicionismo. Houve, pois, um duplo erro:<br />

sem qualquer mandamento da parte de Deus, se envolveram precipitadamente<br />

numa desnecessária cerimônia de seu próprio invento. Da<br />

mesma forma, a pretexto da religião, a ambição comandou essa pompa.<br />

Certos escandalosos dentro do papado tiveram a assombrosa e<br />

perversa ousadia de fazer a exibição de algumas talhas como sendo<br />

aquelas mesmas talhas com que Cristo realizou este milagre em Caná. 7<br />

Mas, em primeiro lugar, são pequenas demais, bem como desiguais em<br />

tamanho. Até hoje, quando a luz do evangelho se encontra tão claramente<br />

ao nosso redor, não se envergonham de praticar essas artimanhas, as<br />

quais certamente não é enganar com encantamentos, mas ousadamente<br />

zombar dos homens como se fossem cegos; e o mundo, que não percebe<br />

zombaria tão grosseira, é evidentemente enfeitiçado por Satanás.<br />

7. Enchei as talhas com água. É possível que tal ordem tenha parecido<br />

absurda aos servos, pois já tinham água mais que suficiente. Mas<br />

esse é o modo como o Senhor costuma agir em relação a nós, a fim<br />

de que um resultado inesperado faça seu poder resplandecer de forma<br />

ainda mais extraordinária. Esse detalhe é introduzido para enfatizar a<br />

natureza do milagre; pois quando os servos tiraram o vinho dos vasos<br />

que tinha enchido com água, não era possível restar qualquer suspeita.<br />

8. Levai ao administrador da festa. Pela mesma razão de antes,<br />

Cristo queria que o vinho fosse provado pelo administrador da festa,<br />

antes que ele mesmo ou algum outro dos convivas dele bebessem. À luz<br />

do modo tranquilo como os servos o obedeceram em tudo, podemos<br />

7 “Qu’ils avoyent entre leurs reliques de ces cruches, esquelles Christ avoit fait ce miracles<br />

en Cana, et em monstroyent.”


94 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

perceber sua extraordinária autoridade e reputação. O homem a quem o<br />

Evangelista chama de administrador da festa superintendia a preparação<br />

da festa e o arranjo das mesas – não que a festa fosse muito grande e<br />

cheia de pompas, mas porque os casamentos pobres tomavam por empréstimo<br />

os títulos extravagantes da grandeza e esplendor dos ricos. No<br />

entanto, surpreende que Cristo, um mestre de sobriedade, suprisse a<br />

festa com uma grande quantidade de vinho, e do melhor. Respondo que,<br />

quando Deus nos provê diariamente com abundância de vinho, cometemos<br />

um sério erro se permitimos que sua benevolência se nos converta<br />

em incitamento para a luxúria. Mas será uma indubitável prova de nossa<br />

temperança se formos simples e moderados em meio à abundância. Justamente<br />

como Paulo se regozija por ter aprendido a viver bem tanto na<br />

fartura quando na escassez [Fp 4.11].<br />

11. Jesus começou assim seus sinais. Significa que esse foi o<br />

primeiro milagre efetuado por Cristo. Pois ainda que a proclamação<br />

angelical, dizendo aos pastores que ele nascia em Belém, a estrela<br />

aparecendo aos magos e o Espírito Santo descendo sobre ele numa<br />

semelhança de pomba fossem todos milagres, todavia, estritamente<br />

falando, não foram realizados por ele mesmo. É aqui que ele aparece<br />

como o próprio protagonista dos milagres. Pois é uma ridícula e absurda<br />

interpretação aquela que alguns apresentam, dizendo que este<br />

é assinalado como sendo o primeiro dentre os milagres que Cristo<br />

efetuou em Caná da Galileia, como se ele escolhesse um lugar para manifestar<br />

seu poder onde lemos que ele só foi duas vezes. O propósito<br />

do Evangelista era antes observar a ordem de tempo que Cristo seguiu<br />

no exercício de seu poder. Pois até a idade de trinta anos ele ficou em<br />

casa como uma pessoa comum. Seu batismo foi uma admissão ao exercício<br />

de seus deveres, só então ele começou a aparecer em público e a<br />

mostrar-se abertamente através de claras provas a que propósito fora<br />

ele enviado pelo Pai. Portanto, não carece que nos admiremos se ele<br />

adiou a primeira prova de sua divindade até este momento.<br />

O matrimônio é grandemente glorificado não só pelo fato de Cristo<br />

ter honrado uma festa de núpcias com sua presença, mas também


Capítulo 2 • 95<br />

por tê-lo adornado com seu primeiro milagre. Existem certos cânones<br />

antigos em que os clérigos são proibidos de atender às cerimônias<br />

nupciais. A razão para tal proibição consistia em que, sendo eles espectadores<br />

da habitual licenciosidade, talvez sua presença viesse a<br />

ser interpretada como aprovação. Mas teria sido muito melhor se eles<br />

tivessem assumido aquela postura séria que costuma coibir a devassidão<br />

a que os homens descarados e dissolutos se entregam quando<br />

não há ninguém observando-os. Ao contrário disso, que o exemplo<br />

de Cristo seja nossa diretriz. Não suponhamos que haja algo melhor a<br />

fazer-se além daquilo que ele pessoalmente fazia.<br />

E manifestou sua glória. Ele propiciou esta notável e gloriosa evidência<br />

diante do fato que se estabelecia, ou seja, que ele era o Filho de<br />

Deus. Pois todos os milagres que ele exibiu aos olhos do mundo eram<br />

outros tantos testemunhos de seu divino poder. E agora chegara o<br />

tempo oportuno de manifestar sua glória, quando, sob o comando do<br />

Pai, ele queria ser conhecido. Além do mais, deste fato descobrimos<br />

o propósito dos milagres, pois a expressão equivale a uma declaração<br />

de que Cristo realizara este milagre com o intuito de revelar sua glória.<br />

Em contrapartida, o que diríamos daqueles milagres que obscurecem<br />

a glória de Cristo?<br />

E seus discípulos creram nele. Se eram discípulos, então deviam<br />

já possuir algum matiz de fé. Considerando, porém, que até aqui o<br />

haviam seguido com uma fé incerta e nebulosa, agora começavam a<br />

dedicar-se a ele, reconhecendo que devia ser o Messias, como já lhes<br />

fora proclamado. Cristo, porém, é muito bondoso em aceitar como<br />

seus discípulos aqueles cuja fé era ainda débil. Aliás, esta doutrina tem<br />

uma aplicação universal. Pois toda fé adulta teve outrora seu período<br />

de infância; nem ela é tão perfeita em alguém que não haja mais qualquer<br />

necessidade de progresso. Portanto, aqueles que já eram crentes,<br />

passam a crer ainda mais, enquanto fazem progresso diariamente<br />

rumo ao alvo. E, assim, aqueles que já alcançaram os primórdios da<br />

fé, que então se esforcem continuamente para obter progresso. Aqui<br />

também se revela o fruto dos milagres – que eles devem relacionar-se


96 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

à confirmação e progresso da fé. Quem quer que os torça para algum<br />

outro propósito, corrompe e avilta todo seu uso, precisamente como<br />

vemos os papistas vangloriando-se de seus milagres fictícios, com nenhum<br />

outro propósito senão o de encobrir a fé e desviar as mentes dos<br />

homens de Cristo para as criaturas.<br />

[2.12-17]<br />

Depois disso, desceu a Cafarnaum, ele, sua mãe, seus irmãos e<br />

seus discípulos; e ficaram ali não muitos dias. E a páscoa dos<br />

judeus estava próxima, e Jesus subiu a Jerusalém. E encontrou<br />

no tempo os que vendiam bois e ovelhas e pombos, bem como<br />

os cambistas assentados. E, tendo feito um azorrague de cordas,<br />

os expulsou a todos do templo, com as ovelhas e bois; e<br />

espalhou o dinheiro dos cambistas, e derrubou suas mesas; e,<br />

aos que vendiam pombos, ele disse: Tirai daqui essas coisas;<br />

não façais da casa de meu Pai casa de comércio. E seus discípulos<br />

lembraram-se do que fora escrito: O zelo de tua casa me<br />

tem consumido.<br />

12. Depois disso, desceu a Cafarnaum. O Evangelista transita a<br />

uma história completamente nova. Ele decidiu coletar umas poucas<br />

coisas dignas de lembrança, as quais os outros três haviam omitido,<br />

e relata o tempo em que se deu o que está para contar; pois os outros<br />

também relatam o que aqui lemos de Cristo realizando, mas a diferença<br />

de tempo mostra que foi um evento semelhante, porém não o<br />

mesmo. Cristo, pois, por duas vezes purificou o templo dos sórdidos e<br />

mundanos negócios financeiros. A primeira vez, no limiar de sua missão,<br />

e a outra vez, quando estava para partir do mundo para seu Pai.<br />

Para termos uma visão geral da passagem, é preciso que examinemos<br />

os detalhes em sua ordem. Havia uma razão plausível para que<br />

bois, ovelhas e pombos fossem oferecidos à venda no templo e para que<br />

os cambistas estivessem assentados ali. Pois podiam alegar que suas<br />

transações não eram absolutamente seculares, senão que, ao contrário,


Capítulo 2 • 97<br />

estavam conectadas com o sacro culto divino, a fim de que qualquer um<br />

tivesse como obter facilmente alguma coisa para apresentar ao Senhor.<br />

E, com certeza, tornava-se muito conveniente que as pessoas religiosas<br />

encontrassem as várias oblações no local próprio, e assim fossem poupadas<br />

da fadiga de procurá-las. Portanto, causa estranheza que Cristo<br />

se mostrasse tão irado. Mas é oportuno que se observem duas razões.<br />

Os sacerdotes abusavam desse comércio em prol de seu próprio lucro e<br />

satisfação de sua avareza, e era intolerável que Deus fosse escarnecido.<br />

Além disso, qualquer justificativa que os homens apresentassem, tão<br />

logo se apartavam, por mais leve que fosse, do mandamento de Deus,<br />

faziam-se culpáveis e mereciam correção. E essa é a principal razão por<br />

que Cristo assumiu a responsabilidade de purificar o templo, pois afirma<br />

claramente que o templo de Deus não é lugar de atos mercantis.<br />

Mas, pode-se perguntar, por que ele não principiou ministrando-<br />

-lhes instrução? Parece um procedimento desordenado e invertido<br />

usar a força para corrigir abusos, antes mesmo de tentar-se o antídoto<br />

da didática. Cristo, porém, tinha um alvo bem distinto. Pois já que chegara<br />

o tempo para ele desincumbir-se publicamente do ofício que lhe<br />

fora confiado pelo Pai, quis de alguma forma tomar posse do templo e<br />

pôr em evidência sua divina autoridade. E para que todos atentassem<br />

bem para seu ensino, suas morosas e sonolentas mentes tinham que<br />

ser despertadas por algo novo e inusitado. Ora, o templo era o relicário<br />

da religião e doutrina celestiais. Uma vez que queria restaurar a pureza<br />

da doutrina, era de imensurável importância estabelecer-se como<br />

o Senhor do Templo. Além disso, não havia outro meio de conduzir<br />

os sacrifícios e outros exercícios religiosos de volta ao seu propósito<br />

espiritual do que removendo deles os abusos. O que ele fez naquele<br />

momento era, portanto, uma espécie de prelúdio à reforma à qual o Pai<br />

o enviara a realizar. Numa palavra, era oportuno que os judeus fossem<br />

despertados, mediante tal exemplo, a fim de que esperassem de Cristo<br />

algo inusitado e assustador. E era igualmente necessário lembrá-los<br />

poderosamente da corrupção e perversão do culto divino, a fim de<br />

que não apresentassem objeção à sua correção.


98 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

E seus irmãos. É incerto por que seus irmãos o acompanhavam,<br />

a menos que coincidisse de irem, ao mesmo tempo, a Jerusalém. Além<br />

do mais, pelo termo irmãos, o idioma hebraico, como é bem notório,<br />

quer dizer toda sorte de parentes do sexo masculino.<br />

13. E a páscoa estava próxima, e então Jesus subiu a Jerusalém.<br />

Literalmente, o grego é “e ele foi”, mas o Evangelista adiciona a conjunção<br />

‘e’ em lugar da conjunção causal. Pois ele tenciona dizer que Jesus<br />

então subiu a Jerusalém com o fim de observar a páscoa. Seu objetivo<br />

era duplo: visto que o Filho de Deus era sujeito à lei, por nossa causa,<br />

ele desejava, ao observar precisamente todos os mandamentos da<br />

lei, revelar nele um tipo de plena submissão e obediência. Além disso,<br />

visto que ele podia realizar mais boas obras entre uma multidão de<br />

pessoas, quase sempre fazia uso desse tipo de oportunidade. Portanto,<br />

sempre que, posteriormente, se repete que Cristo veio a Jerusalém<br />

para os dias de festas, que o leitor observe bem que ele procedia assim<br />

primeiramente para que, juntamente com os demais, pudesse pôr em<br />

prática os exercícios da religião instituída por Deus; e, segundo, para<br />

que pudesse proclamar sua doutrina a um maior número de pessoas.<br />

16. Não façais da casa de meu Pai. Na segunda purificação do<br />

templo, os demais Evangelistas registram o uso de uma linguagem<br />

mais abrupta e severa – haviam feito do templo um covil de ladrões,<br />

e isso foi oportuno quando uma reprovação mais indulgente não teria<br />

sido de nenhum proveito. Ele simplesmente os adverte, então, a não<br />

profanar o templo de Deus, pervertendo-o com o fim de alienar seu<br />

uso. O templo era chamado a casa de Deus, visto que Deus queria ser<br />

ali invocado de uma forma especial, porque ali ele exercia seu poder e<br />

porque o separara para as cerimônias espirituais e santas.<br />

Cristo declara ser o Filho de Deus, aquele que podia reivindicar<br />

o direito e autoridade de purificar o templo. Além disso, visto que ele<br />

aqui apresenta o motivo de proceder daquela forma, qualquer um que<br />

quiser extrair vantagem desse fato deve concentrar-se principalmente<br />

nesta frase. Por que, pois, ele expulsa os compradores e vendedores<br />

do templo? Para restaurar o culto divino à sua integridade, o qual


Capítulo 2 • 99<br />

havia sido corrompido pelos homens perversos, e assim renovar e defender<br />

a santidade do templo.<br />

Ora, aquele templo, como bem o sabemos, fora edificado para<br />

ser a sombra daquelas coisas cuja vívida imagem está em Cristo. Para<br />

que permanecesse consagrado a Deus, ele tinha de ser usado única e<br />

exclusivamente para usos de cunho espiritual. Por essa razão, ele declara<br />

ser ilícito que o templo se convertesse num mercado. Ele achou<br />

seu argumento na instituição divina, a qual é nosso dever defender.<br />

Por quantas ilusões possa Satanás nos enganar, saibamos ser ímpio<br />

tudo quanto (por menor que seja) nos desvie do mandamento divino.<br />

Seria um ilusório e corrupto engano que o culto divino fosse defendido<br />

e promovido, se os sacrifícios estivessem convenientemente à mão<br />

para os crentes. Visto, porém, que Deus destinara seu templo a outros<br />

usos, Cristo desconsidera as objeções que poderiam surgir contra a<br />

ordem estabelecida por Deus.<br />

Os mesmos argumentos não aplicam, na atualidade, aos nossos<br />

edifícios para o culto público. Mas ao que foi dito do antigo templo se<br />

aplica justa e apropriadamente à Igreja, a qual é o santuário celestial<br />

de Deus na terra. Razão pela qual a majestade de Deus, que habita a<br />

Igreja, deve estar continuamente diante de nossos olhos, para que ela<br />

não seja maculada por qualquer impureza. Sua santidade, porém, só<br />

permanecerá íntegra se não lhe for admitido nada que seja estranho à<br />

Palavra de Deus.<br />

17. Seus discípulos lembraram. Há aqueles que gastam seu<br />

tempo inquirindo sobre como os discípulos teriam se lembrado da<br />

Escritura, a qual lhes era até então desconhecida e estranha. Não<br />

devemos imaginar que esta passagem da Escritura ocorreu à sua lembrança<br />

imediatamente; e sim que mais tarde, quando, instruídos por<br />

Deus, consideraram entre si o que significaria esta ação de Cristo, esta<br />

passagem da Escritura ocorreu-lhes sob a direção do Espírito Santo.<br />

E é verdade que a causa da obra de Deus nem sempre nos é evidente<br />

de imediato. Senão que depois, no transcurso do tempo, ele faz com<br />

que seu propósito nos seja conhecido. E esse é um freio bastante efi-


100 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

caz para deter nossa impaciência, a fim de não importunarmos a Deus<br />

quando nosso juízo não aprovar suas ações. Somos lembrados, ao<br />

mesmo tempo, que, quando Deus nos deixa em suspenso, esperemos<br />

pacientemente pela ocasião de mais pleno conhecimento e refreemos<br />

nossa inata precipitação. Pois Deus delonga a plena manifestação de<br />

suas obras para conservar-nos humildes.<br />

O significado consiste em que os discípulos, por fim, compreenderam<br />

que Cristo fora compelido por ardente zelo pela casa de Deus a<br />

expulsar dela tais profanações. Sem dúvida, Davi, pelo uso de sinédoque,<br />

designa sob o termo templo todo o culto divino. Pois o versículo<br />

completo se compõe assim: “O zelo de tua casa me tem devorado; e as<br />

afrontas dos que te afrontam caíram sobre mim” [Sl 69.9]. A segunda<br />

sentença contrabalança a primeira, ou melhor, é simplesmente uma<br />

reiteração explicativa. A suma de ambas as sentenças consiste em que<br />

Davi estava tão ansioso em defender a glória de Deus, que voluntariamente<br />

aceitou sobre sua cabeça todas as afrontas que os ímpios<br />

lançavam contra Deus. E ele se queimava com um zelo tal, que este<br />

único sentimento tragava todos os demais. Ainda nos diz que ele, pessoalmente<br />

se sentia assim, mas não pode haver dúvida de que, em sua<br />

própria pessoa, ele estava descrevendo o que propriamente pertencia<br />

ao Messias.<br />

Consequentemente, o Evangelista afirma que esta era uma das<br />

marcas pelas quais Jesus se fez conhecer aos discípulos como o vingador<br />

e o restaurador do reino de Deus. Então observa que eles seguiram<br />

a orientação da Escritura para entender corretamente a Cristo. E deveras<br />

ninguém jamais aprenderá o que Cristo é, ou o propósito de suas<br />

ações e sofrimentos, salvo pela orientação e ensino das Escrituras.<br />

Até onde, pois, cada um de nós deseja progredir no conhecimento de<br />

Cristo, teremos que meditar bastante e continuamente sobre a Escritura.<br />

Tampouco Davi faz menção da casa de Deus displicentemente, ao<br />

falar de sua glória. Pois ainda que Deus seja suficiente a si mesmo e se<br />

satisfaça exclusivamente consigo mesmo, não obstante quer que sua<br />

glória se manifeste na Igreja.


Capítulo 2 • 101<br />

Neste fato, ele mostra uma notável prova de seu amor para conosco,<br />

porquanto ele associa, por um laço indissolúvel, sua glória com<br />

nossa salvação. Resta, pois, que cada um individualmente se aplique<br />

a imitar a Cristo, já que no exemplo da Cabeça se demonstra uma lição<br />

geral para todo o corpo, segundo Paulo ensina em Romanos 15.3.<br />

Até onde pudermos, não permitamos que o sacro templo de Deus seja<br />

poluído em qualquer um de seus aspectos. Ao mesmo tempo, que revistamos<br />

todos de precaução para não ultrapassarmos os limites de<br />

nossa vocação. Em sintonia com o Filho de Deus, que todos sejamos<br />

zelosos. Contudo, não significa que todos nos munamos de um azorrague<br />

e arbitrariamente corrijamos os vícios, pois não nos foi dado o<br />

mesmo poder nem nos foi imposto o mesmo ofício.<br />

[2.18-22]<br />

Responderam-lhes, pois, os judeus, e lhe disseram: Que sinal 8<br />

nos mostras, visto que fazes essas coisas? Jesus respondeu, e<br />

lhes disse: Destruí este templo, e em três dias o reerguerei. Disseram-lhe,<br />

pois, os judeus: Em quarenta e seis anos esteve este<br />

templo em construção, e tu o reerguerás em três dias? Mas ele<br />

falava do templo de seu corpo. Quando, pois, ele ressuscitou<br />

dentre os mortos, seus discípulos se lembraram de que dissera<br />

isso; e creram na Escritura e na palavra que Jesus dissera.<br />

18. Que sinal nos mostras? À luz do fato de que em tão grande<br />

multidão ninguém deitou mão em Cristo e nenhum dos vendedores de<br />

gado nem cambista o expulsou com violência, podemos concluir que<br />

todos se sentiram fulminados e aturdidos por Deus e ficaram como que<br />

petrificados. Portanto, se não estivessem completamente cegos, este<br />

milagre teria sido suficientemente óbvio, ou seja, que um só homem<br />

ousasse tanto, um só contra tantos, um homem desarmado contra os<br />

fortes, um desconhecido contra os grandes líderes. Uma vez que eram<br />

8 “Quel signe, ou, miracle?” – “Que sinal? ou, Que milagre?”


102 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

muito mais fortes, por que não o impediram, salvo porque sua força se<br />

desvanecera e, por assim dizer, se quebrara?<br />

Todavia, tiveram algum motivo para fazer-lhe perguntas, porquanto<br />

não se pode permitir que alguém mude subitamente algum defeito e<br />

algo desagradável no templo de Deus. Certamente que todos têm a liberdade<br />

de condenar as corrupções, mas se um indivíduo anônimo se<br />

apresenta para removê-las, o mesmo será responsável por sua temeridade.<br />

Visto que o costume de negociar no templo era aceito, Cristo<br />

empreendeu algo novo e inusitado, e, portanto, mui corretamente lhe<br />

pedem para provar que fora enviado por Deus, porquanto baseavam<br />

seu argumento no princípio de que, em administração pública, não é<br />

lícito mudar qualquer coisa sem uma vocação e uma ordem definida<br />

da parte de Deus. Mas o ponto em que erravam era a recusa em admitir<br />

a vocação de Cristo, a não ser que ele efetuasse algum milagre, pois<br />

não constituía um princípio geral o fato de que os profetas e outros ministros<br />

de Deus realizaram milagres, nem ainda Deus se obrigara a tal<br />

necessidade. Estão, pois, errados em impor a Deus uma lei, exigindo<br />

um sinal. Quando os Evangelistas dizem que os judeus lhe fizeram uma<br />

pergunta, indubitavelmente querem dizer à multidão que ali estava, ou<br />

seja, toda a corporação da Igreja, como se estivessem dizendo que não<br />

foi pela palavra de um só ou de dois, mas de todo o povo.<br />

19. Destruí este templo. Aqui temos uma expressão alegórica.<br />

Cristo deliberadamente se expressou de forma um tanto obscura em<br />

virtude de considerá-los indignos de uma réplica direta – precisamente<br />

como em outra parte declara que lhes falava por parábolas porque<br />

não podiam compreender os mistérios do reino do céu [Mt 13.13].<br />

Mas, antes, recusa-lhes o sinal que pediram, seja porque ele não teria<br />

produzido nenhum bem ou porque ele bem sabia que ainda não chegara<br />

o tempo oportuno.<br />

Ocasionalmente, ele fazia algumas concessões, mesmo diante<br />

de seus pedidos injustificados. Portanto, deveria haver alguma forte<br />

razão por que ele o recusava agora. Mas, no caso de lançarem mão<br />

disto como uma justificativa pessoal, ele declara que seu poder se-


Capítulo 2 • 103<br />

ria provado e confirmado através de um sinal inusitado. Porquanto<br />

nenhuma prova mais convincente, do divino poder em Cristo, poderia<br />

ser mais desejável do que sua ressurreição dentre os mortos. Mas<br />

ele o insinua de forma figurativa, visto que não considerava dignos de<br />

uma promessa explícita. Em suma, ele trata os incrédulos segundo seu<br />

merecimento e ao mesmo tempo se exime de todo e qualquer desdém.<br />

Ainda não se fizera evidente que eles eram obstinados, mas Cristo bem<br />

sabia qual era o estado de seus sentimentos.<br />

Visto, porém, que ele realizou tantos e variados milagres, é possível<br />

que se pergunte por que ele agora menciona apenas um. Minha<br />

resposta é que ele manteve silêncio acerca de todos os outros milagres<br />

em virtude de sua ressurreição ser sobejamente suficiente para fechar<br />

suas bocas, e também porque ele não queria expor o poder de Deus ao<br />

escárnio deles. Pois ele fala em termos alegóricos até mesmo acerca da<br />

glória de sua ressurreição. Em terceiro lugar, digo que ele mencionou o<br />

que era apropriado ao caso, pois, com essas palavras, ele mostra que<br />

toda a autoridade sobre o templo lhe pertencia, visto que seu poder é<br />

incomensurável na edificação do verdadeiro templo de Deus.<br />

Este templo. Mas ainda que use a palavra templo para acomodar-se<br />

à presente situação, contudo o corpo de Cristo é merecida e<br />

consistentemente chamado templo. Cada um de nossos corpos é chamado<br />

tabernáculo [2 Co 5.4] por ser a habitação da alma, mas o corpo<br />

de Cristo era a morada de sua divindade. Pois sabemos que o Filho de<br />

Deus de tal modo se vestiu de nossa natureza, que na carne que ele<br />

assumiu habita a eterna majestade de Deus como em seu Santuário.<br />

Refuta-se facilmente o argumento de Nestório, que usa mal esta<br />

passagem para provar que um e o mesmo Cristo não pode ser ambas<br />

as coisas: Deus e homem. Ele ponderava assim: O Filho de Deus habitou<br />

na carne como num templo, portanto as naturezas são distintas,<br />

de modo que o mesmo ser não podia ser Deus e homem. Mas tal argumento<br />

pode ser aplicado aos homens, pois se seguirá que não é um só<br />

homem cuja alma habita no corpo como num tabernáculo; e, assim,<br />

é tolice torcer essa forma de expressão para desfazer a unidade de


104 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

pessoa em Cristo. Além do mais, deve-se observar que nossos corpos<br />

também são chamados templos de Deus [1 Co 6.19], mas num sentido<br />

diferenciado, isto é, porque Deus habita em nós pelo poder e graça<br />

de seu Espírito, mas em Cristo habita corporalmente a plenitude da<br />

Deidade, de tal forma que ele é verdadeiramente Deus manifestado na<br />

carne [1Tm 3.16].<br />

Eu o ressuscitarei. Cristo, aqui, reivindica para si a glória de sua<br />

ressurreição, ainda que geralmente a Escritura declare ser ela obra<br />

de Deus o Pai. Essas duas afirmações, porém, são perfeitamente<br />

concordantes. Pois ao recomendar-nos o poder de Deus, a Escritura<br />

expressamente atribui ao Pai o fato de que ele ressuscitou seu Filho<br />

dentre os mortos. Aqui, porém, Cristo especificamente proclama sua<br />

própria divindade. E Paulo reconcilia as duas em Romanos 8.11, pois<br />

ao Espírito, a quem ele faz autor da ressurreição, às vezes, ele chama<br />

indiscriminadamente o Espírito de Cristo e, às vezes, o Espírito do Pai.<br />

20. Quarenta e seis anos. O cálculo de Daniel concorda com esta<br />

passagem [Dn 9.25], porquanto ele ali o denomina de sete semanas,<br />

o que perfaz um período de quarenta e nove anos; mas, antes que a<br />

última dessas semanas terminasse, ele concluiu o templo. Parece contraditório<br />

que o tempo mencionado na história de Esdras seja mais<br />

curto, mas, na verdade, ela não causa nenhum conflito com as palavras<br />

dos profetas. Pois quando o Santuário foi estabelecido, antes<br />

que o edifício do templo fosse concluído, eles começaram a oferecer<br />

sacrifícios. Subsequentemente, houve uma longa interrupção na obra<br />

devido à indolência do povo, como é óbvio à luz das queixas do profeta<br />

Ageu [1.4], o qual reprova os judeus severamente pela tremenda<br />

disposição em construir suas próprias casas enquanto deixavam o<br />

templo de Deus por terminar.<br />

Mas, por que ele faz menção do templo que havia sido demolido<br />

por Herodes há quarenta anos ou ainda antes disso? O templo<br />

atual, ainda que construído de forma tão magnificente e com tantos<br />

gastos, foi completado por Herodes em oito anos, contrariando as expectativas,<br />

como relata Josefo (Antiguidade, Livro xv, cap. 11). Creio


Capítulo 2 • 105<br />

ser provável que esse novo edifício do templo pode ser considerado<br />

como se fosse o antigo templo permanecendo sempre em sua condição<br />

original, a fim de se conservar veneração mais séria. E então,<br />

expressando-se na forma comum e usual, eles diziam que o templo foi<br />

trabalhosamente, e em meio às maiores dificuldades, edificado pelos<br />

pais em quarenta e seis anos.<br />

A réplica deles demonstra claramente em que espírito buscavam<br />

um sinal, pois se possuíssem a disposição de obedecer reverentemente<br />

a um profeta enviado por Deus, então não teriam rejeitado de<br />

forma tão arrogante o que o Senhor afirmou em confirmação de seu<br />

ofício. Queriam algum testemunho do poder divino, e, contudo, não<br />

receberam nada senão uma resposta segundo a medida da tacanha<br />

capacidade humana.<br />

O mesmo fazem hoje os papistas que demandam milagres, não<br />

que deem importância ao poder de Deus (pois são determinados em<br />

preferir os homens a Deus, pois não alteram sequer um fio de cabelo<br />

do que receberam dos usos e costumes). Mas, para que não pareçam<br />

rebelar-se contra Deus sem motivo, fazem dessa escusa uma capa para<br />

encobrir sua obstinação. E, assim, a mente dos incrédulos se enfurece<br />

cegamente, e pretendem ver a mão de Deus exibida ante seus olhos,<br />

contudo não admitem vê-la como divina.<br />

Quando, pois, ele ressuscitou dos mortos. Esta lembrança era<br />

semelhante àquela outra que o Evangelista já mencionara. Os discípulos<br />

não entenderam o dito de Cristo, mas o ensino que parecia ter se<br />

desvanecido vãmente em tênue nuvem, mais tarde produziu fruto em<br />

seu devido tempo. Portanto, embora muitas das ações e ditos de nosso<br />

Senhor no momento sejam obscuros, não devemos entregar-nos ao<br />

desespero, muito menos desprezar só porque não entendemos agora. 9<br />

Deve-se notar o contexto aqui: “creram na Escritura e na palavra de<br />

Cristo.” Ao comparar a Escritura com a palavra de Cristo, foram auxiliados<br />

no progresso de sua fé.<br />

9 “Il ne faut pas pourtant quitter la tout par desespoir, ne mespriser ce que nous<br />

n’entendons pas tout incontinent.”


106 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

[2.23-25]<br />

Ora, quando se encontrava em Jerusalém pela páscoa, durante<br />

a festa, muitos, vendo os sinais que ele fazia, creram em seu<br />

nome. Mas Jesus não se confiava a eles, porquanto conhecia todos<br />

10 os homens, e ainda porque ele não precisava que alguém<br />

desse testemunho concernente ao homem; pois ele mesmo sabia<br />

o que estava no homem.<br />

23. Muitos creram em seu nome. O Evangelista, apropriadamente,<br />

conecta esta narrativa com a anterior. Cristo não exibiu o sinal tal<br />

como os judeus buscavam. Ora, visto que não fizera nenhum progresso<br />

entre eles pela instrumentalidade de muitos milagres, exceto que<br />

eles concebiam uma fé em termos frios e abstratos, o presente evento<br />

revela que eles não mereciam que ele satisfizesse seus desejos. Houve,<br />

deveras, algum resultado provindo dos sinais, ou, seja, no fato de que<br />

muitos creram em Cristo e em seu nome, de tal sorte que prontamente<br />

confessavam seguir seu ensinamento – porquanto nome, aqui, é usado<br />

em lugar de autoridade. Essa era alguma sorte de aparência de fé e até<br />

então efêmera, mas a mesma poderia tornar-se, por fim, fé genuína e<br />

útil na preparação para proclamar a fé de Cristo a outrem. Não obstante,<br />

o que já dissemos procede, ou seja, que eles possuíam uma atitude<br />

suficientemente correta para progredirem nas obras divinas, como as<br />

fariam [mais tarde].<br />

Sua fé, contudo, não era aquela pretendida que os recomendasse<br />

aos homens, pois se convenceram de que Cristo era algum grande profeta,<br />

e provavelmente até mesmo lhe atribuíssem o ofício de Messias, o<br />

qual era então sobejamente esperado. Mas já que não compreendiam o<br />

ofício especial do Messias, sua fé era absurda, apegados como eram ao<br />

mundo e às coisas terrenas. Era também um modo frio de crer, uma vã<br />

persuasão de qualquer atitude séria do coração, pois os hipócritas dão<br />

seu assentimento ao evangelho, não que pretendam devotar-se à obe-<br />

10 “Il les cognoissoient tous.”


Capítulo 2 • 107<br />

diência de Cristo, nem pela prática sincera da religião queiram atender<br />

ao chamado divino, mas porque não ousam negar o franco reconhecimento<br />

da verdade, especialmente quando não há razão para se lhe<br />

opor. Pois assim como não ousam, voluntária e gratuitamente, declarar<br />

guerra contra Deus, assim também, quando percebem que sua doutrina<br />

se opõe a sua carne e a seus desejos perversos, imediatamente se perturbam<br />

ou, no mínimo, se retraem da fé uma vez abraçada.<br />

Portanto, quando o Evangelista diz que aqueles homens creram,<br />

não tomo esse crer como sendo uma fé pretensiosa ou não-existente,<br />

mas que se sentiram de alguma forma constrangidos a se alistar do<br />

lado de Cristo. E, no entanto, essa não era uma fé genuína e autêntica<br />

demonstrada por Cristo, excluindo-os assim do número daqueles em<br />

cuja convicção se pode confiar. Além disso, sua fé só dependia de milagres<br />

e até então não possuía nenhuma raiz no evangelho, de tal modo<br />

que não podia ser uma fé firme e permanente.<br />

Os filhos de Deus, de fato, são socorridos pelos milagres para influenciar<br />

a fé, mas que não é ainda um crer genuíno quando se veem<br />

atônitos ante a manifestação do poder de Deus de uma forma tal como<br />

que crendo meramente que o ensino é verdadeiro, sem, contudo,<br />

sujeitar-se-lhe plenamente. E assim, quando tratamos da fé em geral,<br />

tenhamos em mente que existe certa fé que só é apreendida pelo entendimento,<br />

e subsequentemente desaparece, visto que não se acha<br />

arraigada no coração, e que essa é a fé que Tiago qualifica de morta,<br />

enquanto a fé genuína é aquela que depende sempre do Espírito de regeneração<br />

[Tg 2.17,26]. Observe-se que as obras de Deus não aproveitam<br />

a todos os homens igualmente, pois enquanto que por elas alguns se<br />

deixam guiar a Deus, outros caminham apenas levados por um cego impulso,<br />

de tal sorte que, embora percebam o poder de Deus, contudo não<br />

cessam de perambular guiados por suas próprias imaginações.<br />

24. Mas Cristo não confiava. Os que explicam a expressão<br />

como se Cristo se pusesse em guarda contra eles, já que sabia não<br />

serem eles honestos e fiéis, não me parece expressar suficientemente<br />

bem a intenção do Evangelista. Ainda menos adequada é aquela


108 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

que Agostinho usava para persuadir os catecúmenos. Ao contrário,<br />

o Evangelista quer dizer, em minha opinião, que não eram considerados<br />

por Cristo como legítimos discípulos, senão que os reputava<br />

como levianos e frívolos.<br />

Esta passagem precisa ser criteriosamente examinada: nem todo<br />

aquele que professa pertencer a Cristo desfruta de sua real estima.<br />

Contudo, é preciso acrescentar a razão que segue imediatamente.<br />

Porque ele mesmo sabia o que estava no homem. Não existe<br />

nada mais danoso do que a hipocrisia. Por essa razão, entre outras,<br />

ela é um erro excessivamente comum. Dificilmente existe uma pessoa<br />

que não se agrade de si mesma, e enquanto nos enganamos com fúteis<br />

lisonjas, cremos que Deus é tão cego quanto nós. Aqui, porém, somos<br />

advertidos sobre quão amplamente seu juízo difere do nosso, pois ele<br />

vê claramente aquelas coisas que escapam a nossa observação, visto<br />

que as mesmas se ocultam por detrás de máscaras. Por isso, ele as<br />

avalia segundo sua fonte oculta, isto é, segundo a atitude mais secreta<br />

do coração, as coisas que reluzem aos nossos olhos com seu falso brilho.<br />

Isso é precisamente o que Salomão expressa em Provérbios 21.2:<br />

“Todo caminho do homem é reto aos seus olhos, mas o Senhor sonda<br />

os corações.” Lembremo-nos, pois, que só são verdadeiros discípulos<br />

de Cristo aqueles que são aprovados por ele, porque só ele é o árbitro<br />

competente e juiz da presente matéria.<br />

Onde o Evangelista afirma que Cristo conhece todos os homens,<br />

pode-se perguntar se sua intenção visava somente àqueles de quem se<br />

referia diretamente ou se a referência é a toda a raça humana. Muitos o<br />

estendem à natureza comum do homem, e creem que o mundo inteiro<br />

é aqui condenado de ímpia e infiel hipocrisia. E, certamente, ele é um<br />

genuíno juízo que nada encontra nos homens para que Cristo os aceite<br />

no número dos seus. Mas não vejo como isso se enquadra no contexto,<br />

e, portanto, o limito aos que foram mencionados.<br />

Como era possível que se nutrisse dúvida sobre onde Cristo teria<br />

obtido tal conhecimento, o Evangelista antecipa a pergunta e replica<br />

que tudo quanto nos homens se acha oculto aos nossos olhos é


Capítulo 2 • 109<br />

visto por Cristo, de modo que ele podia, por direito inerente, fazer<br />

distinção entre os homens. Cristo, pois, que conhece os corações, não<br />

tinha qualquer necessidade de um mestre para aprender que sorte de<br />

homens era aqueles. Mas ele sabia que eram impregnados de uma natureza<br />

e atitude tais que, com toda justiça, os considerava como se<br />

fossem estranhos aos seus olhos.<br />

Há quem pergunte se nós, segundo o exemplo de Cristo, podemos<br />

também suspeitar daqueles que não nos dão prova de sua probidade.<br />

Isso, porém, nada tem a ver com a presente passagem. Nosso juízo é<br />

em extremo diferente do dele. Cristo conhecia as próprias raízes das<br />

árvores, nós, porém, só podemos conhecer a natureza de alguma árvore<br />

individual à luz dos frutos externos. Além disso, como diz Paulo,<br />

o amor não suspeita mal [1 Co 13.5], e não temos qualquer direito de<br />

suspeitar, sem boas razões, daqueles que nos são desconhecidos. Visto,<br />

porém, que nem sempre podemos ser enganados pelos hipócritas,<br />

e que a Igreja não pode se expor demasiadamente às fraudes dos perversos,<br />

pertence a Cristo munir-nos com espírito crítico.


Capítulo 3<br />

[3.1-6]<br />

Ora, havia entre os fariseus um homem chamado Nicodemos,<br />

um dos principais dos judeus. Ele foi ter com Jesus de noite,<br />

e lhe disse: Rabi, sabemos que tu és mestre vindo da parte de<br />

Deus; pois ninguém pode fazer esses sinais que fazes, a não<br />

ser que Deus esteja com ele. Jesus respondeu e lhe disse: Em<br />

verdade, em verdade te digo: A não ser que o homem nasça de<br />

novo, ele não pode ver o reino de Deus. Nicodemos lhe disse:<br />

Como pode um homem nascer sendo já velho? Pode entrar novamente<br />

no ventre de sua mãe e nascer? Jesus respondeu: Em<br />

verdade, em verdade te digo: A não ser que alguém nasça da<br />

água e do Espírito, ele não pode entrar no reino de Deus. O que<br />

nasce da carne é carne; e o que nasce do Espírito é espírito.<br />

1. Ora, havia um homem. Na pessoa de Nicodemos, o Evangelista<br />

então nos mostra quão transitória e frágil era a fé daqueles que se<br />

achavam atônitos ante a vista dos milagres de Cristo e pressurosamente<br />

se apinhavam ao seu redor. Pois esse homem pertencia à ordem<br />

dos fariseus e desfrutava da categoria de governante em sua nação, e,<br />

portanto, se avantajava em muito aos demais. A plebe, em sua maioria,<br />

era influenciada pelos levitas. Mas, quem não teria imaginado que um<br />

homem forte em erudição e experiência era também sério e sábio?<br />

Entretanto, à luz da resposta de Cristo, é óbvio que nada estava mais<br />

distante de seu propósito do que o desejo de aprender os rudimentos


112 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

da religião. Se um governante entre os homens é menos que um menino,<br />

o que pensaríamos do público em geral? Ora, embora o alvo do<br />

<strong>Evangelho</strong> fosse mostrar-nos, como num espelho, quão poucos em Jerusalém<br />

se predispunham a receber o evangelho, contudo esta história<br />

é em extremo proveitosa também em outras facetas. Particularmente,<br />

porque nela aprendemos acerca da natureza corrupta da raça humana,<br />

que é o ingresso certo de entrada na escola de Cristo, por cujos<br />

rudimentos devemos ser formados a fim de fazermos progresso na<br />

doutrina celestial. Pois a suma do discurso de Cristo consiste em que,<br />

para sermos discípulos legítimos, temos que transformar-nos em novas<br />

criaturas. Mas, antes de avançarmos um pouco mais, devemos, à<br />

luz dos detalhes narrados pelos Evangelistas, considerar os obstáculos<br />

que impediam Nicodemos de render-se inteiramente a Cristo.<br />

Entre os fariseus. Naturalmente, esse era, para Nicodemos, um<br />

título de honra entre seus compatriotas. O Evangelista, porém, não<br />

lho atribui em função da honra, mas, ao contrário, o realça como um<br />

obstáculo à sua ousada e espontânea visita a Cristo. Daí sermos lembrados<br />

de que os imponentes deste mundo são, na maioria das vezes,<br />

apanhados nas piores armadilhas. Aliás, vemos muitos deles tão firmemente<br />

presos que sequer bafejam a mais ínfima oração ao céu em<br />

toda sua vida.<br />

Em outro lugar, explicamos por que eram chamados fariseus, 1 pois<br />

se vangloriavam de ser os únicos intérpretes da lei, como se possuíssem<br />

a essência e o significado oculto da Escritura. E por essa razão se<br />

chamavam Perushim. 2 Ainda que os essênios granjeassem a reputação<br />

de ser santos em decorrência de sua vida mais austera, eram como<br />

1 Os pontos de vista que nosso autor tem do termo se acham plenamente expressos e<br />

examinados em Harmony, volume 1, página 281; porém não se pode presumir que este<br />

<strong>Comentário</strong> sobre o <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong>, que veio a lume no ano de 1553, faça referência<br />

à Harmonia, a qual não foi publicada senão em 1555. A prioridade da data (1548) do<br />

<strong>Comentário</strong> à Epístola aos Filipenses mui naturalmente nos leva a consultar aquela<br />

passagem, na qual Paulo diz que era um fariseu [3.5].<br />

2 Comm. on Harm. Of Gospel sobre Mateus 5.20 e 23.2; cf. também Comm. on Phil. 3.5.<br />

Calvino deriva ‘fariseu’ de parash, significando dividir, separar, ou declarar distintamente.<br />

Calvino escolhe o último significado, enquanto que os eruditos modernos geralmente<br />

preferem o primeiro, e então os descrevem como ‘os separados’.


Capítulo 3 • 113<br />

eremitas e renunciaram a vida e costumes comuns dos homens, e, por<br />

isso, a seita dos fariseus era tida na mais elevada consideração. Além<br />

disso, o Evangelista não menciona apenas que Nicodemos fazia parte<br />

da ordem dos fariseus, mas também era um dos líderes máximos de<br />

sua nação.<br />

2. Ele veio ter com Jesus de noite. À luz do fato de vir à noite,<br />

inferimos que ele era bastante tímido. Seus olhos nada mais viam senão<br />

sua distinção pessoal. 3 Também pode ser que tenha sido impedido<br />

pela vergonha, porquanto os homens ambiciosos acreditam que sua<br />

reputação é arruinada se uma vez descem do pedestal de mestres para<br />

a categoria de alunos. Não há dúvida de que o mesmo se ensoberbeceu<br />

com a fútil opinião de que era um erudito. Em suma, uma vez que<br />

nutria um elevado conceito acerca de si mesmo, não suportava a ideia<br />

de resigná-lo de vez. E, não obstante despontar nele alguma semente<br />

de piedade, pois, ouvindo que um profeta de Deus chegara, ele não faz<br />

pouco nem negligencia o ensino trazido do céu, e se comove de certo<br />

desejo pelo mesmo – desejo este emanado simplesmente do temor e<br />

reverência por Deus. Muitos se sentem excitados por uma leve curiosidade,<br />

inquirindo sofregamente por novidades, mas não há dúvida de<br />

que a religião e certa percepção da consciência impeliram Nicodemos<br />

a querer conhecer a doutrina de Cristo de uma forma mais pessoal e<br />

direta. E ainda que essa semente há muito estivesse oculta e morta, depois<br />

da morte de Cristo produz tal fruto como ninguém jamais haveria<br />

esperado [19.39].<br />

Rabi, sabemos. Estas palavras equivalem àquela sua expressão:<br />

“Rabi, sabemos que tu vieste como mestre.” Visto, porém, que os homens<br />

eruditos eram então comumente chamados Rabi, 4 Nicodemos<br />

primeiro saúda a Cristo na maneira usual, atribuindo-lhe o título ordinário<br />

e, subsequentemente, declara que aquele que exercia o ofício de<br />

mestre era enviado de Deus. E deste princípio depende toda a autoridade<br />

dos mestres na Igreja. Pois é tão somente da Palavra de Deus que<br />

3 “De sa grandeur et reputation.”<br />

4 “Qui signific Maistre.”


114 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

devemos aprender a sabedoria, e por isso a ninguém mais se deve ouvir<br />

para a salvação senão aqueles por cuja boca Deus fala. E devemos<br />

observar que, embora a religião estivesse profundamente corrompida<br />

e quase que subvertida entre os judeus, sempre mantiveram o princípio<br />

de que a nenhum homem era lícito ensinar a menos que o mesmo<br />

viesse de Deus. Visto, porém, que ninguém se vangloria mais arrogante<br />

e categoricamente de seu título divino do que os falsos profetas, eles<br />

precisam ser testados pelo espírito de discernimento. Consequentemente,<br />

Nicodemos acrescenta que é indubitável que Cristo tenha sido<br />

enviado por Deus, pois este exibia nele seu poder com tal virtude que<br />

não se podia negar que Deus estava com ele. Ele toma como matéria<br />

axiomática que Deus não costuma operar senão através de seus ministros,<br />

para que assim pudesse pôr seu selo sobre o ofício que lhes<br />

confiara. E ele está certo, pois Deus sempre designou os milagres para<br />

que fossem selos de sua doutrina. Ele está também certo em reconhecer<br />

Deus como o único autor dos milagres, quando diz que ninguém<br />

pode fazer tais sinais a não ser que Deus esteja com ele. Equivale dizer<br />

que não eram atos humanos, senão que o poder de Deus reinava e permanecia<br />

nitidamente neles. Numa palavra, os milagres têm um duplo<br />

resultado: preparar-nos para a fé e então imprimir maior fortalecimento<br />

naquele que tem sido concebido pela Palavra. E assim Nicodemos<br />

apropriou-se corretamente da primeira parte, visto que, à luz dos milagres,<br />

ele reconhece Cristo como um legítimo profeta de Deus.<br />

Não obstante, isso parece inconclusivo porque, já que os profetas<br />

podem enganar os ignorantes com suas fraudes tão perfeitamente<br />

como se estivessem, através de sinais genuínos, provando ser ministros<br />

de Deus, que diferença haverá entre a verdade e a falsidade, se<br />

porventura a fé dependesse de milagres? Aliás, Moisés declara expressamente<br />

que dessa forma somos testados se de fato amamos a Deus<br />

[Dt 13.3]. Conhecemos também a advertência de Cristo, bem como a<br />

de Paulo, ou seja, que os crentes devem precaver-se dos sinais mentirosos<br />

pelos quais o Anticristo ofusca muitos olhos [Mt 22.24]. Minha<br />

resposta é que isso é feito pela justa permissão de Deus, a fim de que


Capítulo 3 • 115<br />

os que merecem sejam enganados pela astúcia de Satanás. Digo, porém,<br />

que tal fato não impede que o poder de Deus se manifeste aos<br />

eleitos através de milagres, os quais costumam ser-lhes uma valiosa<br />

confirmação da genuína e sã doutrina. E assim, Paulo se gloria de que<br />

seu apostolado era confirmado por meio de sinais e prodígios [2Co<br />

12.12]. Portanto, por mais que Satanás tente manter Deus envolto<br />

em trevas, contudo, quando os olhos se abrem e a luz da sabedoria<br />

espiritual resplandece, os milagres são atestados bastante fortes da<br />

presença de Deus, conforme Nicodemos aqui declara.<br />

3. Em verdade, em verdade te digo. Cristo repete a expressão<br />

“em verdade” [amém] com o intuito de atrair a atenção. Pois quando<br />

está para falar do mais importante e mais sério de todos os temas,<br />

realmente precisava fazer Nicodemos mais atento. De outra forma, ele<br />

poderia ouvir todo este discurso displicente e levianamente. 5 Tal, pois,<br />

é o propósito da dupla afirmação.<br />

Ainda que este discurso pareça um tanto forçado e inoportuno,<br />

contudo era o modo mais adequado de Cristo começar. Pois assim<br />

como é inútil semear sementes num solo sem cultivo, também a doutrina<br />

do evangelho será negligentemente desperdiçada a menos que o<br />

ouvinte seja antes despertado e devidamente preparado à obediência<br />

e instrução. Cristo percebeu que a mente de Nicodemos era tão cheia<br />

de espinhos e asfixiada por tantas ervas daninhas, que dificilmente<br />

se encontraria ali espaço para o ensinamento espiritual. A presente<br />

exortação era, pois, como uma aradura a expurgá-lo, a fim de que nada<br />

impedisse de o ensino frutificar. Portanto, lembremo-nos de que isso<br />

foi expresso a apenas um homem, a fim de que o Filho de Deus se nos<br />

dirija diariamente no mesmo teor. Pois qual de nós dirá que se acha<br />

tão isento de afeições corruptas que não necessite de tal purificação?<br />

Se, pois, queremos progredir satisfatória e proveitosamente na escola<br />

de Cristo, então aprendamos a começar daqui.<br />

5 “L’oyant seulement comme en pensant ailleurs, et sans en tenir grand conte” – “ouvindo-o<br />

meramente como se estivesse pensando em algo mais, e sem nutrir muita preocupação<br />

com isso.”


116 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

A não ser que o homem nasça de novo. Em outros termos, enquanto<br />

lhe faltar a coisa mais importante no reino de Deus, não creio<br />

que você realmente me reconheça como Mestre, pois seu primeiro passo<br />

no reino de Deus é converter-se num novo homem. Visto, porém,<br />

que esta é uma passagem tão extraordinária, cada parte dela precisa<br />

ser detalhadamente examinada.<br />

Ver o reino de Deus vem a ser o mesmo que entrar no reino de<br />

Deus, como prontamente transparece do contexto. Mas estão equivocados<br />

aqueles que creem que o reino de Deus é o mesmo que céu.<br />

Antes, é a vida espiritual, cujo ponto de partida é a fé, aqui e agora, e<br />

que diariamente cresce em consonância com o progresso contínuo da<br />

mesma fé. O sentido, portanto, é que ninguém pode realmente unir-se<br />

à Igreja e ser reconhecido entre os filhos de Deus sem que antes seja<br />

renovado. Portanto, esse fato mostra de forma sucinta qual é o princípio<br />

da vida cristã.<br />

Ao mesmo tempo, somos instruídos por essa expressão que desde<br />

o nascimento somos alienados e completamente estranhos ao reino<br />

de Deus, como igualmente existe uma perpétua oposição entre Deus<br />

e nós, até que ele nos transforme pela operação [do Espírito] no segundo<br />

nascimento. Pois a afirmação é geral e compreende toda a raça<br />

humana. Se Cristo dissesse a apenas um homem ou a uns poucos que<br />

não poderiam entrar no céu, a menos que nasçam de novo, poderíamos<br />

supor que isso apontava só para certa classe de pessoas, mas ele<br />

está se referindo a todos sem exceção. Pois a linguagem é ilimitada e<br />

contém o mesmo teor de uma expressão de cunho universal, como:<br />

“Todo aquele que não nascer de novo...”.<br />

Além do mais, pelo termo nascer de novo ele tem em mente não a<br />

reparação de uma parte, mas a renovação da natureza inteira. Daqui se<br />

deduz que não há em nós absolutamente nada que não seja defectivo,<br />

pois se a reforma é necessária na totalidade e em cada parte, então a<br />

corrupção deve ter se expandido por toda parte. Falaremos sucintamente<br />

sobre isso de maneira mais plena. Erasmo, seguindo a opinião<br />

de Cirilo, incorretamente traduziu o advérbio como de cima. Reconhe-


Capítulo 3 • 117<br />

ço que em grego o significado é ambíguo, mas estou ciente de que<br />

Cristo falou a Nicodemos em hebraico. Nesse caso, não teria havido<br />

qualquer ambiguidade a confundir Nicodemos em sua infantil hesitação<br />

sobre o segundo nascimento da carne. É por isso que ele tomou as<br />

palavras de Cristo em nenhum outro sentido senão que o homem tem<br />

de nascer segunda vez antes de ser recebido no reino de Deus.<br />

4. Como pode um homem nascer? Ainda que a forma de expressão<br />

de Cristo não ocorra expressamente na lei e nos profetas, todavia,<br />

como renovação, é por toda parte mencionada na Escritura e constitui<br />

um dos princípios primordiais da fé, e se torna óbvio quão imperfeitamente<br />

instruídos eram os escribas de então na leitura das Escrituras.<br />

Certamente, este homem não era o único negligente em desconhecer<br />

a graça da regeneração. O elemento primordial na doutrina da piedade<br />

era negligenciado em razão de quase todos eles se acharem preocupados<br />

com vãs sutilezas.<br />

O papado atual nos exibe um exemplo similar em seus teólogos,<br />

pois gastam toda sua vida em profundas especulações, contudo<br />

conhecem menos acerca de tudo o que pertence ao culto divino, à certeza<br />

de nossa salvação ou à prática da piedade, do que um sapateiro<br />

ou um agricultor conhece de astronomia. E o que é pior, deleitando-se<br />

com os mistérios exóticos, francamente desprezam o genuíno ensino<br />

da Escritura como algo indigno da categoria de mestres.<br />

Nem precisamos sentir-nos perplexos ante o fato de Nicodemos<br />

tropeçar numa palha, por assim dizer, pois é uma justa vingança divina<br />

que aqueles que pensam de si como sendo os mais excelentes e eminentes<br />

mestres, e para quem a simplicidade ordinária da doutrina é<br />

algo vil e vulgar, assustem-se diante de coisas as mais ínfimas.<br />

5. A não ser que o homem nasça da água. Esta passagem tem<br />

sido explicada de várias formas. Alguns acreditam que aqui se expressam<br />

distintamente duas partes da regeneração, e que pelo termo água<br />

subentende-se a negação do velho homem, enquanto tomam o termo<br />

Espírito como sendo a nova vida. Outros pensam que há aqui uma antítese<br />

implícita, como se Cristo estivesse contrastando água e Espírito


118 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

– ou seja, elementos puros e líquidos – com a natureza terrena e animal<br />

do homem. Por isso tomam este dito como sendo de caráter alegórico,<br />

a saber, que Cristo estava recomendando a nos despirmos de nossa<br />

pesada e insuportável massa de carne e a nos tornarmos como água e<br />

ar, a fim de nos movermos para cima ou, pelo menos, não cairmos por<br />

terra sob um fardo tão pesado. Mas ambas as opiniões me parecem<br />

alheias à intenção de Cristo.<br />

Crisóstomo, com quem a maioria concorda, relaciona o termo<br />

água com o batismo. O significado, então, seria que, por meio do batismo,<br />

entramos no reino de Deus, porque então o Espírito de Deus<br />

nos regenera. Daí surgir a crença na absoluta necessidade do batismo<br />

para a esperança de vida eterna. Mas ainda que concordássemos que<br />

neste ponto Cristo está falando do batismo, não devemos forçar suas<br />

palavras a ponto de fazê-lo restringir a salvação ao sinal externo. Ao<br />

contrário, ele conecta água com o Espírito porque, sob esse sinal visível,<br />

ele testifica e sela a novidade de vida, a qual, tão somente através<br />

de seu Espírito, Deus efetua em nós. É verdade que somos excluídos<br />

da salvação se desprezarmos o batismo; e, neste caso, confesso ser<br />

ele necessário. É absurdo, porém, confinar ao sinal a certeza da salvação.<br />

No que diz respeito a esta passagem, não posso de forma alguma<br />

convencer-me de que Cristo esteja falando do batismo, porquanto isso<br />

teria sido inoportuno. E devemos ter sempre em mente o propósito<br />

de Cristo, o qual já explicamos como sendo o desejo de impelir Nicodemos<br />

à novidade de vida, porquanto não seria capaz de receber o<br />

evangelho enquanto não começasse a ser um outro homem.<br />

Para sermos filhos de Deus temos que nascer de novo, e que o<br />

Espírito Santo é o autor desse segundo nascimento é, pois, uma afirmação<br />

única e simples. Pois enquanto Nicodemos sonhava com a<br />

regeneração (παλιγγενεσία) ou transmigração ensinada por Pitágoras,<br />

que imaginava que as almas, após a morte de seus corpos, entrava em<br />

outros corpos, Cristo, para libertá-lo desse erro, acrescenta, à maneira<br />

de explicação, que nascer segunda vez não é um evento que sucede


Capítulo 3 • 119<br />

naturalmente, e nesse ato ninguém se reveste de um novo corpo, 6 mas<br />

nasce enquanto é renovado na mente e coração, mediante a graça do<br />

Espírito.<br />

Consequentemente, nosso Senhor empregou as palavras Espírito<br />

e água no mesmo sentido, e isso não deve ser tomado como sendo uma<br />

interpretação abrupta e forçada. Quando se menciona o Espírito na<br />

Escritura, uma forma frequente e comum de expressão é acrescentar<br />

a palavra água ou fogo, para expressar seu poder. De vez em quando,<br />

ouvimos de Cristo batizando com o Espírito Santo e com fogo, quando<br />

fogo não significa algo distinto do Espírito, mas simplesmente mostra<br />

a natureza de seu poder em nós.<br />

É uma questão de pouca importância anteceder ele a palavra<br />

água. Quer dizer simplesmente que esta frase flui mais facilmente que<br />

outra, já que uma afirmação clara e direta segue a metáfora. É como<br />

se Cristo dissesse que ninguém será filho de Deus enquanto não for<br />

renovado pela água, e que essa água é o Espírito que nos purifica de<br />

uma nova forma, e que, mediante seu poder derramado sobre nós,<br />

nos comunica a energia da vida celestial, quando, por natureza, somos<br />

completamente estéreis. E, com o fim de reprovar a Nicodemos em<br />

razão de sua ignorância, Cristo, mui apropriadamente, usa uma forma<br />

de linguagem comum na Escritura, pois Nicodemos deve por fim ter<br />

reconhecido que o que Cristo dizia fora tomado do ensino ordinário<br />

dos profetas.<br />

Pelo termo água, pois, subentende-se simplesmente a purificação<br />

e vivificação interior efetuadas pelo Espírito Santo. Tampouco é<br />

incomum empregar-se a conjunção e explicitamente, quando a última<br />

sentença é uma explicação da primeira. E também o contexto me<br />

apoia, pois quando Cristo adiciona imediatamente a razão por que<br />

temos que nascer de novo, ele mostra, sem mencionar água, como a<br />

novidade de vida que ele requer provém unicamente do Espírito. Por<br />

isso se deduz que não se deve separar a água de o Espírito.<br />

6 “Qui imaginoit que los ames apres la mort de leurs corps entroyent dedans des autres<br />

corps.”


120 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

6. O que é nascido da carne. Ele mostra, por meio de um contraste,<br />

que o reino de Deus nos está fechado, a menos que se nos abra um acesso<br />

através de um novo nascimento. Pois ele toma como fato irrefutável<br />

que não podemos entrar no reino de Deus, a menos que sejamos espirituais.<br />

Portanto, segue-se que todos nós estamos naturalmente banidos<br />

do reino de Deus, destituídos da vida celestial e escravos da morte.<br />

Além disso, quando Cristo, aqui, argumenta que os homens têm<br />

que nascer de novo, visto que são simplesmente carne, ele indubitavelmente<br />

envolve toda a raça humana sob o termo carne. Carne significa,<br />

neste texto, não o corpo, mas a alma, e, consequentemente, cada parte<br />

dela. Os teólogos papistas se mostram estúpidos 7 restringindo-a àquela<br />

parte a que chamam sensual, pois o argumento de Cristo teria sido,<br />

neste caso, inepto para necessitarmos de um segundo nascimento,<br />

visto que uma parte de nós é corrupta. Mas se carne for contrastada<br />

com o Espírito, como algo deteriorado com o que é sadio, algo torto<br />

com o que é reto, aquilo que é poluído com o que é santo, o imundo<br />

com o que é puro, podemos prontamente concluir que toda a natureza<br />

humana está, em uma só palavra, condenada. Cristo, portanto, está<br />

dizendo que nosso entendimento e razão estão corrompidos, já que<br />

são carnais, e que todas as afeições do coração são depravadas e perversas,<br />

já que também são carnais.<br />

Aqui, porém, pode-se suscitar uma dificuldade, a saber: visto que<br />

a alma não é gerada por geração humana, em nossa parte principal<br />

não nascemos da carne. Isso tem levado muitos a pensarem que não<br />

só nosso o corpo tem sua origem em nossos pais, mas que nossas<br />

almas também são geradas por propagação. Pois absurdamente imaginava-se<br />

que o pecado original, que propriamente se acha sediado na<br />

alma, seria propagado de um só homem a toda sua posteridade, a menos<br />

que todas as almas emanassem de sua alma, como de uma fonte.<br />

E de fato, à primeira vista, as palavras de Cristo parecem sugerir que<br />

somos carne justamente porque nascemos de carne.<br />

7 “Monstrent bien qu’ils n’em entendent rien.”


Capítulo 3 • 121<br />

Respondo que as palavras de Cristo outra coisa não significam<br />

senão que, ao nascermos, somos todos carnais e que, desde que entramos<br />

neste mundo como mortais, outra coisa nossa natureza não tem<br />

provado ser senão que é carne. Ele está simplesmente fazendo distinção<br />

entre a natureza e um dom sobrenatural. Pois a corrupção de todo<br />

o gênero humano, só na pessoa de Adão, não procedeu de geração,<br />

mas da ordenança de Deus. Como num só homem ele nos adornou a<br />

todos, assim também nele privou a todos nós de seus dons. Portanto,<br />

não recebemos nosso vício e corrupção de nossos pais, mas somos<br />

todos igualmente corrompidos tão somente em Adão, porque, imediatamente<br />

após sua queda, Deus retirou da natureza humana o que lhe<br />

havia dado.<br />

Aqui surge outra dificuldade. É indiscutível que em nossa natureza<br />

degenerada e viciada ainda permanece algum resquício dos dons<br />

divinos. Portanto, segue-se que não somos pervertidos em todas as<br />

partes. A solução é simples, ou, seja: os dons que o Senhor nos deixou<br />

após a queda são indubitavelmente dignos de louvor, julgados em si<br />

mesmos. Visto, porém, que o contágio do mal permeia todas as partes,<br />

em nós nada se achará puro e livre de toda e qualquer mácula. Que<br />

algum conhecimento de Deus nos seja inerente; que alguma distinção<br />

entre o bem e o mal esteja gravada em nossas consciências; que tenhamos<br />

a capacidade de prover sustento para a nossa presente vida; que,<br />

em suma, exaltamos os brutos de muitas formas, é por si só excelente,<br />

visto que procede de Deus.<br />

Todas essas coisas, porém, estão poluídas em nós, assim como o<br />

vinho que ficou completamente deteriorado e contaminado pelo mau<br />

cheiro de seus odres perde a amenidade de seu aroma e tem um sabor<br />

amargo e horrível. Pois o conhecimento que ora permanece nos<br />

homens nada é senão terrível fonte de idolatria e de todas as superstições.<br />

O juízo de escolher e distinguir as coisas é, em parte, cego e<br />

tolo, e em parte imperfeito e confuso. Todo esforço que temos é despendido<br />

em vaidade e trivialidades e a própria vontade se precipita de<br />

ponta cabeça com intenso ímpeto para o mal. E assim, em toda nossa


122 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

natureza, não existe sequer uma partícula de retidão. E, por isso, fica<br />

evidente que temos de ser formados para o reino de Deus através de<br />

um segundo nascimento. E o significado das palavras de Cristo é este:<br />

visto que a pessoa que só nasce do ventre de sua mãe é carnal, então<br />

ela deve ser moldada de novo pelo Espírito para que comece a ser espiritual.<br />

E a palavra Espírito é aqui usada em dois sentidos – para graça<br />

e para o efeito da graça. Em primeiro lugar, Cristo está nos ensinando<br />

que o Espírito de Deus é o único Autor de uma natureza pura e reta, e<br />

a seguir ele diz que somos espirituais, visto que somos renovados por<br />

seu poder.<br />

[3.7-12]<br />

Não te admires por eu te dizer: Deveis nascer de novo. O vento<br />

sopra onde quer e tu ouves sua voz, mas não sabes donde<br />

vem e para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do<br />

Espírito. Nicodemos respondeu e lhe disse: Como pode ser<br />

isso? Respondeu Jesus e lhe disse: Tu és mestre de Israel, e não<br />

entendes essas coisas? Em verdade, em verdade te digo: Nós falamos<br />

do que sabemos e testificamos do que temos visto; e não<br />

aceitais nosso testemunho. Se vos falei das coisas terrenas, e<br />

não me credes, como crereis, se vos falar das coisas celestiais?<br />

7. Não te admires. Os comentaristas têm torcido esta passagem<br />

de várias formas. Alguns pensam que ela constitui um libelo contra<br />

a estupidez de Nicodemos e dos que pensavam como ele, como se<br />

Cristo estivesse dizendo que não havia nada de surpreendente nisso<br />

se antes não tomassem posse do mistério da regeneração celestial,<br />

visto que nem mesmo na ordem natural compreendiam a razão das<br />

coisas sensíveis.<br />

Outros elaboram um significado um tanto engenhoso, mas muitíssimo<br />

forçado, a saber: que, assim como o vento sopra livremente,<br />

também somos postos em liberdade pela ação regeneradora do Espírito,<br />

e assim, livres do jugo do pecado, podemos correr voluntariamente


Capítulo 3 • 123<br />

para Deus. Igualmente estranha ao pensamento de Cristo é a sugestão<br />

de Agostinho, ou seja, que o Espírito de Deus opera como lhe apraz.<br />

Crisóstomo e Cirilo têm algo melhor, ou seja, que a comparação é tomada<br />

do vento e se aplica a esta passagem assim: embora sua força<br />

seja sentida, sua origem e causa são ocultas. Ainda que não discorde<br />

muito da opinião deles, contudo tentarei explicar o pensamento de<br />

Cristo mais clara e solidamente.<br />

Meu ponto de partida é o fato de Cristo tomar por empréstimo<br />

uma comparação da ordem da natureza. Nicodemos considerou incrível<br />

o que ouvira acerca da regeneração e da nova vida, porquanto o<br />

modo dessa regeneração ia além de sua compreensão. Com o fim de<br />

resolver tal sorte de dificuldade, Cristo lhe ensina que mesmo na esfera<br />

da vida física nos deparamos com o maravilhoso poder de Deus,<br />

cujo princípio está oculto. Pois todos recebem do ar sua respiração vital,<br />

ainda que o movimento do ar nos seja imperceptível. Contudo, não<br />

sabemos donde ele vem nem para onde vai. Se nesta vida frágil e transitória<br />

Deus age tão poderosamente que nos arranca admiração à vista<br />

de seu poder, quão absurdo é querer medir, pela tacanha apreensão<br />

de nossa mente, sua operação secreta na vida celestial e supernatural,<br />

não crendo em nada mais além daquilo que vemos!<br />

Portanto, quando Paulo explode com indignação contra aqueles<br />

que rejeitam a doutrina da ressurreição, com base na aparente impossibilidade<br />

de um corpo que ora se acha sujeito à putrefação ser outra<br />

vez revestido com a bem-aventurada imortalidade, depois de se achar<br />

reduzido a pó e a nada, ele os reprova, acusando-os de estupidez em<br />

não considerarem o similar poder de Deus que age num grão de trigo.<br />

Porquanto a semente não germina enquanto não chega ao estágio de<br />

putrefação [1Co 15.36,37].<br />

Eis aqui a portentosa sabedoria que arrancou de Davi exclamação<br />

no Salmo 104.24. Portanto, são extremamente estúpidos aqueles<br />

que, ante a inspiradora ordem comum da natureza, não elevando um<br />

pouco mais alto sua vista para reconhecerem que a mão de Deus é<br />

muito mais poderosa no reino espiritual de Cristo. Além disso, quando


124 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Cristo lhe adverte a não se maravilhar, não se deve entender como se<br />

ele estivesse nos ordenando a desprezar tão esplêndida obra de Deus,<br />

obra esta digna da mais sublime admiração. Antes, ele quer dizer que<br />

não devemos ficar fascinados com um espanto tal que nossa fé venha<br />

a ser prejudicada, pois muitos rejeitam, como não passando de fábula,<br />

o que acreditam ser por demais elevado e difícil. Em outros termos,<br />

não nutramos dúvida ante o fato de que, pelo Espírito de Deus, somos<br />

remodelados e feitos um novo homem, ainda que a forma como Deus<br />

o faz nos seja oculta.<br />

8. O vento sopra onde quer. Estritamente falando, não significa<br />

que seu sopro seja voluntário, mas porque o movimento é livre, errante<br />

e suscetível de mudanças, pois o ar, às vezes, toma esta direção e,<br />

às vezes, aquela. E tal fato é relevante, pois, se ele soprasse numa só<br />

direção, como o faz a água, seria menos portentoso.<br />

Assim é todo aquele que é nascido do Espírito. A intenção de<br />

Cristo é que o movimento e operação do Espírito de Deus não seja<br />

menos perceptível na renovação do homem do que o movimento do<br />

ar nesta vida terrena e externa. Seu modo, porém, é oculto. Portanto,<br />

seremos ingratos e mesquinhos se não venerarmos o incompreensível<br />

poder de Deus na vida celestial, da qual ele nos revela um exemplo tão<br />

extraordinário neste mundo, e se lhe atribuirmos menos em restaurar<br />

a salvação de nossas almas do que em preservar o estado de nossos<br />

corpos. A aplicação será um pouco mais clara se formularmos a sentença<br />

assim: Assim é o poder e eficácia do Espírito Santo no homem<br />

renovado.<br />

9. Como pode ser isso? Percebemos aqui qual era a principal dificuldade<br />

de Nicodemos. Tudo o que ele ouvia lhe parecia extravagante,<br />

porque ele não entendia seu modo. Para nós não há pior obstáculo do<br />

que nosso orgulho pessoal; pois sempre queremos ser mais sábios do<br />

que o somos, e por isso rejeitamos com diabólico orgulho tudo quanto<br />

nossa própria razão não pode explicar, como se fosse justo limitar o<br />

infinito poder de Deus segundo nossa tacanha capacidade. Em certa<br />

medida, é justo inquirirmos sobre o método e a razão das obras de


Capítulo 3 • 125<br />

Deus, contanto que seja com sobriedade e reverência. Nicodemos, porém,<br />

rejeita como se fosse uma fábula, objetando que não o via como<br />

algo possível. Examinaremos este tema, de modo mais minucioso, no<br />

capítulo 6.<br />

10. Tu és mestre de Israel. Ao perceber que estava desperdiçando<br />

seu tempo e energia, instruindo um homem tão orgulhoso, Cristo<br />

passa a repreendê-lo. Indubitavelmente, com tal classe de pessoas<br />

nenhum ensino jamais logrará progresso enquanto não se destruir a<br />

perversa confiança com que se sentem enfatuadas. Além do mais, essa<br />

é uma objeção muito apropriada para subjugar seu orgulho, pois Cristo<br />

critica sua ignorância justamente sobre o assunto do qual pensava<br />

ser mais bem informado e mais sábio. Ele acreditava ser importante e<br />

inteligente não admitir o impossível, porquanto a pessoa que aceita<br />

algo com base na palavra de outrem, antes de ponderar bem, é insensatamente<br />

crédula. No caso de Nicodemos, porém, com sua magistral<br />

arrogância, o que é ridículo, porquanto se encontra mais perdido acerca<br />

dos princípios rudimentares do que qualquer aluno.<br />

Uma dúvida como essa é vil e vexatória, pois que religião é a<br />

nossa, que conhecimento de Deus, que norma da reta conduta, que<br />

esperança da vida eterna, se não cremos que uma pessoa é renovada<br />

pelo Espírito de Deus? Há certa ênfase, pois, na palavra isso, uma vez<br />

que a Escritura reiteradamente insiste sobre essa parte da doutrina,<br />

ela não deve ser ignorada mesmo pelos mais novatos. Daí ser totalmente<br />

intolerável que uma pessoa que professa ser mestra na Igreja<br />

de Deus seja ignorante e inábil nela.<br />

11. Nós falamos do que sabemos. Alguns aplicam isso a Cristo e<br />

a <strong>João</strong> Batista; outros afirmam que o plural substitui o singular. Mas<br />

não tenho dúvida de que Cristo está se juntando a todos os profetas<br />

de Deus e falando por todos eles, pois os filósofos e outros mestres<br />

conceituados muitas vezes expressam trivialidades de sua própria invenção.<br />

Cristo, porém, alega como sendo peculiar a ele e a todos os<br />

servos de Deus o fato de não proclamarem nenhuma doutrina senão a<br />

que é infalível. Deus não os enviou para que tagarelarem sobre coisas


126 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

desconhecidas ou duvidosas, mas os educa em sua escola para que<br />

transmitam a outros o que dele aprenderam pessoalmente.<br />

Além do mais, visto que Cristo, em seu testemunho, recomenda-<br />

-nos a infalibilidade de sua doutrina, ele ordena a todos seus ministros<br />

uma norma de modéstia, a fim de que não transmitam suas próprias<br />

filosofias ou conjeturas, nem publiquem invencionices humanas que<br />

nada têm de sólido, senão que apresentem um testemunho puro e fiel<br />

de Deus. Que cada um, pois, considere o que o Senhor lhe revelou, de<br />

modo que ninguém avance para além dos limites de sua fé. E, finalmente,<br />

que ninguém permita a si mesmo falar algo senão o que ouviu dos<br />

lábios do Senhor. Deve-se observar também que aqui Cristo confirma<br />

sua doutrina com um juramento, para que ela exerça plena autoridade<br />

sobre nós.<br />

E não recebeis nosso testemunho. Adiciona-se isto para que o<br />

evangelho não enfrentasse a ingratidão humana. Pois ainda que a verdade<br />

de Deus encontre poucos que creiam nela, e por toda parte seja<br />

rejeitada pelo mundo, nós devemos evitar um mínimo que seja de desprezo<br />

à sua majestade e de torná-la menos estimada por quase todo o<br />

mundo, menosprezando-a e obscurecendo-a pela impiedade.<br />

Ora, embora o significado das palavras seja simples e direto, deve-<br />

-se deduzir da passagem uma dupla lição. A primeira consiste em que<br />

a fé no evangelho não deve causar espanto entre nós, se porventura<br />

contar com poucos discípulos na terra, como se Cristo dissesse: “Embora<br />

não aceitais minha doutrina, ela permanece infalível e final; pois<br />

a incredulidade humana jamais impedirá a Deus de manter-se sempre<br />

fiel.” A outra consiste no fato de que, aqueles que em nossos próprios<br />

dias recusam crer no evangelho, não escaparão impunes, pois a verdade<br />

divina é inviolável. Devemos armar-nos com esse escudo para<br />

que possamos perseverar em obediência ao evangelho, em oposição à<br />

desobediência dos homens.<br />

De fato, deve-se manter esse princípio para que nossa fé permaneça<br />

fundamentada em Deus. Mas, quando temos Deus como nosso<br />

Criador, é preciso, como se nos erguêssemos acima dos céus, ousa-


Capítulo 3 • 127<br />

damente calcar aos pés o mundo inteiro, e não sermos confundidos<br />

pela incredulidade de quem quer que seja. Aprendemos da censura de<br />

Cristo que seu testemunho não é recebido, que o destino, por assim<br />

dizer, da Palavra de Deus tem sido em todos os tempos que ela logra<br />

aceitação apenas entre uns poucos, pois a expressão, não aceitais, se<br />

relaciona com a maioria, com quase toda a sociedade humana. Não há<br />

razão, pois, por que a escassez de crentes, hoje, nos perturbe.<br />

12. Se vos falei das coisas terrenas. Cristo conclui que Nicodemos,<br />

e os que pensam como ele, deveriam se envergonhar, caso não<br />

atingissem o devido progresso na doutrina do evangelho, pois ele mostra<br />

que não é culpa sua que todos não sejam devidamente treinados,<br />

visto que ele desceu à terra para nos fazer subir ao céu.<br />

É um erro muito comum que os homens queiram ser instruídos de<br />

maneira sutil e escolástica. Essa é a razão por que uma parte tão grande<br />

goste de especulações soberbas e confusas, e por que a maioria<br />

subestima o evangelho, já que não encontram nele linguagem pomposa<br />

que encante seus ouvidos. E assim, não se dignam de entregar-se ao<br />

estudo de uma doutrina comum e humilde. Mas quão perverso é que<br />

dediquemos menos reverência ao discurso de Deus só porque não se<br />

nivela à nossa ignorância! Saibamos que é por nossa causa 8 que o Senhor<br />

balbucia conosco na Escritura num estilo deselegante e comum.<br />

Quem quer que diga que se sente ofendido com tal mesquinharia ou<br />

argumentos como desculpas para não sujeitar-se à Palavra de Deus<br />

não passa de um mentiroso. Pois aquele que não consegue abraçar a<br />

Deus, num amorável amplexo, quando ele se acha perto, certamente<br />

não galgará a ele quando ele se achar acima das nuvens.<br />

As coisas terrenas. Há quem explique esta sentença como sendo<br />

os rudimentos da doutrina espiritual, pois a renúncia é um gênero<br />

de primeiro estágio no exercício da piedade. Concordo, antes, com<br />

aqueles que apontam para a forma de ensino, pois ainda que todo<br />

o discurso de Cristo fosse de cunho celestial, todavia ele falava de<br />

8 “Pour l’amour de nous.”


128 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

maneira tão rústica a fim que seu estilo pudesse adequar-se a certo<br />

sentido terreno. Além do mais, essas palavras não devem restringir-<br />

-se a um único discurso, pois o método ordinário de Cristo de ensinar<br />

– isto é, com comum simplicidade – aqui se contrasta com o exibicionismo<br />

e brilhantismo a que os homens ambiciosos se apegam tanto.<br />

[3.13-18]<br />

Ora, ninguém subiu 9 ao céu, senão aquele que desceu do céu,<br />

o Filho do homem, que está no céu. E, como Moisés levantou a<br />

serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja<br />

levantado; para que todo aquele que nele crê não pereça, mas<br />

tenha a vida eterna. Porque Deus amou o mundo de tal maneira<br />

que deu seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê<br />

não pereça, mas tenha a vida eterna. Porquanto Deus enviou<br />

seu Filho ao mundo, não para julgar o mundo, mas para que o<br />

mundo seja salvo por intermédio dele. Aquele que nele crê não<br />

é julgado; aquele que não crê nele já foi julgado, porquanto não<br />

creu no nome do unigênito Filho de Deus.<br />

13. Ninguém subiu ao céu. Ele uma vez mais exorta Nicodemos a<br />

não confiar em si mesmo e em sua própria perspicácia, pois nenhum<br />

mortal pode penetrar o céu por sua própria iniciativa, senão unicamente<br />

aquele que se inclina para ele mediante a orientação do Filho<br />

de Deus. Porque subir ao céu requer um perfeito conhecimento dos<br />

mistérios de Deus e a luz da compreensão espiritual. Aqui Cristo está<br />

ensinando a mesma coisa que Paulo, o qual diz que “o homem natural<br />

não compreende as coisas que são de Deus” [1Co 2.14], e portanto exclui<br />

toda a intensidade do entendimento humano em relação às coisas<br />

divinas, porquanto ela se encontra muito abaixo de Deus.<br />

Devemos, porém, observar que o texto ensina que unicamente<br />

Cristo, que é celestial, subiu ao céu, enquanto seu acesso se acha<br />

9 “Car personne n’est monte.” – “Pois ninguém jamais subiu.”


Capítulo 3 • 129<br />

fechado a todos os demais. Na primeira sentença, ele nos humilha,<br />

mantendo todo mundo fora do céu. Paulo diz, aos que queriam ser sábios<br />

em relação a Deus, que se fizessem tolos [1Co 3.18]. Não há nada<br />

menos a fazermos. Portanto, devemos crer que todos nossos sentidos<br />

se desvanecem e fracassam quando temos de avistar-nos com Deus.<br />

Mas, depois de Cristo fechar o céu contra nós, ele uma vez mais pôs<br />

diante de nós o antídoto, acrescentando que o que foi negado a todos<br />

os demais, foi dado ao Filho do Homem, porque ele não subiu ao céu<br />

em seu próprio e único benefício, mas para ser o Líder e Guia. E ele<br />

chama a si próprio o Filho do Homem para que não nutramos dúvida<br />

de que temos acesso comum com aquele que se revestiu de nossa carne<br />

para fazer-nos participantes de todas as bênçãos. Visto, pois, ser<br />

é o único intérprete do Pai, ele nos admite aos segredos que de outra<br />

forma permaneceriam ocultos.<br />

Pode parecer absurdo que ele diga estar no céu, quando está<br />

habitando na terra. Se porventura você replicar que isso diz respeito<br />

à sua Deidade, então a expressão significa algo mais – que, enquanto<br />

era homem, ele estava no céu. Pode-se dizer que aqui não se faz<br />

nenhuma menção de lugar, e que Cristo apenas se distingue dos demais<br />

em posição, em que ele é o Herdeiro do Reino de Deus, do qual<br />

toda a raça humana se acha banida. Uma vez, porém, que, por causa<br />

da unidade de pessoas em Cristo, é frequente e comum transferir a<br />

propriedade de uma natureza para a outra, não precisamos sair em<br />

busca de outra solução. Daí Cristo, que está no céu, se vestir de nossa<br />

carne para que, nos estendendo a mão fraterna, pudesse subir ao<br />

céu juntamente conosco.<br />

14. E como Moisés. Ele explica mais claramente por que disse<br />

que o céu está aberto só para ele – que ele pode levar para lá todos<br />

os que se dispõem a segui-lo como seu Líder. Pois ele declara que<br />

será pública e claramente revelado a todos para que ele derrame seu<br />

poder sobre eles. 10<br />

10 “Sur toutes manieres de gens.”


130 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Levantou significa ser colocado num lugar visível e eminente, de<br />

modo que possa ser claramente visto por todos. Isto aconteceu na pregação<br />

do evangelho. A explicação que alguns apresentam disto como<br />

uma referência à cruz não se harmoniza com o contexto e é estranho<br />

ao argumento de Cristo. O significado simples das palavras é que, pela<br />

pregação do evangelho, Cristo seria erguido como um estandarte para<br />

que fosse visto por todos, como predisse Isaías [Is 2.2-5]. Como tipo<br />

desse erguimento, ele escolhe a serpente de bronze erguida por Moisés,<br />

cuja contemplação era o antídoto que salvava os que haviam sido<br />

feridos pela picada letal das serpentes.<br />

A história como se acha registrada em Números 21.9 é bem conhecida.<br />

Nesta passagem, Cristo se introduz para ensinar-nos que<br />

ele foi exposto diante de todos os olhos no ensino do evangelho,<br />

para que todos os que olharem para ele, com fé, recebam a salvação.<br />

Daqui inferimos que no evangelho Cristo é claramente posto<br />

diante de nós, e ninguém pode queixar-se de que ele é obscuro, e<br />

que esta revelação é comum a todos e que há um olhar de fé que<br />

o percebe como presente – precisamente como Paulo nos diz que<br />

Cristo é vividamente delineado com sua cruz ao ser genuinamente<br />

proclamado [Gl 3.1].<br />

A similitude não é imprópria nem artificial. Ainda quando fosse<br />

apenas uma serpente em sua aparência externa, e não fosse dotada de<br />

peçonha, mesmo assim Cristo tomou a forma de carne pecaminosa, a<br />

qual, não obstante, era pura e isenta de pecado, com o fim de curar<br />

em nós a mortal ferida do pecado. Não foi sem razão que, quando os<br />

judeus eram picados por serpentes, o Senhor lhes proporcionou esta<br />

sorte de antídoto; e isso confirma o discurso de Cristo, pois quando<br />

viu que era desprezado como um homem obscuro e humilde, nada<br />

mais apropriado havia que referir-se ao soerguimento da serpente,<br />

como se estivesse dizendo que não se deveria imaginar como absurdo<br />

que ele, ao contrário da opinião dos homens, fosse levantado dos<br />

abismos mais profundos, visto que isso já havia se manifestado na lei<br />

sob o tipo da serpente.


Capítulo 3 • 131<br />

Poder-se-ia perguntar se Cristo se compara à serpente por haver<br />

alguma semelhança entre eles, ou se ele tinha em mente um sacramento<br />

na mesma forma que era o maná. Pois ainda que o maná fosse<br />

fisicamente desejável, Paulo declara que o mesmo constituía um mistério<br />

espiritual [1Co 10.3]. Creio que se deu o mesmo com a serpente<br />

de bronze, à luz desta passagem e também porque foi preservada para<br />

a posteridade até que fosse transformada num ídolo pela superstição<br />

do povo. Se alguém pensa em outros termos, não insistirei no assunto.<br />

16. Porque Deus amou o mundo de tal maneira. Cristo mostra<br />

a causa primeira e, por assim dizer, a fonte de nossa salvação. E ele<br />

procedeu assim para que não pairasse dúvida alguma, pois não existe<br />

nenhum céu calmo onde nossas mentes possam repousar enquanto<br />

não nos aproximarmos do gracioso amor de Deus. Toda a substância<br />

de nossa salvação não deve ser buscada em alguma outra fonte além<br />

de Cristo, e por isso devemos descobrir por que meios Cristo nos emana<br />

e por que ele foi oferecido como nosso Salvador.<br />

Ambos os pontos nos são claramente afirmados aqui – que a fé em<br />

Cristo vivifica tudo, e que Cristo trouxe vida porque o Pai celestial não<br />

deseja que a raça humana, à qual ele ama, pereça. E esta sequência<br />

deve ser cuidadosamente observada, pois tal é a ímpia e inerente ambição<br />

de nossa natureza que, quando ponderamos sobre a origem de<br />

nossa salvação, de pronto invadem nossa mente diabólicas imaginações<br />

acerca de nossos méritos pessoais. Por conseguinte, imaginamos<br />

que Deus nos é favorável porque nos tem considerado dignos de seu<br />

respeito. A Escritura, porém, por toda parte enaltece sua misericórdia<br />

que pura e simplesmente abole todo e qualquer mérito.<br />

E as palavras de Cristo não têm outro sentido, quando ele diz que<br />

a causa está no amor de Deus. Pois, se quisermos ir além disso, o Espírito<br />

nos impede com a declaração de Paulo, a saber, que este amor<br />

tinha por fundamento o “beneplácito de sua vontade” [Ef 1.5]. E é claro<br />

que Cristo falou isso com o fim de desviar os olhos dos homens de si<br />

para, exclusivamente, a misericórdia de Deus. Tampouco declara ele<br />

que Deus se moveu a nos salvar por divisar em nós algo merecedor de


132 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

tal benção. Ele atribui a glória de nossa salvação inteiramente ao seu<br />

amor. E isso se torna ainda mais claro à luz do contexto, pois ele acrescenta<br />

que o Filho foi dado aos homens para que estes não perecessem.<br />

Segue-se que, enquanto Cristo não dignar-se a socorrer os perdidos,<br />

todos continuarão destinados à destruição eterna.<br />

Paulo também demonstra isso à luz da sequência do tempo, pois<br />

fomos amados mesmo quando ainda éramos inimigos em virtude do<br />

pecado [Rm 5.8, 10]. E, de fato, onde reina o pecado, nada encontraremos,<br />

exceto a ira de Deus e a morte que ele agita. Portanto, é<br />

unicamente a misericórdia que nos reconcilia com Deus e ao mesmo<br />

tempo nos restaura à vida.<br />

Esta maneira de falar, contudo, pode parecer conflitante com muitos<br />

testemunhos da Escritura, os quais colocam em Cristo o primeiro<br />

fundamento do amor divino para conosco, e diz que fora dele somos<br />

detestados por Deus. Mas temos que nos lembrar bem, como eu já disse,<br />

que o amor secreto, no qual nosso Pai celestial nos alcançou para<br />

si, visto que o mesmo flui de seu beneplácito eterno, é precedente a<br />

todas as demais causas. A graça, porém, a qual ele quer que nos seja<br />

testificada, e pela qual somos despertados à esperança da salvação,<br />

começa com a reconciliação providenciada através de Cristo. Porque,<br />

uma vez que necessariamente odeia o pecado, como seremos convencidos<br />

de que ele nos ama, enquanto não forem expiados os pecados,<br />

por cuja causa ele está justamente irado conosco? E assim, antes que<br />

possamos nutrir alguma noção de sua bondade paternal, é necessário<br />

que o sangue interceda para que Deus se reconcilie conosco. Visto,<br />

porém, que primeiro ouvimos que Deus deu seu Filho a fim de morrer<br />

por nós, porque ele nos amou, acrescenta-se imediatamente que é tão<br />

somente em Cristo que, propriamente falando, a fé deve repousar.<br />

Deu seu Filho unigênito. O genuíno olhar da fé, confesso, é colocar<br />

Cristo diante dos olhos e contemplar nele o coração de Deus<br />

transbordante de amor. Nosso firme e substancial sustento é descansar<br />

na morte de Cristo como nossa única garantia. A palavra unigênito<br />

é realçada para exaltar o fervor do amor divino por nós. Porque os


Capítulo 3 • 133<br />

homens não se deixam convencer facilmente de que Deus os ama, e,<br />

por isso, para remover toda dúvida, ele expressamente declara que somos<br />

tão queridos de Deus que, por amor de nós, ele não poupou nem<br />

mesmo seu Filho unigênito. Deus declarou seu amor para conosco de<br />

uma forma mui exuberante, e, portanto, quem ainda nutre dúvida e se<br />

sente insatisfeito com este testemunho faz a Cristo uma séria injúria,<br />

como se ele fosse algum homem ordinário que tivesse morrido acidentalmente.<br />

Consideremos, antes, que o amor de Deus por seu Filho<br />

unigênito é a medida de quão preciosa lhe foi nossa salvação, que quis<br />

que a morte do próprio Unigênito fosse seu preço. Além disso, Cristo<br />

possui este nome por direito, ainda que, por natureza, seja o único<br />

Filho de Deus. Ele, porém, compartilha esta honra conosco por meio<br />

da adoção, quando somos enxertados em seu corpo.<br />

Para que todo aquele que nele crê não pereça. A coisa mais<br />

extraordinária sobre a fé é que ela nos livra da destruição eterna.<br />

Porque ele queria dizer especialmente que, embora pareçamos ter<br />

nascidos para a morte, pela fé em Cristo se nos oferece livramento infalível,<br />

de sorte que não devemos temer a morte que, caso contrário,<br />

nos ameaçaria. E ele usou um termo geral para convidar indiscriminadamente<br />

a todos a fim de que participem da vida e excluir todo<br />

pretexto dos incrédulos. Tal é também a importância do termo mundo<br />

que ele usara antes. Porque, embora não haja nada no mundo<br />

merecedor do favor divino, não obstante se revela favorável ao mundo<br />

inteiro, quando ele chama todos, sem exceção, à fé em Cristo, que<br />

na verdade é um ingresso à vida.<br />

Tenhamos em mente, por outro lado, que embora a vida seja universalmente<br />

prometida a todos os que creem em Cristo, todavia a fé<br />

não é comum a todos [2Ts 3.2]. Porque Cristo se faz conhecido e exibido<br />

à vista de todos, porém somente os eleitos são aqueles a cujos<br />

olhos Deus abre para que o busquem por meio da fé. Aqui também<br />

se exibe um prodigioso efeito da fé, pois por meio dela recebemos a<br />

Cristo tal como ele nos foi dado pelo Pai – ou seja, como aquele que<br />

nos libertou da condenação da morte eterna e nos fez herdeiros da


134 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

vida eterna, porque, pelo sacrifício de sua morte, ele fez expiação por<br />

nossos pecados para que nada nos impeça de ser reconhecidos por<br />

Deus como seus filhos. Portanto, visto que a fé abraça a Cristo, com a<br />

eficácia de sua morte e o fruto de sua ressurreição, não carece surpresa<br />

se por meio dela obtivermos igualmente a vida de Cristo.<br />

Todavia, não fica ainda muito evidente por que e como a fé nos<br />

outorga a vida. Seria porque Cristo nos renova mediante seu Espírito<br />

para que a justiça de Deus possa viver e ser revigorada em nós, ou<br />

seria porque, tendo sido purificados por seu sangue, somos considerados<br />

justos diante de Deus mediante seu perdão gratuito? Aliás, é certo<br />

que essas duas coisas estão sempre juntas, mas, como a certeza da<br />

salvação é o tema ora em discussão, devemos principalmente manter,<br />

por esta razão, que vivemos porque Deus nos ama soberanamente,<br />

não mais nos imputando nossos pecados. Por essa razão, menciona-se<br />

expressamente o sacrifício por meio do qual, juntamente com nossos<br />

pecados, a maldição e a morte são destruídas. Já explicamos o objeto<br />

dessas duas sentenças, a saber, informar-nos de que em Cristo tomamos<br />

posse da vida, da qual estamos inerentemente destituídos, pois<br />

nesta miserável condição do gênero humano, a redenção, na ordem do<br />

tempo, vem antes da salvação.<br />

17. Porque Deus não enviou seu Filho ao mundo para condenar<br />

o mundo. Aqui temos uma confirmação da afirmação precedente, porque<br />

não foi em vão que Deus enviou seu próprio Filho em nosso favor.<br />

Ele não veio com o fim de destruir e, por isso, segue-se ser o ofício<br />

peculiar do Filho de Deus que todo aquele que crê obtenha a salvação<br />

por meio dele. Agora não há razão por que uma pessoa viva em estado<br />

de hesitação ou de angustiante ansiedade quanto à maneira pela<br />

qual pode escapar da morte, ao crer que era o propósito de Deus que<br />

Cristo nos livrasse dela. A palavra mundo é uma vez mais reiterada, a<br />

fim de que ninguém pense que foi totalmente excluído, se tão somente<br />

conservar-se na vereda da fé.<br />

A palavra julgar é aqui posta em lugar de condenar, como é o caso<br />

em muitas outras passagens. Ao declarar que não veio para conde-


Capítulo 3 • 135<br />

nar o mundo, ele assim realça o desígnio real de sua vinda, pois que<br />

necessidade havia para Cristo vir com o fim de destruir-nos, nós que<br />

estávamos completamente arruinados? Não devemos, pois, buscar em<br />

Cristo algo mais além do fato de que Deus, de sua infinita bondade, quis<br />

estender seu auxílio para salvar-nos, a nós que estávamos perdidos. E<br />

sempre que nossos pecados nos oprimam – sempre que Satanás nos<br />

conduza ao desespero –, devemos correr para este refúgio, a saber:<br />

que Deus não deseja que sejamos esmagados por perene destruição,<br />

visto que ele designara seu Filho para ser o salvador do mundo.<br />

Quando em outras passagens Cristo diz que veio para julgar [Jo<br />

9.39]. Quando ele é denominado de pedra de escândalo [1Pe 2.7] e<br />

quando lemos ser ele posto para a destruição de muitos [Lc 2.34], isso<br />

pode ser considerado como acidental ou como provindo de uma causa<br />

distinta, porquanto aquele que rejeita a graça que lhe é oferecida merece<br />

encontrar nele o Juiz e Vingador de um desdém tão indigno e vil.<br />

Um notável exemplo disso pode ser visto no evangelho, pois ainda<br />

que ele seja estritamente o poder de Deus para a salvação de todo<br />

aquele que nele crê [Rm 1.16], a ingratidão de muitos o converte em<br />

morte para os mesmos. Ambas as coisas foram bem expressas por<br />

Paulo, quando ele vingar toda desobediência, quando for cumprida vossa<br />

obediência [2Co 10.6]. O significado equivale a isto: que o evangelho<br />

é especialmente, e em primeira instância, designado para os crentes,<br />

a fim de que a salvação lhes pertença, mas que, depois, os descrentes<br />

não escaparão impunes, caso desprezem a graça de Cristo e decidam<br />

tê-lo como o Autor da morte, em vez de o Autor da vida.<br />

18. Aquele que nele crê não é condenado. Ao repetir com<br />

tanta frequência e com tanta solicitude que todos os que creem<br />

se encontram além do perigo de morte, podemos inferir disso a<br />

grande necessidade de uma confiança firme e certa, que a consciência<br />

não pode ser mantida perpetuamente num estado de tremor<br />

e expectação. Ele uma vez mais declara que, ao crermos, já nenhuma<br />

condenação resta, o que depois explicará mais plenamente no<br />

capítulo 5. O tempo presente – não é condenado – é aqui usado em


136 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

vez do tempo futuro – não será condenado –, segundo a maneira do<br />

idioma hebreu, pois sua intenção é que os crentes estão a salvo do<br />

temor da condenação.<br />

Mas aquele que não crê já está condenado. Isso significa que<br />

não há outro remédio pelo qual qualquer ser humano possa escapar<br />

da morte; ou, em outros termos, que para quantos rejeitam a vida que<br />

lhe é outorgada em Cristo nada mais resta senão a morte, visto que a<br />

vida não consiste em algo mais além da fé. O tempo perfeito do verbo,<br />

já está condenado, foi usado por ele enfaticamente para expressar<br />

mais fortemente que todos os incrédulos estão completamente arruinados.<br />

Deve-se, porém, observar que Cristo fala especialmente<br />

daqueles cuja perversidade se exibirá por seu franco desprezo do<br />

evangelho. Pois ainda que seja verdade que jamais houve qualquer<br />

outro remédio para se escapar à morte, além do fato de que os homens<br />

devam recorrer a Cristo, todavia, visto que aqui Cristo fala da<br />

pregação do evangelho, a qual teria que ecoar pelo mundo inteiro,<br />

ele dirige seu discurso contra os que deliberada e maliciosamente<br />

extinguem a luz que Deus acendeu.<br />

[3.19-21]<br />

E esta é a condenação: que a luz veio ao mundo, e os homens<br />

amaram mais as trevas do que a luz; porque suas obras eram<br />

más. Pois todo aquele que pratica o mal odeia a luz, e não se<br />

chega para a luz, para que suas obras não sejam descobertas.<br />

Mas aquele que pratica a verdade se chega para a luz, para que<br />

suas obras se façam manifestas, de que são feitas em Deus. 11<br />

19. E esta é a condenação. Ele refreia as murmurações e queixas<br />

pelas quais os ímpios costumavam censurar – o que imaginam ser – o<br />

excessivo rigor de Deus, quando ele age contra eles com mais severidade<br />

do que esperavam. Acham duro demais o fato de que os que<br />

11 “Faites selon Dieu” – “feitas segundo Deus.”


Capítulo 3 • 137<br />

não creem em Cristo sejam devotados à destruição. Para que ninguém<br />

atribua sua condenação a Cristo, ele mostra que cada ser humano deve<br />

imputar a si próprio a responsabilidade. A razão é que a incredulidade<br />

é uma testemunha de uma má consciência; e, portanto, é evidente que<br />

é sua própria perversidade que impede os incrédulos de se aproximarem<br />

de Cristo.<br />

Há quem pense que o que ele aqui realça nada mais é que o selo<br />

da condenação. Todavia, o desígnio de Cristo é restringir a perversidade<br />

dos homens a fim de que, segundo seu costume, não contendam<br />

nem argumentem contra Deus, como se ele os tratasse injustamente,<br />

quando pune a incredulidade com a morte eterna. Ele mostra que tal<br />

condenação é justa, e não está sujeita a qualquer reprovação, não só<br />

porque tais homens agem impiamente, que preferem as trevas à luz<br />

e recusam a luz que lhes é graciosamente oferecida, mas porque tal<br />

ódio pela luz só brota de uma mente que é perversa e cônscia de sua<br />

culpabilidade.<br />

Uma bela aparência e excelência de santidade de fato podem ser<br />

encontradas em muitos que, além de tudo, se opõem ao evangelho.<br />

No entanto, ainda que pareçam ser mais santos que os próprios anjos,<br />

sem a menor sombra de dúvida, são hipócritas, pois rejeitam a doutrina<br />

de Cristo por nenhuma outra razão senão pelo fato de amarem seus<br />

esconderijos, por meio dos quais sua vileza continue velada. Portanto,<br />

visto que a mera hipocrisia basta para tornar os homens odiosos<br />

aos olhos de Deus, todos são conservados réus, porque, não fora isso,<br />

cegados pela soberba e deleitando-se em seus crimes, pronta e espontaneamente<br />

receberiam a doutrina do evangelho.<br />

20. Porque todo o que pratica o mal. Eis o significado: por nenhuma<br />

outra razão a luz lhe é odiosa, senão porque são perversos<br />

e desejam ocultar seus pecados e retêm a mentira em seu poder.<br />

Portanto, segue-se que, ao rejeitarem o remédio, pode-se dizer que<br />

propositadamente fomentam o motivo de sua condenação. Portanto,<br />

estamos redondamente enganados se presumimos que aqueles que se<br />

unem contra o evangelho são movidos por zelo piedoso, quando, ao


138 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

contrário, sentem aversão pela luz e fogem dela, para que mais livremente<br />

folguem nas trevas.<br />

21. Aquele, porém, que pratica a verdade. Esta aparenta ser<br />

uma afirmação imprópria e absurda, a não ser que o leitor prefira<br />

admitir que alguns são retos e verdadeiros mesmo antes que tenham<br />

sido renovados pelo Espírito de Deus, o que de forma algum se harmoniza<br />

com a doutrina uniforme da Escritura. Pois bem sabemos que<br />

a fé é a raiz da qual procedem os frutos das boas obras. Com vista a<br />

resolver esta dificuldade, Agostinho diz que praticar a verdade significa<br />

“reconhecer que somos miseráveis e destituídos de todo poder<br />

de praticar o bem”; e, por certo, é uma genuína preparação para a<br />

fé quando a convicção de nossa pobreza nos compele a fugir para a<br />

graça de Deus. Mas tudo isso é amplamente removido da intenção<br />

de Cristo, pois ele pretendia simplesmente dizer que aqueles que<br />

agem sinceramente nada desejam mais solicitamente do que a luz,<br />

para que suas obras sejam julgadas. Porque, quando tal prova é feita,<br />

torna-se mais evidente que, à vista de Deus, falam a verdade e são<br />

isentos de toda falsidade.<br />

Ora, seria um raciocínio inconclusivo, caso inferíssemos disso<br />

que os homens desfrutam de sã consciência antes de experimentar a<br />

fé. Porque Cristo não diz que os eleitos creem a ponto de merecerem o<br />

louvor das obras, mas simplesmente o que os incrédulos fariam caso<br />

não experimentassem uma má consciência.<br />

Cristo empregou a palavra verdade porque, quando somos enganados<br />

pelo brilho externo das obras, não consideramos o que está<br />

oculto dentro. Consequentemente, diz ele que os homens que são retos<br />

e isentos de hipocrisia espontaneamente entram na presença de<br />

Deus, o único que é Juiz competente de nossas obras. Porque somos<br />

informados que essas obras são feitas em Deus ou de conformidade<br />

com Deus, as quais são aprovadas por ele e as quais são boas em consonância<br />

com sua norma. Daí, aprendamos que não devemos julgar<br />

as obras de qualquer outra maneira senão trazendo-as para a luz do<br />

evangelho, porquanto nossa razão é totalmente cega.


Capítulo 3 • 139<br />

[3.22-28]<br />

Depois dessas coisas veio Jesus, juntamente com seus discípulos,<br />

para a terra da Judeia, e aí permaneceu com eles e batizava.<br />

E <strong>João</strong> também estava batizando no Enon, próximo de Salim;<br />

porque havia ali muitas águas. Vinham, pois, e eram batizados.<br />

Porque <strong>João</strong> ainda não fora lançado na prisão. Suscitou-se uma<br />

dúvida entre os discípulos de <strong>João</strong> e os judeus acerca da purificação.<br />

E chegaram a <strong>João</strong> e lhe disseram: Rabi, aquele que<br />

estava contigo dalém do Jordão, de quem deste testemunho,<br />

eis que ele batiza, e todos os homens vão a ele. <strong>João</strong> respondeu<br />

e disse: Um homem não pode receber coisa alguma se do céu<br />

não lhe for dada. Vós mesmos sois minhas testemunhas de que<br />

eu disse: Não sou o Cristo, mas fui enviado adiante dele.<br />

22. Depois dessas coisas veio Jesus. É provável que Cristo, assim<br />

que a festa acabou, foi para aquela parte da Judeia que ficava na vizinhança<br />

da cidade de Enon, que estava situada na tribo de Manassés.<br />

O Evangelista diz que havia ali muitas águas, e essas não eram tão<br />

abundantes na Judeia.<br />

Os geógrafos nos informam que essas duas cidades, Enon e Salim,<br />

não ficavam longe da confluência do rio Jordão e do ribeiro Jaboque, e<br />

acrescentam que Citópolis ficava em suas proximidades. À luz destas<br />

palavras, podemos inferir que <strong>João</strong> e Cristo administravam o batismo<br />

imergindo o corpo inteiro na água, ainda que não devamos nos entregar<br />

a muita fadiga com o rito externo, contanto que o mesmo concorde<br />

com a verdade espiritual e com a designação e a administração do<br />

Senhor. Até onde somos capazes de conjeturar, a vizinhança desses lugares<br />

permitiu a circulação de várias notícias, e deu-se lugar a muitas<br />

discussões acerca da Lei, acerca do culto divino e acerca da condição<br />

da Igreja, em consequência de surgirem, concomitantemente, duas<br />

pessoas que administravam o batismo. Pois quando o Evangelista diz<br />

que Cristo batizava, aplica isto ao início de seu ministério, ou seja, que<br />

ele então começou a exercer publicamente o ofício que lhe fora desig-


140 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

nado pelo Pai. E ainda que Cristo fizesse isso pela instrumentalidade<br />

de seus discípulos, todavia ele é aqui denominado como o Autor do<br />

batismo, sem mencionar seus ministros que nada faziam senão em seu<br />

nome e por sua ordem. Sobre este tema, teremos algo mais a dizer no<br />

início do próximo capítulo.<br />

25. Suscitou-se então uma dúvida. Não sem uma boa razão, o<br />

Evangelista relata que entre os discípulos de <strong>João</strong> suscitou-se uma dúvida.<br />

Porque, à medida que eram informados acerca da doutrina, mais<br />

prontos estavam em entrar em discussão, visto que a ignorância é<br />

sempre ousada e presunçosa. Se outros os atacavam, então poderiam<br />

justificar-se. Mas quando eles mesmos, ainda que sem razão, mantinham<br />

o fogo da contenda, provocando voluntariamente os judeus,<br />

isso constituía um procedimento precipitado e tolo.<br />

Ora, as palavras significam que “foram eles que suscitaram a dúvida”.<br />

E não só deviam responsabilizar-se por despertar uma questão<br />

da qual não tinham conhecimento, mas também por falarem a respeito<br />

precipitadamente e além da medida de seu conhecimento. Mas o outro<br />

erro foi – não menos que o primeiro – que pretendiam não tanto manter<br />

a legitimidade do batismo quanto defender a causa de seu mestre,<br />

para que sua autoridade permanecesse incomunicável. Em ambos os<br />

aspectos, mereceram reprovação, porque, não compreendendo qual<br />

era a real natureza do batismo, expunham a santa ordenança de Deus<br />

ao ridículo, e porque, mediante uma ambição pecaminosa, empreenderam<br />

defender a causa de seu mestre contra Cristo.<br />

É evidente, pois, que ficaram atônitos e confusos com uma única<br />

palavra, quando foram informados de que Cristo também estava<br />

batizando, pois, enquanto sua atenção era direcionada para a pessoa<br />

de um homem e para sua aparência externa, 12 preocupavam-se<br />

menos com a doutrina. Somos ensinados, por seu exemplo, que os<br />

equívocos em que os homens caem se devem a um desejo pecaminoso<br />

de agradar a si mesmos antes que movidos por zelo de Deus. E<br />

12 “Et apparence exterieure.”


Capítulo 3 • 141<br />

somos igualmente lembrados que o único objetivo que devemos ter<br />

em vista, e por todos os meios promover, é que tão somente Cristo<br />

deve ter a preeminência.<br />

Acerca da purificação. A dúvida foi proveniente da purificação,<br />

pois os judeus tinham vários batismos e lavagens 13 ordenados pela Lei,<br />

e, não satisfeitos com aqueles que Deus designara, 14 cuidadosamente<br />

observavam muitos outros que tinham sido introduzidos por seus ancestrais.<br />

Quando acham que, além de tão grande número e variedade<br />

de purificações, um novo método de purificação é introduzido por Cristo<br />

e por <strong>João</strong>, veem-no como um absurdo.<br />

26. De quem deste testemunho. Com tal argumento empreendem<br />

ou fazer Cristo inferior a <strong>João</strong> ou mostrar que <strong>João</strong>, honrando-o, o pusera<br />

sob obrigações, pois reconheciam que <strong>João</strong> conferira um favor a<br />

Cristo, adornando-o com títulos tão proeminentes, como se fora o dever<br />

de <strong>João</strong> fazer tal proclamação, ou melhor, como se não fora a mais<br />

elevada dignidade de <strong>João</strong> ser o arauto do Filho de Deus. Nada poderia<br />

ter sido mais irracional do que fazer Cristo inferior a <strong>João</strong>, visto que<br />

seu testemunho era sublimemente favorável, pois sabemos qual foi o<br />

testemunho de <strong>João</strong>. A expressão que usaram – todos os homens vêm<br />

a Cristo – é a linguagem de pessoas invejosas, 15 e procede da ambição<br />

pecaminosa, pois temiam que a multidão imediatamente se esquecesse<br />

de seu mestre.<br />

27. Um homem não pode receber coisa alguma. Alguns atribuem<br />

essas palavras a Cristo, como se <strong>João</strong> acusasse os discípulos<br />

de perversa presunção em oposição a Deus, por tudo fazerem com<br />

o fim de privar a Cristo do que o Pai lhe dera. Supunham que o significado<br />

era este: “Que era obra de Deus o fato de que dentro de<br />

tão pouco tempo ele havia granjeado tão grande honra; e, por isso,<br />

era em vão que tentassem denegrir aquele a quem Deus com sua<br />

própria mão dera tão elevada posição.” Outros pensam que é uma<br />

13 “De baptesmes et lavemens.”<br />

14 “Que Dieu avoit instituez.”<br />

15 “C’est une parole de gens envieux.”


142 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

exclamação que ele indignadamente pronuncia, visto que seus discípulos<br />

até então tinham feito tão pouco progresso. E certamente era<br />

excessivamente absurdo que ainda lutassem por reduzir à posição<br />

de homens comuns àquele que, com tanta frequência ouviam, era o<br />

Cristo, o qual não podia erguer-se acima de seus próprios servos. E,<br />

portanto, <strong>João</strong> poderia, com justiça, ter dito ser inútil gastar tempo<br />

em instruir os homens, porquanto são obtusos e estúpidos, enquanto<br />

não fossem renovados em sua mente.<br />

Antes, porém, concordo com a opinião daqueles que o explicam<br />

como uma aplicação a <strong>João</strong>, como a asseverar que não estava<br />

em seu poder, nem no deles, de fazê-lo grande, porque a medida<br />

de todos nós é sermos aquilo que Deus pretende que sejamos.<br />

Pois se até mesmo o Filho de Deus não tomou para si honra alguma<br />

[Hb 5.4], que homem dentre a categoria ordinária se aventuraria<br />

a desejar mais do que aquilo que o Senhor lhe deu? Se esse único<br />

pensamento, se estivesse devidamente impresso nas mentes de<br />

todos nós, seria sobejamente suficiente para refrear a ambição,<br />

e a ambição seria corrigida e destruída e a praga das contendas<br />

seria igualmente removida. Como sucede, pois, que cada pessoa<br />

se exalte mais do que lhe é lícito, senão porque não dependemos<br />

do Senhor, de modo a sentirmos satisfeitos com a posição que ele<br />

nos designou?<br />

28. Vós sois minhas testemunhas. <strong>João</strong> reprova seus discípulos,<br />

dizendo que não deram crédito a suas afirmações. Ele os advertia com<br />

frequência, dizendo que não era o Cristo. E, por isso, assegurava-lhes<br />

que seria um servo do Filho de Deus e lhe seria sujeito juntamente<br />

com os demais. E esta passagem é digna de ponderação, pois, ao afirmar<br />

que não era o Cristo, ele nada merece para si senão sujeitar-se à<br />

cabeça e servir na Igreja como um dentre os demais, e não para ser<br />

tão altamente exaltado a ponto de obscurecer a honra da Cabeça. Diz<br />

ele que fora enviado antecipadamente com o fim de preparar o caminho<br />

para Cristo, como os reis costumavam enviar arautos como seus<br />

precursores.


Capítulo 3 • 143<br />

[3.29-34]<br />

Aquele que tem a esposa é o esposo; mas o amigo do esposo,<br />

que lhe assiste e o ouve, alegra-se muito com a voz do esposo.<br />

Assim, pois, esta minha alegria já se cumpriu. É necessário<br />

que ele cresça e que eu diminua. Aquele que vem de cima é<br />

sobre todos; aquele que vem da terra é da terra e fala da terra. 16<br />

Aquele que vem do céu é sobre todos. E aquilo que ele viu e<br />

ouviu isso testifica; e ninguém aceita seu testemunho. Aquele<br />

que aceitou seu testemunho, esse confirmou que Deus é verdadeiro.<br />

Porque aquele que Deus enviou fala as palavras de Deus;<br />

pois Deus não lhe dá o Espírito por medida.<br />

29. Aquele que tem a esposa. Com esta comparação, ele confirma<br />

mais plenamente a afirmação de que Cristo é o único que é excluído da<br />

estirpe ordinária dos homens, pois, como aquele que se une a uma esposa<br />

não chama e convida seus amigos para as bodas a fim de prostituir a<br />

noiva com eles, nem para renunciar a seus próprios direitos, permitindo-<br />

-lhes participar com ele do leito nupcial; senão que, ao contrário, para<br />

que o matrimônio, sendo honrado por eles, se torne ainda mais sagrado.<br />

Assim, Cristo não chama seus ministros para o ofício docente a fim de<br />

que, conquistando a Igreja, reivindiquem domínio sobre ela, mas para<br />

que ele faça uso de seus labores fiéis associando-os consigo. A designação<br />

de homens sobre a Igreja é uma distinção grande e sublime, para<br />

que representem a pessoa do Filho de Deus. Portanto, assemelham-se<br />

aos amigos a quem o noivo conduz a seu lado, para que o acompanhem<br />

na celebração das bodas. Mas devemos atentar bem para esta distinção,<br />

a saber: que os ministros, sendo cônscios de sua posição, não se<br />

apropriem do que pertence exclusivamente ao noivo. A suma equivale<br />

a isto: que toda a eminência que os mestres porventura possuam entre<br />

si não deve impedir a Cristo de ser o único a governar sua Igreja nem de<br />

governá-la exclusivamente por meio de sua palavra.<br />

16 “Et parle de l aterre, ou, comme issu de terre” – “e fala da terra, ou, como havendo<br />

procedido da terra.”


144 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Esta comparação ocorre com frequência na Escritura, quando<br />

o Senhor intenta expressar o sacro vínculo de adoção, por meio do<br />

qual ele nos une a si. Pois, como se oferece para ser realmente desfrutado<br />

por nós, para que seja nosso, assim ele, com razão, exige de<br />

nós aquela fidelidade e amor mútuos que a esposa deve a seu esposo.<br />

Esse matrimônio se cumpre inteiramente em Cristo, de cuja carne e<br />

ossos somos nós, como Paulo nos informa [Ef 5.30]. A castidade exigida<br />

por ele consiste primordialmente na obediência ao evangelho,<br />

para que não permitamos desviar-nos de sua perfeita simplicidade,<br />

como nos ensina o apóstolo [2Co 11.2, 3]. Portanto, devemos estar<br />

sujeitos unicamente a Cristo. Ele deve ser nossa única Cabeça. Não<br />

devemos desviar-nos sequer um fio de cabelo da doutrina simples do<br />

evangelho; tão somente ele deve possuir a mais elevada glória, para<br />

que retenha o direito e a autoridade de ser nosso Noivo.<br />

Mas, o que os ministros devem fazer? Certamente o Filho de Deus<br />

os chama para que executem seu dever em relação a ele na condução<br />

do matrimônio sagrado. Portanto, seu dever é tudo fazer para que,<br />

de todas as formas, a esposa – que é confiado a sua responsabilidade<br />

– seja apresentada por eles como virgem casta a seu Esposo, o que<br />

Paulo, na passagem supracitada, se gloria de haver feito. Mas os que<br />

arrastam a Igreja após si, e não a Cristo, se fazem culpados de vilmente<br />

violar o matrimônio que deveriam ter honrado. E, quanto maior é<br />

honra que Cristo nos confere, fazendo-nos guardiãs de sua esposa, tão<br />

mais hedionda será nossa falta de fidelidade, se não nos esforçarmos<br />

em manter e defender seu direito.<br />

Portanto, esta minha alegria já se cumpriu. Significa que ele já<br />

alcançou o cumprimento de todos seus desejos, e que ele nada mais<br />

deseja, ao ver Cristo reinando e os homens dando-lhe ouvidos como de<br />

fato ele merece. Quem quer que tenha afetos tais que, pondo de lado<br />

toda consideração pessoal, exalte a Cristo, sinta-se feliz em ver Cristo<br />

sendo honrado, será fiel e bem sucedido em governar a Igreja. Todo<br />

aquele, porém, que muda o mínimo grau desse propósito será um vil<br />

adúltero, e outra coisa não fará senão corromper a esposa de Cristo.


Capítulo 3 • 145<br />

30. Que ele cresça. <strong>João</strong> Batista dá mais um passo, pois tendo<br />

anteriormente sido elevado pelo Senhor à mais nobre dignidade, ele<br />

mostra que isso foi por apenas pouco tempo. Mas agora que o Sol<br />

da Justiça [Ml 4.2] entrou em cena, ele tem de deixar-lhe livre o caminho;<br />

e, por isso, não só dispersou e afugentou as fúteis fumaças<br />

da honra que lhe era precipitada e ignorantemente cumulada pelos<br />

homens, mas também se mune de excessivo cuidado para que a verdadeira<br />

e legítima honra que o Senhor lhe concedera de modo algum<br />

obscureça a glória de Cristo. Consequentemente, ele nos diz que a<br />

razão pela qual fora até aqui considerado grande profeta era que, por<br />

apenas algum tempo, ele foi posto em tão elevada condição até que<br />

Cristo se manifestasse, a quem ele teria de consagrar seu ofício. Entrementes,<br />

ele declara que muito mais espontaneamente se deixará<br />

reduzir a nada, contanto que Cristo ocupe e encha o mundo inteiro<br />

com seus benditos raios e todos os pastores da Igreja devem imitar<br />

tal zelo da parte de <strong>João</strong>, curvando suas cabeças e ombros para que<br />

Cristo seja exaltado.<br />

31. Aquele que vem de cima. Fazendo uso de outra comparação,<br />

ele mostra quão amplamente Cristo difere de todos os demais, e quão<br />

mais acima ele está deles, pois o compara a um rei ou eminente general<br />

que, falando de um sublime trono, deve ser ouvido com reverência<br />

em virtude de sua autoridade, porém mostra que para ele pessoalmente<br />

bastava falar desde a parte mais inferior do escabelo de Cristo. 17 Na<br />

segunda sentença, a tradução do latim antigo somente uma vez traz as<br />

palavras é da terra. Mas os manuscritos gregos concordam em reiterar<br />

duas vezes as palavras. Minha suspeita é que homens ignorantes considerassem<br />

a repetição como algo supérfluo, e por isso a eliminaram.<br />

O significado, porém, é este: aquele que é da terra fornece evidência<br />

de seu descendente, e permanece em uma esfera terrena segundo a<br />

condição de sua natureza. Ele sustenta que é peculiar somente a Cristo<br />

falar de cima, porque ele veio do céu.<br />

17 “Au marchepied de Christ.”


146 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Mas alguém poderia perguntar: <strong>João</strong> também não veio do céu,<br />

quanto a sua vocação e ofício, e por isso não era o dever dos homens<br />

ouvirem o Senhor falando através de sua boca? Pois ele parece fazer<br />

injustiça à doutrina celestial que proclama. Minha resposta é que tal<br />

coisa de forma alguma foi dita, senão à maneira de comparação. Se<br />

os ministros forem considerados individualmente, eles falam como se<br />

procedesse do céu, com a mais elevada autoridade, o que Deus lhes<br />

ordenou. Mas, tão logo eles passam a ser contrastados com Cristo, não<br />

mais devem ser considerados como sendo algo importante.<br />

Assim o apóstolo, comparando a Lei com o <strong>Evangelho</strong>, diz:<br />

Porque, se não escaparam aqueles que rejeitaram o que na terra os<br />

advertia, muito menos nós, se nos desviarmos daquele que é dos céus<br />

[Hb 12.25]. Cristo, pois, deseja ser reconhecido em seus ministros,<br />

mas de tal maneira que ele permaneça sendo o único Senhor, e que<br />

eles se sintam felizes com a condição de servos. Mas, especialmente<br />

quando se faz uma comparação, ele deseja ser tão eminente, que seja<br />

o único exaltado.<br />

32. E o que ele viu e ouviu. <strong>João</strong> prossegue no desempenho de seu<br />

ofício, pois, com o fim de granjear discípulos para Cristo, ele enaltece<br />

a doutrina deste como sendo infalível, porquanto ele nada proclama<br />

senão o que havia recebido do Pai. Ver e ouvir são contrastados com<br />

opiniões dúbias, rumores infundados e todo gênero de falsidade, pois<br />

ele tem em mente que Cristo nada ensina senão aquilo que foi plenamente<br />

averiguado. Mas alguém dirá que pouco crédito se deve àquele<br />

que nada tem a dizer senão o que ouviu. Minha resposta é que esta<br />

palavra denota que Cristo fora instruído pelo Pai, de modo que nada<br />

apresenta senão o que é divino, ou, em outros termos, o que lhe fora<br />

revelado por Deus.<br />

Ora, isso pertence à totalidade da pessoa de Cristo, no sentido em<br />

que o Pai o envia ao mundo como seu Embaixador e Intérprete. Mais<br />

tarde, ele culpará o mundo de ingratidão ao rejeitar vil e impiamente<br />

tal fidedigno e fiel Intérprete de Deus. Desta maneira, ele satisfaz a<br />

ofensa que poderia levar muitos a apostatar da fé, o que poderia impe-


Capítulo 3 • 147<br />

dir ou retardar o progresso de muitos, uma vez que, visto que estamos<br />

acostumados a depender tanto do juízo do mundo, um número considerável<br />

de pessoas julga o evangelho pelo prisma do menosprezo do<br />

mundo, ou, pelo menos, quando o veem por toda parte rejeitado, acabam<br />

sendo prejudicados por essa ocorrência e se tornam ainda mais<br />

indispostos e mais morosos em crer. E, por isso, sempre que vemos<br />

tal obstinação no mundo, que esta admoestação nos mantenha em<br />

constante obediência ao evangelho, o qual é a verdade que procede de<br />

Deus. Ao dizer que nenhum homem recebe seu testemunho, sua intenção<br />

é dizer que há bem poucos que creem, e mesmo quase ninguém,<br />

quando comparado com a vasta multidão de incrédulos.<br />

33. Mas aquele que recebe seu testemunho. Aqui ele exorta<br />

e encoraja os santos a abraçarem ousadamente a doutrina do<br />

evangelho, como se quisesse dizer que não há razão para que se<br />

envergonhem ou se atormentem por conta de seu diminuto número,<br />

já que têm Deus como o Autor de sua fé, o único que nos é ricamente<br />

suficiente em todas as coisas. E, portanto, ainda que o mundo<br />

inteiro rejeite ou se esquive da fé no evangelho, isso não deve impedir<br />

os homens bons de dar seu assentimento a Deus. Eles têm<br />

algo sobre o qual podem descansar em segurança, porquanto bem<br />

sabem que crer no evangelho nada mais é do que consentir com as<br />

verdades que Deus revelou.<br />

Entretanto, aprendemos ser peculiar à fé aquela confiança em<br />

Deus que é confirmada por sua Palavra, pois não pode haver assentimento<br />

a menos que Deus, antes de tudo, tenha se manifestado e<br />

falado. Por meio desta doutrina, a fé não só se distingue de todos os<br />

inventos humanos, mas também das opiniões dúbias e flutuantes,<br />

pois ela deve corresponder à verdade de Deus, a qual é isenta de<br />

toda e qualquer dúvida, e, portanto, visto que Deus não pode mentir,<br />

seria inconsistente que a fé fosse oscilante. Se estivermos bem armados<br />

por esta defesa, sejam quais forem os obstáculos que Satanás<br />

empregue em suas tentativas de nos perturbar e abalar, permaneceremos<br />

sempre vitoriosos.


148 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Daí sermos também lembrados de quão aceitável e precioso sacrifício<br />

é a fé aos olhos de Deus. Como nada lhe é mais querido do que<br />

sua verdade, assim não podemos prestar-lhe um culto mais aceitável<br />

do que quando, por meio de nossa fé, reconhecemos que ele é verdadeiro,<br />

porque assim lhe atribuímos aquela honra que verdadeiramente<br />

lhe pertence. Em contrapartida, não podemos fazer-lhe um insulto<br />

mais grave do que não crer no evangelho, porque ele não pode ser<br />

privado de sua verdade sem se despir de toda sua glória e majestade.<br />

De certa forma, sua verdade está estreitamente vinculada ao<br />

evangelho, e sua vontade é que ela seja aí reconhecida. Portanto, os<br />

incrédulos, enquanto confiam em seu próprio poder, nada deixam a<br />

Deus. Não que sua impiedade destrua a fidelidade de Deus, mas porque<br />

não hesitam em acusar a Deus de falsidade. Caso não sejamos<br />

mais empedernidos que as pedras, este sublime título, pelo qual a fé<br />

é adornada, deve acender em nossas mentes o mais ardente amor por<br />

ele, pois quão imensa é a honra que Deus confere a meros homens pobres<br />

e sem valor, quando eles, que por natureza nada mais são do que<br />

falsidade e vaidade, se dignam de acrescentar sua assinatura à sacra<br />

verdade de Deus!<br />

34. Porque aquele a quem Deus enviou fala as palavras de Deus.<br />

Ele confirma a afirmação precedente, porquanto mostra que estamos<br />

realmente em relação com Deus quando recebemos a doutrina de Cristo,<br />

porquanto Cristo não procedeu de nenhuma outra fonte, senão do<br />

Pai celestial. Portanto, é tão somente Deus quem nos fala por meio<br />

dele. Deveras não atribuímos à doutrina de Cristo tudo quanto ela merece,<br />

a menos que reconheçamos ser ela divina.<br />

Pois Deus não dá seu Espírito por medida. Esta passagem é explicada<br />

de duas maneiras. Há aqueles que a estendem à dispensação<br />

ordinária desta maneira: que Deus, que é a fonte inexaurível de todos<br />

os benefícios, não diminui sequer um mínimo seus recursos quando<br />

ampla e ricamente outorga aos homens seus dons. Aqueles que tiram<br />

de algum recipiente o que dão a outros, por fim chegarão ao fundo.<br />

Porém, não há o risco de que algo semelhante ocorra com Deus, nem


Capítulo 3 • 149<br />

a abundância de seus dons nunca seja tão profusa que ele não vá além<br />

dela, sempre que lhe agrade exercer sua liberalidade. Esta exposição<br />

parece ter alguma plausibilidade, pois a sentença é indefinida. 18<br />

Quanto a mim, porém, sinto-me mais disposto a seguir Agostinho, o<br />

qual explica que isso foi dito concernente a Cristo. Tampouco há alguma<br />

força na objeção de que nesta sentença não se faz nenhuma menção<br />

expressa de Cristo, já que toda ambiguidade é removida pela sentença<br />

seguinte, na qual aquilo que poderia parecer ter sido dito indiscriminadamente<br />

acerca de muitos se limita a Cristo. Porquanto estas palavras<br />

foram inquestionavelmente acrescidas à maneira de explicação, a saber:<br />

que o Pai deu todas as coisas nas mãos de seu Filho, porque ele o<br />

ama, e por isso devem ser lidas como postas em conexão imediata.<br />

O verbo no tempo presente – dá – denota, por assim dizer, um ato<br />

contínuo, pois ainda que Cristo fosse total e imediatamente dotado<br />

com o Espírito, na mais elevada perfeição, todavia, visto que ele flui<br />

continuamente, por assim dizer, de uma fonte, e é amplamente difuso,<br />

não há impropriedade em dizer que Cristo agora o recebe do Pai. Mas,<br />

se alguém preferir interpretar isto de uma forma mais simples, não é<br />

algo incomum que em tais verbos haja mudança de tempos, e esse dá<br />

seria substituído por tem dado. 19<br />

O significado agora fica claro: o Espírito não foi dado a Cristo por<br />

medida, como se o poder da graça que ele possui fosse de alguma sorte<br />

limitado, como Paulo ensina que a cada um é dado segundo a medida<br />

do dom [Ef 4.7], de modo que não existe sequer um que por si só possua<br />

abundância em plenitude. Pois enquanto este é o vínculo mútuo de<br />

comunhão fraterna entre nós, nenhuma pessoa individualmente considerada<br />

possui tudo de que necessita, senão que todos demandam o<br />

auxílio uns dos outros. Cristo difere de nós neste aspecto, a saber: que o<br />

Pai derramou sobre ele uma abundância ilimitada de seu Espírito. E, certamente,<br />

é próprio que o Espírito habite nele sem medida, para que todos<br />

nós recebamos de sua plenitude, como já vimos no primeiro capítulo.<br />

18 “C’est à dire, ne determine point certaime pesonne.”<br />

19 “Et que Donne soit mis pour et donné.”


150 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

A isto se relaciona o que imediatamente segue: que o Pai deu todas<br />

as coisas em suas mãos, pois com estas palavras <strong>João</strong> Batista não só<br />

declara a excelência de Cristo, mas, ao mesmo tempo, põe em realce<br />

o fim e uso das riquezas com as quais ele é dotado, isto é, que Cristo,<br />

tendo sido designado pelo Pai para ser o administrador, distribui a<br />

cada um como lhe apraz e como ele mesmo entende ser necessário,<br />

como Paulo explica mais plenamente no quarto capítulo da Epístola<br />

aos Efésios que acabo de citar. Embora Deus enriqueça seu próprio<br />

povo de formas variadas, isso é peculiar exclusivamente a Cristo, ou<br />

seja, ele tem em suas mãos todas as coisas.<br />

[3.35, 36]<br />

O Pai ama o Filho, e deu todas as coisas em suas mãos. Aquele<br />

que crê no Filho tem a vida eterna; aquele, porém, que não crê<br />

no Filho 20 não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de<br />

Deus.<br />

35. O Pai ama o Filho. Mas, qual é o significado desta razão? Ele<br />

contempla todos os demais com ódio? A resposta é fácil, a saber:<br />

ele não fala do amor comum com que Deus considera os homens<br />

aos quais criou, ou suas demais obras, mas daquele amor peculiar<br />

que, começando com seu Filho, emana dele para todas as criaturas.<br />

Pois esse amor com o qual, abraçando o Filho, ele nos abraça também<br />

nele, o leva a comunicar-nos todos seus benefícios por meio<br />

de suas mãos.<br />

36. Aquele que crê no Filho. Isso foi adicionado não só para informar-nos<br />

de que devemos esperar da parte de Cristo todas as boas<br />

coisas, mas igualmente familiarizar-nos com a maneira como são desfrutadas.<br />

Ele mostra que o desfruto consiste na fé, e, não sem razão,<br />

visto que é por meio dela que tomamos posse de Cristo, traz consigo<br />

tanto a justiça quanto a vida, a qual é o fruto da justiça.<br />

20 “Qui ne eroit point au Fils, ou, qui desobeit au Fils” – “quem não crê no Filho, ou, quem<br />

desobedece ao Filho.”


Capítulo 3 • 151<br />

Quando se declara a fé em Cristo como sendo a causa da vida, descobrimos<br />

disto que só se pode encontrar a vida em Cristo, e que não<br />

podemos ser participantes dela de nenhuma outra forma, senão pela<br />

graça de Cristo mesmo. Mas nem todos concordam quanto à maneira<br />

como a vida de Cristo vem a nós. Alguns o entendem assim: “assim<br />

como, ao crermos, recebemos o Espírito, o qual nos regenera para a<br />

justificação, por meio dessa mesma regeneração obtemos a salvação.”<br />

Pessoalmente, muito embora reconheça que isso é procedente, a saber,<br />

que somos renovados por meio da fé, de modo que o Espírito de<br />

Cristo nos governa, todavia digo que primeiramente devemos levar em<br />

conta o perdão gratuito dos pecados, através do qual somos aceitos<br />

por Deus. Além do mais, digo que toda a confiança de nossa salvação<br />

se fundamenta neste fato, e no mesmo consiste, porque a justificação,<br />

diante de Deus, não pode ser computada em nosso favor de qualquer<br />

outra forma, senão quando ele deixa de nos imputar nossos pecados.<br />

Aquele, porém, que não crê no Filho. Como ele focalizou a vida<br />

em Cristo, por cuja doçura pudesse atrair-nos, assim agora ele sentencia<br />

à morte eterna todos quantos não creem em Cristo. E, dessa forma,<br />

ele exalta a bondade de Deus, quando nos adverte dizendo que não<br />

há outro caminho de escape da morte, a menos que Cristo nos liberte,<br />

pois esta sentença depende do fato de que estão todos amaldiçoados<br />

em Adão.<br />

Ora, se o ofício de Cristo é salvar o que estava perdido, quem<br />

rejeita a salvação nele oferecida com justiça se destina a permanecer<br />

na morte. Acabamos de dizer que isso pertence peculiarmente aos que<br />

rejeitam o evangelho que lhes fora revelado, pois ainda que todo gênero<br />

humano se ache envolvido na mesma destruição, todavia uma<br />

vingança mais pesada e dupla aguarda os que se recusam ter o Filho<br />

de Deus como seu Libertador. E deveras não pode haver dúvida de que<br />

<strong>João</strong> Batista, quando anunciou morte contra os incrédulos, pretendia<br />

incitar-nos, pelo temor dela, ao exercício da fé em Cristo. Também se<br />

manifesta que toda a justiça que o mundo crê possuir fora de Cristo<br />

é condenada e reduzida a nada. Tampouco é alguém capaz de objetar,


152 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

dizendo ser injusto que aqueles que são igualmente devotos e santos<br />

pereçam só porque não creem, porquanto é estulto imaginar que haja<br />

nos homens alguma sombra de santidade, a menos que a mesma lhes<br />

seja dada por Cristo.<br />

Ver a vida, aqui, é posto em lugar de “desfrutar a vida”. Mas, para<br />

expressar mais claramente que não nos resta qualquer esperança, a<br />

menos que sejamos libertos por Cristo, ele diz que a ira de Deus permanece<br />

sobre os incrédulos.<br />

Ainda que o ponto de vista apresentado por Agostinho não me<br />

satisfaça, ou seja, que <strong>João</strong> Batista usou a palavra permanecer a fim de<br />

informar-nos que desde o ventre estávamos destinados à morte, uma<br />

vez que somos todos filhos da ira [Ef 2.3], pelo menos de bom grado<br />

admito uma alusão desse gênero, contanto que mantenhamos o significado<br />

verdadeiro e simples como sendo aquele que já afirmei, a saber:<br />

que a morte pende sobre todos os incrédulos, e os conserva opressos<br />

e esmagados de tal sorte que não têm como escapar. E, de fato, ainda<br />

que os réprobos já estejam naturalmente condenados, todavia, por<br />

sua descrença, atraem sobre si uma nova morte. E é com esse propósito<br />

que o poder de atar foi dado aos ministros do evangelho; pois é uma<br />

justa vingança contra a obstinação dos homens que aqueles que sacodem<br />

de si o salutar jugo de Deus se prendam com as cadeias da morte.


Capítulo 4<br />

[4.1-9]<br />

Quando, pois, o Senhor soube que os fariseus tinham ouvido<br />

que Jesus fazia e batizava mais discípulos do que <strong>João</strong> (ainda<br />

que Jesus mesmo não batizava, e, sim, seus discípulos.), ele<br />

deixou a Judéia e partiu novamente para a Galileia. E era-lhe<br />

necessário passar por Samaria. Portanto, ele entrou na cidade<br />

de Samaria, que é chamada Sicar, junto ao campo que Jacó deu<br />

a seu filho José. E ficava ali o poço de Jacó; e Jesus, fatigado<br />

da viagem, assentou-se assim junto ao poço, pois era cerca da<br />

hora sexta. Veio uma mulher de Samaria tirar água. Jesus lhe<br />

disse: Dá-me de beber. Pois os discípulos tinham ido à cidade<br />

comprar alimento. A mulher samaritana lhe disse: Como, sendo<br />

tu judeu, pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana?<br />

Porque os judeus não se comunicam com os samaritanos.<br />

1. Quando, pois, o Senhor soube. O evangelista, tencionando<br />

agora apresentar um relato do diálogo que Cristo mantivera com<br />

uma mulher samaritana, começa explicando a causa de sua viagem.<br />

Sabendo que os fariseus eram indispostos em relação a ele, Jesus não<br />

quer expor-se a sua ira antes do tempo próprio. Essa era sua razão<br />

para sair da Judéia. Assim o evangelista nos informa que Cristo não<br />

entrou em território samaritano com o intuito de permanecer ali, mas<br />

porque tinha que passar por ali em seu caminho da Judeia para a Galileia.<br />

Pois até que, através de sua ressurreição, ele abrisse o caminho


154 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

para o evangelho, era necessário que se empenhasse em congregar as<br />

ovelhas de Israel para as quais fora enviado. Favorecer agora os samaritanos<br />

com sua instrução era uma ocorrência extraordinária e quase<br />

acidental, caso se nos permita a expressão.<br />

Mas, por que ele busca o retiro e lugares discretos da Galileia,<br />

como se não quisesse ser conhecido, o que deveria ser exatamente<br />

desejado? Eis minha resposta: ele sabia muito bem o modo próprio<br />

de agir, e fez um proveitoso uso das oportunidades para não permitir<br />

a perda de um momento sequer. Portanto, ele queria seguir seu curso<br />

com regularidade e da maneira que ele julgava ser oportuno. Daí também<br />

ouvirmos que nossas mentes devem ser reguladas de tal maneira<br />

que, de um lado, não venhamos a ser detidos por algum receio de ir<br />

além do dever; e que, do outro, não nos enveredemos precipitadamente<br />

pelos meandros dos perigos. Todos quantos solicitamente desejam<br />

perseguir sua vocação devem ser cuidadosos em manter esta moderação,<br />

por meio da qual prontamente sigam o Senhor mesmo quando<br />

se veem envolvidos por mil mortes. Não avançarão displicentemente,<br />

mas trilharão suas veredas. Portanto, lembremo-nos de que não devemos<br />

avançar além das demandas de nossa vocação.<br />

Que os fariseus tinham ouvido. Os fariseus são mencionados isoladamente<br />

pelo evangelista como sendo hostis a Cristo; não que os<br />

demais escribas fossem amigos, mas porque essa seita, naquele tempo,<br />

estava em ascensão, e porque se deixaram dominar pelo furor sob<br />

o pretexto de zelo santo. É possível que alguém pergunte: invejavam a<br />

Cristo só porque ele tinha mais discípulos, visto que sua ligação mais<br />

forte a <strong>João</strong> os levara a promover sua honra e reputação? O significado<br />

das palavras é diferente, pois embora anteriormente ficassem insatisfeitos<br />

por descobrir que <strong>João</strong> arregimentava discípulos, suas mentes<br />

ficaram ainda mais irritadas quando viram que um número ainda<br />

maior de discípulos se acercava de Cristo. Desde o tempo em que <strong>João</strong><br />

passou a proclamar que ele mesmo nada mais era que o mero arauto<br />

do Filho de Deus, multidões cada vez mais numerosas passaram<br />

a arrebanhar-se em torno de Cristo, e seu ministério já estava quase


Capítulo 4 • 155<br />

completado. Assim, ele gradualmente foi deixando com Cristo o ofício<br />

de ensinar e batizar.<br />

2. Ainda que Cristo mesmo não batizasse. Ele designa de Batismo<br />

de Cristo, o que este conferia pelas mãos de outros, com o fim de informar-nos<br />

que o batismo não deve ser avaliado pelo prisma da pessoa<br />

do ministro, senão que seu poder depende inteiramente de seu Autor,<br />

em cujo nome, e por cuja autoridade, é conferido. Daí extrairmos extraordinária<br />

consolação quando sabemos que nosso batismo não tem<br />

menos eficácia para nos lavar e nos renovar do que se ele fosse ministrado<br />

pelas mãos do Filho de Deus. Tampouco se pode duvidar que,<br />

enquanto viveu no mundo, ele se absteve da administração externa do<br />

sinal, com o expresso propósito de testificar a todas as eras que o batismo<br />

nada perde de seu valor [intrínseco] quando administrado pela<br />

mão do homem mortal. Em suma, Cristo não só batizou interiormente<br />

pela instrumentalidade de seu Espírito, mas o próprio símbolo que<br />

recebemos de um homem mortal deve ser considerado por nós como<br />

se Cristo mesmo manifestasse sua mão desde o céu e a estendesse em<br />

nossa direção.<br />

Ora, se o batismo administrado por um homem é o batismo de<br />

Cristo, ele não cessará de ser o batismo de Cristo, não importa quem<br />

o administre. E isso é suficiente para refutar os anabatistas que defendem<br />

esta tese: quando o ministro é um homem ímpio, o batismo<br />

é também invalidado, e com tal absurdo eles perturbam a Igreja. E<br />

também Agostinho, com muita propriedade, empregou o mesmo argumento<br />

contra os donatistas.<br />

5. Que é chamada Sicar. Jerônimo, em seu epitáfio a Paula, crê<br />

que esta é uma redação incorreta, e que a palavra Sicar deve ser<br />

grafada Siquem. E, de fato, a última parece ter sido o nome antigo e verdadeiro.<br />

Mas é provável que, nos dias do evangelista, a palavra Sicar<br />

já fosse de uso popular. Quanto ao lugar, geralmente se concorda que<br />

fosse uma cidade situada nas proximidades do Monte Gerizim, cujos<br />

habitantes foram traiçoeiramente assassinados por Simão e Levi [Gn<br />

34.25], e cujos fundamentos Abimeleque, um nativo do lugar, mais tar-


156 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

de arrasou [Jz 9.45]. Mas a conveniência de sua localização era tal que,<br />

pela terceira vez, uma cidade foi ali edificada, à qual, na época de Jerônimo,<br />

deram o nome de Neápolis. Ao adicionar tantas circunstâncias, o<br />

apóstolo remove toda dúvida, pois somos claramente informados por<br />

Moisés que Jacó destinara aquele campo aos filhos de José [Gn 48.22].<br />

Conhece-se também universalmente que Siquem ficava nas cercanias<br />

do Monte Gerizim. Mais adiante abordaremos sobre o templo que ali<br />

foi edificado, e é sem sombra de dúvida que Jacó, por longo tempo,<br />

fixou habitação naquele lugar com sua família.<br />

E Jesus, fatigado da viagem. Ele não pretextava cansaço, mas estava<br />

literalmente fatigado. Pois para estar mais bem preparado para o<br />

exercício da compreensão e compaixão para conosco, ele tomou sobre<br />

si nossa debilidade, como mostra o apóstolo: não temos um sumo<br />

sacerdote que não possa compadecer-se de nossas enfermidades [Hb<br />

4.15]. Com isso, concorda a circunstância de tempo, pois não surpreende<br />

que, estando sedento e fatigado, ele busque descanso junto ao<br />

poço, ao meio-dia, porque, visto que o dia, desde o nascente até o poente,<br />

tem doze horas, a hora sexta era meio-dia. Quando o evangelista<br />

diz que ele sentou-se assim, ele quer dizer que essa era a atitude de um<br />

homem que era tomada pela fadiga.<br />

7. Uma mulher veio de Samaria. Ao dirigir-se à mulher e pedir-<br />

-lhe água, sua intenção não era meramente obter uma oportunidade<br />

de instruí-la, pois a sede o impelia a querer beber. Mas isso não pode<br />

impedi-lo de valer-se da oportunidade para a instrução que via diante<br />

de si, pois prefere a salvação da mulher a suas próprias necessidades.<br />

Assim, esquecendo sua própria sede, como se ficasse satisfeito com a<br />

obtenção de lazer e oportunidade para o diálogo a fim de poder instruí-la<br />

na verdadeira piedade, ele traça uma comparação entre a água<br />

visível e a espiritual, e assim rega com a doutrina celestial a mente<br />

daquela que lhe recusara água para beber.<br />

9. Como tu, sendo um judeu? Isso equivale a uma reprimenda,<br />

por meio da qual ela destila sobre ele o desdém que geralmente era<br />

nutrido por sua nação. Os samaritanos são conhecidos como sendo a


Capítulo 4 • 157<br />

escória resultante da fusão de judeus e povos estrangeiros. Havendo<br />

corrompido o culto divino, e introduzido muitas cerimônias espúrias<br />

e ímpias, eram, com razão, considerados pelos judeus como um povo<br />

detestável. Contudo, indubitavelmente, os judeus, em sua maioria, fomentavam<br />

seu zelo pela lei como uma capa para seu ódio carnal, pois<br />

muitos agiam movidos mais por ambição e inveja, sentindo desprazer<br />

em ver o país que lhes pertencia ocupado pelos samaritanos, do que<br />

por pesar e intranquilidade por verem o culto divino sendo corrompido.<br />

Havia motivo justo para a separação, desde que seus sentimentos<br />

fossem puros e bem temperados. Por essa razão, Cristo, quando inicialmente<br />

enviou os apóstolos a proclamarem o evangelho, os proíbe<br />

de entrar em contato com os samaritanos [Mt 10.5].<br />

Esta mulher, porém, faz o que é natural a quase todos nós, pois,<br />

desejosos de manter nossa autoestima, levamos muito a sério quando<br />

somos desprezados. Essa doença da natureza humana é tão generalizada<br />

que cada pessoa deseja que seus vícios agradem a outros. Se<br />

alguém nos desaprova por alguma coisa que fazemos ou dizemos, 1 nos<br />

sentimos imediatamente ofendidos sem qualquer razão plausível. Que<br />

cada um de nós examine a si mesmo, e encontrará essa semente do<br />

orgulho em sua mente, até que a mesma seja erradicada pelo Espírito<br />

de Deus. Esta mulher, pois, tendo consciência de que as superstições<br />

de sua nação eram condenadas pelos judeus, dirigi-lhes um insulto na<br />

pessoa de Cristo.<br />

Porque os judeus não se comunicam com os samaritanos. Considero<br />

estas palavras como tendo sido pronunciadas pela mulher.<br />

Outros supõem que o evangelista as adicionou como explicação, e<br />

de fato é de pouca importância que significado o leitor prefira. Eu, porém,<br />

penso ser mais natural crer que a mulher está ironizando Cristo<br />

nestes termos: “O quê?! É lícito você me pedir água para beber, uma<br />

vez que nos tem na conta de tão profanos?”. Mas, se alguém preferir<br />

a outra interpretação, de minha parte não polemizo. Além disso, é<br />

1 “Et qui reprouve ce que nous disons ou faisons.”


158 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

possível que os judeus levassem sua aversão pelos samaritanos além<br />

dos limites da equidade, pois, como já vimos, eles aplicavam o falso<br />

pretexto de zelo a um propósito impróprio, assim era-lhes natural<br />

chegar a excesso, como quase sempre ocorre com aqueles que nutrem<br />

paixões perversas.<br />

[4.10-15]<br />

Jesus respondeu, e lhe disse: Se tu conheceras o dom de Deus,<br />

e quem é que te diz: Dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te<br />

daria água viva. Disse-lhe a mulher: Senhor, tu não tens com<br />

que a tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva? 2 És tu<br />

maior que nosso pai Jacó, que nos deu o poço, e dele bebendo<br />

ele próprio, e seus filhos, e seu gado? Jesus respondeu, e lhe<br />

disse: Todo aquele que beber desta água tornará a ter sede;<br />

mas a água que eu lhe darei será nele um poço de água que<br />

jorrará para a vida eterna. Disse-lhe a mulher: Senhor, dá-me<br />

desta água, para que eu não tenha mais sede e não precise mais<br />

vir aqui tirá-la.<br />

10. Jesus respondeu. Cristo agora, valendo-se da oportunidade,<br />

começa a pregar acerca da graça e do poder de seu Espírito a uma<br />

mulher que de modo algum merecia que ele lhe dirigisse a palavra.<br />

Este é sem dúvida um espantoso exemplo de sua benevolência. Pois o<br />

que havia nesta miserável mulher que, de uma prostituta, de repente<br />

se converte em discípula do Filho de Deus, a despeito de que em todos<br />

nós ele tem exibido um exemplo semelhante de sua compaixão? Nem<br />

todas as mulheres são prostitutas, e nem todos os homens são manchados<br />

por algum delito hediondo. Mas que excelência pode qualquer<br />

um de nós pleitear como razão pela qual ele se digne outorgar-nos a<br />

doutrina celestial e a honra de sermos admitidos em sua família? Tampouco<br />

foi por mero acidente que ocorresse o diálogo com tal pessoa,<br />

2 “Ceste eau vive” – “esta água viva.”


Capítulo 4 • 159<br />

pois o Senhor mostrou-nos, à guisa de modelo, que aqueles a quem<br />

ele comunica a doutrina da salvação não são selecionados com base<br />

em seus méritos. E à primeira vista parece um maravilhoso arranjo<br />

o fato de ele passar de largo por tantos grandes homens na Judéia<br />

e não obstante querer comunicar-se familiarmente com esta mulher.<br />

Mas era necessário que, em sua pessoa, se explicasse quão verdadeiro<br />

é o dito do profeta: “Fui buscado pelos que não perguntavam por mim;<br />

fui achado por aqueles que não me buscavam; a uma nação que não<br />

se chamava de meu nome eu disse: Eis-me aqui. Eis-me aqui” [Is 65.1].<br />

Se tu conheceras o dom de Deus. Estas duas sentenças: Se tu<br />

conheceras o dom de Deus e quem é que fala contigo, as leio separadamente,<br />

considerando a última como uma interpretação da primeira.<br />

Porquanto se tornava uma maravilhosa benevolência da parte de Deus<br />

haver Cristo se apresentado como Aquele que tinha consigo a vida<br />

eterna. O significado será mais pleno se, em vez de e, pusermos a saber,<br />

ou alguma outra palavra desse gênero, 3 assim: “Se tu conheceras<br />

o dom de Deus, a saber, aquele que fala contigo.” Por meio dessas palavras<br />

somos instruídos que então só sabemos o que é Cristo quando<br />

entendermos o que o Pai nos deu nele e que benefícios ele nos traz.<br />

Ora, tal conhecimento começa com a convicção de nossa pobreza,<br />

pois antes que alguém deseje algum remédio é preciso que ele seja<br />

antes afetado por alguma percepção de sua enfermidade. E assim o<br />

Senhor convida não aqueles que já beberam a fartar, mas o sedento;<br />

não aqueles que já estão saciados, e sim o faminto, a comer e a beber.<br />

E por que Cristo seria enviado com a plenitude do Espírito, se não estivéssemos<br />

totalmente vazios?<br />

Além disso, como já fez grande progresso aquele que, sentindo<br />

sua deficiência, reconhece o quanto necessita do auxílio de outros,<br />

assim não lhe seria bastante gemer sob sua angústia, se também não<br />

esperasse auxílio pronto e já preparado. Então nada mais poderíamos<br />

fazer senão consumir-nos em tristeza, ou, pelo menos poderíamos,<br />

3 “Si en lieu de Et, nous mettons A scavoir, ou quelque autre mot semblable.”


160 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

como os papistas, correr de um a outro lado sem direção, e oprimir-<br />

-nos com exaustão inútil e sem objetividade. Mas quando Cristo entra<br />

em cena, já não vagueamos sem rumo, buscando remédio onde o mesmo<br />

não existe, mas corremos direto para ele. O único conhecimento<br />

real e proveitoso da graça de Deus é quando sabemos que ela nos<br />

é exibida em Cristo, e que a mesma nos é oferecida por sua própria<br />

mão. De igual modo, Cristo nos lembra quão eficaz é o conhecimento<br />

de suas bênçãos, visto que o mesmo nos incita a buscá-las e vivificá-<br />

-las em nossos corações. Se conheceras, diz ele, então pedirias. Não é<br />

difícil perceber o desígnio dessas palavras, pois ele tencionava aguçar<br />

o desejo dessa mulher, para que ela não desprezasse nem rejeitasse a<br />

vida que lhe era oferecida.<br />

Ele te daria. Com estas palavras Cristo testifica que, se nossas<br />

orações lhe forem endereçadas, não ficarão sem efeito. E deveras sem<br />

essa confiança a solicitude da oração seria totalmente arrefecida. Mas<br />

quando Cristo satisfaz aos que a ele vão, e se dispõe a satisfazer seus<br />

desejos, já não há mais lugar para indolência nem delonga. E não há<br />

ninguém que não sinta que isso é dito a todos nós, se não fôssemos<br />

impedidos por nossa incredulidade.<br />

Água viva. Ainda que a designação água seja emprestada da presente<br />

ocorrência, e aplicada pelo Espírito, não obstante esta metáfora<br />

é bem frequente na Escritura e repousa sobre bases as mais sólidas.<br />

Pois nos assemelhamos a um solo seco e estéril. Não existe em nós nenhuma<br />

seiva nem vigor, até que o Senhor nos regue com seu Espírito.<br />

Em outra passagem, o Espírito é igualmente denominado água pura<br />

[Hb 10.22], porém em um sentido distinto, ou, seja, porque ele nos<br />

lava e nos purifica daquelas imundícies com que estamos totalmente<br />

contaminados. Mas, nesta passagem e noutras similares, o tema ali<br />

tratado é a energia secreta por meio da qual ele restaura em nós a<br />

vida, a mantém e a conduz à perfeição. Há quem explique isto como se<br />

referindo à doutrina do evangelho, pessoalmente concordando que tal<br />

designação é plenamente aplicável, porém, creio que aqui Cristo inclui<br />

toda a graça de nossa renovação, pois sabemos que ele foi enviado


Capítulo 4 • 161<br />

com o propósito de produzir em nós uma nova vida. Portanto, em minha<br />

opinião, ele tencionava contrastar água com aquela destituição de<br />

todas as bênçãos sob a qual o gênero humano geme e labuta. Ainda,<br />

água viva não é assim chamada a partir de seu efeito, como doador de<br />

vida, senão que a alusão é a diferentes tipos de águas. É chamada viva<br />

porque emana de uma fonte viva.<br />

11. Senhor, tu não tens com que tirá-la. Visto que os samaritanos<br />

eram desprezados pelos judeus, assim estes, em contrapartida,<br />

tratavam os judeus com o mais agudo desdém. Consequentemente,<br />

esta mulher a princípio não só desdenha a Cristo, mas inclusive zomba<br />

dele. Ela percebe plenamente bem que Cristo está falando em termos<br />

figurados, mas faz um jogo de palavras com a intenção de dizer que ele<br />

prometia mais do que podia realizar.<br />

12. És tu maior que nosso pai Jacó? Ela prossegue acusando-o de<br />

arrogância por exaltar-se acima do santo patriarca Jacó. “Jacó”, diz ela,<br />

“ficou satisfeito com este poço para seu uso pessoal e o de toda sua<br />

família; e, porventura, tens uma água mais excelente?”. O quanto essa<br />

comparação é censurável transparece com bastante clareza à luz desta<br />

consideração: que ela compara o servo com seu dono, e um homem<br />

já morto com o Deus vivo; e, no entanto, quantos em nossos próprios<br />

dias caem neste mesmo erro! É preciso muito cuidado para não exaltarmos<br />

seres humanos a ponto de obscurecer a glória de Deus. Aliás,<br />

devemos reconhecer com reverência os dons de Deus, sempre que<br />

eles se manifestem. Portanto, é próprio que honremos os homens que<br />

sejam eminentes em piedade ou dotados com outros dons incomuns.<br />

Mas que isso seja de uma maneira tal que Deus permaneça sempre<br />

acima de todos – que Cristo, com seu evangelho, brilhe gloriosamente,<br />

pois é preciso submeter-lhe todo o esplendor do mundo.<br />

É preciso observar ainda que os samaritanos falsamente se vangloriavam<br />

de descender de pais santos. Da mesma forma os papistas,<br />

ainda que sejam uma semente bastarda, arrogantemente se vangloriam<br />

dos Pais e desprezam os verdadeiros filhos de Deus. Embora os<br />

samaritanos tenham descendido de Jacó segundo a carne, todavia,


162 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

como eram totalmente degenerados e estranhos à genuína piedade,<br />

essa vanglória teria sido ridícula. Mas, visto que na verdade são descendentes<br />

de Cute [2Rs 17.24], ou, pelo menos, arrebanhados dentre<br />

os gentios profanos, ainda não deixaram de apresentar falsas pretensões<br />

ao nome do santo Patriarca. Mas isso não lhes é de nenhuma<br />

serventia, e tal deve ser o caso com todos os que perversamente exultam<br />

na luz dos homens, a ponto de se privarem da luz de Deus e de<br />

nada terem em comum com os santos Pais, cujo nome usam e abusam.<br />

13. Todo aquele que bebe desta água. Embora Cristo perceba<br />

que não está indo plenamente bem, e que inclusive sua instrução está<br />

sendo tratada com desdém, ele continua explicando mais claramente<br />

o que quis dizer. Ele faz distinção entre o uso dos dois tipos de água;<br />

que um serve para o corpo, e só por algum tempo; enquanto que o<br />

poder do outro comunica perpétuo vigor à alma. Porque, uma vez que<br />

o corpo é passível de decadência, assim os auxílios pelos quais ela é<br />

sustentada devem ser falhos e transitórios. Aquilo que vivifica a alma<br />

só pode ser eterno. Além do mais, as palavras de Cristo não destoam<br />

do fato de que os crentes, no próprio fim da vida, ardem com desejo<br />

de mais abundante graça. Pois ele não diz que desde o primeiro dia<br />

bebemos a ponto de ficarmos satisfeitos, mas apenas quer dizer que<br />

o Espírito Santo é uma fonte que flui continuamente, e que, portanto,<br />

não há perigo de a mesma secar para aqueles que foram renovados<br />

pela graça espiritual. E, portanto, ainda que sedentos ao longo de toda<br />

nossa vida, todavia é certo que não recebemos o Espírito Santo por<br />

apenas um dia, ou por um curto período, mas como uma fonte perene<br />

que jamais se nos secará. Assim, os crentes tem sede, e sede profunda,<br />

ao longo de toda sua vida; e no entanto tem abundância de umidade vivificante.<br />

Por menor que seja a medida da graça que recebam, ela lhes<br />

comunica perpétuo vigor, de modo que jamais se secam plenamente.<br />

Quando, pois, ele diz que ficarão satisfeitos, o contraste não é com o<br />

desejo, mas apenas com a sequidão.<br />

Será uma fonte de água a jorrar para a vida eterna. Estas palavras<br />

expressam ainda mais claramente a afirmação precedente, pois


Capítulo 4 • 163<br />

denotam um fluir contínuo de água, o qual mantém neles uma eternidade<br />

celestial durante esta vida mortal e perecível. A graça de Cristo,<br />

pois, não flui para nós por um breve tempo, mas transborda para uma<br />

bendita imortalidade, pois ela não cessa de fluir até que a vida incorruptível,<br />

que tem início aqui e agora, chegue à perfeição.<br />

15. Dá-me desta água. Esta mulher indubitavelmente está suficientemente<br />

cônscia de que Cristo está falando de água espiritual.<br />

Visto, porém, que ela o despreza, está reputando todas suas promessas<br />

como mera nulidade, pois, enquanto a autoridade daquele que fala<br />

não for por nós reconhecida, não teremos permissão de participar de<br />

sua doutrina. Indiretamente, pois, a mulher escarnece de Cristo, dizendo:<br />

“Tu te vanglorias demais, porém não vejo nada; mostra-me a<br />

realidade, se és capaz”.<br />

[4.16-21]<br />

Disse-lhe Jesus: Vai, chama teu marido e volta aqui. A mulher<br />

respondeu, e lhe disse: Eu não tenho marido. Jesus lhe disse:<br />

Tu disseste bem: Não tenho marido; pois já tiveste cinco maridos,<br />

e aquele que agora tens não é teu marido; nisto disseste a<br />

verdade. Disse-lhe a mulher: Senhor, vejo que és profeta. Nossos<br />

pais adoraram neste monte; e tu dizes que Jerusalém é o<br />

lugar onde se deve adorar. Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me, a<br />

hora vem quando nem neste monte nem em Jerusalém adorareis<br />

o Pai.<br />

16. Chama teu marido. Isso parece não ter nenhuma conexão<br />

com o tema, e, na verdade, alguém poderia presumir que Cristo, aborrecido<br />

e frustrado pela impudência da mulher, muda o discurso. Esse,<br />

porém, não é o caso. Pois quando ele percebeu que ela só respondia<br />

ao que ele dizia com zombaria e escárnio, aplicou um remédio apropriado<br />

à enfermidade dela, a saber: abalando a consciência da mulher<br />

com a convicção de seu pecado. E esta é também uma extraordinária<br />

prova de sua compaixão, a saber: quando a mulher se mostra indis-


164 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

posta a voluntariamente ir a ele, então, por assim dizer, a atrai contra<br />

sua vontade. Mas temos de observar principalmente o que já mencionei,<br />

ou seja: que aqueles que são totalmente negligentes e quase<br />

estúpidos precisam ser profundamente feridos pela convicção de seu<br />

pecado, pois tais pessoas considerarão a doutrina de Cristo como algo<br />

insosso, até que, sendo intimadas a comparecerem ante o tribunal de<br />

Deus, se veem compelidas a temer um Juiz tão terrível a quem antes<br />

desprezavam. Todos quantos não têm escrúpulo de insurgir-se contra<br />

a doutrina de Cristo com suas piadas de zombaria têm de ser tratados<br />

dessa maneira, para que sejam levados a sentir que não passarão impunemente.<br />

Tal também é a obstinação de muitos que jamais ouvirão<br />

a Cristo até que sejam subjugados por meio de violência. Portanto,<br />

toda vez que percebermos que o azeite de Cristo perdeu seu aroma,<br />

que o misturemos com vinho para que seu sabor comece a ser sentido.<br />

Sim, isso se faz necessário a todos nós, pois não somos seriamente<br />

afetados pela linguagem de Cristo, a menos que sejamos despertados<br />

pelo arrependimento. Assim, pois, para que alguém tire proveito na<br />

escola de Cristo, seu coração empedernido deve ser subjugado pela<br />

demonstração da misericórdia deste, como a terra, a fim de que venha<br />

a ser frutífera, é preparada e afofada pela aradura, 4 pois é tão-somente<br />

com este conhecimento que toda nossa vanglória é abalada, de modo<br />

que já não ousamos a gracejar de Deus. Portanto, sempre que o desleixo<br />

pela palavra de Deus se assenhoreia de nós, nenhum remédio<br />

será mais apropriado do que cada um se despertando a fim de ponderar<br />

sobre seus pecados, para que se envergonhe e trema perante o<br />

tribunal de Deus e se sinta humilhado e obedeça Àquele a quem tão<br />

temerariamente desprezou.<br />

17. Eu não tenho marido. Ainda não percebemos plenamente o<br />

fruto deste conselho por meio do qual Cristo tencionava ferir o coração<br />

desta mulher, com o intuito de despertar nela o arrependimento.<br />

E de fato vivemos tão intoxicados, ou melhor, entorpecidos por nosso<br />

4 “Tout ainsi que la terre, pour apporter fruict, sera menuisee et amollie par le soc de la<br />

charrue.”


Capítulo 4 • 165<br />

egoísmo, que de modo algum nos deixamos mover pelas primeiras feridas<br />

que nos são infligidas. Cristo, porém, aplica uma cura apropriada<br />

para esta letargia, espremendo o tumor com ainda mais força, repreendendo-a<br />

francamente por sua impiedade. Embora eu não creia que<br />

este seja o único caso de fornicação que aqui se realça, pois quando<br />

ele diz que ela tivera cinco maridos, a razão de tal declaração provavelmente<br />

seja que, sendo uma esposa intransigente e desobediente,<br />

ela constrangera seus maridos a se divorciarem dela. Interpreto estas<br />

palavras assim: “Ainda que Deus te unisse a esposos legítimos, tu não<br />

cessaste de pecar, até que, tornando-te infame por teus numerosos<br />

divórcios, te prostituíste vivendo em fornicação.”<br />

19. Senhor, percebo que tu és profeta. O resultado da reprovação<br />

vem agora a lume, pois a mulher não só modestamente reconhece<br />

seu erro, mas, estando pronta e preparada para ouvir a doutrina de<br />

Cristo, da qual anteriormente desdenhara, ela agora a deseja e a<br />

solicita de bom grado. Portanto, o arrependimento é o princípio da<br />

genuína docilidade, como já me expressei, e abre o portão de acesso<br />

à escola de Cristo. Repetindo, a mulher nos ensina, por meio de<br />

seu exemplo, que, quando nos encontramos com algum mestre, devemos<br />

valer-nos dessa oportunidade, a fim de não sermos ingratos<br />

para com Deus, o qual nunca nos envia profetas sem, por assim dizer,<br />

estender a mão convidando-nos a si. Mas devemos ter em mente o<br />

que Paulo ensina: que devemos dar graças por aqueles que ensinam<br />

bem, 5 porque nos foram enviados por Deus. Como pregarão se não<br />

forem enviados? [Rm 10.15].<br />

20. Nossos pais. É equivocada a opinião que alguns sustentam,<br />

a saber: descobrindo a mulher que a reprimenda era desagradável<br />

e odiosa, astutamente muda de assunto. Ao contrário, ela passa do<br />

particular para o geral e, tendo sido informada de seu pecado, deseja<br />

ser instruída em termos gerais concernente ao culto puro de Deus. Ela<br />

toma um curso próprio e regular, ao consultar um Profeta, visando a<br />

5 “Qui ont la grace de bien enseigner.”


166 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

que não mais caísse em equívoco concernente ao modo de cultuar a<br />

Deus. É como se ela inquirisse de Deus mesmo quanto à maneira que<br />

ele escolheu para ser adorado, pois nada é mais perverso do que inventar<br />

vários métodos de culto sem a autoridade da Palavra de Deus.<br />

É bem notório que houve constante controvérsia entre os judeus<br />

e os samaritanos sobre a verdadeira norma de se cultuar a Deus. Ainda<br />

que os filhos de Cute e outros estrangeiros, os quais foram trazidos<br />

para Samaria quando as dez tribos foram levadas para o cativeiro,<br />

fossem constrangidos pelas pragas e castigos divinos 6 a adotar as cerimônias<br />

da lei e a professar o culto do Deus de Israel (como lemos em<br />

2Rs 17.27), todavia a religião que haviam aprendido era imperfeita e<br />

corrompida de muitas maneiras, o que os judeus de modo algum toleravam.<br />

Mas a controvérsia se tornou ainda mais acirrada depois que<br />

Manassés, filho do sumo sacerdote <strong>João</strong>, e irmão de Jado, edificou o<br />

templo no monte Gerizim, quando Dario, o último rei persa, manteve o<br />

governo da Judéia nas mãos de Sambalá, a quem ele colocou ali como<br />

seu lugar-tenente. Pois Manassés, tendo se casado com uma filha do<br />

governador, para que não fosse inferior ao seu irmão, fez-se sacerdote<br />

ali, e granjeou para si, por meio de subornos, tantos apóstolos quanto<br />

pôde, como relata Josefo (Antiguidades XI.vii.2, e viii.2).<br />

Nossos pais adoraram neste monte. Os samaritanos daquele tempo<br />

agiam, como depreendemos das palavras da mulher, de acordo com<br />

o costume daqueles que apostataram da genuína piedade, buscando<br />

escudar-se nos exemplos dos Pais. É certo que isso não constituía razão<br />

plausível para induzi-los a oferecer sacrifícios ali, mas depois de<br />

arquitetar um culto falso e perverso, obstinação imitada, com justificativas<br />

engenhosas e bem maquinadas. Reconheço, aliás, que os homens<br />

desprevenida e impensadamente às vezes se deixam excitar por zelo insensato,<br />

como se tivessem sido golpeados por um moscardo, de modo<br />

que, quando descobrem que alguma coisa foi praticada pelos Santos,<br />

de repente se aferram a tal exemplo sem qualquer exercício da razão.<br />

6 “Par les playes et punitions de Dieu.”


Capítulo 4 • 167<br />

Um segundo erro é ainda mais comum, a saber: tomam por empréstimo<br />

dos Pais seus feitos como uma capa para encobrir seus erros – e isso<br />

pode ser facilmente visto no papado. Mas, como esta passagem é uma<br />

notável prova de quão absurdamente agem os que, em desconsideração<br />

do mandamento de Deus, se conformam aos exemplos dos Pais, devemos<br />

observar de quantas maneiras o mundo comumente peca neste aspecto.<br />

Pois amiúde ocorre que a maioria, sem qualquer discriminação, segue tais<br />

pessoas como Pais que em um mínimo sequer merecem desfrutar do título<br />

de Pais. Assim, percebemos em nossos próprios dias que os papistas,<br />

enquanto escancaram a boca, recitam os Pais, não dão nenhum lugar aos<br />

profetas e apóstolos. Mas, quando mencionam umas poucas pessoas que<br />

merecem ser honradas, colecionam um grande número de homens como<br />

eles próprios, ou pelo menos descem a uma época corrupta que, embora<br />

ainda não prevalecesse um barbarismo tão grosseiro como hoje existe,<br />

contudo a religião e a pureza da doutrina já declinaram grandemente. Devemos,<br />

pois, atentar cuidadosamente para esta distinção: que ninguém<br />

seja considerado Pai senão aqueles que foram manifestamente filhos de<br />

Deus, e que também, pela eminência de sua piedade, foram qualificados<br />

para esta honrosa categoria. Amiúde também erramos neste aspecto: pelas<br />

ações dos Pais temerariamente estabelecemos uma lei comum, pois<br />

a multidão nem imagina que está a conferir honra suficiente aos Pais não<br />

os excluindo da condição comum dos homens. E assim, quando não nos<br />

lembramos de que foram homens falíveis, indiscriminadamente misturamos<br />

seus vícios com suas virtudes. Daí suscitar a pior das confusões na<br />

condução da vida, pois enquanto todas as ações dos homens devem ser<br />

testadas pela norma da lei, sujeitamos a balança àquelas coisas que devem<br />

ser pesadas por ela, e, em suma, onde tanta importância é anexada à<br />

imitação dos Pais, o mundo imagina que não pode haver perigo algum em<br />

pecar seguindo seu exemplo.<br />

Um terceiro erro é a imitação falsa, mal orientada ou irrefletida; 7<br />

isto é, quando nós, ainda que não imbuídos do mesmo espírito, ou<br />

7 “Une fausse imitation, et mal reiglee, ou inconsideree.”


168 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

não autorizados pelo mesmo mandamento, pleiteamos como exemplo<br />

nosso o que algum dos Pais fez. Por exemplo: se algum indivíduo em<br />

particular resolveu vingar-se das injúrias feitas a irmãos, só porque<br />

Moisés agiu assim [Ex 2.12] ou se alguém fez matar fornicadores, só<br />

porque isso foi praticado por Fineias [Nm 25.7]. Aquela fúria selvagem<br />

em matar seus próprios filhos se originou, como muitos pensam, no<br />

desejo dos judeus em assemelhar-se a seu pai Abraão, como se a ordem:<br />

Oferece teu filho Isaque [Gn 22.2], fosse uma ordem geral, e não,<br />

antes, uma prova extraordinária de um único homem. Essa falsa imitação<br />

(κακοζηλία) geralmente é produzida pela soberba e confiança<br />

excessiva, quando os homens reivindicam para si mesmos mais do<br />

que tem o direito de fazê-lo, e quando cada pessoa não se mede por<br />

seu próprio padrão. Não obstante, nenhuma de tais pessoas é de fato<br />

imitadora dos Pais, a maioria não passando de símios. Que uma considerável<br />

porção do antigo monaquismo procedeu da mesma fonte será<br />

reconhecido por aqueles que cuidadosamente examinarem os escritos<br />

dos antigos. E, portanto, a menos que decidamos errar por nossa própria<br />

conta, devemos sempre descobrir o que o espírito de cada pessoa<br />

tem recebido, o que requer sua vocação, o que é adequado a sua condição<br />

e o que lhe é exigido fazer.<br />

Estreitamente aliado a este terceiro erro vem outro, a saber: confundir<br />

os tempos, quando os homens, devotando toda sua atenção aos<br />

exemplos dos Pais, não levam em conta que o Senhor tem desde então<br />

ordenado uma norma de conduta distinta à qual devem seguir. 8 Tal ignorância<br />

deve ser atribuída à enorme massa de cerimônias pelas quais<br />

a Igreja se viu sepultada sob o papado. Imediatamente após os primórdios<br />

da Igreja Cristã, ela começou a errar neste aspecto, visto que uma<br />

tola afetação em copiar as cerimônias judaicas exerceu uma dominante<br />

influência. Os judeus tinham seus sacrifícios, e para que os cristãos<br />

não lhes fossem inferiores em esplendor, inventaram a cerimônia de<br />

sacrificar Cristo, como se a condição da Igreja Cristã fosse pior quan-<br />

8 “A depouis ordonné et commandé une autre conduite et maniere de faire, qu’ils ont à<br />

suyvre.”


Capítulo 4 • 169<br />

do houvesse um fim de todas aquelas sombras pelas quais o fulgor de<br />

Cristo fosse obscurecido. Mais tarde, porém, essa fúria irrompeu com<br />

mais força e difundiu-se além de todos os limites.<br />

Para que não caiamos nesse mesmo erro, devemos estar sempre<br />

atentos à presente norma. Outrora, incenso, luminárias, vestes sacras,<br />

altares e cerimônias desse gênero agradavam a Deus e a razão<br />

consistia em que nada é mais precioso ou aceitável a Deus do que a<br />

obediência. Agora, desde a vinda de Cristo, tais questões mudaram<br />

inteiramente. Devemos, pois, considerar o que nos impõe sob o evangelho,<br />

para que não sigamos à risca o que os Pais observaram sob a lei,<br />

pois o que naquele tempo era uma observação santa do culto divino<br />

agora seria um chocante sacrilégio.<br />

Os samaritanos se transviaram por não considerar, no exemplo<br />

de Jacó, quão amplamente a condição daquele tempo diferia da de<br />

seu próprio tempo. Aos Patriarcas se permitiu erigir altares em qualquer<br />

lugar, visto que ainda não havia sido fixado um lugar mais tarde<br />

designado pelo Senhor. Mas desde o tempo em que Deus ordenou que<br />

o templo fosse edificado no monte Sião, cessou aquela liberdade da<br />

qual outrora desfrutaram. Por essa razão, Moisés disse: “Não fareis<br />

conforme tudo o que hoje fazemos aqui, cada qual tudo o que bem<br />

parece aos seus olhos. Mas no lugar que o Senhor Escolher numa de<br />

tuas tribos ali oferecerás teus holocaustos, e ali farás tudo o que te ordeno”<br />

[Dt 12.8, 14]. Porque, desde o tempo em que o Senhor deu a lei,<br />

ele restringiu o verdadeiro culto a ele devido às exigências daquela lei,<br />

ainda que antigamente um maior grau de liberdade fosse desfrutado.<br />

Um pretexto semelhante foi oferecido por aqueles que cultuaram em<br />

Betel, pois ali Jacó oferecera um solene sacrifício a Deus, mas depois<br />

que o Senhor fixou o lugar de sacrifício em Jerusalém, não mais Betel,<br />

casa de Deus, mas Betaven, casa da perversidade.<br />

Agora, percebemos qual era a natureza da questão. Os samaritanos<br />

tinham o exemplo dos Pais como sua norma: os judeus descansavam<br />

no mandamento divino. Esta mulher, embora até aqui seguisse o costume<br />

de sua nação, não vivia plenamente satisfeita com ele. Por culto


170 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

devemos entender, aqui, não qualquer tipo de culto (pois diariamente<br />

se podem oferecer orações em qualquer lugar), mas aquele que era<br />

associado com sacrifícios e que constituía uma pública e solene profissão<br />

da religião.<br />

21. Mulher, crê-me. Na primeira parte desta réplica, ele brevemente<br />

descarta o culto cerimonial que fora designado sob a lei, pois<br />

quando diz que a hora chegou quando não haverá lugar peculiar e fixo<br />

para o culto, ele tem em mente que o que Moisés legislou foi só por<br />

algum tempo, e que o tempo estava chegando quando o muro de separação<br />

[Ef 2.4] seria derrubado. E, assim, ele estende o culto divino<br />

muito além de seus estreitos limites de outrora, para que os samaritanos<br />

viessem a ser participantes dele.<br />

A hora vem. Ele usa o tempo presente em vez do futuro, mas o<br />

significado é que a revogação da lei já está chegando, em seu relacionamento<br />

com o templo, o sacerdócio e outras cerimônias externas. Ao<br />

chamar Deus de Pai, ele parece indiretamente contrastá-lo com os Pais<br />

a quem a mulher faz menção e comunicar esta instrução de que Deus<br />

será o Pai comum de todos, de modo que ele será geralmente adorado<br />

sem distinção de lugares ou de nações.<br />

[4.22-26]<br />

Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos,<br />

porque a salvação procede dos judeus. Mas a hora vem,<br />

e já chegou, quando os verdadeiros adoradores adorarão o Pai<br />

em espírito e em verdade; porque o Pai busca tais para adorá-lo.<br />

Deus é Espírito, e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito<br />

e em verdade. Disse-lhe a mulher: Eu sei que o Messias virá,<br />

o qual se chama Cristo; portanto, quando ele vier, nos ensinará<br />

todas as coisas. Disse-lhe Jesus: Eu sou, quem fala contigo.<br />

Ele agora explica mais amplamente o que só em termos breves<br />

relanceara sobre a abolição da lei. Porém divide a substância de seu<br />

discurso em duas partes. Na primeira, ele acusa de superstição e erro


Capítulo 4 • 171<br />

a forma de culto divino que fora usada pelos samaritanos, porém testifica<br />

que a forma genuína e legítima era aquela observada pelos judeus.<br />

E ele aponta a causa da diferença, a saber: os judeus obtiveram a certeza<br />

quanto a seu culto com base na Palavra de Deus, enquanto os<br />

samaritanos não tinham recebido nada definido da boca de Deus. Na<br />

segunda parte, ele declara que as cerimônias até então observadas<br />

pelos judeus logo expirariam.<br />

22. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos.<br />

Eis uma sentença digna de ser remorada, e nos ensina que não<br />

devemos tentar qualquer coisa, em matéria de religião, temerariamente<br />

ou à revelia, porque, a menos que haja conhecimento, não é a Deus<br />

que cultuamos, mas a um fantasma ou ídolo. Todas as boas intenções,<br />

como são chamadas, são fulminadas por esta sentença como por um<br />

raio, pois dela aprendemos que os homens nada podem fazer senão<br />

errar quando se deixam guiar por sua própria opinião sem a Palavra<br />

ou mandamento de Deus. Pois Cristo, defendendo a pessoa e causa<br />

de sua nação, mostra que os judeus são amplamente diferentes dos<br />

samaritanos. E por quê?<br />

Porque a salvação procede dos judeus. Com estas palavras ele<br />

tem em mente que eles possuem a superioridade neste aspecto; que<br />

Deus fizera com eles um pacto de salvação eterna. Alguns o restringem<br />

a Cristo, que era descendente dos judeus; e procede, visto que todas as<br />

promessas de Deus foram confirmadas e ratificadas nele [2Co 1.20]. Não<br />

há salvação senão nele. Mas não pode haver dúvida de que Cristo dá a<br />

preferência aos judeus sobre esta base: que eles não cultuam alguma<br />

deidade desconhecida, mas exclusivamente a Deus que se lhes revelou,<br />

e por quem foram adotados como seu povo. Pela palavra salvação<br />

devemos entender aquela manifestação salvífica que lhes fora feita<br />

concernente à doutrina celestial.<br />

Mas, por que ele diz que ela procedia dos judeus, quando na verdade<br />

ela fora depositada com eles, para que somente eles pudessem<br />

desfrutá-la? Em minha opinião, ele faz alusão ao que fora pregado pelos<br />

profetas: que a lei procederia de Sião [Is 2.3; Mq 4.2], pois foram


172 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

separados por algum tempo do restante das nações sob a expressa<br />

condição de que o puro conhecimento de Deus irradiasse deles para<br />

o mundo inteiro. Equivale a isto: que Deus não é adorado apropriadamente<br />

senão mediante a certeza de fé, a qual não pode ser produzida<br />

de qualquer outra maneira senão pela Palavra de Deus. Daí, segue-<br />

-se que todos quantos abandonam a Palavra caem em idolatria, pois<br />

Cristo testifica plenamente que um ídolo, ou uma imaginação de seu<br />

próprio cérebro, substitui a Deus quando os homens são ignorantes<br />

do verdadeiro Deus. Ele acusa, ainda, de ignorância todos aqueles a<br />

quem Deus não se revelou, pois logo que somos privados da luz de sua<br />

Palavra, as trevas e a cegueira reinam.<br />

É preciso observar que os judeus, quando traiçoeiramente renunciavam<br />

o pacto da vida eterna que Deus fizera com seus pais, eram<br />

privados do tesouro que até aquele tempo haviam desfrutado, pois<br />

não tinham sido expulsos da Igreja de Deus. Agora que negaram o Filho,<br />

não tinham nada em comum com o Pai, pois todo aquele que nega<br />

o Filho não tem o Pai [1Jo 2.23]. O mesmo juízo se deve formar acerca<br />

de todos os que apostatam da fé pura do evangelho em prol de suas<br />

próprias invenções e tradições dos homens. Ainda que os que adoram<br />

a Deus segundo seu próprio critério ou tradições humanas se lisonjeiam<br />

e se aplaudem em sua obstinação, esta única palavra, trovejando<br />

do céu, lança prostrados tantos quantos se imaginam divinos e santos:<br />

Vós adorais o que não conheceis. Segue-se disto que, se quisermos que<br />

nossa religião seja aprovada por Deus, ela tem de repousar no conhecimento<br />

obtido de sua Palavra.<br />

23. Mas a hora vem. Agora vem a última sentença concernente a<br />

revogação do culto ou cerimônias 9 prescritas pela lei. Ao dizer que a<br />

hora vem, ou que virá, ele mostra que a ordem estabelecida por Moisés<br />

não será perpétua. Ao dizer que a hora já chegou, ele põe um fim às cerimônias<br />

e declara que o tempo de reforma mencionado pelo apóstolo<br />

[Hb 9.10], portanto, já se cumpriu. No entanto, ele aprova o templo,<br />

9 “C’est à dire, des ceremonies.”


Capítulo 4 • 173<br />

o sacerdócio e todas as cerimônias a elas conectados, até onde se relacionam<br />

com o passado. Uma vez mais, para mostrar que Deus não<br />

escolhe ser cultuado ou em Jerusalém ou no monte Gerizim, ele toma<br />

um princípio mais elevado, a saber: que o culto verdadeiro a ele devido<br />

consiste no espírito; pois daqui se segue que em todos os lugares<br />

ele pode ser cultuado apropriadamente.<br />

Mas a primeira inquirição que se apresenta aqui é: Por que, e em<br />

que caso, é o culto divino chamado espiritual? Para entender isto, é<br />

preciso atentar para o contraste entre o espírito e os emblemas externos,<br />

bem como entre as sombras e a realidade. Lemos que o culto<br />

divino consiste no espírito porque ele nada mais é do que a fé interior<br />

do coração que produz a oração, e em seguida a pureza da consciência<br />

e da renúncia, para que possamos ser dedicados à obediência a Deus<br />

como santos sacrifícios.<br />

Daí surge outra pergunta: Os Pais não o adoraram espiritualmente<br />

sob a lei? Eis minha resposta: visto que Deus é sempre imutável, ele<br />

não aprovou desde o princípio do mundo qualquer outro culto além<br />

daquele que é espiritual e que se harmoniza com sua própria natureza.<br />

Isso é sobejamente atestado pelo próprio Moisés, que declara em<br />

muitas passagens que a lei não tem outro objetivo senão que o povo<br />

se una a Deus com fé e uma consciência pura. Mas declara-se ainda<br />

mais claramente pelos profetas quando atacam com severidade a hipocrisia<br />

do povo, porque pensavam que satisfaziam a Deus quando<br />

realizavam os sacrifícios e faziam uma exibição externa. É desnecessário<br />

citar aqui muitas provas que se encontram em toda parte, mas<br />

as passagens mais notáveis são as seguintes: Salmos 1; Isaías 1; 58;<br />

66; Miquéias 5; Amós 7. Mas enquanto o culto divino sob a lei era espiritual,<br />

o mesmo estava envolvido por muitas cerimônias externas,<br />

que se assemelhavam a algo carnal e terreno. Por essa razão, Paulo<br />

chama as cerimônias carne e os elementos desprezíveis do mundo [Gl<br />

4.9].De igual modo, o autor da Epístola aos Hebreus diz que o santuário<br />

antigo, com seus acessórios, era terreno [Hb 9.1]. Assim podemos com<br />

justiça dizer que o culto da lei era espiritual em sua substância, mas,


174 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

com respeito a sua forma, era algo terreno e carnal, pois a totalidade<br />

daquela economia, a realidade da qual agora se manifesta plenamente,<br />

consistia em sombras.<br />

Agora vemos o que os judeus tinham em comum conosco, e em<br />

que aspecto eles diferiam de nós. Em todas as eras Deus quis ser cultuado<br />

pela fé, pela oração e pelas ações de graças, pureza de coração<br />

e inocência de vida, e em nenhuma época ele se deleitou em qualquer<br />

outro sacrifício. Sob a lei, porém, havia várias adições, de modo que o<br />

espírito e a verdade estavam ocultos sob formas e sombras, enquanto<br />

que agora, que o véu do templo foi rasgado [Mt 27.51], nada está oculto<br />

nem obscuro. Há deveras entre nós, nos dias atuais, alguns exercícios<br />

externos de piedade, os quais nossa debilidade faz necessário, mas tal<br />

é a moderação e sobriedade deles que não obscurecem a plena verdade<br />

de Cristo. Em suma, o que foi exibido aos pais sob figuras e sombras<br />

é agora publicamente exibido.<br />

Ora, no papado esta distinção é não só confundida, mas totalmente<br />

subvertida, pois ali as sombras são não menos espessas do<br />

que outrora sob a religião judaica. Não se pode negar que Cristo aqui<br />

estabelece uma distinção óbvia entre nós e os judeus. Sejam quais<br />

forem os subterfúgios pelos quais os papistas tentam escapar, é evidente<br />

que diferimos dos pais em nada mais do que na forma externa,<br />

porque, enquanto adoravam a Deus espiritualmente, eram obrigados<br />

a efetuar cerimônias que foram abolidas pela vinda de Cristo. Assim,<br />

todos quantos oprimem a Igreja com uma excessiva multidão de cerimônias,<br />

fazem o que está em seu poder com o intuito de privar a<br />

Igreja da presença de Cristo. Não me detenho para examinar as fúteis<br />

justificativas que alegam, ou seja, que muitas pessoas na atualidade<br />

tem tanta necessidade daqueles auxílios que os judeus tiveram nos<br />

tempos de outrora. É sempre nosso dever inquirir por qual ordem<br />

o Senhor quis que sua Igreja fosse governada, pois unicamente ele<br />

sabe plenamente o que nos é conveniente. Ora, é verdade que nada<br />

é mais divergente com a ordem designada por Deus do que a pompa<br />

grosseira e singularmente carnal que prevalece no papado. O espírito


Capítulo 4 • 175<br />

deveras estava oculto pelas sombras da lei, porém as máscaras do<br />

papado o desfiguram totalmente. Por isso, não devemos fechar os<br />

olhos para corrupções tão grosseiras e deprimentes. Sejam quais forem<br />

os argumentos que forem empregados por homens ingênuos, ou<br />

por aqueles que não têm coragem suficiente para corrigir os vícios<br />

– que são questões duvidosas e devem ser mantidos como indiferentes<br />

–, certamente não se pode tolerar que a norma estabelecida por<br />

Cristo seja violada.<br />

Os verdadeiros adoradores. Tudo indica que indiretamente Cristo<br />

reprova a obstinação de muitos, a qual foi mais tarde exibida, pois<br />

sabemos quão obstinados e contenciosos foram os judeus quando o<br />

evangelho se manifestou, pondo-se em defesa das cerimônias a que<br />

tanto se acostumaram. Esta afirmação, porém, tem um significado ainda<br />

mais extenso, pois sabendo que o mundo jamais seria inteiramente<br />

livre das superstições, ele assim separa os adoradores devotos e íntegros<br />

dos que eram falsos e hipócritas. Armados com este testemunho,<br />

não hesitemos em condenar os papistas em todas suas invenções, e<br />

ousadamente desprezemos suas censuras. Pois, que razão temos para<br />

temer quando aprendemos que Deus se agrada deste culto puro e<br />

simples, o qual é desdenhado pelos papistas, visto o mesmo não se<br />

achar assistido por uma incômodo massa de cerimônias? E que utilidade<br />

lhes traz o fútil esplendor da carne, quando Cristo declara que<br />

nelas o Espírito é apagado? O que significa adorar a Deus em espírito<br />

e em verdade transparece claramente à luz do que já ficou expresso.<br />

Significa abandonar os emaranhamentos das antigas cerimônias e reter<br />

simplesmente o que é espiritual no culto divino, pois a verdade do<br />

culto divino consiste no espírito, e as cerimônias não passam de certo<br />

tipo de acessório. E aqui devemos uma vez mais observar que verdade<br />

não é comparada com falsidade, mas com adição externa das figuras<br />

da lei, 10 de modo que – para usar uma expressão comum – ela é a substância<br />

pura e simples do culto espiritual.<br />

10 “Des figures de la Loy.”


176 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

24. Deus é Espírito. Esta é uma afirmação extraída da própria natureza<br />

de Deus. Visto os homens serem carne, não devemos sentir-nos<br />

surpresos se eles se deleitam tanto naquelas coisas que correspondem<br />

a sua própria disposição. Daí ocorrer que engendrem tantas coisas<br />

para o culto divino, as quais são tão cheias de esplendor visível, porém<br />

destituídas de solidez. Eles, porém, deviam antes de tudo considerar<br />

que as mesmas nada têm a ver com Deus, que não pode harmonizar-se<br />

com a carne como o fogo não pode harmonizar-se com a água. Esta<br />

simples consideração, quando a inquirição se relaciona com o culto<br />

divino, deve ser suficiente para restringir a libertinagem de nossa mente,<br />

ou seja, que Deus está tão longe ser como nós, que essas coisas<br />

que nos agradam tanto são objetos de sua repugnância e abominação.<br />

E se os hipócritas se deixaram cegar tanto por sua soberba, que não<br />

temem sujeitar Deus a sua opinião, ou melhor, a seus desejos ilícitos,<br />

saibamos que esta modéstia não mantém o mais inferior lugar no verdadeiro<br />

culto divino, a saber, considerar com suspeita tudo quanto é<br />

agradável segundo a carne. Além disso, visto que não podemos alcançar<br />

as altitudes divinas, lembremo-nos de que devemos buscar em sua<br />

Palavra a norma pela qual somos governados. Esta passagem é amiúde<br />

citada pelos Pais contra os arianos para provar a divindade do Espírito<br />

Santo. Porém é impróprio forçá-la para tal propósito, pois Cristo simplesmente<br />

declara aqui que seu Pai é de uma natureza espiritual, e por<br />

isso não se deixa mover por questões frívolas, como os homens, pela<br />

leviandade e instabilidade de seu caráter, costumam fazer.<br />

25. O Messias está para vir. Embora a religião entre os samaritanos<br />

fosse corrompida e mesclada com muitos erros, não obstante<br />

alguns princípios extraídos da lei continuavam impressos em suas<br />

mentes, tais como aquele que se relacionava com o Messias. Ora, é<br />

provável que, quando a mulher certificou, à luz do discurso de Cristo,<br />

que uma mudança mui extraordinária estava para acontecer na Igreja<br />

de Deus, sua mente instantaneamente recorreu à reminiscência de<br />

Cristo, em quem ela esperava que todas as coisas fossem plenamente<br />

restauradas. Ao dizer que o Messias estava para vir, tudo indica que ela


Capítulo 4 • 177<br />

fala do tempo como já chegado, e de fato é suficientemente evidente,<br />

à luz de muitos argumentos, que as mentes dos homens em toda parte<br />

se achavam despertas pela expectativa do Messias, o qual restauraria<br />

vida social que se achava miseravelmente conspurcada, ou melhor,<br />

que estava totalmente arruinada.<br />

Isso, pelo menos, está além de toda controvérsia, a saber, que<br />

a mulher prefere Cristo a Moisés e a todos os profetas no ofício docente,<br />

pois ela compreende três coisas em poucas palavras. Primeiro,<br />

que a doutrina da lei não era absolutamente perfeita, e que nada além<br />

dos primeiros princípios foram dados nela, pois se ali não fosse feito<br />

algum progresso adicional, ela não teria dito: o Messias nos ensinará<br />

todas as coisas. Há um contraste implícito entre ele e os profetas, ou<br />

seja, seu ofício peculiar é conduzir seus discípulos ao alvo, enquanto<br />

os profetas só havia lhes dado as instruções mais elementares e, por<br />

assim dizer, os guiaram na trajetória. <strong>Segundo</strong>, a mulher declara que<br />

espera que esse Cristo seja o intérprete de seu Pai e o mestre e instrutor<br />

de todos os santos. Por fim, ela expressa sua convicção de que não<br />

devemos desejar algo melhor ou mais perfeito do que sua doutrina,<br />

mas que, ao contrário, este é o mais profundo objetivo da sabedoria,<br />

além do qual é ilícito ir.<br />

Desejo que aqueles que ora se vangloriam de ser as colunas da<br />

Igreja Cristã pelo menos imitem esta pobre mulher, ficando satisfeita<br />

com a simples doutrina de Cristo, em vez de reivindicar não sei que<br />

poder de superintendência para ir após suas invenções. Pois de que<br />

fonte foi a religião do papa e Maomé coligida senão das ímpias adições<br />

por meio das quais imaginaram que trariam a doutrina do evangelho a<br />

um estado de perfeição? Como se ela tivera sido incompleta sem tais<br />

tolices. Mas quem quer que seja bem instruído na escola de Cristo não<br />

solicitará outros instrutores, e na verdade nem mesmo os receberá.<br />

26. Eu sou, quem fala contigo. Ao dar-se a conhecer àquela mulher<br />

de que ele é o Messias, inquestionavelmente se apresenta como<br />

seu Mestre, em aquiescência com a expectativa que ele nutria. Por isso,<br />

creio ser provável que ele continuasse ministrando instrução mais


178 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

completa a fim de satisfazer sua sede. Ele tencionava dar tal prova de<br />

sua graça, no caso dessa pobre mulher, para que pudesse testificar a<br />

todos que ele jamais deixa de cumprir seu ofício, quando desejamos<br />

tê-lo por nosso Mestre. Portanto, não há risco de que ele venha a frustrar<br />

algum dos que ele descobre estarem dispostos a se tornar seus<br />

discípulos. Mas os que se recusam a se lhe submeter, como vemos<br />

fazer muitos homens soberbos e profanos, ou que esperam encontrar<br />

alhures sabedoria mais perfeita – como os maometanos e papistas –,<br />

merecem ser assenhoreados por inumeráveis acorrentamentos e por<br />

fim ser imersos num abismo de erros. Repetindo, por meio destas palavras:<br />

“Eu, que falo contigo, sou o Messias, o Filho de Deus”, ele emprega<br />

o título Messias como um selo para ratificar a doutrina de seu evangelho,<br />

pois devemos lembrar que ele foi ungido pelo Pai, e que o Espírito<br />

de Deus repousou sobre ele para que pudesse trazer-nos a mensagem<br />

de salvação, como declara Isaías [61.1].<br />

[4.27-34]<br />

E, naquele ínterim, seus discípulos chegaram e admiraram que<br />

ele estivesse falando com a mulher. Mas nenhum deles disse:<br />

O que inquires, ou por que falas com ela? Portanto, a mulher<br />

deixou seu cântaro e voltou à cidade e disse aos homens: Vinde<br />

e vede um homem que me disse todas as coisas que tenho<br />

feito; não seria este o Cristo? Eles, portanto, deixaram a cidade<br />

e vieram ter com ele. Nesse ínterim seus discípulos lhe rogaram,<br />

dizendo: Mestre, come. Ele, porém, lhes disse: Tenho um<br />

alimento para comer que não conheceis. Os discípulos, pois,<br />

disseram entre si: Teria alguém lhe trazido alguma coisa para<br />

comer? Disse-lhes Jesus: Minha comida consiste em fazer a<br />

vontade daquele que me enviou e concretizar sua obra.<br />

27. Seus discípulos chegaram e se admiraram. Para que os discípulos<br />

se admirassem, como relata o evangelista, tinham que ser<br />

motivados por uma de duas causas: ou que se sentissem ofendidos


Capítulo 4 • 179<br />

pela condição humilde da mulher, ou considerassem que os judeus<br />

eram contaminados por manter algum diálogo com os samaritanos.<br />

Ora, ainda que ambos esses sentimentos procedessem de uma devota<br />

reverência por seu Mestre, todavia estão errados em maravilhar-se<br />

como sendo algo impróprio que ele se dignasse de conceder tão grande<br />

honra a uma mulher que era totalmente menosprezada. Pois, por<br />

que não olharam antes para si mesmos? Certamente não teriam encontrado<br />

menos razão para espanto, visto que não eram homens de<br />

nenhuma notabilidade e quase mesmo a escória do povo, sendo postos<br />

no mais elevado posto de honra. E, no entanto, é proveitoso observar<br />

o que o evangelista diz – que não se aventuravam a formular sequer<br />

uma pergunta, pois somos instruídos por seu exemplo que, se alguma<br />

coisa nas obras ou palavras de Deus e de Cristo for desagradável aos<br />

nossos sentimentos, não devemos dar rédeas soltas aos nossos impulsos<br />

a ponto de ousadamente murmurarmos, mas devemos conservar<br />

um modesto silêncio, até que aquilo que nos esteja oculto se revele do<br />

céu. O fundamento de tal modéstia está no temor de Deus e na reverência<br />

por Cristo.<br />

28. Portanto, a mulher deixou o cântaro. Esta circunstância é<br />

relatada pelo evangelista para expressar o ardor do zelo da mulher,<br />

pois o ato de deixar seu cântaro e voltar à cidade é uma indicação de<br />

pressa. E esta é a natureza da fé que, quando nos tornarmos participantes<br />

da vida eterna, desejamos levar outros participar dela conosco.<br />

Tampouco é possível que o conhecimento de Deus fique sepultado e<br />

inativo em nossos corações sem se manifestar diante dos homens,<br />

pois é verdadeiro aquele dito: Eu cri, e por isso falarei [Sl 116.10]. A<br />

solicitude e prontidão da mulher são tão mais dignas de atenção pelo<br />

fato de que o que ela acendeu neles foi apenas uma pequena fagulha<br />

de fé, pois ela tinha provado muito pouco de Cristo quando divulgou<br />

sua fama por toda a cidade.<br />

Naqueles que já fizeram moderado progresso em sua escola, a indolência<br />

será extremamente desditosa. Ela, porém, poderia parecer<br />

ser merecedora de opróbrio por essa conta, ou seja, enquanto ainda é


180 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

ignorante e instruída de forma muito elementar, ela vai além dos limites<br />

de sua fé. Eis minha resposta: ela teria agido inconsideradamente<br />

se houvera assumido o ofício de mestra, porém quando nada mais deseja<br />

senão excitar seus concidadãos a ouvir a voz de Cristo, diríamos<br />

que ela esqueceu a si mesma ou fez mais do que tinha o direito de<br />

fazer. Ela exerce meramente o ofício de trombeta ou de um sino a convidar<br />

outros a vir a Cristo.<br />

29. Vede um homem. Visto que ela aqui fala em termos de dúvida,<br />

poderia parecer não ter sido profundamente abalada pela autoridade<br />

de Cristo. Eis minha resposta: visto não ter sido qualificada a discursar<br />

sobre mistérios tão profundos, ela diligenciou-se, segundo sua<br />

frágil capacidade, a levar seus concidadãos a permitirem deixar-se<br />

instruir por Cristo. Ela empregava um estimulante mui poderoso para<br />

despertá-los, quando ela bem sabia, por meio de um sinal que não era<br />

obscuro nem duvidoso, que ele era profeta, porque, uma vez que não<br />

podiam formar um juízo de sua doutrina, essa preparação inferior era-<br />

-lhes útil e bem adaptada. Tendo, pois descoberto que Cristo revelara<br />

à mulher coisas que estavam ocultas, inferiram disso que ele é um<br />

profeta de Deus. Uma vez certificados de tal fato, então começam a<br />

entender sua doutrina. A mulher, porém, vai além, pois ela os convida<br />

a inquirir se ele era ou não o Messias, sentindo-se satisfeita se pelo<br />

menos pudesse persuadi-los a buscarem, de sua livre vontade, o que<br />

ela já havia encontrado em Cristo; porque ela sabia que encontrariam<br />

mais do que ela prometera.<br />

Quem me disse todas as coisas que já fiz. Por que ela mente, dizendo<br />

que Cristo lhe disse todas as coisas? Já demonstrei que Cristo<br />

não a reprovou por sequer um único exemplo de fornicação, senão<br />

que pôs diante dela, em poucas palavras, muitos pecados que ela<br />

cometera ao longo da vida. Pois o evangelista não registrou minuciosamente<br />

cada sentença, mas declara em termos gerais que Cristo,<br />

com o fim de reprimir a loquacidade da mulher, desnudou sua vida<br />

pregressa e a atual. Contudo, vemos que a mulher, acesa por santo<br />

zelo, não se poupou, nem ainda sua reputação, para engrandecer o


Capítulo 4 • 181<br />

nome de Cristo, pois ela não teve escrúpulo algum de relatar passagens<br />

desditosas de sua vida.<br />

32. Eu tenho uma comida para comer que não conheceis.<br />

É espantoso que estando ele fatigado e faminto ainda recuse a<br />

comer, pois se ele disse que agia assim com o propósito de instruir-nos,<br />

por meio de seu exemplo, a enfrentar fome, por que,<br />

pois, não agia sempre assim? Mas ele tinha outro objetivo, além<br />

de dizer que devemos simplesmente rejeitar alimento, pois é preciso<br />

que atentemos bem para esta circunstância, a saber, que sua<br />

ansiedade sobre os presentes negócios o impelia de tal forma, e<br />

absorvia toda sua mente, que desprezar comida não lhe causava<br />

inquietação. E, contudo, ele não diz que está tão solícito a obedecer<br />

às ordens de seu Pai que não come nem bebe. Ele apenas<br />

ressalta o que deve fazer primeiro e o que deve fazer depois; e,<br />

assim, ele mostra, com seu exemplo, que o reino de Deus deve ter<br />

a preferência a todos os confortos do corpo.<br />

Talvez alguém diga que comer e beber não passam de vocações<br />

que subtraem alguma porção de nosso tempo que poderia ser mais<br />

bem empregada. Reconheço ser isso verdadeiro, mas como o Senhor<br />

bondosamente nos permite cuidar de nosso corpo, até onde requer a<br />

necessidade, aquele que se esforça por nutrir seu corpo com sobriedade<br />

e moderação não deixa de dar aquela preferência que deve dar<br />

à obediência a Deus. Mas devemos também tomar cuidado para não<br />

apegar-nos demasiadamente a nossas horas fixas, ao ponto de privar-<br />

-nos da alimentação quando Deus nos cede alguma oportunidade e,<br />

por assim dizer, fixa a hora para isso.<br />

Cristo, tendo então em suas mãos uma oportunidade que poderia<br />

escoar-se, recebe-a de braços abertos e agarra-a com firmeza,<br />

quando o presente dever imposto a ele pelo Pai se apodera dele de<br />

tal forma que se vê impelido a afastar qualquer outra coisa, inclusive<br />

o alimento. E, de fato, teria sido sem razão que, quando a mulher<br />

deixou seu cântaro e correu a chamar o povo, Cristo deve revelar<br />

menos zelo. Em suma, se propusermos como nosso objetivo não


182 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

perder as causas da vida por conta da própria vida, não nos será<br />

difícil preservar o próprio meio, pois aquele que colocar diante de<br />

si como o alvo da vida servir o Senhor, do que não estamos em liberdade<br />

de descartar inclusive com o risco imediato de enfrentar<br />

a morte, certamente reputamos como sendo de mais valor do que<br />

comer e beber. A metáfora de comer e beber é se torna ainda mais<br />

graciosa nessa ocasião, a qual foi oportunamente delineada para o<br />

presente discurso.<br />

34. Minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou.<br />

Sua intenção é não só dizer que tem a vontade do Pai na mais elevada<br />

estima, mas que não há nada em que ele tem maior deleite ou em que<br />

empregue o maior cuidado ou cumpra com maior solicitude. Como<br />

Davi, para engrandecer a lei de Deus, não só diz que ela é do mais<br />

elevado valor, mas que é mais doce que o mel [Sl 19.10]. Portanto, se<br />

temos de seguir a Cristo, é próprio não só que nos devotemos diligentemente<br />

ao serviço de Deus, mas que sejamos tão felizes em obedecer<br />

a suas exigências que o labor não será de modo algum opressivo ou<br />

desagradável.<br />

Para que eu concretize sua obra. Ao acrescentar estas palavras,<br />

Cristo explica plenamente qual é a vontade do Pai à qual ele<br />

se devota, ou seja, cumprir a comissão que lhe fora dada. Assim,<br />

cada pessoa deve considerar sua própria vocação, para que não<br />

considere como feito para Deus o que precipitadamente empreendeu<br />

movida por sua própria sugestão. Sabe-se muito bem qual foi o<br />

ofício de Cristo. Consistia em adiantar o reino de Deus, restaurar à<br />

vida as almas perdidas, difundir a luz do evangelho e, em suma, trazer<br />

salvação ao mundo. A excelência dessas coisas o levou, quando<br />

fatigado e faminto, a esquecer de comer e de beber. Todavia, não<br />

derivamos disto uma consolação comum, quando aprendemos que<br />

Cristo viveu tão ansioso no tocante à salvação dos homens, que<br />

se deleitou profundamente em concretizá-la. Pois não podemos ter<br />

dúvida de que ele agora é afetado por sentimentos semelhantes a<br />

nosso respeito.


Capítulo 4 • 183<br />

[4.35-38]<br />

Vós não dizeis que ainda há quatro meses até que venha a<br />

ceifa? Eis que eu vos digo: Erguei vossos olhos e olhai para<br />

os campos, porque já se acham brancos para a ceifa. E<br />

aquele que colhe recebe galardão e ajunta fruto para a vida<br />

eterna; para que, assim o que semeia como o que colhe, se<br />

regozijem juntos. porque nisto é verdadeiro o dito: que um<br />

é o que semeia, e o outro o que colhe. Eu vos enviei a colher<br />

onde não trabalhastes; outros trabalharam, e vós entrastes<br />

em seu trabalho.<br />

35. Vós não dizeis? Ele dá seguimento à afirmação precedente,<br />

pois havendo dito que nada lhe era mais preciso do que concretizar<br />

a obra do Pai, ele agora mostra quão madura ela está para execução.<br />

Assim, age fazendo uma comparação com a ceifa. Quando a espiga<br />

está madura, a ceifa não suporta delonga, pois do contrário o grão<br />

cairia ao chão e se perderia. Da mesma forma, a espiga espiritual, já<br />

estando madura, ele declara que não deve haver delonga, porque a<br />

delonga é prejudicial. Vemos a que propósito ele emprega a comparação:<br />

visa a explicar a razão por que ele se apressa a concretizar sua<br />

obra. 11 Por esta expressão, Vós não dizeis?, ele tencionava ressaltar diretamente<br />

quão mais atentas as mentes humanas estão para as coisas<br />

terrenas do que para as celestiais. Pois ardem com tão intenso desejo<br />

pela colheita que minuciosamente computam meses e dias, porém é<br />

surpreendente como são morosos e indolentes em ajuntar o trigo celestial.<br />

E a experiência diária prova que tal perversidade não só nos é<br />

natural, mas dificilmente a mesma pode ser rasgada de nossos corações,<br />

pois enquanto todos proveem para a vida terrena por um longo<br />

período, quão indolentes somos nós em pensar nas coisas celestiais!<br />

Assim Cristo diz em outra ocasião: Hipócritas, discernis o aspecto do<br />

céu a que tipo de dia será amanhã, porém não reconheceis o tempo de<br />

minha visitação [Mt 16.3].<br />

11 “Pour exprimer la cause pourquoy il se haste de faire la besogne.”


184 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

36. E aquele que colhe recebe o galardão. Quão diligentemente<br />

devemos devotar-nos à obra de Deus. Ele prova fazendo uso de outro<br />

argumento, a saber, que um maior e mais excelente galardão está reservado<br />

para nosso labor; pois ele promete que haverá fruto, e fruto<br />

incorruptível ou imperecível. O que ele acrescenta sobre o fruto pode<br />

ser explicado de duas maneiras: ou ele é um anúncio do galardão, e<br />

sobre essa suposição ele diria a mesma coisa duas vezes em palavras<br />

diferentes, ou ele aplaude os labores daqueles que enriquecem o reino<br />

de Deus, como depois o veremos reiterar: Eu vos escolhi para que vades<br />

e deis fruto, e para que vosso fruto permaneça [Jo 15.16]. E, certamente,<br />

ambas as considerações devem encorajar grandemente os ministros<br />

da Palavra, para que jamais se verguem sob o peso do labor quando<br />

ouvirem que uma coroa de glória está preparada para eles no céu, e<br />

saibam que o fruto de sua colheita não só será precioso aos olhos de<br />

Deus, mas também será eterno. É com este propósito que a Escritura<br />

por toda parte faz menção do galardão, e não com o propósito de<br />

levar-nos a julgá-lo como sendo mérito das obras, pois qual de nós,<br />

se chegarmos a um cômputo, não será achado mais digno de ser punido<br />

por indolência do que sendo galardoado por diligência? Para os<br />

melhores trabalhadores nada mais será deixado além de aproximar-se<br />

de Deus com toda humildade a implorar-lhe perdão. O Senhor, porém,<br />

que age em nosso favor com a bondade de um pai, com o fim de corrigir<br />

nossa indolência e encorajar-nos a fim de não desmaiarmos, se<br />

digna conceder-nos um galardão imerecido.<br />

Isso, em vez de subverter a justificação pela fé, ao contrário a confirma.<br />

Pois, em primeiro lugar, como é possível que Deus ache em nós<br />

algo que mereça galardão, senão que ele no-lo concede por meio de<br />

seu Espírito? Ora, sabemos que o Espírito é o penhor ou a garantia da<br />

adoção [Ef 1.14]. Em segundo lugar, como é possível que Deus confira<br />

tão grande honra a obras imperfeitas e pecaminosas senão porque, depois<br />

de haver, por sua livre graça, nos reconciliado consigo, aceitando<br />

nossas obras sem qualquer consideração meritória, não imputando os<br />

pecados que os escravizavam? O equivalente desta passagem é que o


Capítulo 4 • 185<br />

labor que os apóstolos aplicam ao ensino não deve ser-lhes considerado<br />

duro e desagradável, porquanto sabem muito bem que o mesmo é<br />

tão útil e tão vantajoso a Cristo quanto à Igreja.<br />

Para que, assim o que semeia como o que colhe se regozijem<br />

juntos. Através destas palavras Cristo mostra que o fruto que os apóstolos<br />

derivarão dos labores de outros não pode propiciar motivo de<br />

queixa a ninguém. E esta afirmação adicional merece observação, pois<br />

se no mundo os gemidos dos que se queixam de que o fruto de seu<br />

labor foi transferido a outro, não impedem que o novo possuidor de<br />

alegremente colher o que outro semeou, quanto mais alegres devem os<br />

ceifeiros deve ser, quando há consentimento mútuo e alegria e congratulação<br />

mútuas?<br />

Mas, para que esta passagem seja apropriadamente entendida,<br />

devemos compreender o contraste entre semeadura e colheita. A semeadura<br />

era a doutrina da lei e dos profetas, pois naquele tempo a<br />

semente lançada no solo permanecia, por assim dizer, na pá, mas a<br />

doutrina do evangelho, a qual conduz homens à maturidade própria, é<br />

por essa conta com razão comparada à colheita. Pois a lei estava muito<br />

longe daquela perfeição que por fim nos foi exibida em Cristo. Com o<br />

mesmo propósito é a notória comparação entre infância e virilidade<br />

que Paulo emprega, ao dizer que o herdeiro, enquanto é criança, não difere<br />

de um servo, embora seja dono de tudo, porém está sujeito a tutores<br />

e governantes até o tempo designado pelo Pai [Gl 4.1, 2].<br />

Em suma, visto que a vinda de Cristo trouxe consigo a presente<br />

salvação, não precisamos maravilhar-nos se o evangelho, por meio do<br />

qual a porta do reino do céu é aberta, é denominado ceifa em relação<br />

à doutrina dos profetas. E, no entanto, não de forma alguma inconsistente<br />

com esta afirmação o que fato de que os Pais sob a lei eram<br />

ajuntados no celeiro de Deus. Esta comparação, porém, deve referir-se<br />

ao método de ensino, pois, como a infância da Igreja durou até o fim da<br />

lei, mas, tão logo o evangelho passou a ser pregado ela imediatamente<br />

alcançou a maioridade, de modo que o tempo da salvação começou a<br />

sazonar, cuja semeadura só foi realizada pelos profetas.


186 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Mas, visto que Cristo proferiu este discurso em Samaria, parece<br />

estender a semeadura mais amplamente do que em relação à lei e aos<br />

profetas. E há quem interpreta estas palavras como que se aplicando<br />

igualmente aos judeus e aos gentios. Aliás, reconheço que alguns<br />

grãos de piedade sempre foram espalhados por todo o mundo, e que<br />

não pode haver dúvida de que – se nos permitir a expressão – Deus<br />

semeou, pelas mãos de filósofos e escritores profanos, os excelentes<br />

sentimentos que serão encontrados em seus escritos. Mas, como tal<br />

semente era degenerada em sua própria raiz, e como a espiga que<br />

dela germinou, ainda que não boa nem natural, foi sufocada por uma<br />

enorme massa de erros, é sem razão supor que uma corrupção tão<br />

destrutiva possa ser comparada a uma semeadura. Além disso, o que<br />

aqui lemos sobre unificação na alegria não pode de forma alguma aplicar-se<br />

aos filósofos nem a alguma pessoa dessa classe.<br />

Todavia, a dificuldade não está ainda resolvida, pois Cristo faz referência<br />

especial aos samaritanos. Eis minha resposta: ainda que tudo<br />

entre eles estivesse infectado por corrupções, contudo havia alguma<br />

semente velada de piedade. Pois donde provém que, tão logo ouviam<br />

uma palavra acerca de Cristo, saíam com tanta avidez após ele, senão<br />

porque aprenderam da lei e dos profetas que o Redentor viria?<br />

A Judeia era de fato o campo peculiar do Senhor, o qual ele cultivara<br />

através dos profetas, mas, visto que alguma pequena porção de semente<br />

fora levada para a Samaria, não é sem razão que Cristo diz que<br />

também ali ela atingiu a maturidade.<br />

Se alguém objetar, dizendo que os apóstolos foram escolhidos<br />

para publicar o evangelho por todo o mundo, a resposta é fácil, a saber,<br />

que Cristo falou de uma maneira adequada ao tempo, com esta<br />

exceção: que, por causa da expectativa do fruto que já estava quase<br />

maduro, ele realça nos samaritanos a semente da doutrina profética,<br />

ainda que mesclada e comprometida com muitas ervas daninhas ou<br />

corrupções. 12<br />

12 “C’est à dire, de corruptions.”


Capítulo 4 • 187<br />

37. Pois nisto o dito é verdadeiro. Este era um provérbio popular,<br />

por cujo uso ele mostrou que muitas pessoas amiúde recebem o<br />

fruto do labor de outros, ainda que exista esta diferença: aquele que<br />

trabalhou fica feliz em ver o fruto colhido por outros, enquanto os<br />

apóstolos têm os profetas por companheiros de sua alegria. E, no entanto,<br />

não se pode inferir disto que os profetas sejam pessoalmente<br />

testemunhas, ou estejam cientes do que doravante vai acontecer na<br />

Igreja, pois Cristo não quer dizer nada mais que isto: os profetas, enquanto<br />

viveram, ensinaram sob a influência destes sentimentos: que<br />

já se alegraram por conta do fruto que não tiveram a permissão de<br />

colher. A comparação que Pedro emprega [1Pe 1.12] não é diferente,<br />

exceto que ele dirige sua exortação geralmente a todos os crentes, e<br />

Cristo aqui fala somente dos discípulos e, na pessoa deles, aos ministros<br />

do evangelho.<br />

Por meio destas palavras, ele os concita a lançar seus labores<br />

numa sorte comum, de modo que não haja entre eles nenhuma inveja<br />

perversa. Aqueles que são os primeiros a serem enviados a trabalhar<br />

devem viver tão atentos ao presente cultivo a ponto de nutrirem qualquer<br />

inveja por uma maior bênção do que a daqueles que os seguirem<br />

mais tarde. E que aqueles que são enviados, por assim dizer, a colher<br />

o fruto sazonado devem empenhar-se em seu ofício com igual alegria,<br />

pois a comparação que aqui se traça entre os mestres da lei e os do<br />

evangelho pode igualmente aplicar-se aos últimos, quando vistos em<br />

referência uns aos outros.<br />

[4.39-45]<br />

E muitos samaritanos daquela cidade creram nele, em virtude<br />

da palavra da mulher, que testificou: Ele me disse tudo quanto<br />

tenho feito. Portanto, quando os samaritanos vieram a ele<br />

e lhe rogaram que permanecesse com eles; e ele permaneceu<br />

dois dias. E muitos outros creram por causa de sua palavra;<br />

e disseram à mulher: Já não cremos por causa de teu testemunho;<br />

pois nós pessoalmente ouvimos e sabemos que este é


188 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

realmente o Cristo, o Salvador do mundo. E depois de dois dias<br />

ele partiu e foi para a Galileia. Pois Jesus mesmo testificou 13<br />

que um profeta não tem honra em seu próprio país. E quando<br />

chegou na Galileia, os galileus o receberam, os quais haviam<br />

visto 14 tudo o que ele fizeram em Jerusalém no dia da festa;<br />

porque tinham também ido à festa.<br />

39. E muitos samaritanos daquela cidade creram nele. Aqui, o<br />

evangelista relata qual foi o resultado do anúncio da mulher aos seus<br />

concidadãos, do que se evidencia que a expectativa e anseio pelo<br />

Messias prometido não tiveram pouco vigor entre eles. Ora, a palavra<br />

crer não é usada com exatidão, e significa que se viram induzidos pelo<br />

testemunho da mulher a reconhecer Cristo como Profeta. Em alguns<br />

aspectos, o gérmen da fé entra em ação quando as mentes são preparadas<br />

para receber a doutrina. Essa iniciação da fé recebe aqui o<br />

honroso título fé, com o fim de informar-nos quão sublimemente Deus<br />

estima a reverência por sua Palavra, quando confere tão grande honra<br />

à docilidade dos que ainda não foram ensinados. Ora, sua fé se manifesta<br />

neste aspecto: que são possuídos do desejo de progresso, e, por<br />

essa razão, desejam que Cristo permaneça com eles.<br />

41. E muitos outros creram. Do que se segue, é evidente que a<br />

correspondência de Cristo para com o desejo deles era altamente<br />

apropriada, pois vemos quanto fruto amadureceu nos dois dias que<br />

ele atendera a solicitação deles. Com este exemplo, somos instruídos<br />

que nunca devemos deixar de trabalhar quando temos em nosso poder<br />

o avanço do reino de Deus. E se porventura receamos que nossa<br />

prontidão em aquiescer seja passível de resultados desfavoráveis, ou<br />

prove amiúde ser inútil, peçamos a Cristo o Espírito de conselho para<br />

dirigir-nos. A palavra crer é agora usada em sentido distinto, pois ela<br />

não significa apenas que estavam preparados para a fé, mas que realmente<br />

tinham uma fé correta.<br />

13 “Ou, Jesus avoit rendu tesmoignage” – “ou, Jesus testificara.”<br />

14 “Apres qu’ils eussent veu” – “depois que tinham visto.”


Capítulo 4 • 189<br />

42. Por causa de teu testemunho. Embora eu siga Erasmo ao traduzir<br />

esta palavra por oratio [testemunho verbal], visto loquela, que<br />

os intérpretes antigos usam, ser um termo bárbaro, contudo advirto<br />

meus leitores que a palavra grega, λαλία, tem o mesmo significado que<br />

o latim, loquentia, isto é, conversação ou loquacidade. E os samaritanos<br />

parecem gloriar-se de que agora tem um fundamento mais forte do<br />

que a língua da mulher, a qual é, na maioria das vezes, leviana e trivial.<br />

Cremos. Isto expressa mais plenamente a natureza da fé deles, a<br />

qual foi extraída da palavra de Deus mesmo, de modo que podem gloriar-se<br />

de ter o Filho de Deus como seu Mestre, como é tão-somente em<br />

sua autoridade que podemos confiar com segurança. Aliás, na verdade,<br />

ele agora não está visivelmente presente, podendo falar-nos boca<br />

a boca. Mas, seja dos lábios de quem for que o ouvirmos, nossa fé não<br />

pode descansar em nenhum outro senão nele mesmo. E de nenhuma<br />

outra fonte procede aquele conhecimento que igualmente mencionado,<br />

pois o testemunho verbal que procede dos lábios de um mortal de fato<br />

pode encher e satisfazer os ouvidos, porém jamais confirma a alma na<br />

confiante tranquilidade da salvação, de modo que quem já ouviu pode-<br />

-se dizer que o mesmo se gloria em saber. Portanto, na fé a primeira<br />

coisa necessária é saber que é Cristo que fala através de seus ministros,<br />

e em seguida é dar-lhe a honra que lhe é devida, isto é, não há dúvida<br />

de que ele é verdadeiro e fiel, de modo que, confiando numa garantia<br />

tão destituída de dúvida, podemos confiar firmemente em sua doutrina.<br />

Uma vez mais, quando afirmam que Jesus é o Cristo e o Salvador<br />

do mundo, indubitavelmente aprenderam isto de seus próprios lábios.<br />

Daí inferirmos que, em dois dias, a suma do evangelho foi mais claramente<br />

ensinada por Cristo do que até aqui ele ensinara em Jerusalém.<br />

E Cristo testificou que a salvação, que ele trouxera, era comum ao<br />

mundo inteiro, para que pudessem entender mais plenamente que ela<br />

lhes pertencia também, pois ele não os chama com base na suposição<br />

de que eram herdeiros legítimos, como no caso dos judeus, 15 porém<br />

15 “Ainsi qu’estoyent les, Juifs.”


190 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

ensinou que ele viera admitir estranhos na família de Deus e trazer paz<br />

a todos quantos estavam longe [Ef 2.17].<br />

44. Pois Jesus mesmo testificou. A aparente contradição que nos<br />

choca aqui, à primeira vista, tem dado lugar a várias interpretações.<br />

Há um excesso de sutileza na explicação dada por Agostinho, a saber:<br />

que Cristo era sem honra entre seus próprios compatrícios, porque ele<br />

fizera mais o bem entre os samaritanos, em dois dias, do que fizera, por<br />

um longo tempo, entre os galileus; e porque, sem milagres, ele granjeara<br />

mais discípulos em Samaria do que com um grande volume de<br />

milagres granjeara na Galileia. Tampouco me satisfaço com o ponto de<br />

vista de Crisóstomo, o qual entende Cafarnaum como sendo o estado<br />

de Cristo, porque ele habitou ali com mais freqüência do que em qualquer<br />

outro lugar. Concordo mais com Cirilo que afirma que ele deixou<br />

a cidade de Nazaré e partiu para uma parte diferente da Galileia; pois<br />

os outros três evangelistas fazem menção de Nazaré, quando relatam<br />

este testemunho de Cristo. O significado poderia de fato ser que, enquanto<br />

o tempo de plena manifestação ainda não havia chegado, ele<br />

decide permanecer oculto em seu estado natal, numa espécie de retiro<br />

obscuro. Ainda outros explicam o fato neste sentido: ele permaneceu<br />

dois dias em Samaria porque não havia razão para apressar-se a ir a<br />

outros lugares onde escárnio o aguardava. Outros pensam que ele foi<br />

diretamente para Nazaré e imediatamente a deixou; mas, como <strong>João</strong><br />

não faz nenhum relato desse gênero, não me aventuro a entregar-me a<br />

tal conjetura. Um ponto de vista mais correto é este: quando ele percebeu<br />

que era menosprezado em sua cidade natal, Nazaré, partiu para<br />

outros lugares. E, portanto, imediatamente segue [v. 46] que ele entrou<br />

na cidade de Caná. O que em seguida se acrescenta – que os galileus o<br />

receberam – era um emblema de reverência, não de desdém.<br />

Um profeta não tem honra em seu próprio país. Não tenho dúvida<br />

de que esta expressão era comum, e veio a transformar-se num<br />

provérbio; 16 e sabemos que provérbios tem o propósito de expressar<br />

16 “Commune, et qui etoit passee en proverbe.”


Capítulo 4 • 191<br />

com graça o que comumente e com mais frequência (ἐπὶ τὸ πολὶ) acontece.<br />

Em tais casos, portanto, não é necessário exigirmos rigidamente<br />

precisão uniforme, como se o que é expresso em um provérbio fosse<br />

sempre verdadeiro. É indubitável que os profetas são geralmente mais<br />

admirados em outros lugares do que em seu próprio país de origem.<br />

Algumas vezes também pode ocorrer, e de fato ocorre, que um profeta<br />

não é menos honrado por seus compatrícios do que por estrangeiros;<br />

mas o provérbio declara o que é comum e ordinário, ou, seja: que os<br />

profetas recebem honra mais espontaneamente em qualquer outro lugar<br />

do que entre seus próprios compatrícios.<br />

Ora, este provérbio, bem como o significado dele, pode ter uma<br />

dupla origem; pois é um erro universal que aqueles a quem devemos<br />

ouvir gritam da plataforma, e a quem vemos agindo nesciamente em<br />

sua infância são desprezados por nós ao longo de toda sua vida, como<br />

se não tivessem qualquer progresso, desde sua tenra idade. A isto se<br />

acrescenta outro mal – a inveja que prevalece mais entre os conhecidos.<br />

Penso, porém, ser provável que o provérbio se origine da seguinte circunstância:<br />

os profetas eram assim maltratados por sua própria nação;<br />

pois quando homens santos e bons percebiam que havia na Judeia tão<br />

grande ingratidão para com Deus, tão grande desprezo por sua Palavra,<br />

tão grande obstinação, podiam com razão pronunciar esta queixa: que<br />

em parte alguma os profetas de Deus são menos honrados do que em<br />

seu próprio país. Se o primeiro significado for preferido, o título profeta<br />

deve ser entendido em termos gerais denotando qualquer mestre, como<br />

Paulo chama Epimênides profeta dos cretenses [Tt 1.12].<br />

45. Os galileus o receberam. Se esta honra era ou não de longa<br />

duração não temos meios para determinar; pois nada existe a que os<br />

homens mais se inclinam do que olvidar os dons de Deus. Tampouco<br />

<strong>João</strong> relata isto com algum outro desígnio senão o de informar-nos que<br />

Cristo realizou milagres na presença de muitas testemunhas, tanto que<br />

a notícia delas se difundiu por muitos rincões. Repetindo, isto aponta<br />

para uma vantagem dos milagres, a saber: que eles preparam o caminho<br />

para a doutrina; pois fazem com que se preste reverência a Cristo.


192 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

[4.46-54]<br />

Jesus, pois, foi outra vez para Caná da Galileia, onde transformara<br />

a água em vinho. E havia ali certo nobre, cujo filho era<br />

enfermo em Cafarnaum. Quando ele ouviu que Jesus viera da<br />

Judeia para a Galiléia, foi ter com ele, e rogou-lhe que descesse<br />

e curasse a seu filho; porque já estava à morte. Jesus, portanto,<br />

disse-lhe: A não ser que vejais sinais e prodígios, não crereis.<br />

O próprio nobre lhe disse: Senhor, desce antes que meu filho<br />

morra. Jesus lhe disse: Vai, teu filho vive. O homem creu na palavra<br />

que Jesus lhe falou e se foi. E enquanto ele ainda descia,<br />

seus servos o encontraram e lhe informaram, dizendo: Teu filho<br />

vive. Então ele lhes perguntou a que hora ele se recuperara;<br />

e lhe disseram: Ontem à sétima hora a febre o deixou. O pai,<br />

pois, entendeu que era a mesma hora em que Jesus lhe disse:<br />

Teu filho vive. E ele creu, e toda sua casa. Jesus fez este segundo<br />

milagre quando ia da Judéia para a Galileia.<br />

46. E havia ali certo nobre. Esta é uma tradução muito correta,<br />

ainda quando Erasmo pensa diferentemente, traduzindo βασιλικός por<br />

uma palavra latina, Regulus, que significa pequeno rei. 17 Reconheço,<br />

aliás, que naquele tempo davam o nome de Reguli (ou pequenos reis)<br />

aos que são agora chamados duques, ou barões, ou condes; mas o<br />

estado da Galileia naquele tempo era tal que não podia pessoa alguma<br />

daquela posição habitando em Cafarnaum. Creio ser ele algum nobre 18<br />

da corte de Herodes; pois há alguma plausibilidade na opinião daqueles<br />

que pensam que ele foi enviado por César. 19 Isto é expressamente<br />

mencionado pelo evangelista em razão da posição desse personagem<br />

tornar o milagre ainda mais eminente.<br />

47. Quando ele ouviu que Jesus viera. Ao recorrer a Cristo em<br />

busca de ajuda, essa é alguma evidência de sua fé; mas quando li-<br />

17 “Lequel l’a traduit par un mot Latin Regulus, qui signifie un petit Roy.”<br />

18 “Quelque gentil-homme.”<br />

19 “Par l’Empereur” – “pelo Imperador.”


Capítulo 4 • 193<br />

mita o método de Cristo de conceder assistência, isso mostra quão<br />

ignorante ele era. Pois vê o poder de Cristo como inseparavelmente<br />

conectado a sua presença corporal, da qual é evidente que ele não<br />

formara nenhum outro conceito sobre Cristo além deste: que ele<br />

era Profeta enviado por Deus com autoridade e poder que provam,<br />

pela realização de milagres, ser ele ministro de Deus. Tal erro, ainda<br />

que merecedor de censura, Cristo passa por alto, porém o repreende<br />

severamente, aliás, a todos os judeus em geral, por outra razão:<br />

sua excessiva avidez por contemplar milagres.<br />

Mas como agora sucede que Cristo seja tão áspero, quando<br />

costumava receber bondosamente outros que queriam milagres?<br />

Teria havido naquele momento alguma razão particular, ainda que<br />

desconhecida de nós, pela qual ele tratou este homem com certo<br />

grau de severidade, o que não era comum nele; e talvez ele visasse<br />

não tanto ao indivíduo, mas à nação inteira. Ele entendeu que a<br />

doutrina de Cristo não era de grande autoridade, e por isso não só<br />

a negligenciou, mas ainda a desprezou totalmente; e, em contrapartida,<br />

todos seus olhos estavam fixos nos milagres e todos seus<br />

sentidos se achavam dominados pela estupidez antes que pela<br />

admiração. E assim o ímpio desprezo pela Palavra de Deus, que<br />

naquele tempo prevalecia, o constrangeu a fazer tal censura.<br />

Aliás, na verdade até mesmo alguns dos santos às vezes desejavam<br />

ser confirmados por milagres a fim de não nutrirem alguma<br />

dúvida quanto à veracidade das promessas; e notamos como Deus,<br />

ao bondosamente atender suas solicitações, mostrou que não<br />

estava ofendido por eles. Cristo, porém, descreve aqui uma perversidade<br />

muito mais grave; pois os judeus dependiam tanto de<br />

milagres que não deixavam qualquer espaço à Palavra. Em primeiro<br />

lugar, era excessivamente perverso que se deixar dominar pela estupidez<br />

e carnalidade, ao ponto de não sentir qualquer reverência<br />

pela doutrina, a não ser que fossem estimulados por milagres; pois<br />

deveriam estar bem familiarizados com a Palavra de Deus, na qual<br />

haviam sido educados desde sua infância. Em segundo lugar, quan-


194 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

do se realizavam milagres, tinham um aspecto tão proveitoso que<br />

todos permaneciam em um estado de espanto e perplexidade. E<br />

assim não eram atingidos pela religião, nem pelo conhecimento de<br />

Deus, nem pela prática da piedade, mas permaneciam simplesmente<br />

no campo dos milagres.<br />

O mesmo propósito tem aquela abordagem de Paulo contra<br />

eles: os judeus exigem sinais [1Co 1.22]. Pois sua intenção é dizer<br />

que, de uma forma irracional e imoderada, viviam atrelados aos<br />

sinais e pouco se preocupavam com a graça de Cristo, ou com as<br />

promessas da vida eterna, ou com o poder secreto do Espírito;<br />

mas, ao contrário, rejeitavam o evangelho com desdenhosa arrogância,<br />

visto que não se deixavam atrair por coisa alguma senão<br />

por milagres.<br />

Espero que não haja muitas pessoas nos dias atuais afetadas<br />

pela mesma enfermidade; porém nada é mais comum do que este<br />

provérbio: “Que primeiro realizem milagres, 20 e então inclinaremos<br />

nossos ouvidos a sua doutrina”; como se devêssemos desprezar<br />

e desdenhar a verdade de Cristo, a não ser que a mesma adquira<br />

apoio de algum outro setor. Mas ainda que Deus fosse cobri-los<br />

com uma grande quantidade de milagres, continuariam falando falsamente<br />

dizendo que acreditam. Algo inusitado e externo tem de<br />

ser produzido, porém não serão sequer um mínimo mais atentos à<br />

doutrina.<br />

49. Senhor, desce, antes que meu filho morra. Já que ele persevera<br />

pedindo, e por fim obtém o que deseja, podemos concluir<br />

que Cristo não o reprovou ao ponto de rejeitá-lo totalmente e recusar<br />

sua oração; senão que, antes, age com o propósito de corrigir<br />

aquele erro que obstruía o acesso da fé genuína. E devemos lembrar-nos<br />

de minha declaração anterior, a saber: que esta era uma<br />

reprovação geral do povo com um todo, e não foi peculiarmente<br />

dirigida a um só indivíduo. Dessa forma, tudo o que é impróprio, ou<br />

20 “Qu’ils facent premierement des miracles.”


Capítulo 4 • 195<br />

distorcido, ou supérfluo, em nossas orações, deve ser corrigido ou<br />

removido, para que as obstruções perigosas sejam arredadas do<br />

caminho. Ora, os cortesãos geralmente são fastidiosos e arrogantes<br />

e não se submetem espontaneamente a um tratamento áspero;<br />

porém merece nota que este homem, humilhado por seu estado de<br />

profunda carência e pelo medo de perder seu filho, não se revolta<br />

nem murmura quando Cristo lhe fala rudemente, mas enfrenta a<br />

reprovação em modesto silêncio. Descobrimos as mesmas coisas<br />

também em nós; pois somos espantosamente sensíveis, impacientes<br />

e irritáveis, até que, subjugados pelas adversidades, nos vemos<br />

constrangidos a abrir mão de nosso orgulho e desdém.<br />

50. Teu filho vive. A primeira coisa que nos estremece aqui é<br />

a espantosa bondade e condescendência de Cristo, em suportar<br />

ele a ignorância do homem e estender seu poder além do que se<br />

esperava. Ele exigiu que Cristo fosse ao local e curasse seu filho. Ele<br />

pensava ser possível que seu filho ficasse livre da doença, porém<br />

não que ele pudesse ser ressuscitado depois de morto. E por isso<br />

ele insiste com Cristo a apressar-se para que a recuperação de seu<br />

filho impedisse que o mesmo morresse. Consequentemente, quando<br />

Cristo perdoa sua ignorância e arrogância, podemos concluir<br />

disto o quanto ele valoriza mesmo uma pequena medida de fé. É<br />

digno de observação que Cristo, embora não concorde com seu<br />

desejo, concede muito mais do que exigiu e esperava; pois testifica<br />

da saúde atual de seu filho. E assim amiúde sucede que nosso Pai<br />

celestial, embora não se compactue com nossos desejos em cada<br />

particular, continua a aliviar-nos por meio de métodos inesperados,<br />

para que aprendamos a não prescrever-lhe o que queremos.<br />

Ao dizer: Teu filho vive, sua intenção é que ele fora resgatado do<br />

perigo da morte.<br />

O homem creu na palavra que Jesus lhe falara. Ao aproximar-<br />

-se com a convicção de que Cristo era profeta de Deus, com isso ele<br />

estava tão disposto a crer que, tão logo ouviu uma única palavra<br />

agarrou-a e a fixou em seu coração. Ainda que não nutrisse todo o


196 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

devido respeito para com o poder de Cristo, contudo uma breve promessa<br />

de repente despertou novo confiança em sua mente, de tal<br />

modo que creu que a vida de seu filho estava contida em uma única<br />

palavra de Cristo. E essa é a prontidão com que devemos receber a<br />

Palavra de Deus, porém ela está longe de produzir sempre um efeito<br />

tão imediato nos ouvintes. Pois quantos extraem algum proveito<br />

de muitos sermões como fez este homem, um meio pagão, ao ouvir<br />

uma só palavra? Tanto mais devemos nós labutar com zelo para despertar<br />

nosso entorpecimento e, acima de tudo, orar para que Deus<br />

toque nossos corações de tal maneira que não sejamos menos dispostos<br />

a crer do que ele está pronto e gracioso a prometer!<br />

51. E enquanto ele ainda descia. Aqui se descreve o efeito da<br />

fé, juntamente com a eficácia da palavra; pois como Cristo, com<br />

uma palavra, restaura a vida a essa criança que estava morrendo,<br />

assim num instante o pai, com sua fé, recupera seu filho são e salvo.<br />

Portanto, saibamos que, sempre que o Senhor nos oferece seus benefícios,<br />

seu poder estará sempre pronto a concretizar tudo o que<br />

ele promete, desde que a porta não esteja fechada contra ele por<br />

nossa incredulidade. Reconheço que nem sempre sucede, e nem<br />

mesmo é frequente e comum, que Deus exiba instantaneamente<br />

seu braço para dar-nos assistência; mas sempre que delongue, ele<br />

tem sempre boa razão, e uma razão que nos é maravilhosamente<br />

vantajosa. Pelo menos, isto é indubitável: que longe está ele de<br />

delongar-se desnecessariamente, ao contrário, ele luta contra os<br />

obstáculos que nós mesmos lançamos no caminho; e por isso, quando<br />

não percebemos seu auxílio imediato, consideremos quanto de<br />

desconfiança oculta existe em nós, ou, pelo menos, quão pequena<br />

e limitada é nossa fé. E não devemos maravilhar-nos se ele se indispõe<br />

a permitir que seus benefícios se percam, ou precipitá-los ao<br />

léu, senão que decide concedê-los aos que, abrindo o seio de sua fé,<br />

se prontificam a recebê-los. E ainda que nem sempre dê assistência<br />

ao seu povo da mesma maneira, todavia em nenhum caso a fé de<br />

alguém será infrutífera, ou nos impede de experimentar a verdade


Capítulo 4 • 197<br />

apresentada pelo profeta, de que a as promessas de Deus, ainda<br />

quando pareçam tardar, na realidade estão fazendo grande avanço.<br />

“Porque a visão é ainda para o tempo determinado, mas se apressa<br />

para o fim, e não enganará; se tardar, espera-o, porque certamente<br />

virá, não tardará” [Hc 2.3].<br />

52. Portanto ele inquiriu deles. A pergunta que fez esse nobre<br />

a seus servos em que momento seu filho começou a recuperar-se<br />

obedeceu a um impulso de Deus, para que a veracidade do milagre<br />

se tornasse ainda mais conspícua. Pois, por natureza, temos uma<br />

disposição excessivamente perversa em distinguir a luz do pode de<br />

Deus dos labores de Satanás, por vários meios, com o fim de ocultar<br />

as obras de Deus de nossa vista; e por isso, a fim de poder obter<br />

de nós aquele louvor que lhes é devido, devem manifestar-se de tal<br />

maneira que não fique lugar algum à dúvida. Portanto, seja qual for<br />

a ingratidão dos homens, contudo esta circunstância não permite<br />

que a obra tão magnificente de Cristo seja atribuída ao acaso.<br />

53. E ele creu, bem como toda sua casa. Pode parecer absurdo<br />

que o evangelista mencione isto como o ponto de partida da<br />

fé naquele homem, cuja fé já havia começado. Tampouco se pode<br />

presumir que a palavra crer – pelo menos nesta passagem – se relacione<br />

com o progresso da fé. Mas é preciso entender que esse<br />

homem, sendo judeu e educado na doutrina da lei, já havia obtido<br />

alguma prova de fé quando veio a Cristo; e que ele depois creu na<br />

palavra de Cristo foi uma fé particular que não se estendeu para<br />

além da expectativa pela vida de seu filho. Mas agora ele começou<br />

a crer de uma forma diferente; isto é, porque, abraçando a doutrina<br />

de Cristo, publicamente professou ser um de seus discípulos.<br />

E assim não só crê agora que seu filho será curado pela bondade<br />

de Cristo, mas reconhece Cristo como sendo o Filho de Deus, e faz<br />

uma profissão de fé em seu evangelho. Toda sua família se une a<br />

ele, que era uma evidência do milagre; nem se pode pôr em dúvida<br />

que tenha ele feito tudo para conduzir outros, juntamente com ele,<br />

a abraçar a religião cristã.


Capítulo 5<br />

[5.1-9]<br />

Depois dessas coisas, havia uma festa dos judeus, e Jesus subiu<br />

a Jerusalém. E havia em Jerusalém, próximo ao mercado de<br />

ovelhas, um tanque cujo nome em hebraico é Betesda, tendo<br />

cinco pavilhões. Nestes, jazia uma grande multidão de enfermos,<br />

cegos, coxos e atrofiados, 1 esperando pelo movimento da<br />

água. Pois um anjo descia primeiro, em intervalos, 2 ao tanque,<br />

e agitava a água. Quem primeiro, descesse depois de agitada a<br />

água, era curado de qualquer doença que tivesse. Ora, havia ali<br />

um homem que passara trinta e oito anos enfermo. Ao ver Jesus,<br />

esse homem ali deitado, e sabendo que estivera por tanto<br />

tempo enfermo, disse-lhe: Desejas ser curado? O enfermo lhe<br />

respondeu: Senhor, não tenho ninguém que me faça descer ao<br />

tanque, quando a água é agitada; mas, enquanto eu vou, outro<br />

desce antes de mim. Jesus lhe disse: Levanta, toma teu leito e<br />

anda. E imediatamente aquele homem foi curado e tomou seu<br />

leito e andou. E aquele dia era sábado.<br />

1. Havia uma festa dos judeus. Embora o evangelista não<br />

declare expressamente que festa era essa, contudo a conjetura provável<br />

é que ele tinha em mente o Pentecostes, pelo menos se o que<br />

é aqui relatado ocorreu imediatamente depois que Cristo foi para<br />

1 “Et qui avoyent les membres secs” – “e que tinham os membros atrofiados.”<br />

2 “Par intervalles, ou, en certain temps” – “em intervalos, ou, em determinado tempo.”


200 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

a Galileia. Porque imediatamente depois da Páscoa, ele partiu de<br />

Jerusalém e, como tinha de passar por Samaria, ele computou quatro<br />

meses para a ceifa. Tendo entrado na Galileia, ele curou o filho<br />

do nobre. O evangelista acrescenta que a festa veio depois, e por<br />

isso a ordem de tempo nos leva à conclusão de que devemos tomá-<br />

-la como sendo o Pentecostes, embora não me disponha a discutir<br />

sobre a questão. Ora, Cristo veio a Jerusalém para a festa, em parte<br />

porque naquele tempo, em virtude da grande multidão de povo que<br />

se congregava, ele tinha a oportunidade de publicar sua doutrina<br />

mais extensamente, e em parte porque era necessário que se sujeitasse<br />

à lei para que pudesse redimir-nos da escravidão da lei, como<br />

já explicamos em ocasiões anteriores.<br />

2. Havia em Jerusalém, no tanque próximo ao mercado de ovelhas.<br />

Acrescenta-se a circunstância do lugar, do que aprendemos que<br />

o milagre não foi secreto nem conhecido só de umas poucas pessoas,<br />

pois os cinco pavilhões mostram que o local era famoso pelo grande<br />

número de pessoas que a ele recorriam, e isso estava também implícito<br />

em sua vizinhança ao templo. Além disso, o evangelista diz expressamente<br />

que muitos enfermos jaziam ali. Com respeito ao significado do<br />

nome, os eruditos com razão rejeitam a opinião fantasiosa de Jerônimo<br />

que, em vez de Betesda, grafa Betheder, e o interpreta significando<br />

casa do rebanho, pois aqui se faz menção de um tanque que ficava<br />

próximo ao mercado das ovelhas. Aqueles que leem Betesda, como<br />

significando um local de pesca, não tem nenhuma razão de seu lado.<br />

Há maior probabilidade na opinião dos que o explicam como sendo o<br />

lugar de derramamento, pois a palavra hebraica (Eshed) significa<br />

transbordar, mas o evangelista, como então era o modo ordinário de<br />

falar, pronunciou Esda. Pois creio que a água era transferida para ele<br />

através de tubulações, para que os sacerdotes tirassem água dele, a<br />

não ser que, talvez, o lugar recebesse seu nome da circunstância em<br />

que a água fosse extraída dele por meio de tubos. Ele era chamado<br />

mercado de ovelhas, em minha opinião, porque os animais que deviam<br />

ser oferecidos em sacrifício eram tomados dali.


Capítulo 5 • 201<br />

3. Nestes jazia uma grande multidão. É possível que os enfermos<br />

jazessem nos pavilhões a pedir esmolas enquanto as pessoas passavam<br />

por ali quando vinham para o culto no templo. E era ali também<br />

o costume de comprar os animais a serem oferecidos em sacrifício.<br />

No entanto, a cada festa Deus curava determinado número de pessoas<br />

para que, dessa forma, pudesse recomendar o culto prescrito na lei<br />

e a santidade do templo. Mas, não parece insensato crer, ainda que<br />

não lemos que algo desse gênero tenha acontecido em alguma época<br />

em que a religião estava numa condição mais florescente, e mesmo na<br />

época em que se realizavam milagres pelas mãos dos profetas, senão<br />

em ocasiões extraordinárias, quando os negócios da nação estavam<br />

em decadência e quase em total ruína, que o poder e a graça de Deus<br />

se exibiam de uma forma mais extraordinária do que ordinária?<br />

Eis minha resposta: em minha opinião há duas razões. Visto que<br />

o Espírito Santo, habitando nos profetas, era suficiente testemunha da<br />

presença divina, a religião naquele tempo não carecia de confirmação<br />

adicional, pois a lei fora sancionada por meio de milagres sobejamente<br />

suficientes, e Deus não cessara de expressar, por meio de testemunhos<br />

inumeráveis, sua aprovação do culto que uma vez ordenara. Mas<br />

sobre o tempo da vinda de Cristo, quando ficaram privados dos profetas<br />

e sua condição se tornou em extremo miserável, e quando várias<br />

tentações os oprimiram com todo peso, careciam deste auxílio extraordinário<br />

para que não concluíssem que Deus os havia abandonado<br />

totalmente e assim viessem a sentir-se desencorajados e chegassem<br />

até mesmo a apostatar. Pois sabemos que Malaquias foi o último dos<br />

profetas, e por isso conclui sua doutrina com esta admoestação, para<br />

que os judeus se lembrassem da lei promulgada por Moisés [Ml 4.4], até<br />

que Cristo se manifestasse. Deus viu ser vantajoso privá-los dos profetas<br />

e conservá-los suspensos por algum tempo, para que se inflamasse<br />

com mais forte anseio por Cristo e o recebessem com mais intensa<br />

reverência, quando se lhes manifestasse.<br />

Todavia, para que esses testemunhos não faltassem ao templo<br />

e aos sacrifícios, bem como a todo aquele culto por meio do qual a


202 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

salvação fosse conhecida ao mundo, o Senhor reteve entre os judeus<br />

este dom de cura, para que soubessem que havia uma razão plausível<br />

pela qual Deus os separara dentre as demais nações. Porque Deus,<br />

ao curar os enfermos, demonstrou nitidamente – como que por um<br />

braço estendido do céu – que ele aprovava esse gênero de culto que<br />

eles derivaram das ordenações da lei. Em segundo lugar, não tenho<br />

dúvida de que Deus tencionava lembrá-los, por meio desses sinais,<br />

que o tempo da redenção se aproximava e que Cristo, o Autor da salvação,<br />

já estava às portas, para que a mente de todos fosse despertada<br />

com mais eficácia. E creio que os sinais, nessa época, serviram a este<br />

duplo propósito: primeiro, para que os judeus soubessem que Deus<br />

estava presente com eles, e assim pudessem permanecer firmes em<br />

sua obediência à lei; e, segundo, para que esperassem com solicitude<br />

uma nova e inusitada condição.<br />

De coxos, cegos, atrofiados. Com o propósito de informar-nos<br />

de que as doenças curadas por nosso Senhor não eram de um gênero<br />

comum, o evangelista enumera algumas classes delas; pois os<br />

antídotos humanos não podiam ser de nenhuma valia para o coxo, o<br />

cego e o atrofiado. Era deveras um espetáculo deprimente ver em tão<br />

grande grupo de homens tantas espécies de deformidades nos membros<br />

físicos. Porém a glória de Deus brilhou ainda mais intensamente<br />

ali do que à vista do mais numeroso e melhor disciplinado exército.<br />

Pois nada é mais magnificente do que quando um inusitado poder de<br />

Deus corrige e restaura os defeitos da natureza; e nada é mais belo ou<br />

mais deleitoso do que quando, através de sua ilimitada bondade, ele<br />

alivia as angústias dos homens. Por essa razão, o Senhor tencionava<br />

transformar este quadro em um esplêndido teatro no qual não só os<br />

habitantes do país, mas também os estrangeiros, pudessem perceber<br />

e contemplar sua majestade, e, como já sugeri, não era um pequeno<br />

ornamento e glória do templo quando Deus, ao estender sua mão, revelou<br />

claramente que ele estava presente.<br />

4. Pois um anjo descia. Sem dúvida era uma obra peculiar de<br />

Deus curar enfermidade. Mas, visto que ele costumava empregar o


Capítulo 5 • 203<br />

ministério e agência dos anjos, assim ele ordenou a um anjo que cumprisse<br />

esse dever. Por essa razão, os anjos são chamados principados<br />

e poderes [Cl 1.16]. Não que Deus lhes delegasse seu próprio poder<br />

e permanecesse no céu sem qualquer atividade, mas porque, ao agir<br />

poderosamente neles, demonstra de modo magnífico e exibe seu poder.<br />

Portanto, é perverso e desonroso imaginar qualquer coisa como<br />

pertencente aos anjos, ou constituí-los como o meio de comunicação<br />

entre nós e Deus, a ponto de obscurecer a glória de Deus, como se<br />

ela estivesse a uma grande distância de nós, enquanto que, ao contrário,<br />

ele os emprega como manifestações de sua presença. Devemos<br />

pôr-nos de guarda contra as estultas especulações de Platão, pois a<br />

distância entre nós e Deus é tão incomensurável que, por sua orientação,<br />

proteção e comando, podemos ter os anjos como assistentes e<br />

ministros de nossa salvação.<br />

Em intervalos. Deus poderia ter imediatamente, em um só instante,<br />

curado a todos eles, porém, como seus milagres têm seus desígnios,<br />

assim devem também ter seus limites, como Cristo também os lembra<br />

que, embora existam tantos que morreram nos dias de Eliseu, não<br />

mais que uma criança ressuscitou dentre os mortos [2Rs 4.32]; 3 e que,<br />

ainda que tantas viúvas vivessem famintas durante o tempo da seca,<br />

houve apenas uma cuja pobreza foi aliviada por Elias [1Rs 17.9; Lc<br />

4.25]. E, assim, o Senhor considerou suficiente dar uma demonstração<br />

de sua presença no caso de umas poucas pessoas enfermas.<br />

O modo de curar, porém, que é aqui descrito, mostra sobejamente<br />

claro que nada é mais irracional do que esse homem sujeitar-se<br />

às obras de Deus por sua própria decisão. Sem esperanças, que assistência<br />

ou alívio se poderia esperar de águas agitadas? Mas assim,<br />

privando-nos de nossos próprios sentidos, o Senhor nos habitua à<br />

obediência da fé. Também seguimos solicitamente o que agrada nossa<br />

razão, ainda que contrarie a Palavra de Deus. Por isso, a fim de tornar-<br />

3 A versão francesa traz esta redação: “combien que du temps d’Elisee il y eust plusieurs<br />

de ladres, toutesfois nul d’eux ne fut nettoyé simon Naaman Syrien” – “ainda que nos<br />

dias de Eliseu houvesse tantos leprosos, não obstante nenhum deles foi purificado senão<br />

Naamã, um sírio” [2Rs 5.14; Lc 4.27].


204 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

-nos mais obedientes a ele, amiúde nos apresenta aquelas coisas que<br />

contradizem nossa razão. Então só podemos mostrar nossa submissa<br />

obediência quando fechamos nossos olhos e seguimos a Palavra plena,<br />

ainda que nossa própria opinião seja que o que estamos fazendo<br />

será de nenhuma valia. Temos um exemplo desse gênero em Naamã, o<br />

sírio, a quem o profeta envia ao Jordão para que fosse curado de sua<br />

lepra [2Rs 5.10]. A princípio, sem dúvida, ele o despreza como uma<br />

peça de ridículo, porém mais tarde chega realmente a perceber que,<br />

embora Deus aja contrariamente à razão humana, ele nunca zomba de<br />

nós nem nos frustra.<br />

E agitava a água. Embora o agitar da água fosse uma manifesta<br />

prova de que Deus usa livremente os elementos [da natureza] segundo<br />

seu próprio beneplácito, e que ele reivindica para si o resultado da<br />

operação. Pois é um erro excessivamente comum atribuir às criaturas<br />

o que pertence exclusivamente a Deus. Porém, seria o auge da estupidez<br />

buscar, na água agitada, a causa da cura. Ele, pois, põe em realce o<br />

símbolo externo de uma forma tal que, olhando para o símbolo, as pessoas<br />

enfermas fossem constrangidas a erguer seus olhos para Aquele<br />

que é o único Autor da graça.<br />

5. E havia um homem ali. O evangelista escolhe várias circunstâncias<br />

que provam que o milagre podia ser crido como indubitável.<br />

A longa duração da enfermidade havia destroçado toda a esperança<br />

de que viesse a ser curado. Esse homem se queixa de que se acha<br />

destituído do antídoto contido na água. Com frequência, tinham<br />

tentado jogar-se à água, porém sem êxito, Não tinha ninguém que<br />

o ajudasse, e isso leva o poder de Cristo a manifestar-se ainda mais<br />

notavelmente. Tal era também a importância da ordem de carregar<br />

seu leito que todos podiam ver claramente que ele fora curado de<br />

nenhuma outra forma senão pela agência de Cristo, pois quando, de<br />

repente, ergueu-se com saúde e forte em todos seus membros em<br />

que fora anteriormente impotente, uma mudança tão súbita era o<br />

que havia de mais próprio para despertar e abalar as mentes de todos<br />

os que a presenciaram.


Capítulo 5 • 205<br />

6. Desejas ser curado? Ele não inquirira a respeito, como se fosse<br />

uma questão duvidosa, mas em parte a fim de acender no homem a<br />

solicitude pelo favor que lhe era oferecido, e em parte para avivar a<br />

atenção das testemunhas que estavam presentes e que, se estivessem<br />

pensando em algo mais, podiam não ter percebido o milagre, como<br />

amiúde sucede em ocorrências repentinas. Por essas duas razões,<br />

fazia-se necessária esta preparação.<br />

7. Não tenho ninguém. Este homem enfermo faz o que quase todos<br />

nós costumamos fazer, pois limita a assistência divina ao molde<br />

de seus próprios conceitos e não se aventura a prometer-se algo mais<br />

além daquilo que ele concebe em sua mente. Cristo perdoa sua debilidade,<br />

e nisto temos um espelho daquela tolerância da qual cada um de<br />

nós tem diariamente experimentado, quando, de um lado, mantemos<br />

nossa atenção fixada nos meios que estão ao nosso alcance, e quando,<br />

do outro lado, contrária à expectativa, ele exibe sua mão, tirando-a de<br />

lugares ocultos e assim nos demonstra o quanto sua bondade vai além<br />

dos tacanhos limites de nossa fé. Além disso, este exemplo deve ensinar-nos<br />

a paciência. Trinta e oito anos eram um longo período, durante<br />

o qual Deus tardou a atender esse pobre homem, e a favorecê-lo desde<br />

o início, dando-lhe o que determinara conferir-lhe. Portanto, por mais<br />

que sejamos mantidos em suspenso, embora gemamos sob nossas<br />

angústias, nunca nos sintamos desencorajados pelo tédio oriundo do<br />

período excessivamente prolongado, pois quando nossas aflições são<br />

excessivamente contínuas, ainda que não visualizemos nenhum término<br />

delas, devemos sempre crer que Deus é um maravilhoso libertador<br />

que, com seu poder, remove facilmente cada obstáculo do caminho.<br />

9. E era sábado. Cristo estava bem ciente da profunda ofensa que<br />

imediatamente se geraria quando vissem um homem andando com<br />

uma carga nas costas, porquanto a lei proíbe expressamente carregar<br />

qualquer peso durante o sábado [Jr 17.21]. Mas havia duas razões por<br />

que Cristo, desafiando esse risco, decide fazer essa exibição: primeiro,<br />

para que o milagre fosse mais extensamente conhecido; e, segundo,<br />

para que desse ocasião e, por assim dizer, abrisse caminho para um


206 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

maravilhoso discurso que pronunciou logo imediatamente a seguir. De<br />

tão grande importância era o conhecimento desse milagre, que ele entendeu<br />

ser seu dever ousadamente fazer pouco da ofensa sentida pelo<br />

povo, particularmente porque ele tinha em mãos uma justa defesa,<br />

por meio da qual, ainda que não pacificasse os ímpios, refutava sobejamente<br />

suas calúnias.<br />

Devemos, pois, observar esta regra: que embora o mundo inteiro<br />

ardentemente se enfureça, devemos proclamar a glória de Deus e celebrar<br />

suas obras, até onde sua glória requeira que se faça conhecida.<br />

Tampouco devemos ficar intranquilos ou sentir-nos desencorajados,<br />

embora nossos labores não sejam imediatamente bem sucedidos,<br />

contanto que tenhamos em vista o objetivo que já declarei e não avancemos<br />

além dos limites de nosso ofício.<br />

[5.10-16]<br />

Os judeus, pois, disseram àquele que fora curado: É sábado,<br />

não te é lícito carregar teu leito. Ele lhes respondeu: Aquele<br />

que me deu saúde me disse: Toma teu leito e anda. Eles, pois,<br />

lhe perguntaram: Quem é o homem que te disse: Toma teu leito<br />

e anda? E o que fora curado não sabia quem era ele; porque<br />

Jesus se havia retirado, em razão da grande multidão que havia<br />

naquele lugar. 4 Depois dessas coisas Jesus o encontrou no<br />

templo, e lhe disse: Eis que já estás recuperaste a saúde; não<br />

peques mais, para que não te suceda coisa pior. O homem se<br />

foi, e disse aos judeus que fora Jesus quem lhe devolvera a<br />

saúde. E, por essa razão, os judeus perseguiram a Jesus e procuravam<br />

matá-lo, porque fazia essas coisas no sábado.<br />

10. É sábado. O dever de todos era manter a santificação do sábado,<br />

e por isso com razão e propriedade acusaram o homem. Mas<br />

quando a justificativa do homem não lhes satisfaz, então já começam<br />

4 “Car Jesus s’estoit escoulé de la multitude qui estoit en ce lieu-la” – “pois Jesus se<br />

esquivara da multidão que estava naquele lugar.”


Capítulo 5 • 207<br />

a cometer erros. Quando a razão era desconhecida, ele tinha de ser<br />

inocentado. Como já dissemos, transportar uma carga era uma violação<br />

do sábado. Cristo, porém, que pôs a carga em seus ombros, o<br />

desobriga por sua própria autoridade. Somos, pois, instruídos, com<br />

este exemplo, a evitar todo juízo precipitado, até que a razão de cada<br />

ato seja plenamente conhecida. Tudo o que contradiz a Palavra de<br />

Deus merece ser condenado sem hesitação. Mas como amiúde sucede<br />

haver equívocos nesta matéria, devemos antes inquirir modesta e calmamente,<br />

para que nossa decisão seja íntegra e sóbria. Porque, visto<br />

que os judeus, afetados por disposições perversas, não têm paciência<br />

de inquirir, fecham a porta contra o bom senso e a moderação. Porém,<br />

se tivessem permitido ser instruídos, não só a ofensa teria sido removida,<br />

mas teriam sido conduzidos ainda mais, com grande vantagem,<br />

ao conhecimento do evangelho.<br />

Agora percebemos o quanto os judeus estavam equivocados. A<br />

razão é porque não admitiam uma defesa racional. Eis a defesa: aquele<br />

que fora curado replica que nada mais fez senão o que ordenara<br />

àquele que teve poder e autoridade para ordenar, pois, ainda que não<br />

soubesse quem era Cristo, todavia estava convencido de que ele fora<br />

enviado por Deus, porque recebera uma prova de seu divino poder e<br />

descobrira que Cristo estava revestido com autoridade, de modo que<br />

seria seu dever obedecer-lhe. Mas isto parecia ser digno de reprovação,<br />

a saber, que um milagre o afastasse da obediência à lei. Aliás,<br />

confesso que o argumento que o homem emprega, ao discutir com<br />

eles, não é suficientemente forte, contudo os outros estão errados por<br />

duas razões: que não consideravam que esta é uma obra extraordinária<br />

de Deus, nem suspendem seu juízo até que tenham ouvido um<br />

profeta de Deus que está munido com a palavra.<br />

13. E aquele que fora curado não sabia quem era ele. Certamente<br />

que a intenção de Cristo não era que a glória de uma obra tão<br />

incomensurável passasse desapercebidamente, mas queria que a<br />

mesma se tornasse geralmente conhecida antes que ele o reconhecesse<br />

como sendo o Autor dela. Ele, pois, retirou-se por algum tempo


208 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

para que os judeus tivessem a liberdade de julgar o próprio fato sem<br />

referência a qualquer pessoa. E disto aprendemos que a cura desse<br />

homem não pode ser atribuída a sua fé, visto que mesmo depois de ter<br />

sido curado ele não reconhece seu Médico. E, não obstante, quando<br />

recebe a ordem de carregar seu leito, isso parece ter sido feito pela<br />

diretriz da fé. Para mim pessoalmente, visto não negar que havia nele<br />

algum movimento secreto de fé, afirmo que, à luz do que se segue, é<br />

claro que ele não tinha a doutrina sólida ou a clara luz sobre a qual ele<br />

pudesse confiar.<br />

14. Depois dessas coisas, Jesus o encontrou. Estas palavras mostram<br />

ainda mais claramente que, quando Cristo se ocultou por algum<br />

tempo, não era com o intuito de fazer com que perecesse a lembrança<br />

da bondade que ele conferira, pois aparece em público de sua livre iniciativa.<br />

Simplesmente, tencionava fazer com que a obra viesse a lume<br />

primeiro, e que ele depois declarasse ser seu Autor.<br />

Esta passagem contém uma doutrina de imensa utilidade, pois<br />

quando Cristo diz: recupera a saúde, sua intenção é ensinar-nos que,<br />

se não formos incitados à gratidão, fazemos um uso impróprio dos<br />

dons de Deus. Cristo não repreende o homem por aquilo que ele mesmo<br />

lhe dera, mas apenas o lembra de que ele fora curado a fim de<br />

que, recordando o favor que recebera, passasse a servir a Deus, seu<br />

Libertador, durante toda sua vida. Portanto, como Deus, por meio de<br />

açoites, instrui e impele-nos ao arrependimento, assim nos convida<br />

a esse exercício por meio de sua bondade e paciência. E deveras é o<br />

desígnio universal, tanto de nossa redenção quanto de todos os dons<br />

de Deus, manter-nos inteiramente devotados a ele. Ora, isso não pode<br />

ser alcançado a menos que a lembrança do castigo passado permaneça<br />

impressa na mente, e a menos que aquele que obteve o perdão se<br />

exercite nessa meditação ao longo de toda sua vida.<br />

Esta admoestação nos ensina ainda que todos os males que suportamos<br />

têm de ser imputados a nossos pecados, pois as aflições<br />

dos homens não são acidentais, mas são tantos açoites quanto é nossa<br />

carência de disciplina. Primeiramente, devemos reconhecer a mão de


Capítulo 5 • 209<br />

Deus que nos golpeia, e não imaginar que nossas angústias tem como<br />

origem uma cega impetuosidade da sorte, e em seguida atribuímos<br />

essa honra ao Deus que, sendo nosso Pai cheio de bondade, não nutre<br />

nenhum prazer em nossos sofrimentos, e por isso não nos trata com<br />

dureza do que se sente ofendido por nossos pecados. Ao responsabilizar<br />

o homem de não pecar mais, ele não lhe impõe a viver isento<br />

de todo pecado, mas fala em termos comparativos quanto a sua vida<br />

anterior, pois Cristo o exorta de agora em diante cultivar um coração<br />

quebrantado e a não fazer o que outrora fazia.<br />

Para que não te sobrevenha algo pior. Se não continua nos fazendo<br />

o bem por meio dos açoites com que amorosamente nos disciplina,<br />

como o mais bondoso dos pais castigaria seus filhos tenros e frágeis,<br />

ele se vê constrangido a adotar um novo caráter, e um caráter que,<br />

por assim dizer, não lhe é natural. Ele, pois, empunha o chicote para<br />

subjugar nossa obstinação, segundo nos ameaça em sua lei [Lv 26.14;<br />

Dt 28.15; Sl 32.9]. E deveras em toda a Escritura nos deparamos com<br />

passagens do mesmo gênero. Daí, quando formos incessantemente<br />

apertados por nossas aflições, associemo-las à nossa própria obstinação,<br />

pois não só nos assemelhamos a cavalos e mulas, mas somos<br />

como bestas selvagens que não se deixam domesticar. Portanto, não<br />

há motivo para perplexidade se Deus faz uso das mais severas disciplinas<br />

para nos ferir, por assim dizer, com marretas, quando o castigo<br />

mais moderado já não surte efeito, pois é próprio que aqueles que não<br />

suportam ser corrigidos tenham de ser feridos por golpes mais fortes.<br />

Em suma, o uso de castigos visa a tornar-nos mais cautelosos no<br />

futuro. Se depois do primeiro e do segundo golpes ainda mantivermos<br />

o coração obstinadamente empedernido, ele nos golpeará sete vezes<br />

mais severamente. Se depois de demonstrarmos sinais de arrependimento<br />

por algum tempo, e imediatamente voltarmos à nossa disposição<br />

natural, ele castiga mais ferinamente essa leviandade, a qual prova nosso<br />

esquecimento e que estamos dominados pela indolência.<br />

Uma vez mais, na pessoa desse homem, é importante observarmos<br />

com que amabilidade e condescendência o Senhor nos suporta.


210 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Suponhamos que o homem estivesse chegando à idade senil, em cujo<br />

caso ele teria sido visitado pela enfermidade no primor da vida, e<br />

talvez tivesse sido atingido por ela desde a mais tenra infância; e,<br />

agora, consideremos quão grave ter-lhe este castigo sido contínuo<br />

ao longo de tantos anos. É certo que não podemos reprovar a Deus<br />

com excessiva severidade em deixar esse homem em prolongado<br />

enfraquecimento e mesmo quase morto; e. por isso, quando somos<br />

castigados mais extensamente, aprendamos que é porque o Senhor,<br />

em sua infinita bondade, modera o extremo rigor dos castigos que<br />

teríamos bem merecido. 5<br />

Aprendamos ainda que nenhuma disciplina é extremamente rigorosa<br />

e severa, ao ponto de o Senhor não poder-lhes fazer adições<br />

sempre que ele queira. Tampouco se pode duvidar que os homens<br />

desventurados, através de suas queixas perversas, amiúde apliquem a<br />

si mesmos torturas terríveis e chocantes, quando asseveram não ser<br />

possível suportar angústias mais pesadas, e que Deus não pode enviar-lhes<br />

algo mais. 6 “Não está isso guardado comigo, selado em meus<br />

tesouros?” [Dt 32.34], diz o Senhor.<br />

Devemos também observar quão morosos somos em derivar<br />

benefícios das disciplinas divinas, pois se a exortação de Cristo não<br />

fosse supérflua, poderíamos aprender dela que a alma desse homem<br />

não tinha ainda sido plenamente purificada de todo vício. Aliás, as<br />

raízes dos vícios são profundas demais em nós para poderem ser eliminadas<br />

em um só dia ou em poucos dias, e a cura das enfermidades<br />

da alma é difícil demais para ser eliminada por antídotos aplicados por<br />

tão pouco tempo.<br />

15. O homem se foi. Nada estava mais distante de sua intenção<br />

do que transformar Cristo no alvo do ódio deles, e nada estava mais<br />

afastado de sua expectativa do que levá-los a se precipitarem tão<br />

furiosamente contra Cristo. Sua intenção, pois, era pia; pois deseja-<br />

5 “Que nous aurions bien meritee.”<br />

6 “Quand ils disent qu’il n’est pas possible d’endurer plus grand mal, et que Dieu ne leur<br />

en scauroit envoyer davantage.”


Capítulo 5 • 211<br />

va prestar a seu Médico a honra que com justiça ele bem merecia.<br />

Os judeus, em contrapartida, exibem seu veneno, não só acusando<br />

a Cristo de haver violado o sábado, mas também em irromper com<br />

extrema crueldade.<br />

[5.17-19]<br />

Jesus, porém, lhes respondeu: Meu Pai trabalha até agora, e eu<br />

trabalho. Por essa razão, pois, os judeus buscavam ainda mais<br />

matá-lo, porque não só transgredia o sábado, mas também<br />

chamava Deus seu Pai, fazendo-se igual a Deus. Jesus, pois, respondeu,<br />

e lhes disse: Em verdade, em verdade vos digo: O Filho<br />

não pode fazer coisa alguma de si mesmo, mas o que vir o Pai<br />

fazer; tudo quanto ele faz, isso também o Filho igualmente o faz.<br />

17. Meu Pai trabalha até agora. É preciso que vejamos bem que<br />

tipo de defesa Cristo emprega. Ele não replica dizendo que a lei de<br />

guardar o sábado era temporária, e que a mesma deve agora ser abolida;<br />

mas, ao contrário, mantém que ele não violara a lei, porque esta<br />

é uma obra divina.<br />

É verdade que a cerimônia do sábado era uma parte das sombras<br />

da lei, 7 e que Cristo a leva a um termo final com sua vinda, como o<br />

demonstra Paulo [Cl 2.16], mas a presente questão não se volve a este<br />

ponto. Pois os homens são ordenados a absterem-se somente de suas<br />

próprias obras; e, consequentemente, a circuncisão – que é uma obra<br />

divina, e não humana – não entra em conflito com o sábado.<br />

Eis no que Cristo insiste: que o santo repouso que estava ordenado<br />

pela lei de Moisés não é perturbado quando nos envolvemos nas<br />

obras de Deus. 8 E, por essa razão, ele justifica não só sua própria ação,<br />

mas também a ação do homem que carregava seu leito, pois ela era<br />

um apêndice e – como poderíamos dizer – uma parte do milagre, porque<br />

nada mais era do que uma aprovação dele. Além disso, se a ação<br />

7 “Il est bien vray que la ceremonie du Sabbath estoit une partie des ombres de la Loy.”<br />

8 “Quand on s’employe à oeuvres de Dieu.”


212 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

de graças e a publicação da glória divina forem computadas entre as<br />

obras de Deus, não constituía uma profanação do sábado testificar<br />

da graça de Deus durante o dia todo. Mas é primordialmente sobre si<br />

mesmo que Cristo fala, a quem os judeus eram mais hostis. Ele declara<br />

que a saúde do corpo que ele havia restaurado ao homem enfermo é<br />

uma demonstração de seu poder divino. Ele assevera ser o Filho de<br />

Deus, e que age da mesma forma que age seu Pai.<br />

Qual é o uso do sábado, e por quais razões ele foi ordenado, não<br />

discuto agora com mais fôlego. Basta para a presente passagem que a<br />

guarda do sábado longe está de interromper ou paralisar as obras de<br />

Deus. Ao contrário, ele dá espaço somente a elas. Pois, por que a lei<br />

ordena aos homens a que se abstenham de suas obras pessoais a fim<br />

de conservar todos seus sentidos livres e ocupados com a realização<br />

das obras de Deus? Consequentemente, aquele que não permite, no<br />

sábado, um livre curso e controle às obras de Deus é não só um falso<br />

expositor da lei, mas impiamente a subverte.<br />

Se alguém contestar dizendo que o exemplo de Deus é mantido<br />

nos homens, para que descansem no sétimo dia, a resposta é fácil. Os<br />

homens não se conformam a Deus neste aspecto, a saber: ele cessou<br />

de trabalhar, porém em abster-se das enfadonhas obras deste mundo e<br />

em aspirar o descanso celestial. O sábado ou descanso de Deus, 9 portanto,<br />

não equivale a ócio, mas consiste na verdadeira perfeição que<br />

traz consigo um tranquilo estado de paz. Tampouco é isso inconsistente<br />

com o que Moisés diz, ou, seja, que Deus pôs termo final a suas obras<br />

[Gn 2.2]; pois sua intenção é dizer que, depois de haver completado<br />

a formação do mundo, Deus consagrou esse dia para que os homens<br />

pudessem empregá-lo na meditação sobre suas obras.<br />

No entanto, ele não cessou de sustentar, com seu poder, o mundo<br />

que fizera, governando-o com sua sabedoria, sustentando-o com sua<br />

bondade e regulando todas as coisas de acordo com seu beneplácito,<br />

tanto no céu quanto na terra. Em seis dias, pois, completou-se a<br />

9 “Le Repos de Dieu.”


Capítulo 5 • 213<br />

criação do mundo, mas a administração dele ainda prossegue, e Deus<br />

incessantemente trabalha na manutenção e preservação de sua ordem,<br />

como Paulo nos informa que: nele vivemos, nos movemos e existimos<br />

[At 17.28], e Davi nos informa que todas as coisas permanecerão enquanto<br />

o Espírito de Deus as sustentar, e que desaparecerão assim que<br />

ele retirar seu sustento [Sl 104.29, 30]. Tampouco é somente através de<br />

uma providência geral que o Senhor sustenta o mundo que ele criou,<br />

senão que organiza e regula cada parte dele e, mais especialmente,<br />

através de sua proteção ele conserva e guarda os crentes a quem ele<br />

tem recebido sob seu cuidado e proteção.<br />

E eu também trabalho. Deixando a defesa da presente causa,<br />

Cristo agora explica o propósito e uso do milagre, a saber: que, por<br />

meio dele, ele viesse a ser reconhecido como o Filho de Deus, pois<br />

o objetivo que ele tinha em vista em todas suas palavras e atos era<br />

mostrar que ele era o Autor da salvação. O que agora reivindica para<br />

si pertence a sua Deidade, como o apóstolo também diz que ele sustenta<br />

todas as coisas por sua poderosa vontade [Hb 1.3]. Mas quando<br />

testifica ser ele Deus, significa que, sendo manifestado na carne, ele<br />

pode realizar o ofício de Cristo; e quando afirma que veio do céu, é<br />

primordialmente com o propósito de nos informar com que propósito<br />

ele desceu à terra.<br />

18. Por esta razão, pois, os judeus procuravam ainda mais matá-<br />

-lo. Esta defesa longe estava de apaziguar a fúria deles. Ficaram ainda<br />

mais enraivecidos. Tampouco ele ignorava sua malignidade e perversidade<br />

e empedernida obstinação, porém tencionava primeiro extrair<br />

proveito para alguns de seus discípulos que então estavam presentes,<br />

e em seguida fazer pública exibição da incurável malícia deles. Por<br />

meio de seu exemplo, porém, ele nos ensinou que jamais devemos render-nos<br />

à fúria dos homens maus, e, sim, tudo fazer para mantermos a<br />

verdade de Deus, até onde a necessidade o exigir, ainda que o mundo<br />

inteiro se oponha e murmure. E nem há razão para que os servos de<br />

Cristo se sintam mal por não ganhar todos os homens como era de seu<br />

desejo, visto que Cristo mesmo nem sempre o conseguiu. E não carece


214 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

que fiquemos surpresos se, à medida que a glória de Deus for mais<br />

plenamente exibida, Satanás também se enfureça ainda mais violentamente<br />

em seus membros e instrumentos.<br />

Porque ele não só transgrediu o sábado. Quando o evangelista<br />

diz que os judeus eram hostis a Cristo por haver ele transgredido o sábado,<br />

ele fala segundo a opinião que formara, pois já demonstrei que<br />

a situação do caso era totalmente o oposto. A principal causa de sua<br />

fúria era que ele mesmo denominou Deus de meu Pai. E certamente<br />

Cristo pretendia que se entendesse que Deus era seu Pai em um sentido<br />

peculiar, de modo a distinguir-se da categoria ordinária dos demais<br />

homens. Ele se fez igual a Deus quando reivindicou para si o direito<br />

de continuar trabalhando, e Cristo longe está de negar isso, porque o<br />

confirma ainda mais distintamente. Isso refuta a demência dos arianos<br />

que reconheciam que Cristo é Deus, porém não criam que ele fosse<br />

igual ao Pai, como se na essência única e simples de Deus pudesse<br />

haver alguma desigualdade.<br />

19. Jesus, portanto, respondeu. Observemos o que eu já disse:<br />

que Cristo longe está de defender-se do que os judeus asseveravam,<br />

ainda que a intenção deles era constrangê-lo de calúnia, mantém ainda<br />

mais francamente como sendo verdadeiro. Primeiramente, ele insiste<br />

neste ponto: a obra na qual os judeus matutavam era uma obra divina,<br />

para fazê-los entender que estariam lutando contra Deus mesmo se<br />

persistissem em condenar o que necessariamente deve ser-lhe atribuído.<br />

Antigamente, esta passagem foi debatida de várias maneiras<br />

entre os Pais ortodoxos e os arianos. Ário inferiu dela que o Filho é<br />

inferior ao Pai porque por si só ele nada pode fazer. Os Pais replicaram<br />

que essas palavras denotam nada mais que a distinção da pessoa, de<br />

modo que se soubesse que Cristo procede do Pai, e no entanto ele não<br />

é privado do poder intrínseco de agir. Mas ambos os partidos estavam<br />

equivocados. Pois o discurso não se relaciona com a simples deidade<br />

de Cristo, e essas afirmações que veremos imediatamente não se relacionam<br />

simplesmente e por si só com o Verbo eterno de Deus, mas<br />

se aplicam somente ao Filho de Deus, enquanto manifestado na carne.


Capítulo 5 • 215<br />

Portanto, mantenhamos Cristo diante de nossos olhos, como ele<br />

foi enviado ao mundo pelo Pai para ser o Redentor. Os judeus não<br />

viam nele nada mais elevado do que a natureza humana, e por isso ele<br />

argumenta dizendo que, ao curar o homem enfermo, não fez isso pelo<br />

uso de poder humano, mas mediante o poder divino que se mantinha<br />

oculto sob sua carne visível. A situação do caso é esta. Visto que eles,<br />

limitando sua atenção à aparência da carne, desprezavam a Cristo, ele<br />

os convida a erguer sua vista mais alto e contemplar a Deus. O discurso<br />

como um todo deve ser atribuído a este contraste: que eles erram<br />

flagrantemente pensando que estão tratando com um homem mortal,<br />

quando acusam a Cristo de [realizar] obras que são verdadeiramente<br />

divinas. Eis sua razão para afirmar de forma tão categórica que nesta<br />

obra não há diferença entre ele e seu Pai.<br />

[5.20-24]<br />

Porque o Pai ama o Filho, e mostra-lhe todas as coisas que ele<br />

faz; e lhe mostrará coisas ainda maiores do que estas, para<br />

que vos maravilheis. Porque como o Pai ressuscita os mortos<br />

e os vivifica, assim também o Filho vivifica a quem ele quer.<br />

Pois o Pai a ninguém julga, porém confiou ao Filho todo juízo;<br />

para que todos os homens honrem ao Filho como honra ao Pai:<br />

aquele que não honra o Filho não honra o Pai que o enviou.<br />

Em verdade, em verdade eu vos digo: Aquele que ouvir minha<br />

palavra e crer naquele que me enviou tem a vida eterna, e não<br />

entrará em condenação, mas passou da morte para a vida.<br />

20. Porque o Pai ama o Filho. Todo o mundo pode perceber quão<br />

desarmoniosa e artificial é a exposição desta passagem dada pelos<br />

Pais. “Deus”, dizem eles, “se ama no Filho.” Esta afirmação, porém, se<br />

aplica maravilhosamente a Cristo como vestido com carne, que ele é<br />

amado pelo Pai. Aliás, sabemos que é por meio deste excelente título<br />

que ele se distingue tanto dos anjos quanto dos homens: Este é o meu<br />

Filho amado [Mt 3.17]. Pois sabemos que Cristo foi escolhido para que


216 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

todo o amor de Deus nele habitasse e para que [esse amor] pudesse<br />

fluir dele para nós como de uma fonte plenária.<br />

Cristo é amado pelo Pai como a Cabeça da Igreja. Ele mostra que<br />

esse amor é a causa pela qual o Pai faz todas as coisas por meio de<br />

suas mãos. Pois quando ele diz que o Pai o ama, esta expressão deve<br />

ser entendida como a denotar comunicação, como se quisesse dizer:<br />

“Visto que o Pai me deu seu coração, assim ele derramou sobre mim<br />

seu poder para que a glória divina resplandecesse em minhas obras<br />

e – o que é ainda mais glorioso! – para que os homens não busquem<br />

nada divino senão o que encontram em mim.” E deveras será debalde<br />

buscar o poder de Deus fora de Cristo.<br />

Ele lhe mostrará obras ainda maiores que estas. Com estas palavras,<br />

ele quer dizer que o milagre que realizara na cura do homem<br />

não era a maior das obras que lhe fora confiada pelo Pai, pois ele tinha<br />

dado apenas um leve sabor daquela graça da qual ele é propriamente<br />

tanto Ministro quanto Autor; isto é, restaurar a vida ao mundo.<br />

Para que vos maravilheis. Ao acrescentar estas palavras, ele<br />

indiretamente os acusa de ingratidão, menosprezando tão eminente<br />

demonstração do poder de Deus, como se quisesse dizer: “Ainda que<br />

sejais embotados e estúpidos, todavia as obras que Deus mais tarde<br />

realizará por meu intermédio arrebatará, ainda que relutantemente,<br />

vossa admiração”. Não obstante isso parece não haver se cumprido,<br />

pois sabemos que vendo, não viram, como Isaías também diz que os<br />

réprobos são cegos, embora envolvidos pela luz de Deus. Minha resposta<br />

é que Cristo não fala agora da disposição deles, mas apenas<br />

esboça uma sugestão quanto ao esplendor da demonstração que mais<br />

tarde daria de que ele era o Filho de Deus.<br />

21. Porque como o Pai ressuscita os mortos. Aqui ele faz um sumário<br />

do ponto de vista da natureza do ofício que lhe fora dado pelo<br />

Pai, pois ainda que pareça especificar uma só classe, no entanto é uma<br />

doutrina geral na qual ele se declara como sendo o Autor da vida. Ora,<br />

a vida contém em si não só a justiça, mas todos os dons do Espírito<br />

Santo e cada parte de nossa salvação. E certamente este milagre deve


Capítulo 5 • 217<br />

ter sido uma prova tão extraordinária do poder de Cristo, ao ponto de<br />

produzir este fruto comum, isto é, a abertura da porta ao evangelho.<br />

Devemos observar ainda de que maneira Cristo nos outorga vida,<br />

porquanto ele nos encontros todos mortos, e por isso se fazia necessário<br />

começar com a ressurreição. Não obstante, quando anexa estas<br />

palavras, ressuscitar e vivificar, ele não usa linguagem supérflua, pois<br />

não teria sido suficiente que fôssemos resgatados da morte se Cristo<br />

não houvera plena e perfeitamente restaurado a vida em nós. Também<br />

não fala desta vida como sendo outorgada a todos indiscriminadamente,<br />

pois ele diz que dá a vida a quem ele quer, com o quê ele quer dizer<br />

que confere esta graça especialmente a determinadas pessoas, e a ninguém<br />

mais, isto é, aos eleitos.<br />

22. Pois o Pai a ninguém julga. Ele gora declara com mais clareza<br />

a verdade geral de que o Pai governa o mundo na pessoa do Filho e<br />

exerce domínio através de suas mãos. Pois o evangelista emprega a<br />

palavra juízo, em conformidade com o idioma hebraico, para denotar<br />

autoridade e poder. Agora percebemos o equivalente do que se afirma<br />

aqui: que o Pai deu ao Filho o reino para que ele pudesse governar céu<br />

e terra em conformidade com seu beneplácito.<br />

Mas poderia parecer grande absurdo o fato de que o Pai, cedendo<br />

seu direito de governar, permaneça inativo no céu, como uma pessoa<br />

privada. A resposta é fácil. Isso é expresso com respeito tanto a Deus<br />

quanto aos homens, pois nenhuma mudança ocorreu no Pai quando<br />

ele designou Cristo como o supremo Rei e Senhor do céu e da terra,<br />

porquanto ele está no Filho e opera nele. Mas visto que, quando desejamos<br />

chegar a Deus, todos nossos sentidos imediatamente fracassam,<br />

Cristo é posto diante de nossos olhos como uma imagem viva do Deus<br />

invisível. Não há razão, portanto, por que devamos labutar sem qualquer<br />

propósito em explorar os segredos do céu, visto que Deus provê<br />

para nossa fraqueza ao revelar sua intimidade na pessoa de Cristo.<br />

Mas, em contrapartida, sempre que a inquirição concernente ao governo<br />

do mundo, a nossa própria condição, à proteção celestial de<br />

nossa salvação, aprendamos a dirigir nossos olhos exclusivamente a


218 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Cristo, quando todo poder lhe é confiado [Mt 28.18], e em sua face<br />

Deus o Pai, que de outra forma teria permanecido oculto e à distância,<br />

se nos manifesta para que a majestade de Deus, sem véu, não nos consuma<br />

por seu inconcebível fulgor.<br />

23. Para que todos os homens honrem o Filho. Esta sentença<br />

confirma suficientemente a sugestão que delineei um pouco antes, a<br />

saber: que quando lemos que Deus reina na pessoa de Cristo, isso não<br />

significa que ele repousa no céu, como reis indolentes costumam fazer,<br />

mas porque em Cristo ele manifesta seu poder e se revela presente.<br />

Pois que outro é o significado destas palavras: para que os homens<br />

honrem o Filho, senão que o Pai deseja ser reconhecido e adorado no<br />

Filho? Portanto, nosso dever é buscar a Deus o Pai em Cristo, contemplar<br />

seu poder em Cristo e adorá-lo em Cristo. Porque, como segue<br />

imediatamente, aquele que não honra o Filho priva a Deus da honra<br />

que se lhe deve.<br />

Todos admitem que devemos adorar a Deus, e tal sentimento, que<br />

é natural em nós, está profundamente arraigado em nossos corações,<br />

de modo que ninguém absolutamente ousa recusar dar a Deus a honra<br />

que se lhe deve, não obstante as mentes humanas se perdem em<br />

transviar-se do caminho em busca de Deus. Daí, tantas são as pretensas<br />

divindades, tantos são modos perversos de culto. Portanto, jamais<br />

acharemos o Deus verdadeiro senão em Cristo, tampouco o adoraremos<br />

corretamente senão beijando o Filho, como nos informa Davi [Sl<br />

2.12], pois, como <strong>João</strong> alhures declara, aquele que não tem o Filho não<br />

tem o Pai [1Jo 2.23].<br />

Maometanos e judeus de fato adornam com títulos belos e magnificentes<br />

o Deus a quem adoram. Porém, é preciso ter em mente que o<br />

nome de Deus, quando separado de Cristo, nada mais é do que uma vã<br />

imaginação. Quem quer, pois, que deseje ter seu culto aprovado pelo<br />

Deus verdadeiro, que não se desvie de Cristo. Tampouco era diferente<br />

com os Pais sob a lei, pois ainda que vissem a Cristo obscuramente em<br />

meio às sombras, todavia Deus jamais se lhes revelou fora de Cristo.<br />

Mas agora, visto que Cristo já se manifestou na carne e já determinou


Capítulo 5 • 219<br />

ser Rei sobre nós, o mundo inteiro deve curvar seus joelhos diante<br />

dele, a fim de obedecer a Deus, pois o Pai, havendo-o feito sentar-se<br />

a sua destra, aquele que forma uma concepção de Deus destituída de<br />

Cristo aposta dele.<br />

24. Aquele que ouve minha palavra. Aqui se descreve a forma e<br />

a maneira de honrar a Deus, para que ninguém pense que ela consista<br />

unicamente de alguma realização externa ou de cerimônias frívolas.<br />

Pois a doutrina do evangelho se assemelha ao cetro de Cristo, por<br />

meio do qual ele governa os crentes que o Pai lhe fez sujeitos. E esta<br />

definição é eminentemente digna de observação. Nada é mais comum<br />

do que uma falsa profissão do Cristianismo. Pois, inclusive os papistas,<br />

os quais são os mais inveterados inimigos de Cristo, vangloriam-se<br />

da maneira mais pretensiosa de seu nome. Aqui, porém, Cristo não demanda<br />

de nós qualquer outra honra senão a obediência devida a seu<br />

evangelho. Daí se segue que toda a honra que os hipócritas concedem<br />

a Cristo outra coisa não é senão o ósculo de Judas, por meio do qual<br />

ele traiu seu Senhor. Ainda que centenas de vezes o chamem Rei, todavia<br />

o privam de seu reino e de todo seu poder, quando não exercitam<br />

fé no evangelho.<br />

Para a vida eterna. Com estas palavras ele igualmente enaltece o<br />

fruto da obediência, para que sejamos mais dispostos a concretizá-la.<br />

Pois quem seria tão empedernido ao ponto de não se submeter voluntariamente<br />

a Cristo, quando o galardão da vida eterna lhe é garantido?<br />

E, no entanto, vemos quão poucos há a quem Cristo conquista para si<br />

através de sua tão intensa bondade. Tão grande é nossa depravação<br />

que preferimos antes perecer de nossa livre iniciativa do que render-<br />

-nos à obediência do Filho de Deus, para que sejamos salvos por sua<br />

graça. Portanto, ambos os elementos estão ali incluídos por Cristo: o<br />

espólio do devoto e sincero culto que ele requer de nós, bem como<br />

o método pelo qual ele nos restaura à vida. Pois não seria suficiente<br />

entender o que ele outrora ensinou, a saber: que ele veio ressuscitar os<br />

mortos, a menos que também conhecêssemos a maneira como ele nos<br />

restaura à vida.


220 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Agora, ele afirma que a vida se obtém por meio de ouvir sua palavra,<br />

e pela palavra ouvir ele quer dizer a fé, como imediatamente em<br />

seguida ele declara. A fé, porém, tem sua sede não na audição, mas no<br />

coração. Donde a fé deriva tão grande poder, já explicamos previamente.<br />

Devemos considerar sempre o que é que o evangelho nos oferece,<br />

pois não carece que nos sintamos surpresos se aquele que recebe a<br />

Cristo com todos seus méritos seja reconciliado com Deus e fique isento<br />

da condenação da morte, e que aquele que tiver recebido o dom do<br />

Espírito Santo é revestido com a justiça celestial, para que possa andar<br />

em novidade de vida [Rm 6.6].<br />

A sentença adicionada, crê naquele que o enviou, serve para confirmar<br />

a autoridade do evangelho. Quando Cristo testifica que veio de<br />

Deus e não foi inventado por homens, como em outro lugar diz que o<br />

que ele fala não procede de si mesmo, mas lhe foi confiado pelo Pai [Jo<br />

7.16; 14.10].<br />

E não entrará em condenação. Há aqui um contraste implícito<br />

entre a culpa a que todos naturalmente somos passíveis e a quitação<br />

incondicional que granjeamos através de Cristo. Pois se todos não<br />

fôssemos passíveis de condenação, a que propósito serviria serem<br />

isentados dela os que creem em Cristo? O significado, pois, é que escapamos<br />

do perigo da morte porque somos isentados dela através da<br />

graça de Cristo; e, por isso, ainda que Cristo nos santifique e nos regenere<br />

por intermédio de seu Espírito para novidade de vida, contudo<br />

aqui ele menciona especialmente o perdão incondicional dos pecados,<br />

tão-somente no qual consiste a felicidade dos homens. Pois uma pessoa<br />

só começa a viver quando é reconciliada com Deus; e como Deus<br />

nos amaria se ele não perdoar nossos pecados?<br />

Mas passou da morte para a vida. Algumas cópias latinas têm<br />

este verbo no tempo futuro, passará da morte para a vida; mas isso<br />

teve como origem a ignorância e precipitação de alguma pessoa que,<br />

não entendendo a intenção do evangelista, assumiu mais liberdade<br />

do que deveria ter assumido. Pois a palavra grega, μεταβέβηκε (passou)<br />

não tem qualquer ambiguidade. Não há impropriedade em dizer


Capítulo 5 • 221<br />

que já passamos da morte para a vida; pois a semente de vida incorruptível<br />

[1Pe 1.23] reside nos filhos de Deus e já se acham sentados<br />

na glória celestial com Cristo por meio da esperança [Cl 3.3] e já têm<br />

o reino estabelecido em seu íntimo [Lc 17.21]. Pois ainda que sua<br />

vida esteja oculta, por essa causa não deixam de possuí-la pela fé; e<br />

ainda que estejam cercados de todos os lados, pela fé não deixam de<br />

desfrutar de calma, eles sabem que estão em perfeita segurança pela<br />

proteção de Cristo.<br />

Todavia, lembremo-nos de que os crentes estão agora em vida<br />

de tal maneira que sempre levam consigo a causa da morte; o Espírito,<br />

porém, que em nós habita, é vida, o qual por fim destruirá os<br />

resquícios da morte, pois é verdadeira a declaração de Paulo, que a<br />

morte é o último inimigo que será destruído [1Co 15.26]. E deveras esta<br />

passagem nada contém que se relacione com a completa destruição<br />

da morte, nem da inteira manifestação da vida. Mas ainda que a vida<br />

apenas tivesse início em nós, Cristo declara que os crentes estão tão<br />

seguros de obtê-la, que não devem recear a morte. E não carece que<br />

fiquemos surpresos com isso, visto que estamos unidos àquele que é<br />

a inexaurível fonte de vida.<br />

[5.25-29]<br />

Em verdade, em verdade eu vos digo, que a hora vem e já chegou,<br />

quando os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os<br />

que a ouvirem viverão. Pois como o Pai tem vida em si mesmo,<br />

assim também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo. E<br />

lhe deu poder para também exercer juízo, porque é o Filho do<br />

homem. 10 Não vos maravilheis disto; por a hora vem quando<br />

todos quantos estiverem nos túmulos ouvirão sua voz, os que<br />

tiverem feito o bem para a ressurreição da vida; e os que tiverem<br />

feito o mal, para a ressurreição da condenação.<br />

10 “Pource qu’il est (ou, entant qu’il est) le Fils de l’homme” – “porque ele é (ou, até ao ponto<br />

em que ele é) o Filho do homem.”


222 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

25. Em verdade, em verdade. Quando o evangelista representa<br />

o Filho de Deus a jurar com tanta frequência em referência a nossa<br />

salvação, daí percebermos, em primeiro lugar, quão solicitamente ele<br />

deseja nosso bem-estar, e, em seguida, quão grande importância é que<br />

a fé evangélica seja profundamente fixada e totalmente confirmada.<br />

A afirmação tem de fato alguma aparência de credibilidade, quando<br />

somos informados que esse é o efeito da fé de que Cristo fala. Por isso,<br />

ele confirma, por meio de juramento, que a voz de seu evangelho tem<br />

tal poder de comunicar vida ao ponto de poderosamente ressuscitar<br />

os mortos.<br />

Em geral se concorda que ele fala da morte espiritual, pois os que<br />

a aplicam a Lázaro [Jo 11.44] e ao filho da viúva de Naim [Lc 7.15],<br />

bem como a casos semelhantes, são refutados pelo que vem a seguir.<br />

Primeiro, Cristo mostra que todos nós estamos mortos antes de sermos<br />

vivificados; e daí é evidente que toda a natureza do homem pode<br />

se concretizar com respeito à apropriação da salvação. Quanto os<br />

papistas desejam estabelecer seu livre-arbítrio, comparam-no ao samaritano<br />

a quem os salteadores deixaram semimorto na estrada [Lc<br />

10.30], como se com a fumaça de uma alegoria pudessem obscurecer<br />

uma afirmação tão clara, por meio da qual Cristo declara que somos<br />

plenamente condenados à morte. E deveras, como já vimos, visto que<br />

a revolta do primeiro homem, alienado de Deus através do pecado,<br />

todos quantos não reconhecem que estão esmagados por destruição<br />

eterna, nada mais fazem além de se iludir com vanglórias vazias.<br />

Prontamente reconheço que na alma do homem permanece algum resquício<br />

de vida, pois o entendimento, o juízo e a vontade, em todas<br />

nossas faculdades, são tantas partes da vida. Mas visto que não há<br />

parte alguma que nasce do anseio pela vida eterna, não carece que fiquemos<br />

surpresos se o homem em sua totalidade, no que se relaciona<br />

com o reino de Deus, seja reputado como morto. E essa morte Paulo a<br />

explica mais plenamente quando diz que existimos alienados da razão<br />

pura e sólida do entendimento; que somos inimigos de Deus e opostos<br />

a sua justiça, em cada afeto de nosso coração; que vagueamos nas tre-


Capítulo 5 • 223<br />

vas como pessoas cegas e entregues a ímpias concupiscências [Ef 2.1;<br />

4.17]. Se uma natureza tão corrompida não possui poder para querer a<br />

justiça, segue-se que a vida divina em nós se acha extinta.<br />

E assim a graça de Cristo é uma genuína ressurreição dentre os<br />

mortos. Ora, esta graça nos é conferida pelo evangelho. Não que tanta<br />

energia seja possuída pela voz externa, a qual em muitos casos<br />

fere os ouvidos sem qualquer propósito, mas porque Cristo fala ao<br />

recôndito de nossos corações por seu Espírito, para que recebamos<br />

por meio da fé a vida que nos é oferecida. Pois ele não fala de todos<br />

os mortos sem qualquer discriminação, mas tem em mente só os eleitos,<br />

cujos ouvidos Deus penetra e abre para que recebam a voz de<br />

seu Filho, o qual os restaura à vida. Aliás, Cristo expressamente nos<br />

mantém esta dupla graça através de suas palavras, quando diz: Os<br />

mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que ouvirem, viverão; pois<br />

que mortos ouçam não é menos contrário à natureza do que serem<br />

eles reconduzidos à vida que haviam perdido, e, portanto, ambos<br />

procedem do poder secreto de Deus.<br />

A hora vem, e já chegou. Ele fala em termos tais como de algo<br />

que jamais ocorrera antes; e de fato a publicação do evangelho era<br />

uma nova e súbita ressurreição do mundo. Mas a palavra de Deus não<br />

conferira sempre vida aos homens? Esta pergunta pode ser facilmente<br />

respondida. A doutrina da lei e dos profetas fora dirigida ao povo de<br />

Deus, e consequentemente se destinara mais à preservação da vida<br />

dos que eram os filhos de Deus do que arrancá-los dentre os mortos.<br />

Com o evangelho, porém, se deu o contrário, por meio do qual as<br />

nações, outrora alienadas do reino de Deus, separadas de Deus e privadas<br />

de toda esperança de salvação, foram convidadas a se tornarem<br />

participantes da vida.<br />

26. Pois como o Pai tem vida em si mesmo. Ele mostra donde sua<br />

voz deriva tal eficácia, ou seja, que ele é a fonte da vida, e por meio de<br />

sua voz a faz derramar sobre os homens, pois a vida não nos emanaria<br />

de sua boca se ele não tivesse em si a causa e a fonte dela. Lemos<br />

que Deus possui vida em si mesmo, não meramente porque somente


224 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

ele vive por seu próprio poder inerente, mas porque, possuindo em si<br />

mesmo a plenitude da vida, ele comunica vida a todas as coisas. E isso,<br />

aliás, pertence peculiarmente a Deus, como se expressa: Contigo está<br />

a fonte da vida [Sl 36.9]. Mas visto que a majestade de Deus, estando<br />

muitíssimo afastada de nós, mais parecendo uma fonte desconhecida<br />

e oculta, foi publicamente manifesta em Cristo. Temos assim uma fonte<br />

aberta posta diante de nós, da qual podemos tirar água. O significado<br />

das palavras é este: Deus não quis que a vida ficasse oculta e, por assim<br />

dizer, sepultada em sua existência interior, e por isso a derramou<br />

em seu Filho para que ela nos pudesse fluir dele. Daí, concluirmos que<br />

este título é estritamente aplicado a Cristo, no que diz respeito a sua<br />

manifestação em carne.<br />

27. E lhe deu poder. Ele uma vez mais reitera que o Pai lhe deu<br />

domínio para que tenha pleno poder sobre todas as coisas no céu e na<br />

terra. A palavra ἐξουσία aqui denota autoridade. Juízo é aqui expresso<br />

no sentido de norma e governo, como se dissesse que o Pai o designara<br />

como Rei para governar o mundo e exercer o poder do próprio Pai.<br />

Porque ele é o Filho do homem. Esta razão, que é imediatamente<br />

adicionada, merece ser especificamente analisada, pois significa que<br />

ele se manifestou aos homens adornado com tal magnificência de poder<br />

que pôde comunicar-lhes o que recebera do Pai. Há quem pense<br />

que esta passagem nada mais contém senão o que disse Paulo, a saber:<br />

que Cristo “esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo,<br />

fazendo-se semelhante aos homens, e achado na forma de homem, humilhou-se<br />

a si mesmo, sendo obediente até a morte, e morte de cruz.<br />

Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome<br />

que é sobre todo nome; para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho<br />

dos que estão nos céus e na terra e debaixo da terra” [Fp 2.7-10].<br />

Mas, em minha própria opinião, considero o significado como sendo<br />

mais extenso, ou seja, que Cristo, quanto a ser ele homem, foi designado<br />

pelo Pai para ser o Autor da vida, a fim de não precisarmos ir muito<br />

longe em busca dela. Pois Cristo não a recebeu para si próprio, como<br />

se dela necessitasse, mas a fim de nos enriquecer com suas riquezas.


Capítulo 5 • 225<br />

Podemos sumariar tudo assim: “O que estivera oculto em Deus<br />

revelou-se a nós em Cristo como homem; e a vida, que outrora era inacessível,<br />

é agora posta diante de nossos olhos.” Há quem separa este<br />

argumento de sua conexão imediata, e o anexa à sentença seguinte;<br />

essa, porém, é uma interpretação forçada demais e entra em conflito<br />

com a intenção de Cristo.<br />

28. Não vos maravilheis disto. Poderíamos inclinar-nos a pensar<br />

que ele raciocina inconclusivamente, extraindo da ressurreição final<br />

uma confirmação do que dissera, pois não é um exemplo de maior<br />

poder ressuscitar corpos do que ressuscitar mentes. Eis minha resposta:<br />

não é do fato em si que ele faz a comparação entre o maior e<br />

o menor, mas da opinião dos homens, pois, sendo carnais, nada mais<br />

admiram senão o que é externo e visível. Daí sucede que eles passam<br />

pela ressurreição da alma sem se preocupar muito, enquanto que a<br />

ressurreição do corpo desperta neles grande admiração. Outro efeito<br />

produzido por essa nossa grosseira estupidez é que aquelas coisas<br />

que são percebidas pelos olhos exerce uma influência mais poderosa<br />

em produzir fé do que as que só podem ser recebidas pela fé. Visto<br />

que ele faz menção do último dia, essa limitação – e já chegou – não<br />

é novamente adicionada, mas ele simplesmente declara que o tempo<br />

por fim chegará.<br />

Suscita-se, porém, outra objeção, pois ainda que os crentes aguardem<br />

a ressurreição dos corpos, contudo não podem descansar em seu<br />

conhecimento dela ao ponto de concluir que as almas são agora resgatadas<br />

da morte, visto que os corpos um dia ressuscitarão dos túmulos.<br />

E entre os ímpios, 11 o que seria considerado mais ridículo do que provar<br />

uma coisa desconhecida (para usar um termo comum) por uma<br />

coisa menos conhecida? Eis minha resposta: Cristo aqui se alegra em<br />

seu poder sobre os réprobos, ao ponto de testificar que o Pai lhe confiou<br />

a plena restauração de todas as coisas, como se dissesse: “O que<br />

agora vos digo é que aquilo que já iniciei, um dia concluirei diante de<br />

11 “Des contempteurs de Dieu et incredules” – “com desprezadores de Deus e incrédulos.”


226 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

vossos olhos”. E de fato, quando agora Cristo, mediante a voz de seu<br />

evangelho, vivifica as almas que já estavam submersas em perdição,<br />

esta é uma sorte de preparação para a ressurreição final. Ainda, visto<br />

que ele inclui toda a raça humana, imediatamente faz distinção entre<br />

os eleitos e os réprobos. Tal divisão revela que os réprobos, ao serem<br />

então convocados pela voz de Cristo a apresentar-se para o juízo,<br />

também, pela mesma voz, serão arrastados e obrigados a comparecer<br />

diante de seu tribunal.<br />

Por que, porém, ele menciona somente aqueles que se acham encerrados<br />

nos túmulos, como se os demais não fossem participantes<br />

da ressurreição, quer tenham sido afogados, ou devorados por feras<br />

selvagens, ou reduzidos a cinzas? A resposta é que, como os mortos<br />

comumente são sepultados, pela figura de linguagem denominada<br />

sinédoque, ele emprega uma parte para denotar todos quantos já morreram.<br />

E isso é mais enfático do que se ele simplesmente dissesse os<br />

mortos, pois aqueles a quem a morte já privou da vida e da luz a sepultura<br />

arrebata, por assim dizer, do mundo.<br />

Ouvirão sua voz. A voz do Filho significa o sonido da trombeta,<br />

a qual soará em obediência ao poder de Cristo [Mt 24.31; 1Co 15.52].<br />

Pois ainda que um anjo seja um arauto ou precursor [1Ts 4.16], isso<br />

não susta o que é feito pela autoridade do Juiz, e como se fosse em sua<br />

própria pessoa, de ser atribuído a ele próprio.<br />

29. E aqueles que fizeram o bem. Ele distingue os crentes pelas<br />

boas obras, como em outra parte ensina que uma árvore é conhecida<br />

por seu fruto [Mt 7.16; Lc 6.44]. Ele louva suas boas obras, às quais<br />

começaram a devotar-se desde que foram chamados. Pois o ladrão, a<br />

quem Cristo prometeu vida na cruz [Lc 23.42], e que consagrou toda<br />

sua vida aos crimes, expressa o desejo de fazer o bem em seu último<br />

fôlego. Mas como ele é um homem renascido, e de um escravo do<br />

pecado passa a ser um servo da justiça, todo o curso de sua vida pregressa<br />

não é mais levado em conta diante de Deus.<br />

Além disso, os pecados propriamente ditos, em virtude dos quais<br />

os crentes diariamente se sujeitam à condenação, não mais lhes são


Capítulo 5 • 227<br />

imputados. Porque, sem o perdão que Deus outorga aos que creem<br />

nele, 12 jamais existiu sequer um homem no mundo de quem não podemos<br />

dizer que viveu bem. Tampouco existe uma única obra que<br />

deva ser considerada totalmente boa, a menos que Deus perdoe os<br />

pecados que pertencem a ela, pois todas elas são imperfeitas e corrompidas.<br />

Portanto, tais pessoas são aqui chamadas feitoras de boas<br />

obras, a quem Paulo denomina solicitamente desejosas ou zelosas de<br />

boas obras [Tt 2.14]. Mas tal coisa depende da paternal bondade de<br />

Deus que, por livre graça, aprova o que merecia ser rejeitado.<br />

A inferência que os papistas deduzem dessas passagens – de que<br />

a vida eterna está pendente nos méritos das obras – pode ser refutada<br />

sem qualquer dificuldade. Pois Cristo não trata aqui da causa da<br />

salvação, mas meramente distingue os eleitos dos réprobos por sua<br />

própria característica, e faz isso a fim de convidar e exortar a seu<br />

próprio povo a uma vida santa e inocente. E de fato não negamos que<br />

a fé que nos justifica é acompanhada de um intenso desejo de viver<br />

bem e de forma justa, mas apenas sustentamos que nossa confiança<br />

não pode repousar em coisa alguma que não seja exclusivamente na<br />

misericórdia de Deus.<br />

[5.30-32]<br />

Nada posso de mim mesmo; como ouço, eu julgo; e meu juízo<br />

é justo; porque não busco minha própria vontade, mas a vontade<br />

de meu Pai que me enviou. Se eu testifico a respeito de<br />

mim mesmo, meu testemunho não é verdadeiro. Há outro que<br />

testifica a meu respeito, e eu sei que o testemunho que ele dá a<br />

meu respeito é verdadeiro.<br />

30. Nada posso de mim mesmo. Seria supérfluo entrar aqui em arrazoados<br />

abstrusos, se o Filho de Deus pode ou não fazer algo por si<br />

mesmo, no que respeita a sua Deidade eterna, pois ele não pretendia<br />

12 “Sans le pardon que Dieu fait à ses fideles.”


228 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

manter nossas mentes envolvidas por tais trivialidades. Consequentemente,<br />

não havia razão por que os antigos tivessem se entregado a tanta<br />

ansiedade e angústia com o fim de refutar a calúnia de Ário. Aquele irresponsável<br />

proclamou, dizendo que o Filho não é igual ao Pai porque nada<br />

podia fazer de si mesmo. Os homens santos replicaram, dizendo que o<br />

Filho com razão reivindica para si tudo quanto pode ser atribuído ao Pai,<br />

de quem ele assume seu princípio com respeito a sua pessoa. Mas, em<br />

primeiro lugar, Cristo não fala simplesmente de sua Deidade, porém nos<br />

adverte que, quanto a ser ele revestido de nossa carne, não devemos julgá-lo<br />

com base na aparência externa, porque ele é algo mais elevado que<br />

mero homem. Uma vez mais, devemos considerar com quem ele tem a<br />

ver. Sua intenção era refutar os judeus que tudo faziam para contrastá-lo<br />

com Deus. Portanto, ele afirma que nada faz pelo poder humano, porque<br />

ele tem Deus por seu guia e diretor, o qual habita nele.<br />

Devemos manter sempre em mente que, sempre que Cristo fala<br />

a respeito de si mesmo, ele reivindica apenas aquilo que pertence ao<br />

homem, pois ele mantém seus olhos nos judeus que erroneamente<br />

afirmavam que ele não passava de alguém pertencente à categoria ordinária<br />

dos homens. Pela mesma razão, ele atribui ao Pai tudo quanto<br />

é mais elevado que o homem. A palavra juiz pertence propriamente à<br />

doutrina, mas se destina também a aplicar à totalidade de sua administração,<br />

como se dissesse que ele age movido pela diretriz do Pai,<br />

em todas as coisas; que a vontade do Pai é sua norma e por isso ele o<br />

defenderá contra todos os adversários. 13<br />

E meu juízo é justo. Ele conclui dizendo que suas ações e palavras<br />

estão além de qualquer risco de reprovação, porque ele não permite a<br />

si mesmo tentar algo, mas [tudo faz] pela ordem e diretriz do Pai, pois é<br />

preciso considerar como acima de toda controvérsia que tudo que procede<br />

de Deus tem de ser certo. Essa modéstia deve ser sustentada por<br />

nós como a primeira máxima da piedade, a saber: cultivar tal reverência<br />

pela Palavra e obras de Deus, que unicamente o nome de Deus seja<br />

13 “Il sera son protecteur et garent contre tous adversaires.”


Capítulo 5 • 229<br />

suficiente para provar sua justiça e retidão. Porém, quão poucos encontramos<br />

que prontamente reconhecem que Deus é justo, a menos que<br />

sejam compelidos a agir assim! Aliás, reconheço que Deus demonstra<br />

sua justiça através da experiência, porém limitá-la à percepção de nossa<br />

carne, ao ponto de não formar nenhuma opinião a seu respeito senão o<br />

que nossa mente sugere é perversa e ousada impiedade.<br />

Portanto, estabeleçamos isto como certo e indubitável: que tudo<br />

quanto provém de Deus é certo e verdadeiro, e que é impossível que<br />

Deus não seja verdadeiro em todas suas obras, justo e reto em todas<br />

suas ações. Devemos igualmente lembrar que a única regra para agir<br />

corretamente é nada empreender senão pela diretriz e mandamento<br />

de Deus. E se depois disso o mundo inteiro se insurgir contra nós, ainda<br />

teremos esta invencível defesa: que aquele que segue a Deus não<br />

pode apostatar.<br />

Porque não busco minha própria vontade. Aqui ele não tira coisa<br />

alguma do crédito devido a seu testemunho, o qual em outra parte<br />

ele assevera em termos bem fortes, porém fala à guisa de concessão.<br />

Pois Cristo, tendo sido em outros aspectos mui sobejamente sustentado,<br />

consente que não devem crer em sua palavra. “Se meu testemunho<br />

a respeito de mim mesmo”, diz ele, “é por vós suspeito segundo o costume<br />

ordinário dos homens, então ele nada vale.” Ora, sabemos que<br />

o que qualquer pessoa assevera sobre si mesma não é considerado<br />

como válido e autêntico, embora em outros aspectos ele fale a verdade,<br />

porque ninguém é testemunha competente em sua própria causa.<br />

Ainda que seja injusto reduzir o Filho de Deus a tal categoria, todavia<br />

ele prefere privar-se de seu direito para que convença seus inimigos<br />

pela autoridade de Deus.<br />

[5.33-36]<br />

Vós enviastes [mensageiros] a <strong>João</strong>, e ele deu testemunho da<br />

verdade. Eu, porém, não recebo testemunho de homem; porém<br />

digo estas coisas para que sejais salvos. Ele era uma lâmpada<br />

que ardia e alumiava, e por algum tempo quiseste regalar-vos


230 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

em sua luz. Eu, porém, tenho maior testemunho que o de <strong>João</strong>;<br />

pois as obras que meu Pai me deu a realizar, as próprias obras<br />

que eu faço testificam a meu respeito de que o Pai me enviou.<br />

33. Vós enviastes [mensageiros] a <strong>João</strong>. Antes de produzir o testemunho<br />

de Deus, ele os pressiona com a resposta de <strong>João</strong>, da qual<br />

não podiam honrosamente negar sua convicção. Pois de que utilidade<br />

foi o envio de uma delegação a ele, se não tencionavam aderir a<br />

suas palavras? Eles foram a ele na qualidade de profeta de Deus, e assim<br />

pretendiam que sua palavra seria considerada por eles como um<br />

oráculo. Ora, ainda que isso implique outra admissão em seu favor, todavia<br />

Cristo formula francamente contra eles esta acusação: que nada,<br />

senão sua própria malícia, 14 os impede de crer. E, portanto, vemos que<br />

esta circunstância é muitíssimo apropriada para a questão em mãos,<br />

isto é, que foram a <strong>João</strong>, e – como se seu motivo não fosse o desejo de<br />

aprender – inquiriram dele se porventura era o Messias, e contudo não<br />

deram atenção a sua resposta.<br />

34. Eu não recebo testemunho dos homens. Contudo não foi em<br />

vão que Deus escolhesse a Cristo para ser uma testemunha dele, e o<br />

próprio Cristo declara, em outra ocasião, que os discípulos seriam<br />

suas testemunhas: “e sereis minhas testemunhas, tanto em Jerusalém<br />

como em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra” [At 1.8].<br />

Eis minha resposta: Cristo se vale do testemunho de <strong>João</strong>, não porque<br />

ele dele necessitasse, mas até onde nos é vantajoso receber dele alguma<br />

confirmação. Os homens tomam por empréstimo o testemunho uns<br />

dos outros, visto que não podem dispensar tal assistência. Com Deus e<br />

Cristo o caso é diferente. Pois se os filósofos asseveram que a virtude<br />

não carece do auxílio de estranhos, o que o homem possui em si mesmo<br />

para proporcionar apoio à verdade de Deus? E Cristo imediatamente<br />

acrescenta que ele reverte o testemunho de <strong>João</strong> em favor eles: Eu vos<br />

digo essas coisas para sejais salvos. Com esta afirmação, ele quer dizer<br />

14 “Rien que leur propre malice.”


Capítulo 5 • 231<br />

que não foi tanto em consideração a si mesmo como de um desejo de<br />

promover o benefício dos homens que ele levantou os arautos de seu<br />

evangelho por meio de quem ele nos testifica a respeito de sua vontade.<br />

Nisso vemos também uma notável prova de sua maravilhosa benevolência,<br />

por meio da qual ele regula todas as coisas para nossa salvação.<br />

Portanto, é nosso dever, em contrapartida, esforçar-nos para que o<br />

grande cuidado que ele nutre em salvar-nos não seja infrutífero.<br />

35. Ele era uma lâmpada que ardia e alumiava. Ao chamar <strong>João</strong><br />

de uma lâmpada que ardia, prova a ingratidão deles, pois segue-se que<br />

não passavam de cegos, porquanto decidiram ser assim, visto que<br />

Deus acendeu uma lâmpada diante de seus olhos. Portanto, eis o significado<br />

das palavras: “Deus não pretendia que vos desviásseis, pois<br />

ele designou a <strong>João</strong> para que fosse uma lâmpada, a fim de dirigir-vos<br />

com sua claridade; e daí quando não me reconheceis no caráter de o<br />

Filho de Deus, isso procede de erro voluntário”. Isso é seguido de outra<br />

repreensão: que não só fecharam seus olhos, e assim obstruíram a<br />

entrada da luz que lhes fora oferecida, mas intencionalmente a usaram<br />

mal com o propósito de aniquilar a Cristo. Pois quando se prontificaram<br />

a aplaudir a <strong>João</strong> do que realmente ele merecia, isso proveio de<br />

um ímpio e traiçoeiro desígnio de não dar passagem ao Filho de Deus.<br />

E por algum tempo quiseste regalar-vos em sua luz. Este ímpio<br />

abuso da luz celestial de Cristo elegantemente se compara a fútil jovialidade;<br />

como se o chefe de uma família fosse acender uma lâmpada<br />

para seus servos passarem a noite, a fim de que possam executar<br />

as tarefas que ele lhes impôs, mas que, em vez de corresponderem,<br />

empregaram-na para a prática de devassidão e todo gênero de licenciosidade.<br />

Com essas palavras Cristo acusa os judeus e ao mesmo<br />

tempo comunica a todos nós uma advertência, a saber: que quando<br />

Deus envia mestres fiéis para guiar-nos na vereda da justiça, devemos<br />

tomar cuidado para não fazer-lhes pouco caso andando de um lado a<br />

outro em todas as direções. Quão útil é esta advertência, a experiência<br />

de todas as épocas o demonstra. Deus empreende dirigir os homens<br />

durante todo o curso de suas vidas até o alvo final, e envia seus pro-


232 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

fetas para serem seus guias. Tal, porém, é a demência da insensatez<br />

dos homens que, em vez de andarem, preferem entregar-se à diversão<br />

devassa sem fazer qualquer progresso. Tão levianos e indecisos são<br />

que, desprezando e rejeitando sua contínua diretriz, se deixam levar<br />

pelos repentinos impulsos de suas paixões.<br />

Por algum tempo ou por uma hora. Com este termo ele os reprova<br />

por sua estultícia em pensar que a perversidade de uma natureza<br />

transitória e curta duração possa extinguir a luz de Deus. E assim em<br />

nossos próprios dias todos os mestres fiéis que Deus deu a sua Igreja<br />

como lâmpadas acesas são aplicados pelos papistas para um propósito<br />

contrário, como se sua intenção fosse, contemplando a luz, ofuscar<br />

seus olhos. E não só usam mal as lâmpadas para extinguir a luz de<br />

Deus, mas amiúde se entregam a néscia jovialidade no meio das trevas,<br />

como quando se insurgem contra a doutrina pura do evangelho e<br />

se gloriam nos tolos provérbios de seus ruidosos declamadores.<br />

Mas o que Cristo aqui assevera concernente a <strong>João</strong>, Paulo declara<br />

ser comum a todos os crentes, porque, tendo a palavra da vida, devem<br />

levar luz ao mundo, como tochas. Cristo, porém, mostra que ir adiante<br />

de outros e sustentar a tocha para guiá-los pertence estritamente aos<br />

apóstolos e ministros do evangelho, 15 pois ainda que sejamos todos<br />

cegos e vivamos envoltos por trevas, Deus brilha sobre nós com a luz<br />

de sua Palavra. Aqui, porém, ele adorna peculiarmente a <strong>João</strong> Batista<br />

com essa honrosa designação, porque, por meio de seu ministério,<br />

Deus resplandeceu em sua Igreja com muito maior esplendor.<br />

36. Eu, porém, tenho maior testemunho que o de <strong>João</strong>. Depois<br />

de haver mostrado que, na pessoa de <strong>João</strong>, os judeus haviam corrompido<br />

impiamente o dom divino, ele agora reitera pela segunda vez o<br />

que dissera, a saber: que ele não carecia do testemunho do homem,<br />

como se ele não tivesse o suficiente para si mesmo. Ainda que, percebendo<br />

que mantinham sua pessoa em desprezo, ele os remeteu a seu<br />

Pai, como costumava fazer.<br />

15 “Pource qu’ils marchent les premiers, portans le flambe au devant les autres pour les<br />

guider.”


Capítulo 5 • 233<br />

Porque as obras que o Pai me deu para fazer. Ele apresenta duas<br />

coisas pelas quais provou ser o Filho de Deus. “Meu Pai”, diz ele, “atesta<br />

por meio de milagres que eu sou seu Filho; e antes que eu viesse<br />

ao mundo, ele deu abundante testemunho de mim nos escritos sagrados”.<br />

Tenhamos sempre em mente que objetivo ele tinha em vista.<br />

Ele deseja ser reconhecido como o Messias prometido por Deus para<br />

que fosse ouvido, e por isso ele afirma que agora se manifestou como<br />

sendo precisamente tal pessoa como descrita pela Escritura. Pode-se<br />

perguntar: são suficientes milagres para provar isso, quando milagres<br />

semelhantes já foram realizados pelos profetas? Eis minha resposta:<br />

aqueles milagres que Deus realizou pela agência dos profetas não foram<br />

além do propósito para o qual se destinavam, isto é, mostrar que<br />

eles [os profetas] eram ministros de Deus, posto que não podiam de<br />

nenhuma outra forma granjear a autoridade devida a seu ofício. Deus,<br />

porém, tencionava exaltar seu Filho de uma forma muito mais sublime,<br />

e esse propósito divino deve ser considerado por nós como sendo o<br />

desígnio dos milagres. Portanto, se os judeus não tivessem sido prejudicados<br />

pela malícia e por voluntariamente fechar seus olhos, Cristo<br />

poderia facilmente lhes haver provado por meio de milagres quem e<br />

o que ele era.<br />

[5.37-40]<br />

E o Pai que me enviou, ele mesmo tem testificado a meu respeito;<br />

vós jamais ouvistes sua voz, nem vistes sua forma. E não<br />

tendes sua palavra permanente em vós; porque não crestes<br />

naquele a quem ele enviou. Examinais as Escrituras, porque<br />

pensais que tendes nelas a vida eterna, e são elas que testificam<br />

a meu respeito. E não quereis vir a mim para terdes vida.<br />

37. E o Pai que me enviou. É um grave equívoco limitar esta afirmação,<br />

como alguns têm feito, 16 à voz que ouviram em seu batismo<br />

16 “Aucuns s’abusent.”


234 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

[Mt 3.17]. Pois ele afirma no pretérito que o Pai (μεμαρτύρηκε) testificou<br />

a fim de mostrar que ele não surgiu em cena como uma pessoa<br />

desconhecida, porque o Pai, desde os tempos de outrora, o distinguiu<br />

através de marcas peculiares, para que, portando-as consigo, pudesse<br />

ser reconhecido. Portanto, eis minha explicação: Deus testificou a<br />

respeito de seu Filho, nos tempos mais antigos, sempre que queria<br />

fomentar no povo antigo a esperança da salvação, ou prometeu que<br />

o reino de Israel seria plenamente restaurado. Dessa forma, os judeus<br />

teriam formado uma idéia de Cristo, desde os profetas, antes que ele<br />

se manifestasse na carne. Ao tê-lo diante de seus olhos, o desprezam,<br />

e, portanto, o rejeitam, mostrando claramente que não nutriam nenhum<br />

prazer pela lei, pelo quê Cristo também os reprova, e, contudo,<br />

se vangloriavam de seu conhecimento da lei, como se tivessem sido<br />

educados no seio de Deus.<br />

Vós jamais ouvistes sua voz. Depois de haver-se queixado de<br />

que não o receberam, Cristo explode em linguagem ainda mais severa<br />

contra sua cegueira. Ao dizer que jamais ouviram a voz de Deus, nem<br />

viram sua forma, ele usa expressões metafóricas por meio das quais<br />

tenciona expressar em termos gerais que eles estão totalmente alienados<br />

do conhecimento de Deus. Porque, visto que os homens se fazem<br />

conhecidos pelo semblante e pela expressão verbal, assim Deus nos<br />

faz soar sua voz através da voz dos profetas; e, nos sacramentos, ele<br />

assume, por assim dizer, uma forma visível, por meio dos quais ele<br />

possa tornar-nos conhecido de conformidade com nossa débil capacidade.<br />

Mas aquele que não reconhece a Deus em sua imagem vívida,<br />

claramente demonstra, por meio desse mesmo fato, que não adora<br />

nenhuma divindade, senão aquela que ele mesmo inventou. Por essa<br />

razão, Paulo diz que os judeus tinham um véu posto diante de seus<br />

olhos para que não viessem a perceber a glória de Deus na face de<br />

Cristo [2Co 3.14].<br />

38. E não tendes sua palavra permanente em vós. Esta é a<br />

verdadeira forma lucrativa quando a palavra de Deus se radica em<br />

nós, de modo que, sendo a mesma impressa em nossos corações,


Capítulo 5 • 235<br />

se fixa permanentemente aí. Cristo afirma que a doutrina celestial<br />

não achou morada entre os judeus, porque não receberam o Filho<br />

de Deus que é por toda parte exaltado. E com justiça ele lança sua<br />

reprovação contra eles, pois não foi em vão que Deus falou por meio<br />

de Moisés e dos profetas. Moisés não tinha nenhuma outra intenção<br />

senão convidar a todos os homens a irem diretamente a Cristo. Daí<br />

ser evidente não serem discípulos de Moisés os que rejeitam a Cristo.<br />

Além disso, como é possível que o homem tenha a palavra da vida<br />

permanente em si, quando arrebata de si a própria vida? Como é possível<br />

que o homem guarde a doutrina da lei, quando destrói a própria<br />

alma da lei, o quanto está em seu poder fazê-lo? Pois a lei sem Cristo<br />

é vazia e destituída de toda solidez. Portanto, precisamente na proporção<br />

que alguém conhece a Cristo está a proficiência que ele tem<br />

feito na palavra de Deus.<br />

39. Examinais as Escrituras. Já dissemos que a afirmação que<br />

previamente Cristo fez – de que ele tem o Pai por testemunha no céu<br />

– se refere a Moisés e aos profetas. Agora segue uma explanação mais<br />

clara, pois ele diz que aquele testemunho pode ser encontrado nas<br />

Escrituras. Uma vez mais os reprova por sua tola vanglória, porque,<br />

embora reconhecessem que tinham vida nas Escrituras, nada percebiam<br />

nelas senão letras mortas. Pois absolutamente os condena por<br />

buscarem vida nas Escrituras, visto que as mesmas nos foram dadas<br />

exatamente para esse fim e uso. Mas por que os judeus criam que as<br />

Escrituras lhes comunicavam vida, enquanto se opunham amplamente<br />

a seu natural significado, e – o que é pior – enquanto apagavam a luz da<br />

vida que elas continham? Pois como é possível que a lei conceda vida<br />

sem Cristo, o único que lhe comunica vida?<br />

Repetindo, somos instruídos por esta passagem que, se quisermos<br />

obter o conhecimento de Cristo, 17 devemos buscá-lo nas<br />

Escrituras, pois os que imaginam que qualquer coisa que acaso decidam<br />

acerca de Cristo, por fim nada terão dele senão uma sombra<br />

17 “Si nous voulons avoir cognoissance de Christ.”


236 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

fantasmagórica. Antes de tudo, devemos crer que Cristo não pode<br />

ser propriamente conhecido de qualquer outra forma senão nas Escrituras;<br />

e se esse é o caso, segue-se que devemos ler as Escrituras<br />

com o expresso propósito de encontrar Cristo nelas. Se quem for que<br />

se afaste desse objetivo, ainda que se canse ao longo de toda sua<br />

vida aprendendo, jamais alcançará o conhecimento da verdade, pois<br />

que sabedoria teremos sem a sabedoria de Deus? Em seguida, visto<br />

que somos ordenados a buscar Cristo nas Escrituras, assim ele declara<br />

nesta passagem que nossos labores não serão infrutíferos, pois o<br />

Pai testifica nela a respeito de seu Filho, de tal maneira, que ele no-lo<br />

manifestará além de qualquer dúvida. Mas a razão por que a maioria<br />

dos homens é impedida de se beneficiar é que não tem do assunto<br />

nada mais que um vislumbre superficial e displicente. Contudo, ele<br />

requer a máxima atenção, e por isso Cristo nos ordena a sondar diligentemente<br />

este tesouro oculto.<br />

Consequentemente, a profunda aversão por Cristo nutrida pelos<br />

judeus, que tinham a lei constantemente em suas mãos, tem de ser<br />

atribuída a sua indolência. Pois o esplendor da glória de Deus resplandece<br />

intensamente em Moisés, porém decidiram manter um véu para<br />

escurecer esse esplendor. Sabe-se muito bem que por as Escrituras<br />

aqui significa o Velho Testamento. Porque não foi no evangelho que<br />

Cristo primeiramente começou a manifestar-se, senão que, havendo<br />

recebido o testemunho da lei e dos profetas, ele foi publicamente exibido<br />

no evangelho.<br />

40. E não quisestes vir a mim. Uma vez mais os repreende, dizendo<br />

que não foi por nada senão por sua própria malícia que os impedia<br />

de tornarem-se participantes da vida oferecida nas Escrituras, pois<br />

quando diz que não quiseram, ele imputa a causa de sua ignorância e<br />

cegueira à perversidade e obstinação. E assim era porque, visto que<br />

ele se lhes ofereceu tão graciosamente, eles eram voluntariamente<br />

cegos. Mas quando intencionalmente fugiram da luz, e inclusive desejaram<br />

extinguir o sol por meio das trevas de sua incredulidade, Cristo<br />

com justiça os reprova com maior severidade.


Capítulo 5 • 237<br />

[5.41-47]<br />

Não recebo glória de homens. Eu, porém, vos conheço, que não<br />

tendes em vós o amor de Deus. Eu vim no nome de meu Pai, e<br />

vós não me recebeis; se outro vier em seu próprio nome, a esse<br />

recebereis. Como podeis crer, vós que recebeis glória uns dos<br />

outros e não buscais a glória que procede exclusivamente de<br />

Deus? Não penseis que eu vos acusarei diante do Pai; é Moisés,<br />

em quem confiais, que vos acusa. Porque, se crêsseis em Moisés,<br />

também creríeis em mim; pois ele escreveu a meu respeito.<br />

Mas se não credes em seus escritos, como crereis em minhas<br />

palavras?<br />

41. Não recebo glória de homens. Ele prossegue em sua reprovação.<br />

Mas para que não seja suspeito de pleitear sua própria causa,<br />

ele começa dizendo que não estava interessado na glória dos homens,<br />

e que não se preocupava, nem se inquietava por ver-se desprezado. E,<br />

de fato, ele é grande demais para depender da opinião dos homens,<br />

porque a malignidade do mundo inteiro nada pode tirar dele nem fazer<br />

a mais leve violação a sua elevada posição. Ele está tão ansioso em<br />

refutar a calúnia deles que se exalta acima dos homens. Em seguida,<br />

ele passa a atacá-los livremente, e os acusa de desprezarem e odiarem<br />

a Deus. E ainda que, com respeito à honrosa posição, haja uma imensa<br />

distância entre Cristo e nós, todavia devemos ousadamente desprezar<br />

as opiniões dos homens. Pelo menos devemos cultivar mais zelo em<br />

não permitir que sejamos incitados à ira quando somos desprezados,<br />

mas, ao contrário, aprendamos a jamais queimar-nos em indignação,<br />

exceto quando os homens deixarem de render a Deus a honra que lhe<br />

devem. Que nossas almas ardam e se torturem por esse santo zelo,<br />

sempre que virmos o mundo tão ingratamente rejeitar a Deus.<br />

42. Que não tendes em vós o amor de Deus. O amor de Deus é aqui<br />

expresso em lugar de todos os sentimentos religiosos, pois ninguém<br />

pode amar a Deus sem contemplá-lo com admiração e submeter-se<br />

inteiramente a sua autoridade. Porquanto, em contrapartida, o amor


238 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

de Deus não prevalece onde não existe o desejo de obedecê-lo. Essa é a<br />

razão por que Moisés apresenta isto como o sumário ou recapitulação<br />

(ἀνακεφαλαίωσις) da lei: “Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o<br />

teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças” [Dt 6.5].<br />

43. Eu vim no nome de meu Pai. Aliás, os falsos profetas se gloriavam<br />

neste título, como o papa, em nossos dias, se gloria, de boca<br />

cheia, de ser ele o Deputado ou Vigário de Cristo; e sob esse mesmo disfarce<br />

Satanás tem enganado os homens desditosos desde o princípio.<br />

Mas Cristo aqui apresenta a realidade, e não uma pretensão hipócrita,<br />

pois quando testifica que ele veio no nome de seu Pai, ele pretende dizer<br />

não só que o Pai o enviara, mas que fielmente executa a comissão<br />

que recebera. Com esta marca, ele distingue os mestres legítimos da<br />

Igreja dos mestres espúrios e pretensos. Esta passagem, pois, ensina<br />

que devemos ousadamente rejeitar todos quantos se exaltam e, em<br />

seu próprio nome, reivindicam autoridade sobre as almas, pois aquele<br />

se sente desejoso de ser reconhecido como servo de Deus não deve<br />

ter nada à parte de Deus. Ora, se toda a doutrina do papa fosse examinada,<br />

até mesmo um cego veria que ele veio em seu próprio nome. 18<br />

Se outro vier em seu próprio nome, a esse recebereis. Que os<br />

judeus não amavam a Deus e não tinham nenhuma reverência por<br />

ele, Cristo prova através deste argumento, a saber, que avidamente<br />

receberão os falsos profetas, enquanto se recusam a obedecer a Deus,<br />

pois ele toma em termos axiomáticos que é um sinal de uma mente<br />

perversa e ímpia quando os homens desrespeitam a verdade e voluntariamente<br />

concordam com as falsidades.<br />

Se alguém objetar dizendo que isso geralmente é feito mais por<br />

ignorância do que por malícia, a resposta é fácil. Ninguém se expõe às<br />

imposturas de Satanás, exceto enquanto o mesmo, através de alguma<br />

disposição perversa, preferir a falsidade à verdade. Pois como é possível<br />

que sejamos surdos quando Deus fala, 19 e que Satanás nos encontre<br />

18 Ao transpor as duas porções da exposição deste versículo, segui a versão francesa de<br />

nosso autor, o qual, tendo observado que suas observações sobre a primeira sentença<br />

deste versículo foram colocadas no fim, restaurou as sentenças a sua ordem natural.<br />

19 “Que nous sommes sourds quand Dieu parle.”


Capítulo 5 • 239<br />

prontos e ativos, senão porque somos hostis à justiça e espontaneamente<br />

desejamos a iniquidade? Embora seja indispensável observar<br />

aqui que Cristo fala principalmente àqueles a quem Deus iluminara<br />

de uma forma peculiar, como outorgara aos judeus tal privilégio, para<br />

que, tendo sido instruídos em sua lei, pudessem guardar o reto caminho<br />

da salvação.<br />

É certo que tais pessoas se inclinam a ouvir os falsos mestres por<br />

nenhuma outra razão senão porque desejam ser enganadas. Consequentemente,<br />

Moisés diz que, quando os falsos profetas se levantam,<br />

isso se destina a provar e a testar o povo se realmente amam o Senhor<br />

seu Deus [Dt 13.3]. Não há dúvida de que em muitas pessoas parece<br />

haver uma simplicidade inocente e sincera, 20 porém seus olhos estão<br />

indubitavelmente cegados pela hipocrisia que se oculta em suas mentes.<br />

Pois é indubitável que Deus jamais feche a porta àqueles que batem<br />

[Mt 7.8]; jamais frustra aos que sinceramente oram a ele [Is 45.19].<br />

Portanto, com razão Paulo o atribui à vingança de Deus, quando se dá<br />

a Satanás o poder de enganar, “Para que sejam julgados todos os que<br />

não creram na verdade, antes tiveram prazer na iniquidade, porque<br />

não receberam o amor da verdade para serem salvos” [2Ts 2.10, 12]. É<br />

dessa forma que se descobre a hipocrisia de muitos que, devotados às<br />

imposturas e ímpias superstições do papa, se queimam com corrompido<br />

furor contra o evangelho. Pois se tivessem os corações dispostos a<br />

temer a Deus, tal temor, por sua vez, produziria obediência.<br />

44. Como podeis crer? Como pudesse parecer ser impossível dizer<br />

que aqueles que desde a infância foram educados nas disciplinas<br />

da Lei e dos Profetas, sejam acusados de tão grosseira ignorância e<br />

declarados inimigos da verdade, e como se tal coisa pudesse ser vista<br />

como sendo incrível, Cristo mostra o que os impedia de crer. É porque<br />

a ambição os privara de um juízo sadio; porque ele fala, de uma maneira<br />

peculiar, aos sacerdotes e escribas que, cheios de soberba, não<br />

conseguiam obedecer a Deus. Esta é uma passagem notável, a qual<br />

20 “Une simplicité innocente et sans malice.”


240 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

ensina que o portão da fé se fecha contra todos quantos têm o coração<br />

dominado pela preocupação e saturado de vão desejo pelas glórias<br />

terrenas. Pois aquele que deseja ser alguém no mundo, inevitavelmente<br />

se tornará instável e sem direção, não nutrindo nenhuma inclinação<br />

para Deus. Uma pessoa nunca está preparada a obedecer a doutrina<br />

celestial enquanto não se convencer de que seu alvo principal, ao longo<br />

de toda sua vida, deve ser que o mesmo seja aprovado por Deus.<br />

Mas poderia concluir-se que a ímpia confiança, pela qual os hipócritas<br />

se exaltam na presença de Deus, é um obstáculo maior que a<br />

ambição mundana. Sabemos que essa foi também a doença com que<br />

os escribas estavam profundamente infectados. A resposta é fácil, pois<br />

Cristo tencionava arrancar deles a falsa máscara de santidade, pela<br />

qual enganavam a multidão ignorante. Portanto, é como se apontasse<br />

com o dedo para o mais grosseiro dos vícios para com isso fazer manifesto<br />

a todos que nada está mais longe de seu verdadeiro caráter do<br />

que a respeitabilidade que tanto desejavam fosse considerada. Além<br />

disso, ainda que a hipocrisia se exalte contra Deus, não obstante, no<br />

mundo e diante dos homens, ela é sempre ambiciosa. Mais que isso:<br />

é somente essa vaidade que nos incha com falsa presunção, quando<br />

confiamos mais em nosso próprio juízo, e o de outros, do que no juízo<br />

divino. Aquele que na realidade se apresenta diante de Deus como seu<br />

Juiz deve, necessariamente, cair por terra humilhado e desfalecido, e<br />

nada ver em si que porventura mereça sua confiança. 21 E assim, pois,<br />

para que alguém possa buscar somente a glória de Deus, o mesmo<br />

tem que mergulhar em seu próprio opróbrio e correr para imerecida<br />

misericórdia de Deus. E deveras esses olham para Deus e percebem<br />

que estão condenados e perdidos, e que nada lhes é deixado em que<br />

possam se gloriar senão a graça de Cristo. O anseio por essa glória<br />

será sempre assistido pela humildade.<br />

Até onde se relaciona com a presente passagem, a intenção de<br />

Cristo é que não há outra maneira na qual os homens podem se pre-<br />

21 “Et ne sentant rien en soy-mesme sur quoy il se puisse appuyer.”


Capítulo 5 • 241<br />

parar para receber a doutrina do evangelho senão afastar todos seus<br />

sentidos do mundo e volvê-los tão-somente para Deus, e seriamente<br />

considerar que é com Deus que têm que tratar, para que, esquecendo<br />

as vanglórias com as quais estão acostumados a iludir a si mesmos,<br />

penetrem suas próprias consciências. Portanto, não cabe admirarmo-nos<br />

se o evangelho, em nossos dias, se depara com tão poucas<br />

pessoas dispostas a deixar-se instruir, visto que todos se deixam arrebatar<br />

pela ambição. Tampouco devemos ceder à perplexidade se<br />

muitos apostatam da profissão do evangelho, porquanto se acham dominados<br />

por sua própria vaidade e empáfia. Tanto mais solicitamente<br />

devemos buscar esta única coisa: que, embora sejamos vilipendiados<br />

e desprezados aos olhos do mundo, e até mesmo esmagados em nosso<br />

próprio íntimo, podemos ser contados no número dos filhos de Deus.<br />

45. Não penseis que eu vos acusarei diante do Pai. Esta é a forma<br />

como devemos tratar com as pessoas obstinadas e empedernidas,<br />

quando nada aprendem pela instrução e conselhos amorosos. Aliás,<br />

há poucas pessoas que gracejam de Deus abertamente, porém há muitas<br />

que, crendo que Deus, a quem se opõem como inimigos, é gracioso<br />

para com elas, os entretém em seu ócio com adulações fúteis. E assim,<br />

nos dias atuais, nossos gigantes, 22 embora impiamente tripudiem toda<br />

a doutrina de Cristo, arrogantemente se gabam de ser íntimos amigos<br />

de Deus. Pois quem persuadirá os papistas de que o Cristianismo existe<br />

em qualquer outra parte fora de seu reduto? Tais eram os escribas,<br />

com quem Cristo está aqui polemizando. Ainda que fossem os mais<br />

22 As guerras dos gigantes tiveram um lugar eminente na mitologia antiga e na crença<br />

popular. Para não mencionar os poetas, cuja imaginação era fértil para tais tópicos, eles<br />

são formalmente introduzidos por Cícero, em um tratado filosófico, ainda que só com o<br />

propósito de instruir seus leitores a “desprezar e rejeitar essas fábulas”. “Os deuses”,<br />

diz ele, “como relatam as fábulas, não viviam sem guerras e batalhas; e isso não só nas<br />

descritas por Homero, quando alguns dos deuses ficavam furiosos, por um lado, e outros<br />

do outro lado, em dois exércitos opostos; mas ainda, como no caso dos titãs e gigantes,<br />

promoviam suas próprias batalhas. Tais coisas (acrescenta ainda) são contadas e são<br />

puerilmente cridas, e estão cheias de tolices absurdas.” – (De Nat. Deorum, lib ii.). A<br />

ousada presunção e completa descompostura dos gigantes, em suas guerras fabulosas,<br />

são às vezes aludidas por Calvino e por outros escritores cristãos, quando descrevem a<br />

perversidade e estultícia do homem que estende sua mão contra Deus e se fortalece contra<br />

o Todo-Poderoso [Jó 15.25].


242 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

cruéis desdenhadores da lei, todavia se vangloriavam em Moisés nos<br />

mais elevados termos, de modo que não hesitavam em fazer uso dele<br />

como um escudo contra Cristo. Se preconizasse que seria um poderoso<br />

e formidável adversário para eles, sabia que isso teria sido tratado<br />

com o máximo desdém; e por isso preconiza que uma acusação, esboçada<br />

por Moisés, será proferida contra eles.<br />

Moisés, em quem confiais. Há quem pensa que Cristo aqui realça<br />

a distinção entre seu próprio ofício e o de Moisés, porquanto pertence<br />

à lei convencer os homens de sua incredulidade. Mas isso é um equívoco,<br />

pois Cristo não pretendia isso, senão apenas abalar a confiança<br />

dos hipócritas que falsamente se gabavam de cultivar reverência por<br />

Moisés. Justamente como uma pessoa na atualidade, a fim de repelir<br />

os papistas com suas próprias armas, 23 se põe a dizer que não acharão<br />

inimigos mais decididamente opostos a eles do que os santos doutores<br />

da Igreja, sob cuja autoridade falsa e impiamente se escondem. 24<br />

Aprendamos também disto que não devemos gloriar-nos nas Escrituras<br />

sem boas razões, pois se não honrarmos o Filho de Deus através da<br />

verdadeira obediência de fé, todos quantos Deus levantou para serem<br />

suas testemunhas se erguerão contra nós como nossos acusadores no<br />

último dia. Ao dizer que confiavam em Moisés, ele não os acusa de superstição,<br />

como se atribuíssem a Moisés a causa de sua salvação, mas<br />

quer dizer que erravam em confiar na proteção de Moisés, como se o<br />

tivessem na conta de defensor de sua ímpia obstinação.<br />

46. Porque, se crêsseis em Moisés, também creríeis em mim.<br />

Ele mostra por que Moisés será o acusador deles. Rejeitam sua doutrina.<br />

Sabemos ser impossível formular um insulto maior aos servos de<br />

Deus do que quando sua doutrina é desprezada ou reprovada. Além<br />

disso, aqueles a quem o Senhor designou como ministros de sua Palavra<br />

devem estar prontos a defendê-la contra os que a desprezam, 25 e,<br />

portanto, ele deu a todos os profetas uma dupla comissão, para que<br />

23 “Pour rembarrer les Papistes de leur baston mesme.”<br />

24 “Du titre desquels ils se couvrent faussement et meschamment.”<br />

25 “Centre contempteurs.”


Capítulo 5 • 243<br />

ensinassem e instruíssem os crentes para sua salvação, e para que,<br />

um dia, pudessem confundir os réprobos por meio de seu testemunho.<br />

Pois ele escreveu a meu respeito. Quando Cristo diz que Moisés<br />

escreveu a seu respeito, isso não exige muita prova para aqueles que<br />

reconhecem que Cristo é o fim e a alma da lei. Mas se alguém não ficar<br />

satisfeito com isso, e quiser ter as passagens encestadas para ele, eu o<br />

aconselharia, primeiramente, a ler a Epístola aos Hebreus, com a qual<br />

também concorda o sermão de Estevão, no sétimo capítulo de Atos<br />

dos Apóstolos. Em seguida, a observar as citações que Paulo aplica a<br />

seu propósito. Reconheço, aliás, que há poucas coisas a que Moisés faz<br />

menção expressa de Cristo, porém, qual foi o uso do tabernáculo, dos<br />

sacrifícios e de todas as cerimônias, senão para serem figuras extraídas<br />

de conformidade com aquele primeiro modelo que lhe foi mostrado<br />

no monte? [Ex 25.40; Hb 8.5]. Assim, sem Cristo, se desvanece todo o<br />

ministério de Cristo. Reiterando, vemos como ele continuamente lembra<br />

ao povo o pacto dos Pais que foi ratificado em Cristo, e ainda como<br />

ele faz de Cristo o principal objeto e fundamento do pacto. Tampouco<br />

era isso desconhecido dos santos Pais, que tinham sempre seus olhos<br />

fixos no Mediador. Para tratar o tema de forma mais abrangente, seria<br />

inconsistente com a brevidade que eu uso.<br />

47. Mas se vós não crerdes em seus escritos. Cristo parece aqui<br />

reivindicar menos autoridade para si do que para Moisés; e, no entanto,<br />

sabemos que o céu e a terra foram abalados pela voz do evangelho [Hb<br />

12.26]. Cristo, porém, acomoda seu discurso àqueles a quem fala, pois<br />

a autoridade da lei era, além de todo controvérsia, mantida sacra entre<br />

os judeus. E, assim, era impossível que Cristo fosse inferior a Moisés.<br />

Para o mesmo propósito é o contraste entre escritos e palavras, pois<br />

ele mostra que a incredulidade deles era ainda mais agravada, porque<br />

a verdade de Deus, registrada de uma forma autêntica, não desfruta de<br />

nenhuma autoridade entre eles.


Capítulo 6<br />

[6.1-13]<br />

Mais tarde, Jesus atravessou o mar da Galileia, que é chamado<br />

[o mar] de Tiberíades. E uma grande multidão o seguia,<br />

porque tinham visto seus milagres, os quais realizara sobre<br />

os que eram enfermos. E Jesus subiu a um monte e assentou-<br />

-se com seus discípulos. E a páscoa, festa dos judeus, estava<br />

próxima. Jesus, pois, erguendo seus olhos, e vendo que uma<br />

grande multidão vinha em sua direção, disse a Filipe: Onde<br />

compraremos pão para que todos esses homens comam?<br />

(Ora, ele disse isso para o testar, porque ele mesmo sabia o<br />

que faria.) Filipe lhe respondeu: Duzentos denários de pão<br />

não é suficiente para eles, para que cada um deles tome um<br />

pouco. Um de seus discípulos, André, irmão de Pedro, disse-<br />

-lhe: Está aqui um menino que tem cinco pães de cevada e<br />

dois peixinhos, mas o que é isso para tantos? E Jesus disse:<br />

Fazei os homens sentar-se (ora, havia muita relva naquele lugar.)<br />

Os homens, pois, assentaram-se, em número de quase<br />

cinco mil. E Jesus tomou os pães e, tendo dado graças, os<br />

distribuiu aos discípulos, e os discípulos aos que estavam<br />

assentados, e igualmente os peixes, quanto eles queriam. E<br />

depois de haver-se fartado, ele disse aos discípulos: Ajuntai<br />

os pedaços que sobraram, para que nada se perca. Eles, pois,<br />

ajuntaram e encheram doze cestos com os pedaços dos cinco<br />

pães que dobraram aos que comeram.


246 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

1. Mais tarde Jesus atravessou. Embora <strong>João</strong> tivesse o costume<br />

de coletar esses atos e ditos de Cristo, os quais os outros três evangelistas<br />

omitiram, todavia nesta passagem, contrariando seu costume,<br />

ele reitera a história de um milagre que relataram. Ele, porém, age assim<br />

com o expresso propósito de passar deles para o sermão de Cristo,<br />

o qual foi pronunciado no dia seguinte em Cafarnaum, porque as duas<br />

coisas foram conectadas. Portanto, esta narrativa, ainda que os outros<br />

três evangelistas a tenham também registrado, tem esta peculiaridade,<br />

a saber, que ela é dirigida com outro objetivo, como veremos. Os<br />

outros evangelistas [Mt 14.13, Mc 6.32, Lc 9.10] afirmam que isso aconteceu<br />

pouco depois da morte de <strong>João</strong> Batista, por cuja circunstância<br />

de tempo ressaltaram a causa da partida de Cristo, pois quando os<br />

tiranos uma vez tenham manchado suas mãos no sangue dos santos,<br />

eles se inflamam com mais intensa crueldade, da mesma maneira que<br />

a bebida desregrada agrava a sede dos ébrios. Cristo, pois, tencionava<br />

abater a fúria de Herodes com sua ausência.<br />

Ele usa o termo Mar da Galileia como equivalente a lago de Genesaré.<br />

Ao acrescentar que o mesmo era chamado Mar de Tiberíades, ele<br />

explica mais plenamente o lugar para o qual Cristo se afastou, porque<br />

todo o lago não tinha esse nome, mas somente aquela parte dele que<br />

ficava contígua à margem na qual Tiberíades ficava situada.<br />

2. E uma grande multidão o seguia. Tão grande profundo ardor<br />

em seguir a Cristo surgiu no povo que, tendo visto seu poder nos milagres,<br />

foram convencidos de que ele era algum grande profeta, e que<br />

tinha sido enviado por Deus. Mas o evangelista aqui omite o que os<br />

outros três relatam, ou seja, que Cristo empregou uma parte do dia ao<br />

ensino e à cura de enfermos, e que, quando o sol se punha, seus discípulos<br />

solicitava dele que despedisse as multidões [Mt 14.13, 14, Mc 6.34,<br />

35, Lc 9.11, 12], pois ele considerava como suficiente dar uma substância<br />

do relato em poucas palavras, visando a aproveitar a oportunidade<br />

para levar-nos às afirmações restantes imediatamente seguintes.<br />

Aqui vemos, em primeiro lugar, quão ardente era o desejo do<br />

povo de ouvir a Cristo, já que todos eles, esquecidos de si mesmos,


Capítulo 6 • 247<br />

não se preocupam em passar a noite em um lugar desértico. Tão menos<br />

justificável é nossa indiferença, ou melhor, nossa indolência quando<br />

estamos longe de preferir a doutrina celestial às torturas da fome, que<br />

as mais leves interrupções imediatamente nos desviam da meditação<br />

sobre a vida celestial. Mui raramente ocorre de Cristo nos encontrar<br />

livres e desemaranhados dos embaraços do mundo. Tão longe cada<br />

um de nós está de estar pronto a segui-lo a uma montanha desértica,<br />

que dificilmente um em dez consegue suportar recebê-lo quando ele<br />

se apresenta em nosso lar, em meio aos confortos. E ainda que essa<br />

enfermidade prevaleça quase por todo o mundo, todavia é certo que<br />

ninguém estará pronto para o reino de Deus, até que, pondo de lado<br />

tais comodidades, aprendamos a desejar o alimento da alma com tanta<br />

solicitude que nosso ventre não nos seja um obstáculo.<br />

Visto, porém, que a carne nos solicita atenção para suas conveniências,<br />

devemos igualmente observar que Cristo, espontaneamente,<br />

cuida daqueles que são negligentes para consigo mesmos para que<br />

o sigam. 1 Pois ele não espera até que estejam reduzidos à inanição e<br />

gritem que estão perecendo de fome e nada têm para comer, senão<br />

que lhes providencia alimento antes mesmo que o peçam. Talvez alguém<br />

dirá que isso nem sempre sucede, pois frequentemente nos<br />

deparamos com pessoas devotas que, ainda que tenham se devotado<br />

inteiramente ao reino de Deus, se sentem exaustas e quase desfalecidas<br />

de fome. Eis minha resposta: ainda que Cristo tenha prazer em<br />

provar nossa fé e paciência dessa maneira, não obstante do céu ele<br />

contempla nossa carência e cuida em aliviá-la, até onde nosso bem-<br />

-estar o requeira. Quando não se concede assistência imediatamente,<br />

isso se dá pela melhor das razões, embora tal razão nos esteja oculta.<br />

3. Jesus, pois, subiu a um monte. Cristo, inquestionavelmente,<br />

buscou um lugar de retiro até a festa da Páscoa e, por isso, lemos que<br />

ele assentou com seus discípulos sobre uma colina. Esse indubitavelmente<br />

foi o propósito que ele estabeleceu como homem, porém o<br />

1 “Pour le suyvre”.


248 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

propósito de Deus era diferente, ao qual ele voluntariamente obedeceu.<br />

Portanto, embora evitasse a vista dos homens, contudo permite<br />

ser guiado pela mão divina como em um teatro abarrotado, pois havia<br />

uma assembleia mais numerosa em uma montanha desértica do que<br />

em qualquer cidade populosa, e maior celebridade emana do milagre<br />

do que se o mesmo tivesse ocorrido na praça pública de Tiberíades.<br />

Portanto, por meio desse exemplo, somos instruídos a formular nossos<br />

planos de conformidade com o curso dos acontecimentos, mas de<br />

tal maneira que, se o resultado for diferente do esperado, não fiquemos<br />

descontentes por Deus estar acima de nós e regular cada coisa de<br />

conformidade com seu beneplácito.<br />

5. Ele disse a Filipe. O que lemos aqui como tendo sido dito somente<br />

a Filipe, os outros evangelistas nos contam que foi dito a todos.<br />

Contudo, não existe inconsistência nos relatos, pois é provável que Filipe<br />

falou de acordo com a opinião nutrida por todos, e por isso Cristo<br />

fala a ele em particular, justamente como <strong>João</strong>, imediatamente depois,<br />

introduz André falando, onde os demais evangelistas atribuem o discurso<br />

igualmente a todos. Percebendo que eles têm qualquer noção<br />

sobre que remédio extraordinário usar, ele então desperta suas mentes,<br />

que se poderia dizer, dormentes, para que pelo menos tivessem<br />

seus olhos abertos para contemplar o que lhes será imediatamente<br />

exibido. O objetivo de tudo o que é alegado pelos discípulos é para<br />

persuadir a Cristo a não deter o povo, e, talvez, neste aspecto, analisassem<br />

suas vantagens particulares de que uma parte da inconveniência<br />

não viesse a recair sobre eles. Consequentemente, Cristo desrespeita<br />

suas objeções e segue em frente com seu propósito.<br />

7. Duzentos denários. Visto que o denário, segundo a computação<br />

de Budæus, é igual a quatro vezes o valor de um carolus e dois deniers<br />

de Tours, a soma equivale a trinta e cinco francos, ou em torno disso. 2<br />

Se essa soma for dividida entre cinco mil homens, cada centena deles<br />

2 O valor das antigas moedas francesas passou por tantas mudanças que todo arrazoado<br />

sobre elas permanece na incerteza, mas, até onde nos é possível averiguar, o valor de um<br />

carolus de Tours, nos dias de Calvino, era quase o de um centavo da moeda inglesa, e o<br />

denier era a décima parte de um centavo, ou quase um centime moderno de Paris.


Capítulo 6 • 249<br />

terá menos de dezessete pence sterling. 3 Se agora acrescentarmos mil<br />

mulheres e crianças, descobrir-se-á que Filipe destinou a cada pessoa<br />

certa da sexta parte de um penny inglês 4 para comprar um pãozinho.<br />

Mas como geralmente ocorre numa grande multidão, ele provavelmente<br />

pensou que houvesse um grande número de pessoas presentes e<br />

como os discípulos eram pobres e mal supridos com dinheiro, André<br />

tencionava alarmar a Cristo com a grandeza da soma, significando que<br />

não possuíam riqueza suficiente para alimentar tanta gente.<br />

10. Fazei os homens sentar-se. Que os discípulos não estivessem<br />

imediatamente preparados a nutrir a esperança que seu Mestre inspirava,<br />

e não se lembrassem de atribuir a seu poder tudo o que lhe<br />

era próprio, era um grau de estupidez digno de vergonha. Porém, não<br />

pequeno louvor se deve a sua jovial obediência em agora atender sua<br />

ordem, ainda que não conhecessem sua intenção, ou que vantagem<br />

derivariam do que estavam fazendo. A mesma prontidão em obedecer<br />

é manifestada pelo povo, pois enquanto nutrem incerteza quando ao<br />

resultado, todos assentam tão logo se pronuncia uma palavra de ordem.<br />

E essa é a prova da fé genuína, quando Deus ordena aos homens<br />

que andem, por assim dizer, em trevas. Com esse propósito em vista,<br />

aprendamos a não ser sábios a nossos próprios olhos, mas em meio<br />

a grande confusão, ainda esperar por um resultado positivo, quando<br />

seguimos a diretriz divina, a qual jamais frustra o povo de Deus.<br />

11. Depois de haver dado graças. Cristo, mediante seu exemplo,<br />

mais do que por meio de seu ensino, nos diz que sempre que assentarmos<br />

à mesa para a refeição devemos começar com oração. Pois<br />

aquelas coisas que Deus designou para nosso uso, sendo evidências<br />

de sua infinita benevolência e amor paternal para conosco, nos convoca<br />

a oferecer-lhe louvores. Ações de graças, como Paulo nos informa,<br />

é um tipo de santificação solene, por meio da qual o uso delas começa<br />

a ser puro para nós [1Tm 4.4]. Daí se segue que, aqueles que as de-<br />

3 “Quatorze sols Tournois”. <strong>Segundo</strong> Cotgrave, o “sol Tournois é a décima parte de nosso<br />

shilling, ou uma parte em seis, melhor que nosso penny”.<br />

4 “Sesquituronicum” – “un denier Tournois et maille” – “um e meio denier de Tours”.


250 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

glutem sem pensar em Deus são culpados de sacrilégio e de profanar<br />

os dons de Deus. E esta instrução é a mais digna de atenção, porque<br />

diariamente vemos uma grande parte do mundo alimentando-se como<br />

bestas selvagens. Quando Cristo determinou que o pão dado aos discípulos<br />

se multiplicasse em suas mãos, instrui-nos que Deus abençoa<br />

nosso labor quando somos serviçais uns aos outros.<br />

Sumariemos agora o significado de todo o milagre. Ele tem isto<br />

em comum com os demais milagres: que Cristo exibiu nele seu divino<br />

poder em união com a beneficência. É-nos também uma confirmação<br />

daquela afirmação por meio da qual ele nos exorta a buscar o reino<br />

de Deus, prometendo que todas as coisas nos serão acrescentadas [Mt<br />

6.33]. Pois se ele cuida dos que foram conduzidos a ele, movido por<br />

um súbito impulso, como ele nos abandonará se o buscarmos com<br />

um propósito inabalável e convicto? Aliás, é verdade que às vezes ele<br />

permitirá que seu próprio povo, como já dissemos, sofra fome, porém<br />

jamais os privará de seu auxílio. E, enquanto isso, ele tem boas razões<br />

para não nos assistir até que a situação chegue a um extremo.<br />

Além disso, Cristo claramente mostrou que não só outorga<br />

ao mundo vida espiritual, mas que seu Pai lhe ordenou também a<br />

nutrir o corpo. Pois confia-se às suas mãos a abundância de todas<br />

as bênçãos, para que, como um canal, ele possa no-las comunicar,<br />

ainda que eu fale incorretamente, chamando-o um canal, porquanto<br />

ele é, antes de tudo, a fonte viva que emana do Pai eterno. Consequentemente,<br />

Paulo ora para que todas as bênçãos nos emanem, em<br />

comum, de Deus o Pai e do Senhor Jesus Cristo [1Co 1.3]. E, em outra<br />

passagem, ele mostra que em todas as coisas devemos dar graças a<br />

Deus o Pai, por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo [Ef 5.20]. E<br />

este ofício não só pertence a sua eterna Deidade, mas inclusive em<br />

sua natureza humana, e até onde ele assumiu em si nossa carne, 5 o<br />

Pai o designou para ser o despenseiro, para que, por sua mão, pudesse<br />

nos alimentar. Ora, ainda que a cada dia nenhum milagre vemos<br />

5 “Mesme en son humanité, et entant qu’il a pris nostre chair”.


Capítulo 6 • 251<br />

diante de nossos olhos, todavia não menos sobejamente Deus exibe<br />

seu poder em nos alimentar. E de fato não lemos que, quando queria<br />

dar uma ceia a seu povo, ele usava algum novo meio. Por isso seria<br />

uma oração inconsiderada se alguém pedisse que lhe fossem dadas<br />

comida e bebida através de um método inusitado.<br />

Repetindo, Cristo não providenciou ricas iguarias para o povo,<br />

mas aqueles que presenciaram seu espantoso poder exibido naquela<br />

ceia foram impelidos a descansar satisfeitos com pão de cevada e<br />

peixe sem molho. 6 E embora ele não continue a satisfazer cinco mil<br />

homens com cinco pães, não obstante ele não cessa de alimentar o<br />

mundo inteiro de uma maneira prodigiosa. E, sem dúvida, soa-nos<br />

como um paradoxo que o homem viva não só de pão, mas de toda<br />

palavra que procede da boca de Deus [Dt 8.3]. Pois estamos tão fortemente<br />

jungidos aos meios externos, que nada é mais difícil do que<br />

depender da providência de Deus. Daí suceder de tremermos tanto<br />

assim que percebemos não termos pão nas mãos. E se considerarmos<br />

corretamente cada coisa, nos veremos compelidos a discernir a<br />

bênção de Deus em todas as criaturas que são utilizadas como nosso<br />

sustento corporal. 7 Mas o uso e a frequência nos levam a subestimar<br />

os milagres da natureza. E, no entanto, neste aspecto, não é tanto<br />

nossa estupidez como nossa malignidade que nos cria obstáculos,<br />

pois onde se acharia o homem que não prefira divagar em sua mente<br />

e a percorrer céu e terra centenas de vezes antes de buscar o Deus<br />

que se apresenta diante de seus olhos?<br />

13. E encheram doze cestos. Quando quatro mil homens foram<br />

alimentados com sete pães, Mateus relata que o número de cestos<br />

cheios com pedaços era exatamente o mesmo número de pães [Mt<br />

15.37]. Portanto, visto que uma quantidade menor é suficiente para<br />

um número maior de homens, e visto que a quantidade que sobrou<br />

foi duplicada, daí notamos mais claramente o valor real daquela bênção<br />

divina, contra cuja visão deliberadamente fechamos nossos olhos.<br />

6 “De poissons sans sausse”.<br />

7 “En toutes creatures qui servent à nostre nouriture”.


252 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Devemos observar igualmente, de passagem, que embora Cristo lhes<br />

ordene a encher os cestos para realçar o milagre, contudo igualmente<br />

exorta a seus discípulos à frugalidade, ao dizer: Ajuntai os pedaços<br />

que sobraram, para que nada se perca, pois o enriquecimento da abundância<br />

divina não deve ser estímulo ao fausto. Portanto, aqueles que<br />

possuem abundância se lembrem de que um dia terão que prestar<br />

contas de sua imoderada riqueza, caso não apliquem criteriosa e fielmente<br />

sua superfluidade para propósitos que sejam benéficos e dos<br />

quais se agrada e aprova.<br />

[6.14-21]<br />

Aqueles homens, pois, ao verem o milagre que Jesus realizara,<br />

disseram: Este é verdadeiramente o Profeta que está para vir<br />

ao mundo. E quando Jesus soube que estavam para vir e tomá-<br />

-lo à força para fazê-lo rei, novamente se afastou sozinho para<br />

um monte. E quando veio a tarde, seus discípulos desceram<br />

para o mar. E tendo entrado num barco, atravessaram o mar<br />

em direção a Cafarnaum, e já era escuro, e Jesus ainda não tinham<br />

chegado até eles. E o mar subiu movido por grande vento<br />

que soprava. Quando, pois, tinham navegado uns vinte e cinco<br />

ou trinta estádios, viram Jesus caminhando por sobre o mar,<br />

quando ele se aproximou do barco, 8 ficaram aterrorizados. Ele,<br />

porém, lhes disse: Sou eu, não tenham medo. Portanto, eles<br />

de bom grado o receberam no barco, e imediatamente o barco<br />

chegou ao lugar para onde estavam indo.<br />

14. Aqueles homens, pois. Tudo indica que o milagre foi acompanhado<br />

de alguma vantagem, a saber, eles reconhecem o Autor dele<br />

como sendo o Messias, pois Cristo não tinha outro objetivo em vista.<br />

Imediatamente, porém, aplicam a um propósito diferente e impróprio<br />

8 “Ils voyent Jesus cheminant sur la mer, s’approchant de la nasselle, dont ils eurent peur”.<br />

– Viram Jesus caminhando por sobre o mar e se aproximando do barco, o que os fez<br />

sentir medo”.


Capítulo 6 • 253<br />

o conhecimento que obtiveram a respeito de Cristo. E é um erro extremamente<br />

comum entre os homens corromper e perverter a verdade<br />

divina pelo uso da falsidade deles, tão logo ele se lhes revelou. E ainda<br />

quando parecem ter tido acesso à verdade certa, imediatamente se<br />

desviam dela.<br />

15. Para fazê-lo rei. Quando aqueles homens tentaram dar a Cristo<br />

o título e a honra de rei, havia alguma base para o que fizeram. Mas<br />

erraram clamorosamente em assumir para si a liberdade de fazer um<br />

rei, pois a Escritura atribui isto como uma peculiaridade exclusiva de<br />

Deus, quando diz: Eu designei meu rei em meu santo monte Sião [Sl<br />

2.6]. Além disso, que sorte de reino inventaram para ele? Um reino<br />

terreno, o qual é totalmente inconsistente com a pessoa dele [Cristo].<br />

Com isso aprendamos quão arriscado é, nas coisas de Deus, negligenciar<br />

sua Palavra e inventar algo de nosso próprio arbítrio, pois nada<br />

há que a tola sutileza de nosso entendimento não corrompa. E de que<br />

vale o pretexto de zelo quando, por meio de nosso culto desordenado,<br />

oferecemos um insulto maior a Deus do que se uma pessoa expressa e<br />

deliberadamente pratica uma violência a sua glória?<br />

Sabemos quão furiosos foram os esforços dos adversários para<br />

extinguir a glória de Cristo. Tal violência, é verdade, atingiu seu ponto<br />

extremo quando ele foi crucificado. Por meio de sua crucificação, porém,<br />

ele granjeou salvação para o mundo, 9 e Cristo mesmo alcançou<br />

um esplêndido triunfo sobre a morte e Satanás. Caso ele permitisse ser<br />

feito rei agora, seu reino espiritual ficaria arruinado, o evangelho seria<br />

esmagado com infâmia eterna e a esperança da salvação teria sido<br />

completamente destruída. Os sistemas de culto regulados segundo<br />

nossa própria fantasia e as honras temerariamente inventadas pelos<br />

homens não desfrutam de outra vantagem senão esta: que usurpam de<br />

Deus sua verdadeira honra e a nada mais o expõem senão ao opróbrio.<br />

E o tomaram á força. É preciso observar igualmente a frase:<br />

tomar à força. Quiseram tomar Cristo à força, diz o evangelista, isto<br />

9 “Le salut a eté acquis aux hommes” – “granjeou-se salvação para os homens”.


254 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

é, com impetuosa violência quiseram fazê-lo rei, ainda que contra<br />

sua vontade. Portanto, se quisermos que ele aprove a honra que<br />

lhe conferirmos, temos de levar sempre em conta o que ele requer<br />

de nós. E quem se aventura a oferecer a Deus honras de invenção<br />

humana se faz culpado de usar alguma sorte de força e violência<br />

contra ele, porque a obediência é o fundamento do culto genuíno.<br />

Aprendamos também disto com que reverência devemos aderir à<br />

pura e simples Palavra de Deus, pois tão logo nos desviamos um mínimo<br />

grau, a verdade é contaminada por nosso fermento, de modo<br />

que ela perde sua essência. Eles haviam aprendido da Palavra de<br />

Deus que aquele que fora prometido como o Redentor seria rei,<br />

porém, de sua própria cabeça, inventaram um reino terreno e lhe<br />

designaram um reino contrário à Palavra de Deus. E assim, sempre<br />

que misturamos nossas próprias opiniões com a Palavra de Deus,<br />

a fé se degenera em conjeturas frívolas. Portanto, que os crentes<br />

cultivem um hábito modesto para que Satanás não lhes inspire um<br />

ardor de inconsiderado e leviano zelo, 10 de modo que, semelhante<br />

aos gigantes, se precipitem violentamente contra Deus, o qual jamais<br />

será adorado corretamente senão quando o recebemos como<br />

ele se nos apresenta.<br />

É espantoso que cinco mil homens se tenham deixado dominar<br />

por tão ousada presunção que não hesitaram, tentando fazer um novo<br />

rei, provocar, contra si mesmos, o exército de Pilatos e o vasto poder<br />

11 do império romano. É indubitável que jamais teriam ido tão longe<br />

se não tivessem, confiando nas predições dos profetas, esperado que<br />

Deus estaria do seu lado e, consequentemente, que venceriam. Mas<br />

ainda estavam errados em inventar um reino do qual os profetas jamais<br />

haviam falado. Estão tão longe de ter a mão divina favorável a<br />

ajudar seu empreendimento que, ao contrário, Cristo se desvencilha.<br />

Essa era também a razão por que pessoas desventuradas sob o poderio<br />

papal vagueavam em tão densas trevas – enquanto Deus estava,<br />

10 “En une ardeur de zele inconsideré et temeraire”.<br />

11 “La grande puissance”.


Capítulo 6 • 255<br />

por assim dizer, ausente –, porque tiveram a ousadia de poluir todo<br />

seu culto com suas néscias invenções. 12<br />

16. Seus discípulos desceram. Cristo indubitavelmente pretendia<br />

ocultar-se até que a multidão se dispersasse. Sabemos quão difícil é<br />

aplacar um tumulto popular. Ora, se tivessem publicamente tentado<br />

fazer o que pretendiam, não teria sido fácil posteriormente remover a<br />

mancha que uma vez lhe aderira. Entrementes, ele passou todo esse<br />

tempo em oração, como relatam os demais evangelistas [Mt 14.23, Mc<br />

6.46]. Provavelmente, Deus, o Pai, poderia reprimir essa loucura do<br />

povo. 13 Quanto a sua travessia do lago de uma maneira miraculosa, sua<br />

intenção era o proveito de seus discípulos em confirmar uma vez mais<br />

sua fé. A vantagem se estendia ainda mais, pois no dia seguinte todo<br />

o povo facilmente veria que ele não fora trazido até ali por um barco<br />

ou navio, 14 mas que viera por seu próprio poder, pois bloquearam a<br />

praia donde havia saído, e dificilmente teriam se afastado dela se não<br />

tivessem visto os discípulos cruzarem um lugar diferente.<br />

17. Já estava escuro. <strong>João</strong> passa por alto muitas circunstâncias<br />

que os outros evangelistas introduzem, tais como aquela de várias horas<br />

de luta com um vento contrário, pois é provável que a tempestade<br />

surgisse imediatamente após a chegada da noite. Eles nos contam que<br />

Cristo não apareceu a seus discípulos antes da quarta vigília da noite<br />

[Mt 14.28, Mc 6.48]. Os que conjeturam que eles estavam ainda no<br />

meio do lago quando Cristo lhes apareceu, porque <strong>João</strong> diz que tinham<br />

então avançado cerca de vinte e cinco ou trinta estádios, são levados a<br />

um equívoco por suporem que tinham navegado à praia mais afastada<br />

ou oposta, pois Lucas nos informa que Betsaida, cidade próxima do<br />

lugar onde se deu o milagre [Lc 9.10], e Cafarnaum, aonde o navio chegou<br />

[Jo 5.16], estavam situadas na mesma costa.<br />

Plínio, em seu quinto livro, declara que esse lago tinha seis milhas<br />

de largura e dezesseis de comprimento. Josefo (no terceiro livro das<br />

12 “Par leurs folles inventions”.<br />

13 Sobre o retiro de nosso Senhor para o monte com o fim de orar, nosso Autor fez<br />

observações muito interessantes e proveitosas. Harmony of the Evangelists, <strong>Vol</strong>. II. p. 237.<br />

14 “Par basteau ou navire”.


256 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Guerras dos Judeus) lhe dá cem estádios de comprimento e quarenta<br />

de largura. 15 Como oito estádios perfazem uma milha, podemos facilmente<br />

inferir quão pouco uma descrição difere da outra. No que diz<br />

respeito à presente navegação, minha opinião é que não navegaram<br />

um espaço tão grande diretamente, mas até onde puderam passar pela<br />

tempestade. 16 Seja como for, os evangelistas tencionavam mostrar que,<br />

quando Cristo chegou até eles, enfrentavam o perigo máximo. É possível<br />

que alguém estranhe que os discípulos se vissem atormentados<br />

dessa forma, enquanto outros de modo algum se sentiriam perturbados<br />

em tal viagem marítima. Mas é assim que o Senhor frequentemente<br />

faz seu povo envolver-se em perigos alarmantes, para que venham a<br />

reconhecê-lo mais nítida e familiarmente em seu livramento.<br />

19. Ficaram aterrorizados. Os outros evangelistas explicam a<br />

causa de tal medo como sendo este: criam estar experimentando uma<br />

visão fantasmagórica [Mt 14.26, Mc 6.49]. Ora, é impossível não sentir<br />

consternação e medo quando uma aparição se apresenta ante nossos<br />

olhos, pois concluímos o que a mesma é uma impostura de Satanás<br />

ou algum mau presságio que Deus nos envia. Além disso, aqui <strong>João</strong><br />

põe diante de nós, como num espelho, que gênero de conhecimento<br />

de Cristo podemos obter sem a Palavra, e que vantagem colhemos de<br />

tal conhecimento. Pois se ele apresenta uma demonstração singular<br />

de sua deidade, imediatamente nos vemos no universo de nossas imaginações,<br />

e cada um de nós forma um ídolo para si em vez de Cristo<br />

mesmo. Depois de haver assim vagueado em nosso entendimento, isso<br />

é imediatamente seguido de tremor e confuso terror do coração. Mas<br />

quando ele começa a falar, então granjeamos de sua voz conhecimento<br />

claro e sólido, e então alegria e deleitosa paz dominam nossas mentes,<br />

porque há grande peso nestas palavras:<br />

20. Sou eu, não tenhais medo. Delas aprendemos que é tão-somente<br />

na presença de Cristo que desfrutamos de abundante base de<br />

15 Nosso Autor cita inexatamente a medida dada por Josefo, cujas palavras são: “Ora, esse<br />

lago de Genesaré é assim chamado por causa da região adjacente a ele. Sua largura é de<br />

quarenta estádios, e seu comprimento, de cento e quarenta”. – Guerras dos Judeus III.x.7.<br />

16 “Mais estans agitez de tempeste”.


Capítulo 6 • 257<br />

confiança, de calma e de sossego. Mas isso pertence exclusivamente<br />

aos discípulos de Cristo, pois posteriormente veremos que os ímpios<br />

se viram abalados pelas mesmas palavras: Sou eu [Jo 18.6]. A razão<br />

da distinção consiste em que ele é enviado como Juiz aos réprobos e<br />

incrédulos para sua destruição, e, portanto, não podem suportar sua<br />

presença sem se sentir imediatamente esmagados. Os crentes, porém,<br />

sabendo que ele lhes foi dado para fazer propiciação, tão logo ouvem<br />

seu nome, o qual lhes é um seguro penhor, tanto do amor de Deus<br />

quanto de sua salvação, tomam alento como se fossem ressuscitados<br />

da morte para a vida. Olham serenamente para o céu claro, habitam<br />

tranquilamente na terra e, vitoriosa e calmamente, o tomam por seu<br />

escudo contra todos os perigos. Tampouco, simplesmente os conforta<br />

e encoraja com sua palavra, mas realmente remove também a causa<br />

do terror, amainando a tempestade.<br />

[6.22-25]<br />

No dia seguinte, a multidão que estava do outro lado do mar,<br />

vendo que não havia outro barco senão somente aquele em<br />

que entraram seus discípulos, e que Jesus não entrara no barco<br />

com seus discípulos, mas que seus discípulos tinham partido<br />

sozinhos (contudo, outros barcos tinham vindo de Tiberíades,<br />

próximo ao lugar onde comeram o pão, havendo o Senhor dado<br />

graças), quando, pois, a multidão viu que Jesus não estava ali,<br />

nem seus discípulos, também entraram nos barcos e foram para<br />

Cafarnaum em busca de Jesus. E o havendo encontrado no lado<br />

oposto do mar, disseram-lhe: Rabi, quando chegaste aqui?<br />

22. No dia seguinte. Aqui o evangelista relata circunstâncias à<br />

luz das quais a multidão podia concluir que Cristo tinha atravessado<br />

pelo poder divino. Não havia ali senão um barco, viram-no partir<br />

sem Cristo, no dia seguinte, navios chegaram de outros lugares, por<br />

meio dos quais são conduzidos a Cafarnaum, e ali encontram Cristo.<br />

Deduz-se que ele só poderia ter atravessado de uma maneira mira-


258 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

culosa. Há uma intricada e aparente confusão (ἀνακόλουθον) nas<br />

palavras, não obstante, o significado delas é bastante claro, pois no<br />

versículo 22 <strong>João</strong> diz que havia ali apenas um barco, e que todos o<br />

viram deixar a praia e aquele local, e que ele não tinha Cristo como<br />

passageiro, e no versículo 23, ele acrescenta que os barcos vieram de<br />

Tiberíades, através dos quais a multidão atravessou, a qual permaneceu<br />

na praia bloqueando, por assim dizer, a saída para que Cristo<br />

não pudesse escapar.<br />

23. Próximo ao lugar onde comeram o pão. O significado das<br />

palavras é dúbio, pois poderiam ser explicadas ou que Tiberíades ficava<br />

próxima ao lugar onde Cristo os alimentara com cinco pães, ou<br />

que os barcos chegaram à praia que ficava próxima e abaixo daquele lugar.<br />

Aprova mais favoravelmente a última explicação, pois Betsaida, de<br />

cuja proximidade Lucas declara o milagre foi realizado, é meio caminho<br />

entre Tiberíades e Cafarnaum. Consequentemente, quando os barcos<br />

chegaram àquele lugar, que ficava mais acima do lago, navegaram até<br />

a praia onde a multidão estava esperando, e não pode haver dúvida de<br />

que chegaram à terra com o propósito conduzir passageiros.<br />

Havendo o Senhor dado graças. Quando <strong>João</strong> menciona de novo<br />

que Cristo deu graças, não é uma reiteração supérflua, pois sua intenção<br />

é dizer que Cristo conseguiu por meio da oração que os poucos<br />

pães fossem suficientes para alimentar tantas pessoas, e visto que<br />

somos indiferentes e indolentes em orar, ele nos transmite a mesma<br />

coisa segunda vez.<br />

25. Do outro lado do mar. Já dissemos que Cafarnaum não estava<br />

situada na margem oposta, pois Tiberíades está situada naquela parte<br />

do lago onde há mais amplitude. Betsaida vem em seguida e Cafarnaum<br />

fica próxima à parte mais baixa, não longe de onde o rio Jordão<br />

flui do lago. Ora, quando <strong>João</strong> a situa no outro lado do próprio lago,<br />

não devemos entendê-lo como se sua posição fosse diretamente no<br />

lado oposto, mas porque, na extremidade mais baixa, o lago fez uma<br />

grande curva e, por causa da baía que se interpõe, era impossível ir<br />

por terra sem uma viagem muito circundante. O evangelista, pois, diz


Capítulo 6 • 259<br />

do outro lado do mar para adotar o modo de expressão usado pelo<br />

povo comum, porque a único modo direto e ordinário de atravessar<br />

era por barco.<br />

[6.26-29]<br />

Jesus lhes respondeu, e disse: Em verdade, em verdade vos<br />

digo: Vós me buscais não porque vistes milagres, mas porque<br />

comestes dos pães e vos fartastes. Trabalhai pelo alimento,<br />

não aquele que perece, mas pelo alimento que permanece para<br />

a vida eterna, o qual o Filho do homem vos dará, porque Deus<br />

o Pai o selou. Disseram-lhe, pois: Que faremos para efetuar as<br />

obras de Deus? Jesus respondeu e lhes disse: Esta é a obra de<br />

Deus, que creiais naquele a quem ele enviou.<br />

26. Jesus lhes respondeu. Cristo não responde à pergunta que<br />

lhe foi dirigida, a qual teria sido oportuna para mostrar-lhes seu poder<br />

em ter chegado ali de forma miraculosa. 17 Mas, ao contrário, ele os<br />

censura por se deixarem impelir sem consideração, pois não estavam<br />

familiarizados com a razão verdadeira e própria do que ele fez, porque<br />

buscavam em Cristo algo mais além de Cristo mesmo. O erro de que se<br />

queixa neles é que buscam a Cristo por causa do estômago, e não dos<br />

milagres. E, no entanto, não se pode negar que visualizavam o milagre.<br />

Não só isso, o evangelista já nos relatou que ficaram excitados pelos<br />

milagres que acompanhavam a Cristo. Mas visto que abusavam dos<br />

milagres com um propósito egoístico, ele, com razão, os censura por<br />

se preocuparem mais com o estômago do que com milagres. Ele quer<br />

dizer que não extraíam vantagem das obras de Deus como deveriam<br />

ter feito, pois a verdadeira forma de tirar proveito deles seria reconhecendo<br />

Cristo como o Messias, de tal maneira que se rendessem a sua<br />

instrução e governo e, sob sua diretriz, aspirar ao reino celestial de<br />

Deus. Ao contrário, nada esperam mais dele do que uma vida feliz e<br />

17 “Ce qui eust esté propre pour leur monstrer sa puissance, en ce qu’il estoit là venu par<br />

miracle”.


260 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

tranquila neste mundo. Isso é usurpar Cristo de seu poder primordial,<br />

pois a razão por que ele foi dado pelo Pai e se revelou aos homens é<br />

para que os possa formar de novo segundo a imagem de Deus, dando-<br />

-lhes seu Santo Espírito, e para que os pudesse conduzir à vida eterna,<br />

revestindo-os com sua justiça.<br />

É de grande importância, pois, que mantenhamos nossos olhos<br />

nos milagres de Cristo, pois aquele que não aspira ao reino de Deus,<br />

porém repousa satisfeito com as conveniências da presente vida, outra<br />

coisa não busca senão encher seu ventre. De igual modo, há muitas<br />

pessoas na atualidade que de bom grado abraçariam o evangelho se<br />

ele fosse destituído do amargor da cruz, e se ele nada mais contivesse<br />

senão os prazeres carnais. Sim, vemos muitos que fariam a profissão<br />

da fé cristã se pudessem viver com mais garbo e com menos restrição.<br />

Alguns pela expectativa de lucro, outros pelo temor e ainda outros<br />

por causa daqueles a quem desejam agradar, professam ser discípulos<br />

de Cristo. Para se buscar a Cristo, pois, o ponto principal é este:<br />

desprezar o mundo e buscar o reino de Deus e sua justiça (Mt 6.33).<br />

Além disso, como os homens mui geralmente impõem a si mesmos<br />

e se persuadem de que estão buscando a Cristo da melhor maneira,<br />

enquanto aviltam todo seu poder, por essa razão, Cristo, em sua maneira<br />

usual, duplica a expressão em verdade, como se, por meio de um<br />

juramento, ele quisesse trazer à luz o vício que se move por detrás de<br />

nossa hipocrisia.<br />

27. Trabalhai pelo alimento, não aquele que perece. Ele mostra<br />

a que alvo nossos desejos devem dirigir-se, isto é, à vida eterna. Mas,<br />

visto que na proporção que nosso entendimento é grosseiro, devotamo-nos<br />

sempre às coisas terrenas. Por essa razão, ele corrige aquela<br />

enfermidade que nos é natural, antes de apontar para o que devemos<br />

fazer. A doutrina simples teria sido: “Trabalhai pelo alimento incorruptível”,<br />

porém, sabendo que os sentidos humanos são possuídos<br />

pelas preocupações terrenas, ele primeiro lhes ordena que se liberem<br />

e fiquem livres de tais obstáculos, para que possam erguer-se ao céu.<br />

Não que ele proíba seus seguidores de trabalharem para a consecução


Capítulo 6 • 261<br />

do alimento diário, mas mostra que a vida celestial deve ser preferível<br />

a esta vida terrena, porque os santos não têm outra razão para viver<br />

aqui além de, sendo peregrinos no mundo, poderem viajar rapidamente<br />

para seu país celestial.<br />

Em seguida devemos ver qual é a presente questão, pois, visto<br />

que o poder de Cristo é vilipendiado por aqueles que se devotam ao<br />

ventre e às coisas terrenas, ele argumenta sobre o que devemos buscar<br />

nele, e por que o devemos buscar. Ele emprega metáforas adaptadas<br />

às circunstâncias nas quais seu sermão foi enunciado. Se o alimento<br />

não fosse mencionado, ele teria dito, sem qualquer figura: “Vós deveis<br />

desvencilhar-vos da ansiedade acerca do mundo e esforçar-vos por<br />

obter a vida celestial”. Mas, como aqueles homens estavam correndo<br />

após sua forragem à semelhança do gado, sem mirar algo melhor, 18<br />

Cristo apresenta seu sermão com vestes metafóricas e dá o nome de<br />

alimento a tudo quanto pertence à novidade de vida. Sabemos que<br />

nossas almas são alimentadas pela doutrina do evangelho, quando ela<br />

é eficaz em nós pelo poder do Espírito. E, portanto, como a fé é a vida<br />

da alma, tudo o que nutre e promove a fé é comparado a alimento.<br />

Que permanece para a vida eterna. Ele chama incorruptível esse<br />

gênero de alimento e diz que ele permanece para a vida eterna, a fim<br />

de informar-nos que nossas almas não são alimentadas por apenas<br />

um dia, mas são nutridas na expectativa de uma bendita imortalidade,<br />

porque o Senhor começa a obra de nossa salvação para que a possa<br />

concluir no dia de Cristo [Fp 1.6]. Por essa razão, devemos receber os<br />

dons do Espírito para que os mesmos sejam penhores e garantias da<br />

vida eterna. Porque, ainda que os réprobos, depois de provarem esse<br />

alimento, frequentemente o rejeitam, de modo que o mesmo não lhes<br />

é permanente, não obstante as almas crentes sentem que esse poder<br />

é permanente, quando se tornam participantes do poder do Espírito<br />

Santo em seus dons, os quais não são de curta duração, mas, ao contrário,<br />

jamais se exaurem.<br />

18 “Sans regarder à rien de meilleur”.


262 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

É um frívolo exercício de ingenuidade inferir, como o fazem alguns,<br />

da palavra trabalho ou obra que merecemos a vida eterna através de<br />

nossas obras, pois Cristo metaforicamente exorta os homens, como já<br />

dissemos, a aplicarem suas mentes ardorosamente à meditação sobre<br />

a vida eterna, em vez de se aferrarem ao mundo, como estão acostumados<br />

a fazer. E Cristo mesmo remove toda dúvida quando declara<br />

que é ele quem dá o alimento, pois o que obtemos por meio de seu<br />

dom ninguém granjeia por meio de seu próprio esforço. Indubitavelmente,<br />

existe certa aparência de contradição nessas palavras, mas<br />

podemos facilmente conciliar essas duas afirmações: que o alimento<br />

espiritual da alma é o dom gratuito de Cristo e que devemos esforçar-<br />

-nos com todos os afetos de nosso coração a tornar-nos participantes<br />

de uma bênção tão incomensurável.<br />

Porque Deus o Pai o selou. Ele confirma a afirmação precedente,<br />

dizendo que nos foi designado pelo Pai para esse fim. Os escritores<br />

antigos têm interpretado e torcido equivocadamente esta passagem,<br />

sustentando que Cristo foi selado, porque ele é o selo e imagem viva<br />

do Pai. Pois ele aqui não entra em discussões abstratas sobre sua essência<br />

eterna, mas explica para que ele fora comissionado e destinado<br />

a fazer, qual é seu ofício em relação a nós e o que devemos buscar e<br />

esperar dele. Através de uma metáfora apropriada, ele faz alusão a um<br />

costume antigo, pois selavam com sinetes o que pretendiam sancionar<br />

por meio de sua autoridade. Assim Cristo – que não poderia parecer<br />

como se alegasse algo de si mesmo, ou de sua autoridade secreta 19<br />

– declara que este ofício lhe foi imposto pelo Pai, e que este decreto<br />

do Pai se manifestou como se um selo fora estampado nele. Pode ser<br />

sumariado assim: Visto que nem toda pessoa tem a capacidade ou o<br />

direito 20 de alimentar as almas com alimento incorruptível, Cristo aparece<br />

em público e, enquanto promete que será o Autor de tão grande<br />

bênção, igualmente acrescenta que já foi aprovado por Deus e que fora<br />

19 “A fin qu’il ne semble que Christ vueille de soy-mesme et d’une authorité privee<br />

s’attribuer quelque chose”.<br />

20 “Que ce n’est pas une chose facile et commune a chacum”.


Capítulo 6 • 263<br />

enviado aos homens com esta marca: ele é, por assim dizer, o selo ou<br />

sinete de Deus. 21<br />

Daí se deduz logicamente que o desejo dos que apresentarão suas<br />

almas a Cristo para que sejam alimentadas por ele não serão frustrados.<br />

Saibamos, pois, que a vida nos é exibida em Cristo a fim de que<br />

cada um de nós a aspire, não ao acaso, mas com certeza de êxito.<br />

Ao mesmo tempo, somos ensinados que todos quantos dedicam este<br />

louvor a qualquer outro que não seja Cristo se fazem culpados de falsidade<br />

na presença de Deus. Daí, é evidente que os papistas, em cada<br />

parte de sua doutrina, são totalmente mentirosos, pois enquanto inventam<br />

algum meio de salvação que substitua Cristo, como fazem tão<br />

frequentemente – apagando, por assim dizer, a impressão que foi feita<br />

–, despojam e desfiguram, com perversa presunção e vil traição, este<br />

selo de Deus, que é o único autêntico. A fim de não cairmos em tão<br />

terrível condenação, aprendamos a manter puro e íntegro para Cristo<br />

tudo o que o Pai lhe deu.<br />

28. O que faremos para efetuar as obras de Deus? A multidão<br />

compreendeu suficientemente bem que Cristo os exortara a almejar<br />

algo mais elevado do que as conveniências da presente vida, e que<br />

não devem limitar sua atenção à terra, já que Deus os chama para o<br />

desfruto de bênçãos mais valiosas. Mas, ao formularem esta pergunta,<br />

em parte estão equivocados em não entender o tipo de trabalho,<br />

pois não levam em conta que Deus nos concede, pelas mãos do Filho,<br />

tudo o que é indispensável à vida espiritual. Primeiro, perguntam o<br />

que devemos fazer, e, em seguida, ao usarem a expressão as obras<br />

de Deus, não entendem o que dizem, e falam sem qualquer objetivo<br />

definido. 22 E assim manifestam sua ignorância a respeito da graça<br />

de Deus. E, no entanto, aqui parecem murmurar desdenhosamente<br />

contra Cristo, como se ele os estivesse acusando sem qualquer fundamento.<br />

“Presumes”, dizem eles, “que não nutrimos solicitude pela<br />

vida eterna? Por que, pois, nos forças a fazer o que está além de nos-<br />

21 “Qui est comme le seau ou cachet de Dieu”.<br />

22 “Ils n’entendent point ce qu’ils disent, et parlent sans certain but”.


264 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

so poder?” Por as obras de Deus devemos entender aquelas que Deus<br />

exige e as quais ele aprova.<br />

29. A obra de Deus é esta. Eles têm falado de obras. Cristo traz<br />

a sua lembrança apenas uma obra, ou seja, a fé. Com isso, ele pretende<br />

dizer que tudo quanto os homens empreendem sem fé é vão<br />

e inútil, mas que a única coisa suficiente é fé, porque o que Deus<br />

requer de nós é somente isto: que creiais. Pois há aqui um contraste<br />

implícito entre fé e obras, e os esforços humanos, como se quisesse<br />

dizer: Quando os homens lutam para agradar a Deus sem fé, eles<br />

lutam sem qualquer propósito, porque, ao correrem, por assim dizer,<br />

fora da raia, não avançam rumo ao alvo. Esta é uma passagem<br />

notável, a qual mostra que, embora os homens se atormentem desditosamente<br />

ao longo de toda sua vida, todavia perdem seu tempo<br />

se não têm fé em Cristo como a norma de sua vida. Os que inferem<br />

desta passagem que a fé é um dom de Deus estão equivocados, pois<br />

Cristo não mostra aqui o que Deus produz em nós, mas o que ele<br />

quer e requer de nós.<br />

Mas é possível que achemos estranho que Deus nada mais aprove<br />

senão somente fé, pois não se deve desprezar o amor ao nosso próximo,<br />

e os demais exercícios da religião não perdem seu lugar e honra.<br />

Assim, pois, ainda que a fé mantenha sua posição mais elevada, todavia<br />

as demais obras não são supérfluas. A resposta é fácil, pois a fé não<br />

exclui nem o amor ao nosso próximo, nem qualquer outra boa obra,<br />

porque ela os contém inerentemente. A fé é chamada a única obra de<br />

Deus porque por meio dela possuímos a Cristo, e assim nos tornamos<br />

filhos de Deus, de modo que ele nos governa por meio de seu Espírito.<br />

Assim, pois, visto que Cristo não separa a fé de seus frutos, não carece<br />

que nos admiremos se ele faz dela o princípio e o fim. 23<br />

23 “Proram et puppim”, literalmente, “a popa e a proa”, um idiotismo latino para a<br />

totalidade. A versão francesa do Autor (edição de 1558) traduz a sentença assim: “il ne se<br />

faut pont esbahir s’il constitue en elle la fin et le commencement”. “Não devemos sentirnos<br />

perplexos se a fizermos ser o fim e o princípio”, e na edição de 1564, a redação fica<br />

assim: “ce n’est pas merveille que la foy est tout ce que Dieu requiert” – “não admira que<br />

a fé seja tudo o que Deus requer”.


Capítulo 6 • 265<br />

Que creiais naquele que ele enviou. Qual é o cerne da palavra<br />

crer já explicamos no terceiro capítulo. Devemos lembrar sempre que,<br />

para termos a plena percepção do poder da fé, devemos entender o<br />

que Cristo é, em quem cremos e por que ele nos foi dado pelo Pai. É<br />

fútil sofisma, a pretexto desta passagem, afirmar que somos justificados<br />

pelas obras, caso a fé justifique, porque ela igualmente é chamada<br />

uma obra. Primeiro, é bastante claro que Cristo não fala com estrita<br />

exatidão quando chama a fé uma obra, precisamente como Paulo faz<br />

ao comparar a lei da fé com a lei das obras [Rm 3.27]. <strong>Segundo</strong>, quando<br />

afirmamos que os homens não são justificados pelas obras, queremos<br />

dizer as obras por cujo mérito os homens podem obter o favor de Deus.<br />

Ora, a fé não leva nada a Deus, mas, ao contrário, põe o homem diante<br />

de Deus como vazio e pobre, para que seja enchido com Cristo e com<br />

sua graça. Portanto, se nos for permitida a expressão, ela é uma obra<br />

passiva, à qual não se pode pagar nenhum galardão, e ela mesma não<br />

outorga nenhuma outra justiça além daquela que ele recebe de Cristo.<br />

[6.30-33]<br />

Portanto, eles lhe disseram: Que sinal fazes, pois, para que<br />

creiamos em ti? Que obra fazes? 24 Nossos pais comeram o maná<br />

no deserto, como está escrito: Ele lhes deu pão do céu a comer<br />

[Êx 15.15, Sl 78.24]. Jesus, portanto, lhes disse: Em verdade, em<br />

verdade vos digo: Moisés não vos deu pão do céu, mas meu Pai<br />

é que vos dá o verdadeiro pão do céu. 25 Pois o pão de Deus é<br />

este que desceu do céu e dá vida ao mundo.<br />

30. Que sinal fazes? Esta perversidade prova sobejamente<br />

quão verdadeiro é o que se diz em outra parte: Esta geração perversa<br />

busca um sinal [Mt 12.39]. A princípio, deixaram-se atrair por<br />

Cristo pela admiração de seus milagres ou sinais, e posteriormente,<br />

24 “Quelle œuvre fais-tu?” – “Que obra tu fazes?”<br />

25 “Moyse ne vous a point donné le pain du ciel, mais mon Pere vous donne le vray pain du<br />

ciel”. – “Moisés não vos deu o pão do céu, meu Pai, porém, vos dá o verdadeiro Pai do<br />

céu”.


266 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

mediante o espanto causado por um novo sinal, reconheceram a<br />

Cristo como o Messias, e, com tal convicção, quiseram fazê-lo rei.<br />

Agora, porém, exigem dele um sinal, como se ele lhes fosse um estranho.<br />

Donde procede um esquecimento tão súbito, senão porque<br />

são ingratos a Deus e, através de sua própria malícia, são cegos em<br />

relação a seu poder, o qual está diante de seus olhos? Tampouco<br />

pode haver dúvida de que tratam desdenhosamente todos os milagres<br />

que já tinham visto, porque Cristo não satisfaz seus desejos, e<br />

porque não acham nele o que imaginavam encontrar. Se lhes tivesse<br />

gerado expectativa de felicidade terrena, ele teria sido nobremente<br />

aplaudido por eles. Indubitavelmente, o teriam aclamado como um<br />

Profeta, o Messias e o Filho de Deus. Agora, porém, visto que os<br />

culpa por serem tão aferrados à carne, concluem que não devem<br />

ouvi-lo mais um momento sequer.<br />

E, nos dias atuais, quantos existem que se assemelham a eles!<br />

A princípio, porque prometem a si próprios que Cristo elogiará seus<br />

vícios, solicitamente abraçam o evangelho e não exigem nenhuma<br />

comprovação dele, mas quando são chamados a negar a carne e a tomar<br />

a cruz, então começam a renunciar a Cristo e a perguntar donde<br />

veio o evangelho. Em suma, assim que Cristo deixa de atender suas<br />

orações, também deixa de ser seu Mestre.<br />

31. Nossos pais comeram o maná no deserto. Assim vemos que<br />

Cristo põe seu dedo na ferida, quando lhes disse que tinham vindo<br />

como bestas selvagens a encher seu estômago, pois revelaram essa<br />

grosseira disposição, quando demandam um Messias por quem fossem<br />

alimentados. E quanto aos termos honrosos com que exaltam a<br />

graça de Deus no maná, fazem isso maquiavelicamente, a fim de sepultar<br />

a doutrina de Cristo, por meio da qual ele os condenou pelo desejo<br />

imoderado de alimento corruptível, porquanto o contrastam com o<br />

honroso título outorgado ao maná, quando o chamaram de pão celestial.<br />

Mas quando o Espírito Santo outorga ao maná o honroso título pão<br />

do céu [Sl 78.24], não é com essa intenção, como se Deus alimentasse<br />

o povo à semelhança de suínos, e não lhes desse nada mais valioso, e,


Capítulo 6 • 267<br />

portanto, estão destituídos de justificativa quando impiamente rejeitam<br />

o alimento espiritual da alma, o qual Deus ora lhes oferece.<br />

32. Em verdade, em verdade vos digo: Moisés não vos deu pão do<br />

céu. Cristo parece contradizer o que citou do Salmo, mas ele fala apenas<br />

à guisa de comparação. O maná () é chamado o pão do céu, mas<br />

ele é para a nutrição do corpo. O pão, porém, que deve ser verdadeira<br />

e propriamente considerado celestial é aquele que fornece a nutrição<br />

espiritual à alma. Cristo, pois, faz um contraste aqui entre o mundo e<br />

o céu, porque não devemos buscar a vida incorruptível em outro lugar,<br />

senão no céu. Nesta passagem, verdade não é contrastada com sombras,<br />

como às vezes se faz em outros lugares, mas Cristo considera o que é<br />

a verdadeira vida do homem, ou em outros termos, o que é que o faz<br />

diferente dos animais brutos e excelente entre as criaturas.<br />

Meu Pai vos dá o verdadeiro pão do céu. Ao acrescentar essas<br />

palavras, o significado é: “O maná que Moisés deu a vossos pais não<br />

veio acompanhado de vida celestial, mas agora a vida celestial vos é<br />

realmente exibida”. Aliás, é ao Pai que ele chama o doador desse pão,<br />

mas ele quer dizer que ele é dado por suas próprias mãos. Assim, o<br />

contraste se relaciona não com Moisés e Deus, mas com Moisés e<br />

Cristo. Ora, Cristo representa seu Pai antes que a si próprio como o<br />

Autor desse dom, a fim de granjear para si mais profunda reverência,<br />

como se quisesse dizer: “Reconhecei-me como o ministro de Deus, por<br />

cujas mãos ele quer alimentar-vos para a vida eterna”. Mas, repetindo,<br />

isso parece ser inconsistente com a doutrina de Paulo, o qual chama<br />

o maná alimento espiritual [1Co 10.3]. Respondo que Cristo fala segundo<br />

a capacidade daqueles com quem estava tratando, e isso não<br />

é incomum na Escritura. Vemos quão diversamente Paulo fala sobre<br />

a circuncisão. Quando escreve sobre a ordenança, ele a chama o selo<br />

da fé [Rm 4.11], mas quando disputa com os falsos apóstolos, ele a<br />

chama, ao contrário, selo da maldição, e isso por tomá-la com as qualidades<br />

que se lhe atribuíam, segundo a opinião deles. 26 Consideremos<br />

26 “Et ce en la prenant avec les qualitez qu’ils luy attribuoyent, et selon leur sens”.


268 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

qual era a objeção feita contra Cristo, isto é, que ele não provava ser<br />

o Messias caso não suprisse seus seguidores com alimento corporal.<br />

Consequentemente, ele não inquire sobre o que era aquilo que era prefigurado<br />

pelo maná, mas afirma que o pão com que Moisés alimentou<br />

seus estômagos não era o pão verdadeiro.<br />

33. Porque o pão de Deus. Cristo raciocina negativamente,<br />

partindo da definição para a coisa definida, desta maneira: “O pão<br />

celestial é aquele que desceu do céu para dar vida ao mundo. No maná<br />

não existe nada desse gênero, e, por isso, o maná não era o pão celestial”.<br />

Ao mesmo tempo, porém, ele confirma o que anteriormente<br />

dissera, isto é, que é o enviado do Pai a fim de alimentar os homens<br />

de uma maneira muito mais excelente do que fez Moisés. Aliás, o<br />

maná desceu do céu visível, isto é, das nuvens, porém não do reino<br />

eterno de Deus, do qual nos flui a vida. E os judeus, a quem Cristo<br />

fala, não olhavam para além dos ventres de seus pais que ficaram<br />

bem empanturrados e gordos no deserto.<br />

O que ele anteriormente chamou de o pão do céu, agora chama<br />

de o pão de Deus, não que o pão que nos sustenta na presente vida<br />

provenha de algum outro lugar além de Deus, mas porque somente<br />

aquele que pode ser considerado o pão de Deus 27 é que vivifica as<br />

almas para uma bendita imortalidade. Esta passagem nos ensina que<br />

o mundo inteiro está morto em relação a Deus, a não ser quando<br />

Cristo o vivifica, porque não se achará vida em nenhum outro lugar<br />

a não ser nele.<br />

Que desceu do céu. Sobre esse descer do céu, duas coisas são dignas<br />

de observação: em primeiro lugar, que temos uma vida divina em<br />

Cristo, porque ele veio de Deus para ser o Autor da vida para nós. Em<br />

segundo lugar, que a vida celestial está perto de nós, de modo que não<br />

precisamos voar acima das nuvens nem atravessar o mar [Dt 30.12, 13,<br />

Rm 10.6-8]. A razão por que Cristo desceu a nós é que ninguém podia<br />

subir [até ele].<br />

27 “Pain de Dieu”.


Capítulo 6 • 269<br />

[6.34-40]<br />

Por isso, eles lhe disseram: Senhor, dá-nos sempre desse pão.<br />

Jesus lhes disse: Eu sou o pão da vida, aquele que vem a mim<br />

jamais terá fome, e aquele que crê em mim jamais terá sede. Eu,<br />

porém, já vos disse que também vós me vistes, e não me credes.<br />

Todos quantos o Pai me dá virá a mim, e aquele que vem a<br />

mim não o lançarei fora, porque eu desci do céu, não para fazer<br />

minha própria vontade, mas a vontade daquele que me enviou.<br />

E esta é a vontade do Pai que me enviou, que de todos que me<br />

deu a nenhum eu perca, mas o ressuscite no último dia. E esta é<br />

a vontade de quem me enviou, que todo aquele que vê o Filho,<br />

e nele crê, tenha a vida eterna, e eu o ressuscite no último dia.<br />

34. Dá-nos sempre desse pão. Não há dúvida de que eles falam<br />

ironicamente, para acusarem a Cristo de fútil vanglória, quando ele<br />

afirma ser capaz de dar a vida eterna. Assim os homens desditosos, enquanto<br />

rejeitam as promessas de Deus, não se satisfazem com apenas<br />

este mal, mas põem a Cristo no lugar deles, como se ele fosse responsável<br />

por sua incredulidade.<br />

35. Eu sou o pão da vida. Primeiro, ele mostra que o pão que eles<br />

pediram com escárnio se acha diante de seus olhos, e, segundo, ele os<br />

reprova. Ele parte da doutrina para fazer mais evidente que eles eram<br />

culpados de ingratidão. Há duas partes da doutrina, pois ele mostra<br />

onde devemos buscar a vida e como podemos obtê-la. Sabemos o que<br />

propiciou ocasião para Cristo usar essas metáforas, foi porque o maná<br />

e o alimento diário tinham sido mencionados. Mas ainda esta figura é<br />

mais bem adaptada para ensinar pessoas ignorantes do que o estilo<br />

simples. Quando comemos pão para a nutrição do corpo, vemos mais<br />

claramente não só nossa própria debilidade, mas também o poder<br />

da graça divina, do que se, sem pão, Deus fosse comunicar um poder<br />

secreto para nutrir o próprio corpo. Assim, a analogia que é traçada<br />

entre o corpo e a alma nos capacita a perceber mais claramente a graça<br />

de Cristo. Pois quando aprendemos que Cristo é o pão por meio do


270 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

qual nossas almas devem ser alimentadas, isso penetra mais profundamente<br />

em nossos corações do que se Cristo simplesmente dissesse<br />

que ele é nossa vida.<br />

Deve-se observar, contudo, que a palavra pão não expressa o poder<br />

vivificante de Cristo tão plenamente como o sentimos, porque pão<br />

não dá origem à vida, mas nutre e sustenta essa vida que já possuímos.<br />

Mas, pela bondade de Cristo, não só continuamos a possuir vida, mas<br />

temos o princípio da vida, e por isso a comparação é em parte imprópria.<br />

Porém, não existe inconsistência nisso, pois Cristo adapta seu<br />

estilo às circunstâncias do discurso que previamente enunciara. Agora<br />

surgiu a pergunta: Qual dos dois era mais eminente em alimentar os<br />

homens: Moisés ou Cristo mesmo? Essa é também a razão por que ele<br />

o chama apenas pão, pois foi somente o maná que serviu de objeção<br />

contra ele, e por isso considerou suficiente contrastar com ele um tipo<br />

distinto de pão. A doutrina simples é: “Nossas almas não vivem, por<br />

assim dizer, por um poder intrínseco, ou seja, por um poder inerente<br />

que possuam em si mesmas, 28 mas emprestam vida de Cristo”.<br />

Aquele que vem a mim. Ele agora define a forma de se apropriar<br />

desse alimento, a saber, quando recebemos Cristo pela fé. Porque para<br />

os incrédulos não há valor algum em Cristo ser o pão da vida, porque<br />

permanecem sempre vazios, mas então Cristo se torna nosso pão, ao<br />

chegarmo-nos a ele como pessoas famintas, a fim de ele nos sacie. Ir a<br />

Cristo e crer nele significam, nesta passagem, a mesma coisa. A primeira<br />

expressão, porém, se destina a expressar o efeito da fé, isto é, que<br />

é em consequência de ser conduzido pelo senso de nossa fome que<br />

corremos para Cristo em busca da vida.<br />

Os que inferem desta passagem que comer a Cristo é fé, e nada<br />

mais, raciocinam inconclusivamente. Prontamente reconheço que não<br />

há outro modo para comermos a Cristo senão crendo, comer, porém,<br />

é o efeito e fruto da fé, e não a fé propriamente dita. Porque a fé não<br />

visualiza Cristo somente à distância, senão que o abraça para que ele<br />

28 “Qu’elles ayent en elles naturellement”.


Capítulo 6 • 271<br />

venha a ser nosso e habite em nós. Ela nos faz incorporados nele, a<br />

fim de termos vida em comum com ele e, em suma, nos tornarmos um<br />

com ele [Jo 17.21]. Portanto, é verdade que tão-somente pela fé é que<br />

comemos a Cristo, desde que também entendamos de que maneira a<br />

fé nos une a ele.<br />

Jamais terá sede. É como se esse elemento fosse adicionado sem<br />

qualquer razão plausível, porquanto a função do pão não é matar a<br />

sede, mas aplacar a fome. Cristo, pois, atribui ao pão mais do que o<br />

permite sua natureza. Eu já disse que ele emprega só a palavra pão,<br />

porque a comparação entre o maná e o poder celestial de Cristo a<br />

requeria, por meio do qual nossas almas são sustentadas na vida. Ao<br />

mesmo tempo, por meio da palavra pão ele tem em mente, em termos<br />

gerais, tudo quanto nos nutre, e isso segundo o costume ordinário de<br />

sua nação. Pois os hebreus, pela figura de linguagem chamada sinédoque,<br />

usam a palavra pão para qualquer refeição, e quando falamos de<br />

Deus como sendo nosso pão diário [Mt 6.11], incluímos beber e todas<br />

as demais partes da vida. O significado, pois, é este: “Quem quer que<br />

recorra a Cristo para ter a vida dele, de nada terá falta, mas terá em<br />

abundância tudo quanto contribua para o sustento da vida”.<br />

36. Eu, porém, vos disse. Ele agora os reprova por impiamente<br />

rejeitarem o dom de Deus que lhes é oferecido. Ora, quem rejeita o<br />

que ele sabe ser-lhe dado por Deus, se faz culpado de perversamente<br />

desprezar a Deus mesmo. Se Cristo não tivesse feito conhecido seu<br />

poder, e claramente demonstrado que veio da parte de Deus, o pleito<br />

da ignorância poderia ter aliviado sua culpa, mas quando rejeitam a<br />

doutrina daquele a quem previamente reconheceram como sendo o<br />

Messias do Senhor, isso equivale a extrema vileza. É realmente certo<br />

que os homens jamais resistem a Deus propositadamente, ao ponto<br />

de refletir que nada têm a ver com Deus, e a isso se aplica o dito de<br />

Paulo: Jamais teriam crucificado o Senhor da glória, caso o tivessem<br />

conhecido [1Co 2.8]. Os incrédulos, porém, visto que voluntariamente<br />

fecham seus olhos contra a luz, são declarados com justiça que veem<br />

aquilo que imediatamente se desvanece de sua vista, porque Satanás


272 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

obscurece seus entendimentos. Isso, pelo menos, está além de toda<br />

controvérsia, a saber, quando ele disse que viam, não devemos entendê-lo<br />

como a falar de sua aparência corporal, mas, antes, que descreve<br />

sua voluntária cegueira, porque poderiam ter conhecido o que ele era,<br />

caso sua malícia não os impedisse.<br />

37. Todos quantos o Pai me dá. Para que a incredulidade deles<br />

nada detraísse de sua doutrina, ele diz que a causa de tão profunda<br />

obstinação era o fato de serem réprobos e de não pertencerem ao rebanho<br />

de Deus. Sua intenção, pois, ao fazer distinção entre os eleitos<br />

e os réprobos, é para que a autoridade de sua doutrina permanecesse<br />

inalterada, ainda que houvesse muitos que não cressem nela.<br />

Pois, de um lado, os ímpios caluniavam e desprezavam totalmente a<br />

Palavra de Deus, porque não se deixavam mover de reverência por<br />

ela. Do outro, muitas pessoas fracas e ignorantes nutriam dúvidas se<br />

aquilo que é rejeitado pela maioria do mundo seja realmente a Palavra<br />

de Deus. Cristo enfrenta essa ofensa quando afirma que todos<br />

aqueles que não creem não lhe pertencem, e que não precisamos<br />

ficar surpresos se tais pessoas não têm nenhum prazer na Palavra de<br />

Deus, mas que ela é abraçada por todos os filhos de Deus. Em primeiro<br />

lugar, ele diz que todos quantos o Pai lhe deu vão a ele, com isso<br />

significando que a fé não é algo que dependa da vontade dos homens,<br />

de modo que esta ou aquela pessoa crê, de maneira indiscriminada e<br />

à revelia, mas que Deus elegeu aqueles a quem ele estendeu, por assim<br />

dizer, a seu Filho. Pois quando ele diz que, todo o que é dado vem,<br />

disto inferimos que nem todos vêm. Repetindo, inferimos que Deus<br />

opera em seus eleitos com tal eficácia do Espírito Santo, que nenhum<br />

deles apostata, pois o verbo dar tem o mesmo significado como se<br />

Cristo dissesse: “Aqueles que o Pai escolheu, ele os regenera e me dá,<br />

para que obedeçam ao evangelho”.<br />

E aquele que vem a mim, não o lançarei fora. Isso é adicionado<br />

para a consolação dos santos, para que possam ser plenamente<br />

persuadidos de que têm livre acesso a Cristo pela fé, e para que, tão<br />

logo se tenham colocado sob sua proteção e guarda, sejam graciosa-


Capítulo 6 • 273<br />

mente recebidos por ele. Daí se segue que a doutrina do evangelho<br />

será salutar a todos os crentes, porque ninguém se faz discípulo de<br />

Cristo sem que não, em contrapartida, sinta e experimente ser ele um<br />

bom e fiel mestre.<br />

38. Porque eu desci do céu. Esta é uma confirmação da afirmação<br />

precedente, ou seja: que não buscamos a Cristo em vão. Porque a fé é<br />

uma obra divina, por meio da qual Deus mostra que somos seu povo<br />

e designa seu Filho para ser o protetor de nossa salvação. Ora, o Filho<br />

não tem outro desígnio senão cumprir as ordens de seu Pai. Consequentemente,<br />

ele jamais rejeitará aqueles a quem o Pai tem enviado a<br />

ele. Daí, finalmente, se deduz que a fé jamais será infrutífera. Quanto à<br />

distinção que Cristo faz entre sua própria vontade e a vontade do Pai,<br />

neste aspecto, ele se acomoda a seus ouvintes, porque, como a mente<br />

humana se inclina à desconfiança, costumamos inventar alguma diversidade<br />

que produz hesitação. Com o fim de eliminar todo pretexto das<br />

imaginações perversas, Cristo declara que ele se manifestou ao mundo<br />

a fim de poder realmente ratificar o que o Pai decretou concernente<br />

a nossa salvação.<br />

39. E esta é a vontade do Pai. Ele agora testifica que este é o<br />

desígnio do Pai: que os crentes encontrem salvação assegurada em<br />

Cristo, do que novamente se segue que todos quantos não tiram proveito<br />

da doutrina do evangelho são réprobos. Por isso, se virmos que<br />

ela se reverte na ruína de muitos, não temos razão para desapontamento,<br />

porquanto tais pessoas, voluntariamente, atraem o mal para<br />

si mesmas. Descansemos felizes neste fato: o evangelho terá sempre o<br />

poder de congregar os eleitos para a salvação.<br />

Que a nenhum eu perca. Isto é: “Que eu não permita que seja<br />

tirado de mim, ou que pereça”, pelo que ele quer dizer que não é o<br />

guardião de nossa salvação por apenas um dia, ou por uns poucos dias,<br />

mas que cuidará dela até o fim, de modo que nos conduzirá, por assim<br />

dizer, do início ao término de nossa trajetória. Esta promessa nos é<br />

prioritariamente necessária, a nós que miseravelmente gememos sob<br />

tão grande debilidade da carne, do que cada um de nós é suficiente-


274 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

mente cônscio, e de fato a cada momento a salvação do mundo inteiro<br />

ficaria arruinada não fosse o fato de que os crentes, sustentados pela<br />

mão de Cristo, avançam ousadamente rumo ao dia da ressurreição.<br />

Portanto, que isto fique bem fixo em nossa mente: que Cristo nos estendeu<br />

sua mão não para nos perder no meio da trajetória, mas para<br />

que, confiando em sua benevolência, ergamos ousadamente nossos<br />

olhos para o dia final.<br />

Há, ainda, outra razão por que ele menciona a ressurreição. É porque,<br />

enquanto nossa vida estiver oculta [Cl 3.3], somos como pessoas<br />

mortas. Porque, em que aspecto os crentes diferem dos ímpios, senão<br />

que, esmagados por aflições, e como ovelhas destinadas ao matadouro<br />

[Rm 8.36], tendo sempre um pé no túmulo e, deveras, não estamos<br />

longe de ser continuamente tragados pela morte? E assim não resta ali<br />

nenhum outro apoio de nossa fé e paciência senão este: que percamos<br />

de vista a condição da presente vida, e apliquemos nossas mentes e<br />

nossos sentidos ao último dia, vencendo as obstruções do mundo, até<br />

que o fruto de nossa fé por fim entre em cena.<br />

40. E esta é a vontade daquele que me enviou. Ele dissera que<br />

o Pai lhe confiara a proteção de nossa salvação, e agora também descreve<br />

a maneira em que ela é realizada. Portanto, o caminho para a<br />

obtenção da salvação é a obediência ao evangelho de Cristo. Aliás,<br />

este ponto ele relanceara um pouco antes, mas agora expressa mais<br />

plenamente o que falara em termos um tanto obscuramente. E se a<br />

vontade de Deus é que aqueles a quem ele elegera sejam salvos, e se<br />

dessa forma se ratifica e se executa seu eterno decreto, seja quem for<br />

que não estiver satisfeito com Cristo, mas se entrega a curiosas inquirições<br />

acerca da eterna predestinação, tal pessoa, o quanto estiver<br />

em seu poder, deseja ser salva de um modo contrário ao propósito de<br />

Deus. A eleição divina é em sua própria natureza oculta e secreta, o<br />

Senhor a manifesta através da vocação, isto é, quando ele nos outorga<br />

esta bênção: nos chamando. 29<br />

29 “C’est à dire, quand il nous fait ce bien de nous appeler”.


Capítulo 6 • 275<br />

Portanto, são dementes os que buscam sua própria salvação, ou a<br />

de outros, no sorvedouro da predestinação, não guardando o caminho<br />

da salvação que lhes é exibido. Ainda mais: por meio dessa tola especulação,<br />

diligenciam em subverter a força e o efeito da predestinação,<br />

pois se Deus nos elegeu para este fim, para que creiamos, suprima-se<br />

a fé e a eleição será imperfeita. Mas não temos o direito de quebrar a<br />

ordem e a sucessão do princípio e do fim, visto que Deus, por meio de<br />

seu propósito, decretou e determinou que ele prosseguirá inquebrável.<br />

30 Além disso, visto que a eleição divina, por um laço indissolúvel,<br />

mantém sua vocação unida a si, assim quando Deus eficazmente nos<br />

chama à fé em Cristo, que isto tenha tal importância para nós como<br />

se ele estampasse seu selo para ratificar seu decreto concernente a<br />

nossa salvação. Pois o testemunho do Espírito Santo nada mais é do<br />

que a selagem de nossa adoção [Rm 8.15]. A cada pessoa, pois, sua fé é<br />

uma suficiente atestação da eterna predestinação divina, de modo que<br />

seria um chocante sacrilégio 31 levar a investigação além disso, pois tal<br />

pessoa faz um agravante insulto ao Espírito Santo, se porventura se<br />

recusa a dar seu assentimento a seu simples testemunho.<br />

Todo aquele que vê o Filho e nele crê. Ele usa os verbos ver e<br />

crer em contraste com o que dissera previamente, pois ele reprovou<br />

os judeus por não crerem, ainda quando viram [v. 36]. Agora, porém, falando<br />

dos filhos de Deus, com a consciência que tem do poder de Deus<br />

em Cristo, ele anexa a obediência da fé. Além do mais, essas palavras<br />

mostram que a fé procede do conhecimento de Cristo, não que ela deseje<br />

algo além da simples palavra de Deus, mas porque, se confiarmos<br />

em Cristo, devemos perceber o que ele é e o que ele nos traz.<br />

[6.41-45]<br />

Os judeus, portanto, murmuravam contra ele, porque dissera:<br />

Eu sou o pão que desceu do céu. E diziam: Não é este Jesus<br />

30 “Or ne nous est-il permis de rompre l’ordre et la cuite du commencement avec la fin, puis<br />

que Dieu par son conseil lá a ainsi ordonné et voulu que cela allast d’in fil”.<br />

31 “Un sacrilege horrible”.


276 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

o filho de José, cujo pai e mãe conhecemos? Como, pois, ele<br />

diz: Eu desci do céu? Jesus, pois, respondeu e lhes disse: Não<br />

murmureis entre vós. Ninguém pode vir a mim, se o Pai que<br />

me enviou não o trouxer, e eu o ressuscitarei no último dia.<br />

Está escrito nos Profetas: E serão todos ensinados por Deus,<br />

portanto, todo aquele que de meu Pai ouviu e aprendeu, 32 esse<br />

virá a mim.<br />

41. Os judeus, portanto, murmuravam contra ele. O evangelista<br />

explica a causa da murmuração, a saber, que os judeus se sentiram escandalizados<br />

com a condição humilde da natureza humana 33 de Cristo,<br />

e não perceberam nele coisa alguma divina ou celestial. Não obstante,<br />

ele mostra que eles tinham uma dupla obstrução. Uma delas, eles<br />

mesmos forjaram de uma falsa opinião, quando disseram: Não é este<br />

Jesus o filho de José, cujo pai e mãe conhecemos? Outra é oriunda de<br />

um sentimento perverso, a saber, não criam que Cristo fosse o Filho de<br />

Deus, porque ele desceu aos homens vestido de nossa carne. 34 Mas seremos<br />

culpados de excessiva malignidade se desprezarmos o Senhor<br />

da glória só porque ele se esvaziou e assumiu a forma de servo [Fp 2.7].<br />

Porque esta foi, acima de tudo, uma eminente prova de seu infinito<br />

amor para conosco e de sua maravilhosa graça. Além disso, a majestade<br />

divina de Cristo não ficou tão velada sob a humilde e desprezível<br />

aparência da carne, ao ponto de não exibir os raios de sua magnificência<br />

de variadas formas, mas aqueles homens rudes e estúpidos não<br />

tinham olhos para verem sua glória honrosa e clara.<br />

Também pecamos em ambas essas formas. Primeiro, constitui-se-<br />

-nos um grande entrave o fato de que é somente com os olhos carnais<br />

que visualizamos a Cristo. E esta é a razão porque nada de honroso percebemos<br />

nele, porque, por nossa pecaminosa visão pervertemos tudo<br />

o que pertence a ele e a sua doutrina. Tão incapazes somos de tirar de<br />

32 “Quiconque donc a ouy mon Pere, et a appris”.<br />

33 “De la petitesse de Cristo, et de sa humaine condition” – “na insignificância de Cristo e de<br />

sua condição humana”.<br />

34 “Prenant nostre chair”.


Capítulo 6 • 277<br />

ambos algum proveito ou de ver ambos por um prisma correto. 35 <strong>Segundo</strong>,<br />

não satisfeitos com isso, adotamos muitas falsas imaginações,<br />

as quais produzem menosprezo pelo evangelho. Sim, há inclusive muitos<br />

que engendram para si monstros, para os transformar em pretexto<br />

para odiarem o evangelho. E assim, o mundo deliberadamente descarta<br />

a graça de Deus. Ora, o evangelista expressamente aponta para os<br />

judeus a fim de nos informar que a murmuração procedia dos que se<br />

gloriam no rótulo da fé e da Igreja, para que todos nós aprendamos a<br />

receber Cristo com reverência, quando ele descer a nós, e para o que,<br />

na proporção que ele se chegar a nós, mais alegremente nos cheguemos<br />

a ele, para que nos eleve a sua glória celestial.<br />

43. Não murmureis entre vós. Ele lhes devolve a causa da murmuração,<br />

como se quisesse dizer: “Minha doutrina não contém base<br />

para escândalo, visto, porém, serdes réprobos, vos irritais vomitando<br />

vosso veneno, e a razão de não gostardes dela é porque vosso paladar<br />

está viciado.<br />

44. Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o<br />

trouxer. Ele não os acusa meramente de perversidade, mas também<br />

os lembra de ser um dom peculiar de Deus a graça de abraçar a doutrina<br />

que é exibida por ele. Isso ele faz para que a incredulidade deles<br />

não viesse a perturbar as mentes frágeis. Pois muitos são tão néscios<br />

que, nas coisas de Deus, dependem das opiniões dos homens. Em<br />

consequência do que, nutrem suspeitas contra o evangelho, tão logo<br />

veem que ele não está sendo recebido pelo mundo. Os incrédulos,<br />

em contrapartida, gabando-se de sua obstinação, têm a audácia de<br />

condenar o evangelho só porque ele não os agrada. Ao contrário,<br />

pois, Cristo declara que a doutrina do evangelho, ainda que seja<br />

proclamada a todos sem exceção, não pode ser abraçada por todos,<br />

mas que se requer uma nova compreensão e uma nova percepção, e,<br />

portanto, que a fé não depende da vontade humana, mas que é Deus<br />

quem a dá.<br />

35 “Tant nous sommes mal adroits à faire nostre profit des choses, et les prendrre de la<br />

soete qu’il faut”.


278 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Se o Pai não o trouxer. Ir a Cristo é usado aqui metaforicamente<br />

para crer nele, tencionando o evangelista realçar a metáfora da sentença<br />

adjunta, dizendo que tais pessoas são trazidas [ou atraídas] para<br />

que Deus ilumine seus entendimentos, e cujos corações ele curve e<br />

forme para a obediência de Cristo. A afirmação equivale a isto: que<br />

não devemos admirar-nos se muitos se recusam a abraçar o evangelho,<br />

porque ninguém jamais será por si mesmo capaz de ir a Cristo, a<br />

não ser que Deus, antes, o aproxime por seu Espírito. E daí se segue<br />

que nem todos são atraídos, mas que Deus outorga esta graça àqueles<br />

a quem ele elegeu. Aliás, quanto ao modo de atrair, ele não é violento<br />

ao ponto de compelir os homens por força externa, mas ainda é um<br />

poderoso impulso do Espírito Santo, o qual faz com que as pessoas<br />

queiram, quando anteriormente estavam indispostas e relutantes.<br />

Portanto, é uma asseveração falsa e profana dizer que ninguém é atraído,<br />

senão aqueles que queiram ser atraídos, 36 como se o ser humano<br />

pudesse voluntariamente ser obediente a Deus por seus próprios esforços,<br />

pois a disposição com que os homens seguem a Deus é a que<br />

eles já têm em si, a qual formou seus corações para obedecê-lo.<br />

45. Está escrito nos Profetas. Cristo confirma, pelo testemunho<br />

de Isaías, o que dissera: que ninguém pode ir a ele se o Pai não o trouxer.<br />

Ele usa a palavra profetas no plural, porque todas suas profecias<br />

estavam coligidas em um só volume, de modo a que todos os profetas<br />

fossem considerados um só livro. A passagem que é aqui citada<br />

se encontra em Isaías [54.13], onde, falando da restauração da Igreja,<br />

ele lhe promete que os filhos seriam ensinados pela instrução de Deus.<br />

Daí facilmente poder inferir-se que a Igreja não pode ser restaurada<br />

de qualquer outra forma senão por Deus empreendendo o ofício de<br />

Mestre e conduzindo os crentes a si. O método de ensino, de que fala<br />

o profeta, não consiste meramente na voz externa, mas igualmente na<br />

operação secreta do Espírito Santo. Em suma, esta docência de Deus<br />

consiste na iluminação interior do coração.<br />

36 “Que nuls ne sont tirez sinon ceux qui le veulent estre”.


Capítulo 6 • 279<br />

E serão todos ensinados por Deus. Quanto à palavra todos, ela deve<br />

limitar-se aos eleitos, os únicos que são verdadeiros filhos da Igreja.<br />

Ora, não é difícil ver de que maneira Cristo aplica esta predição ao presente<br />

tema. Isaías mostra que somente então é a Igreja verdadeiramente<br />

edificada, ou seja: quando ela tiver seus filhos instruídos por Deus. Cristo,<br />

pois, com razão conclui que os homens não têm olhos para visualizar a<br />

luz da vida, a não ser que Deus os abra. Ao mesmo tempo, porém, ele se<br />

firma na termo geral: todos. Porque ele deduz dela que todos os que são<br />

ensinados por Deus são eficazmente trazidos, a fim de que venham, e a<br />

isto se relaciona o que imediatamente adiciona:<br />

Todo aquele que de meu Pai ouviu e aprendeu. O equivalente<br />

disto é: que todos quantos não creem são réprobos e condenados à<br />

destruição, porquanto todos os filhos da Igreja e herdeiros da vida<br />

são por Deus feitos seus discípulos obedientes. Daí, segue-se que<br />

não há um sequer, dentre todos os eleitos de Deus, que deixará de<br />

ser um participante da fé em Cristo. 37 Repetindo, visto que Cristo<br />

previamente afirmara que os homens não têm condição de crer<br />

enquanto não forem atraídos, assim ele agora declara que a graça<br />

de Cristo, por meio da qual eles são atraídos, é eficaz, de sorte que<br />

necessariamente crerão.<br />

Estas duas sentenças subvertem completamente todo o poder do<br />

livre-arbítrio sonhado pelos papistas. Pois se somente quando o Pai<br />

nos atrai é que começamos a ir a Cristo, não há em nós qualquer princípio<br />

de fé, nem qualquer preparação para ela. Em contrapartida, se<br />

todos os que vão são aqueles a quem o Pai instrui, ele lhes dá não só a<br />

decisão de crer, mas também a própria fé [para crer]. Portanto, quando<br />

voluntariamente obedecemos à diretriz do Espírito, esta é uma<br />

parte e, por assim dizer, selagem da graça. Porque Deus não nos atrairia,<br />

se simplesmente estendesse sua mão e deixasse nossa vontade<br />

em um estado de indecisão. Mas, em estrita propriedade de linguagem<br />

lemos que ele nos atrai quando estende o poder de seu Espírito para<br />

37 “Qu’il n’y en a pas un de tous les eleus de Dieu qui ne viene à estre participant de la foy”.


280 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

o pleno efeito da fé. Lemos que ouvem a Deus, que voluntariamente<br />

permitem que Deus fale em seu íntimo, porque o Espírito Santo reina<br />

em seus corações.<br />

Vem a mim. Ele mostra a inseparável conexão que existe entre ele<br />

e o Pai. Pois o sentido é que é impossível que alguém seja discípulo de<br />

Deus e não obedeça a Cristo, e que os que rejeitam a Cristo se recusem<br />

a se deixar instruir por Deus. Porque a única sabedoria que todos<br />

os eleitos adquirem na escola de Deus é ir a Cristo, pois o Pai, que o<br />

enviou, não pode negar a si mesmo.<br />

[6.46-51]<br />

Não que alguém tenha visto o Pai, senão aquele que é de Deus,<br />

esse tem visto o Pai. Em verdade, em verdade vos digo: Aquele<br />

que crê em mim tem a vida eterna. Eu sou o pão da vida. Vossos<br />

pais comeram o maná no deserto e estão mortos. Este é o pão<br />

que desceu do céu para que alguém possa comer dele, e não<br />

morra. Eu sou o pão vivo que desceu do céu, se alguém comer<br />

deste pão, viverá para sempre, e o pão que eu darei é minha<br />

carne, a qual darei para a vida do mundo.<br />

46. Não que alguém tenha visto o Pai. Visto que ele até aqui esteve<br />

engrandecendo a graça de seu Pai, assim agora ele ardentemente<br />

dirige os crentes exclusivamente a si. Pois duas coisas devem ser<br />

mantidas juntas: que nenhum conhecimento de Cristo pode ser obtido<br />

enquanto o Pai não iluminar, com seu Espírito, os que são por<br />

natureza cegos, e, contudo, é inútil buscar a Deus, a menos que Cristo<br />

tome a vanguarda. Porque a majestade de Deus é tão gloriosa, que os<br />

sentidos humanos não podem atingi-la. Não só isso, mas todo aquele<br />

conhecimento de Deus que os homens pensariam que já receberam de<br />

Cristo seria um abismo mortal. Ao dizer que somente ele tem conhecido<br />

o Pai, sua intenção é dizer que é um ofício que lhe pertence de<br />

forma peculiar a prerrogativa de manifestar a Deus aos homens, o qual<br />

de outra forma continuaria oculto.


Capítulo 6 • 281<br />

47. Aquele que crê em mim. Esta é uma explanação da afirmação<br />

anterior. Pois com estas palavras aprendemos que é quando cremos<br />

em Cristo que Deus se faz conhecido a nós, porque só então começamos<br />

a ver, como num espelho, ou como numa imagem brilhante e<br />

vívida, Deus que antes era invisível. Execrável, pois, tudo quanto nos<br />

é declarado concernente a Deus, se não nos conduzir a Cristo. Já expliquei<br />

o que se deve crer em Cristo, pois não devemos imaginar uma<br />

fé confusa e vazia, a qual priva Cristo de seu poder, como os papistas<br />

que creem em Cristo apenas até onde são capazes de pensar. Pois a<br />

razão por que obtemos vida mediante a fé é que saibamos que todas<br />

as partes de nossa vida estão contidas em Cristo.<br />

Não é bem fundamentada a inferência que alguns extraem desta<br />

passagem – que crer em Cristo é o mesmo que comer a Cristo ou comer<br />

sua carne. Pois essas duas coisas diferem uma da outra como primeira<br />

e última. Assim, ir a Cristo e beber dele, porque ir a ele é primeiro em<br />

ordem. Reconheço que Cristo não é comido senão mediante a fé, mas a<br />

razão é porque recebemo-lo pela fé, para que ele habite em nós e para<br />

que nos tornemos participantes dele, e assim sejamos um com ele.<br />

Comê-lo, pois, é um efeito ou obra da fé.<br />

48. Eu sou o pão da vida. Além do que disse previamente, que ele<br />

é o pão gerador de vida, por meio do qual nossas almas são nutridas,<br />

a fim de explicá-lo mais plenamente, ele igualmente reitera o contraste<br />

entre esse pão e o antigo maná, associado a uma comparação dos<br />

homens.<br />

49. Vossos pais comeram o maná no deserto, e estão mortos. Ele<br />

diz que o maná era um alimento perecível dado a seus pais, porque<br />

ele não os isentou da morte. Segue-se, pois, que as almas não encontram<br />

aquele alimento em qualquer outra parte senão nele, pelo qual<br />

são nutridos para a vida eterna. Além disso, devemos recordar o que<br />

afirmei previamente, a saber, o que ele diz aqui não se relaciona com o<br />

maná, até onde ele era uma figura secreta de Cristo, pois nesse aspecto<br />

Paulo o chama alimento espiritual [1Co 10.3]. Mas já dissemos que<br />

Cristo aqui acomoda seu discurso aos ouvintes, os quais, cuidando


282 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

tão-somente do alimento para o estômago, nada mais conseguiam ver<br />

mais elevado no maná. Portanto, com razão ele declara que seus pais<br />

estão mortos, isto é, aqueles que, da mesma maneira, se devotaram<br />

ao estômago, ou em outros termos, que não pensavam em nada mais<br />

elevado do que este mundo. 38 E, todavia, ele os convida a comerem,<br />

quando diz que veio para que alguém pudesse comer, pois essa forma<br />

de expressão tem o mesmo sentido se ele dissesse que já está pronto a<br />

doar-se a todos, desde que estejam dispostos a crer, para que nenhum<br />

dos que uma vez comeram a Cristo morra – seria entendido neste sentido:<br />

a vida que ele nos outorga jamais se extinguirá, como afirmamos<br />

no quinto capítulo.<br />

51. Eu sou o pão vivo. Ele reitera frequentemente a mesma coisa,<br />

porque nada é mais necessário ser apreendido, e cada um sente em si<br />

com que dificuldade é levado a crer e quão facilmente e depressa se esvai<br />

e se esquece. 39 Todos nós queremos vida, mas ao buscá-la néscia e<br />

impropriamente vagueamos em círculos concêntricos. E quando ela é<br />

oferecida, a maioria a rejeita desdenhosamente. Pois quem não se dispõe<br />

a inventar para si vida fora de Cristo? E quão poucos há que estão<br />

satisfeitos somente com Cristo! Portanto, não é uma reiteração supérflua<br />

quando Cristo assevera tão frequentemente que ele é o único que<br />

pode dar vida. Pois ele reivindica para si a designação de pão a fim de<br />

arrancar de nossos corações todas as esperanças falazes de viver.<br />

Havendo previamente chamado a si mesmo de o pão da vida, agora<br />

se denomina de o pão vivo, porém no mesmo sentido, isto é, o pão<br />

gerador de vida. O qual desceu do céu. Ele faz frequente menção de<br />

sua descida do céu, visto que a vida espiritual e incorruptível não se<br />

encontra neste mundo, cuja forma passa e se desvanece, mas somente<br />

no reino celestial de Deus.<br />

Se alguém comer deste pão. Sempre que usa a palavra comer, ele<br />

nos exorta à fé, a qual é o único elemento que nos capacita a desfru-<br />

38 “C’est à dire, ne pensoyent plus haut que ce monde”.<br />

39 “Il nous escoule et vient à estre mis en oubli”.


Capítulo 6 • 283<br />

tar deste pão, a fim de derivarmos vida dele. 40 Tampouco é sem boas<br />

razões que ele age assim, pois há poucos que se dignam de estender<br />

sua mão para levar este pão a sua boca. E ainda quando o Senhor o<br />

põe em sua boca, há poucos que o degustam com real prazer, senão<br />

que alguns se enchem de vento e outros – como Tântalo – morrem de<br />

inanição em virtude de sua própria estultícia, enquanto o alimento se<br />

acha bem diante deles.<br />

O pão que darei é minha carne. Como este poder secreto de<br />

outorgar vida, do qual ele tem falado, pode referir-se a sua essência<br />

divina, ele agora dá um segundo passo e mostra que essa vida está<br />

situada em sua carne para que seja daí extraída. Indubitavelmente, é<br />

um maravilhoso propósito divino que Deus nos tenha exibido a vida<br />

nessa carne, onde anteriormente nada havia senão causa de morte. E,<br />

assim, ele provê para nossa fraqueza, quando não nos arrasta acima<br />

das nuvens para desfrutarmos da vida, senão que a exibe na terra, da<br />

mesma maneira como se ele nos fosse elevar até os segredos de seu<br />

reino. E não obstante, enquanto corrige a soberba de nossa mente,<br />

ele testa a humildade e obediência de nossa fé, quando ele prescreve<br />

aos que buscariam a vida a depositar confiança na carne dele, a qual é<br />

desprezível em sua aparência.<br />

Mas, uma objeção vem a lume, a saber, que a carne de Cristo não<br />

pode dar vida, porque ela era passível de morte, e porque ainda agora<br />

não é inerentemente imortal, e, em segundo lugar, que de forma alguma<br />

pertence à natureza da carne vivificar as almas. Minha resposta é que,<br />

embora tal poder emane de uma outra fonte distinta da carne, não obstante<br />

esta não é a razão por que a designação não possa aplicar-lhe com<br />

exatidão, pois como o eterno Verbo de Deus é a fonte da vida [Jo 1.4],<br />

assim sua carne, como um canal, nos comunica aquela vida que habita<br />

intrinsecamente, por assim dizer, em sua deidade. E, neste sentido, ela<br />

é chamada doadora de vida, porque nos comunica aquela vida que nos<br />

é emprestada de outra fonte. Isso não é difícil de entender, se conside-<br />

40 “Laquelle seule fait que nous tirons vie de ce pain”.


284 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

rarmos qual é a causa da vida, isto é, a justiça. E ainda que a justiça flua<br />

exclusivamente de Deus, todavia não recebemos a plena manifestação<br />

dela de algum outro lugar senão da carne de Cristo, pois nela se consumou<br />

a redenção do homem, nela ofereceu-se um sacrifício para expiar<br />

os pecados e prestou-se uma obediência a Deus para reconciliá-lo conosco,<br />

ela foi também plenificada com a santificação do Espírito e, por<br />

fim, tendo vencido a morte, foi recebida na glória celestial. Portanto,<br />

segue-se que todas as partículas da vida foram postas nela, para que<br />

ninguém tenha razão de queixa de que ele está privado da vida, como se<br />

ela estivesse posta em lugar oculto ou à distância.<br />

Que eu darei pela vida do mundo. O verbo dar é usado em vários<br />

sentidos. A primeira doação da qual ele falou anteriormente é feita diariamente,<br />

sempre que Cristo se nos oferece. A segunda denota aquela<br />

doação singular que foi feita na cruz, quando ele se ofereceu a seu Pai<br />

como um sacrifício. Ele se entregou à morte para a vida dos homens<br />

e agora nos convida a usufruir o fruto de sua morte. Porque não nos<br />

seria de nenhum valor que aquele sacrifício fosse uma vez oferecido,<br />

se agora não participássemos daquele sacro banquete. É preciso que<br />

também observemos que Cristo reivindica para si o ofício de sacrificar<br />

sua carne. Daí, com que ímpio sacrilégio os papistas se contaminam<br />

quando tomam sobre si, na missa, o que pertence exclusivamente<br />

Àquele singular Sumo Sacerdote.<br />

[6.52-58]<br />

Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como pode este<br />

homem dar-nos sua carne para comer? Jesus, pois, lhes disse:<br />

Em verdade, em verdade vos digo: A menos que comais a carne<br />

do Filho do homem, e bebais seu sangue, não tereis vida em<br />

vós. Aquele que comer minha carne, e beber meu sangue, tem<br />

a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque minha<br />

carne é verdadeiramente alimento, e meu sangue é verdadeiramente<br />

bebida. Aquele que come minha carne, e bebe meu<br />

sangue, permanece em mim, e eu nele. Como o Pai que vive me


Capítulo 6 • 285<br />

enviou, e eu vivo em função de meu Pai, e aquele que comer<br />

de mim, também viverá em função de mim. Este é o pão que<br />

desceu do céu, não como vossos pais que comeram o maná, e<br />

estão mortos, aquele que comer este pão viverá para sempre.<br />

52. Disputavam, pois, os judeus entre si. Uma vez mais, ele faz<br />

menção dos judeus, não à guisa de honra, mas com o intuito de censurá-los<br />

por sua incredulidade, porque não receberam a bem conhecida<br />

doutrina concernente à vida eterna, ou pelo menos, não fizeram uma<br />

humilde inquirição sobre o tema, se o mesmo era obscuro e dúbio.<br />

Pois quando diz que disputavam, é um sinal de obstinação e desdém,<br />

e os que disputam com tanta sutileza, na verdade obstruem contra si<br />

mesmos a estrada rumo ao conhecimento da verdade. E, no entanto,<br />

a culpa a eles imputada não é simplesmente que inquiriam sobre a<br />

maneira, pois a mesma culpa recairia sobre Abraão e a bendita Virgem<br />

[Gn 15.2, Lc 1.34]. Portanto, tais pessoas ou são extraviadas pela ignorância<br />

ou são tão carentes de hombridade que, sem levar em conta<br />

a audácia e veemência na disputa, que é o que o evangelista condena,<br />

dirigem toda sua vociferação contra a palavra como, como se não<br />

fosse lícito aos judeus inquirir sobre a maneira de comer a carne de<br />

Cristo. 41 Mas deve, antes, imputar-se à indolência do que atribuir-se<br />

à obediência da fé, se consciente e voluntariamente ficam sem solução<br />

as dúvidas e dificuldades que nos são removidas pela palavra do<br />

Senhor. Portanto, não só é lícito inquirir sobre a maneira de comer a<br />

carne de Cristo, mas nos é de grande importância entendê-la, até onde<br />

se faz conhecida nas Escrituras. Portanto, fora com aquele feroz e obstinado<br />

pretexto de humildade: “De minha parte, estou satisfeito com<br />

a palavra singular de Cristo, quando ele declara que sua carne é verdadeiramente<br />

alimento: de bom grado fecho meus olhos para todo o<br />

resto”. Como se os hereges não tivessem igual plausibilidade de seu<br />

lado, se de bom grado fossem ignorantes se Cristo foi recebido pelo<br />

41 “De manger la chair de Christ”.


286 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Espírito Santo, porque, crendo que ele é a semente de Abraão, param<br />

totalmente com sua inquirição. Só devemos preservar tal moderação<br />

acerca das obras secretas de Deus quando não quisermos saber nada<br />

mais além do que ele determina por sua palavra.<br />

53. Em verdade, em verdade eu vos digo. O justo ressentimento<br />

que Cristo sentiu 42 quando viu sua graça rejeitada com tão arrogante<br />

desdém o constrangeu a empregar este juramento. Pois ele agora não<br />

faz uso de simples doutrina, porém mistura igualmente ameaças com<br />

o propósito de infligir terror. Ele anuncia perdição eterna contra todos<br />

os que se recusam a buscar vida em sua carne, como se quisesse dizer:<br />

“Se vós mantendes minha carne em desprezo, estejais certos de que<br />

não vos restará nenhuma outra esperança de vida”. A vingança que<br />

aguarda todos os que desprezam a graça de Cristo consiste nisto: que<br />

perecerão miseravelmente juntamente com sua soberba, e a razão por<br />

que devem ser enfrentados com franqueza e severidade é para que<br />

não continuem a se orgulhar. Pois se ameaçamos com morte às pessoas<br />

enfermas que se recusam a tomar remédios, que devemos fazer<br />

com os perversos quanto tudo fazem a seu alcance para, quanto está<br />

em seu poder, destruir a própria vida?<br />

A menos que comais a carne do Filho do homem. Ao dizer: a<br />

carne do Filho do homem, a expressão é enfática, porque os reprova<br />

por seu desdém, o qual é oriundo de sua visão de que ele se assemelhava<br />

a outros homens. O significa, pois, é este: “Tanto quanto vos<br />

apraz, me desprezais em virtude da humilde e desprezível aparência<br />

de minha carne, a despeito de essa carne desprezível conter vida, e se<br />

estais destituídos dela, em parte alguma achareis algo mais que possa<br />

vivificar-vos”.<br />

Os antigos caíram em grosseiro erro de pressupor que as criancinhas<br />

ficavam privadas da vida eterna, se não lhes administrasse a<br />

eucaristia, isto é, a Ceia do Senhor, 43 porquanto este discurso não se<br />

relaciona com a Ceia do Senhor, e, sim, com a comunicação ininter-<br />

42 “Un juste despit que Christ a conceu”.<br />

43 “C’est à dire, la Cene”.


Capítulo 6 • 287<br />

rupta da carne de Cristo, 44 a qual obtemos à parte do uso da Ceia do<br />

Senhor. Tampouco estavam certos os boêmios quando deduziram desta<br />

passagem a prova de que todos, sem exceção, devem ser admitidos<br />

ao uso do cálice. Com respeito às crianças, a ordenança de Cristo as<br />

proíbe de participarem da Ceia do Senhor, porque ainda não são capazes<br />

de conhecer ou de celebrar a memória da morte de Cristo. A<br />

mesma ordenança torna o cálice comum a todos, pois ela ordena que<br />

todos nós o bebamos [Mt 26.27].<br />

54. Aquele que comer minha carne. Esta é uma reiteração, porém<br />

não supérflua, pois confirma o que era difícil de ser crido: que<br />

as almas alimentam de sua carne e de seu sangue, precisamente da<br />

mesma forma que o corpo é sustentado por comer e beber. Consequentemente,<br />

como ele acaba de testificar que nada senão a morte resta a<br />

todos quantos buscam a vida em outra parte que não seja em sua carne,<br />

assim agora ele instiga todos os crentes 45 a nutrir boa esperança,<br />

enquanto lhes promete vida na mesma carne.<br />

E o ressuscitarei no último dia. É preciso observar que Cristo<br />

mui frequentemente conecta a ressurreição com a vida eterna, porque<br />

nossa salvação estará oculta até aquele dia. Portanto, ninguém pode<br />

perceber o que Cristo nos outorga, a menos que, elevando-se acima do<br />

mundo, ponha diante de seus olhos a ressurreição final. À luz destas<br />

palavras transparece claramente que a totalidade desta passagem é<br />

explicada impropriamente quando aplicada à Ceia do Senhor. Pois se<br />

fosse verdade que todos os que se apresentam à santa mesa do Senhor<br />

são feitos participantes de sua carne e seu sangue, todos igualmente<br />

obteriam a vida, porém, sabemos que muitos dentre os que são participantes<br />

dela, fazem isso para sua condenação. E deveras teria sido<br />

tolo e irracional discutir sobre a Ceia do Senhor antes que ele a houvesse<br />

instituído. É certo, pois, que ele agora fala da maneira perpétua e<br />

ordinária de comer a carne de Cristo, o que é feito unicamente median-<br />

44 “De la chair de Christ”.<br />

45 “Tous les fideles”.


288 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

te a fé. 46 Ao mesmo tempo, porém, reconheço que aqui nada se diz que<br />

não seja representado em termos figurativos e realmente outorgado<br />

aos crentes na Cia do Senhor, e Cristo ainda pretendia que a Ceia do<br />

Senhor fosse, por assim dizer, um selo e confirmação 47 deste sermão.<br />

Esta é também a razão por que o evangelista <strong>João</strong> não faz menção da<br />

Ceia do Senhor. E, por isso, Agostinho segue a ordem natural quando,<br />

ao explicar este capítulo, não toca na Ceia do Senhor até chegue à<br />

conclusão. Então ele mostra que este mistério é simbolicamente representado,<br />

sempre que as igrejas celebrem a Ceia do Senhor em alguns<br />

lugares diariamente, e em outros lugares somente no dia do Senhor.<br />

55. Porque minha carne é verdadeiramente alimento. Ele<br />

confirma a mesma afirmação em outros termos: “Como o corpo é enfraquecido<br />

e consumido pela falta de alimento, assim a alma, se não for<br />

alimentada com pão celestial, logo perecerá de inanição”. Pois quando<br />

declara que sua carne é verdadeiramente alimento, sua intenção é dizer<br />

que as almas ficarão famintas por falta desse alimento. Então, tu só<br />

acharás a vida em Cristo quando buscares a nutrição da vida em sua<br />

carne. Assim, devemos gloriar-nos com Paulo, de que nada reputamos<br />

como excelente senão Cristo crucificado, porque, tão logo nos afastamos<br />

do sacrifício de sua morte, com nada mais nos deparamos senão<br />

com a morte. Tampouco há alguma outra estrada que nos conduza<br />

a uma percepção de seu divino poder senão através de sua morte e<br />

ressurreição. Abracemos, pois, a Cristo como o Servo do Pai [Is 52.1],<br />

para que ele se nos revele como sendo o Príncipe da vida [At 3.15].<br />

Pois quando ele se esvaziou [Fp 2.7], foi para que, assim, fôssemos<br />

enriquecidos com a abundância de todas as bênçãos. Sua humilhação<br />

e descida ao inferno nos soergueram até o céu, e, ao suportar a<br />

maldição de sua cruz, ele hasteou a bandeira de nossa justiça como<br />

um esplêndido memorial de sua vitória. 48 Consequentemente, é falso<br />

46 “De la maniere perpetuelle et ordinaire de manger la chair de Christ, qui se fait par la foy<br />

seulement”.<br />

47 “Comme un seau et confirmation”.<br />

48 “Il a dressé l’enseigne de nostre justice comme un memorial magnifique de sa victoire”.


Capítulo 6 • 289<br />

expositor do mistério da Ceia do Senhor 49 quem afasta as almas da<br />

carne de Cristo.<br />

E meu sangue é verdadeiramente bebida. Por que, porém, Cristo<br />

faz separadamente menção de seu sangue, quando ele está incluído<br />

na palavra carne? Respondo que ele agiu assim em condescendência<br />

a nossa fraqueza. Pois quando expressamente menciona comida e bebida,<br />

ele declara que a vida que outorga é completa em cada aspecto,<br />

para que não imaginemos para nós uma vida que seja só a metade ou<br />

imperfeita, como se quisesse dizer que não nos faltará nada que pertença<br />

à vida, contanto que comamos sua carne e bebamos seu sangue.<br />

Assim também na Ceia do Senhor, a qual corresponde a esta doutrina,<br />

não satisfeito com o símbolo do pão, ele acrescenta também o cálice,<br />

para que, tendo nele um duplo penhor, aprendamos a viver satisfeitos<br />

apenas com ele, pois jamais alguém achará uma parte da vida em Cristo<br />

até que ele tenha nele a vida inteira e completa.<br />

56. Aquele que comer minha carne. Esta é outra confirmação.<br />

Pois enquanto somente ele tem vida em si mesmo, mostra como podemos<br />

usufruí-la, isto é, comendo sua carne, como se tivesse afirmado<br />

que não existe outra via pela qual ele possa tornar-se nosso, senão<br />

sendo nossa fé direcionada para sua carne. Porque ninguém jamais irá<br />

a Cristo como Deus, se porventura o despreza como homem. Portanto,<br />

se alguém deseja ter algum interesse em Cristo, então se cuide, acima<br />

de tudo, de não fazer pouco caso de sua carne.<br />

Permanece em mim, e eu nele. Ao dizer que permanece em nós,<br />

o sentido é o mesmo se dissera que o único vínculo de união e a única<br />

forma pela qual ele se torna um conosco é quando nossa fé repousa<br />

em sua morte. Podemos também inferir disto que ele não está agora<br />

falando do símbolo externo, o qual muitos incrédulos igualmente recebem<br />

com os crentes, e, contudo, continuam separados de Cristo.<br />

Ela também nos capacita a refutar o sonho dos que dizem que Judas<br />

recebeu o corpo de Cristo juntamente com os demais apóstolos, quan-<br />

49 “Ceux-la donc ne sont pas bons et droicts expositeurs du mystere de la Cene”.


290 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

do Cristo deu a todos o pão. Pois como é uma flagrante demonstração<br />

de ignorância limitar esta doutrina ao sinal externo, assim devemos<br />

ter em mente o que dissemos previamente: que a doutrina que aqui se<br />

ensina é selada na Ceia do Senhor. Ora, é certo, em primeiro lugar, que<br />

Judas jamais foi membro de Cristo. Em segundo lugar, é cabalmente<br />

irracional imaginar a carne de Cristo sendo morta e destituída do Espírito<br />

Santo. Finalmente, é uma zombaria sonhar ser possível comer a<br />

carne de Cristo sem fé, visto ser a fé, por assim dizer, a única boca e<br />

estômago da alma.<br />

57. Como o Pai que vive me enviou. Até aqui Cristo explicou<br />

a maneira como devemos tornar-nos participantes da vida. Ele agora<br />

passa a falar da causa primordial, visto que a fonte primeira da vida<br />

está no Pai. Ele, porém, responde a uma objeção, pois se poderia pensar<br />

que ele usurpa de Deus aquilo que lhe pertence, ao fazer-se a causa<br />

da vida. Portanto, ele faz de si mesmo o Autor da vida, de uma forma<br />

tal como se reconhecesse que houve outro que lhe deu aquilo que ele<br />

administra a outrem.<br />

Observemos, pois, que este discurso é também acomodado à capacidade<br />

daqueles a quem Cristo estava falando, pois só é com respeito a<br />

sua carne que ele se compara ao Pai. Pois ainda que o Pai seja o princípio<br />

da vida, não obstante o próprio Verbo eterno é estritamente a vida.<br />

Mas a deidade eterna de Cristo não é o tema presente, porque ele se<br />

exibe tal como se manifestou ao mundo, vestido com nossa carne.<br />

Eu também vivo em função do Pai. Isso não se aplica a sua<br />

simples deidade, nem se aplica a sua simples e intrínseca natureza<br />

humana, mas é uma descrição do Filho de Deus manifestado na carne.<br />

Além disso, sabemos que não era incomum Cristo atribuir ao Pai tudo<br />

o que era divino que possuía em si. É preciso observar, contudo, que<br />

ele realça aqui três graus de vida. Na primeira posição está o Pai vivo,<br />

que é a fonte, porém remota e oculta. Em seguida vem o Filho, que nos<br />

é exibido como uma fonte aberta e por meio de quem a vida nos emana.<br />

O terceiro grau é a vida que extraímos dele. Agora percebemos que<br />

o exposto equivale a isto: que Deus o Pai, em quem a vida é inerente,


Capítulo 6 • 291<br />

está a uma grande distância de nós, e que Cristo, posto entre nós, é a<br />

segunda causa da vida, a fim de que, o que de outro modo permaneceria<br />

oculto em Deus, procedesse dele para nós.<br />

58. Este é o pão que desceu do céu. Ele retorna à comparação<br />

entre o maná e sua carne, com que ele tinha começado, pois era necessário<br />

que concluísse seu sermão desta maneira: “Não há razão pela qual<br />

deveis preferir Moisés a mim, só porque ele alimentou vossos pais no<br />

deserto, visto que eu vos supro com um alimento muito mais excelente,<br />

porque eu trago comigo a vida celestial”. Porque – como já foi dito – lemos<br />

que o pão desceu do céu, visto que ele não tem nada de terreno e<br />

corruptível em sua natureza, senão que inspira a imortalidade do reino<br />

de Deus. Os que só se inclinaram à alimentação de seus estômagos, não<br />

acharam tal virtude no maná, pois enquanto o maná teve um duplo uso,<br />

os judeus, com quem Cristo agora está discutindo, viam nele nada mais<br />

que alimento corporal. Mas a vida da alma não é evanescente, mas faz<br />

progresso contínuo até que o homem todo seja renovado.<br />

[6.59-64]<br />

Ele falou essas coisas na sinagoga, enquanto ensinava em<br />

Cafarnaum. Muitos de seus discípulos, pois, tendo-o ouvido,<br />

disseram: Dura palavra é esta, 50 quem a pode ouvir? Jesus,<br />

porém, conhecendo em seu íntimo que seus discípulos murmuravam,<br />

disse-lhes: Isto vos escandaliza? O que será se virdes o<br />

Filho do homem subindo para onde estava antes? É o Espírito<br />

que vivifica, da carne nada se aproveita. As palavras que eu<br />

vos falo são espírito e vida. Mas há alguns dentre vós que não<br />

creem. Porque Jesus sabia desde o princípio quem eram os que<br />

não criam, e quem o haveria de trair.<br />

59. Ele falou essas coisas na sinagoga. <strong>João</strong> ressalta o local para<br />

que saibamos que havia muitos presentes, e que também ele pregou<br />

50 “Ceste parole est dure, ou, rude” – “esta palavra é dura, ou, áspera”.


292 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

um sermão com um tema relevante e importante. Mas imediatamente<br />

se deduz que dentre tão numerosa multidão havia bem poucos que<br />

extraíram algum proveito dele. O que é pior: provou-se ser a ocasião<br />

de deserção de muitos que professavam ser discípulos de Cristo. Se o<br />

evangelista dissesse que apenas alguns deles se escandalizaram, isso<br />

já teria sido monstruoso. Quando, porém, se levantam em multidões e<br />

conspiram juntos contra ele, que nome daremos a esse ato? Que esta<br />

narrativa, pois, seja impressa profundamente em nossas mentes, para<br />

que jamais murmuremos contra Cristo quando ele falar. E se na atualidade<br />

percebermos alguma coisa desse gênero em outros, que sua<br />

soberba não perturbe nossa fé.<br />

60. Dura palavra é essa. Ao contrário, a aspereza estava em seus<br />

corações, e não no discurso. Os réprobos, porém, estão acostumados<br />

a extrair pedras para se ferir. E quando, por sua empedernida obstinação,<br />

se precipitam contra Cristo, queixam-se dizendo que sua palavra<br />

é áspera, a qual deveria antes os ter amaciado. Pois todos quantos se<br />

submetem, com genuína humildade, 51 à doutrina de Cristo, não achará<br />

nela nada que seja áspero ou desagradável. Para os incrédulos, porém,<br />

que se opõem com obstinação, ela será como um martelo que despedaça<br />

a penha, como o profeta a chama [Jr 23.29]. Visto, porém, que a<br />

mesma dureza é natural a todos nós, se julgarmos a doutrina de Cristo<br />

segundo nossos sentimentos, sua palavra não passará de afirmações<br />

estranhas e incríveis. 52 Tudo o que nos resta fazer, pois, é que cada<br />

um nós se entregue à orientação do Espírito, para que ele imprima em<br />

nossos corações o que de outra forma jamais entraria nem mesmo em<br />

nossos ouvidos.<br />

Quem a pode ouvir? Aqui visualizamos a pavorosa perversidade<br />

dos incrédulos, pois aqueles que ímpia e vilmente rejeitam a<br />

doutrina da salvação, não satisfeitos com escusar-se, têm a audácia<br />

de pôr o Filho de Deus no lugar deles como se sua fosse a culpa,<br />

e declarar que ele é indigno de ser ouvido. E assim, nos dias atu-<br />

51 “En vraye humilité”.<br />

52 “Estranges et incroybles”.


Capítulo 6 • 293<br />

ais, os papistas não só rejeitam o evangelho de uma forma ousada,<br />

mas também se prorrompem em assustadoras blasfêmias, para que<br />

não se conclua que não têm boas razões para resistir a Deus. E de<br />

fato, visto que preferem as trevas, não nos admiremos de Satanás<br />

os enganar com monstros estranhos, onde nada há senão uma rodovia<br />

pública. 53 Mas aquilo que eles, através de sua raiva e fúria,<br />

não podem suportar, não só será tolerável às pessoas modestas e<br />

passíveis de instrução, mas os suportarão e os confortarão. Todavia<br />

os réprobos, com suas calejadas calúnias, nada mais farão além<br />

de submeter-se à mais terrível condenação.<br />

61. Jesus, porém, sabia. Cristo deveras sabia que o escândalo<br />

que os réprobos sentiram não podia ser removida, pois, para dizer a<br />

verdade, 54 a doutrina não só os feriu, mas sobretudo expôs a úlcera pútrida<br />

que intimamente cultivaram em seus corações. Mas ele queria de<br />

todas as formas testar se não havia um entre os que se escandalizaram<br />

que porventura não estivesse ainda longe do alcance da cura, e fechar<br />

as bocas dos demais. Ao formular a pergunta, ele queria dizer que não<br />

tinham razão para escandalizar-se, 55 ou pelo menos, que o motivo para<br />

escândalo não está na doutrina propriamente dita. Assim, devemos<br />

reprimir a perversidade daqueles que, impelidos por nada mais além<br />

da raiva de cães cruéis, difamam da Palavra de Deus. Assim, também<br />

devemos refrear a insensatez daqueles que inconsideradamente atacam<br />

a verdade.<br />

Sabendo em seu íntimo. Ele diz que Jesus sabia em seu íntimo,<br />

porque não tinham ainda declarado publicamente o que lhes causava<br />

o constrangimento, senão que secretamente murmuravam e rosnavam<br />

dentre de si, e por isso ele antecipa suas queixas públicas. Se alguém<br />

objetar, dizendo que a natureza daquelas queixas não era difícil de<br />

se entender, visto que em termos expressos rejeitavam a doutrina de<br />

Cristo, reconheço que as palavras que <strong>João</strong> registrou previamente<br />

53 “Là ou il n’y a que le beau plein chemin”.”.<br />

54 “Pou dire à la verité.”.<br />

55 “De se scandalizer.”.


294 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

são bastante claras. Não obstante, digo que, como pessoas que vivem<br />

desgostosas com qualquer coisa, sussurraram essas palavras uns aos<br />

outros em voz murmurante. Pois se tivessem falado a Cristo, teria havido<br />

base mais sólida para esperança, porque ter-se-ia aberto uma via<br />

de instrução para eles. Agora, porém, quando se entregam a murmúrios<br />

secretos, fecham contra si o caminho da instrução. Assim, pois,<br />

quando não percebem imediatamente a intenção do Senhor, não há<br />

nada melhor a fazer senão ir diretamente a ele para que solucione todas<br />

nossas dificuldades.<br />

Isso vos escandaliza? Aqui parece que Cristo agrava ainda mais o<br />

escândalo, em vez de removê-lo. Mas se alguém examinar detidamente<br />

a base do escândalo, perceberiam na afirmação seguinte o que teria<br />

pacificado suas mentes.<br />

62. O que seria se vísseis o Filho do homem subir para onde<br />

estava antes? A humilde e deplorável condição de Cristo, que visualizaram<br />

ante seus olhos, vestido com carne, não sendo absolutamente<br />

diferente dos demais homens, os impedia de submeter-se a seu divino<br />

poder. Agora, porém, – ao retirar, por assim dizer, o véu – ele os convoca<br />

a contemplar sua glória celestial, como se dissesse: “Visto que falo<br />

com homens sem honra e sou desprezado por vós, e não vês nada em<br />

mim que seja divino, antes de mais nada Deus me adornará com esplêndido<br />

poder e, tirando-me do desprezível estado de vida mortal, me<br />

soerguerá acima dos céus”. Pois, na ressurreição de Cristo, tão grande<br />

foi o poder exibido pelo Espírito Santo, que claramente demonstrou<br />

ser Cristo o Filho de Deus, como Paulo também o demonstra [Rm 1.4].<br />

E ao dizer: Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei [Sl 2.7], a ressurreição<br />

é apresentada como prova à luz da qual aquela glória de Cristo deve<br />

ser reconhecida e sua ascensão ao céu foi a concretização dessa glória.<br />

Ao dizer que ele anteriormente estava no céu, isso não se aplica<br />

estritamente a sua natureza humana, e, no entanto, ele fala do Filho<br />

do homem. Visto, porém, que as duas naturezas em Cristo constituem<br />

uma só pessoa, não é uma maneira incomum de falar transferir a uma<br />

natureza o que é peculiar à outra.


Capítulo 6 • 295<br />

63. É o Espírito que vivifica. Pelo uso que Cristo faz dessas palavras,<br />

ele mostra a razão para os judeus não usufruíram nem um<br />

pouco sua doutrina que, sendo espiritual e vivificante, não encontra<br />

ouvidos bem preparados. Mas, como esta passagem tem sido<br />

explicada diversamente, será de primeira importância determinar<br />

o significado natural das palavras, à luz das quais será fácil perceber<br />

a intenção de Cristo. Ao afirmar que da carne nada se aproveita,<br />

Crisóstomo, impropriamente em minha opinião, faz a expressão referir-se<br />

aos judeus, que eram carnais. De bom grado, reconheço que<br />

nos mistérios celestiais, todo o poder da mente humana é totalmente<br />

ineficaz, mas as palavras de Cristo não comportam tal significado,<br />

caso não devam ser violentamente deturpadas. Igualmente forçada<br />

seria tal opinião, quando aplicada à sentença anexa. isto é, é a iluminação<br />

do Espírito que vivifica. Tampouco aprovo os conceitos dos<br />

que dizem que a carne de Cristo é proveitosa, no que diz respeito a<br />

ser ele crucificado, mas que, quando é comida, não nos é de nenhum<br />

proveito, pois, ao contrário, devemos comê-la, para que, tendo sido<br />

crucificada, nos seja proveitosa.<br />

Agostinho pensa que devemos introduzir a palavra somente, ou<br />

por si mesma, como se fosse dito: “A carne sozinha, por si mesma, é<br />

sem proveito”, 56 visto que ele tem de ser acompanhada pelo Espírito.<br />

Este significado concorda bem com o escopo do discurso, pois Cristo<br />

se refere simplesmente à maneira de comer. Portanto, ele não exclui<br />

todo gênero de utilidade, como se nada pudesse ser obtido de sua<br />

carne. Ele, porém, declara que, se ela for separada do Espírito, então<br />

será inútil. Pois que poder tem a de vivificar senão por ser ela espiritual?<br />

Consequentemente, seja quem for que fixe toda sua atenção na<br />

natureza terrena da carne, nada achará nela senão o que é morto. Mas<br />

aqueles que erguem seus olhos para o poder do Espírito, que está difuso<br />

na carne, aprenderão do real efeito e da experiência da fé que não é<br />

sem razão que ela seja chamada vivificante.<br />

56 “Comme s’il estoit dit, La chair seule et par soy ne profite de rien”.


296 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Agora entendemos de que maneira a carne é verdadeiramente alimento,<br />

e, no entanto, é de nenhum proveito. Ela é alimento porque, por<br />

meio dela a vida nos é granjeada, visto que nela Deus se reconcilia<br />

conosco, porquanto nela temos concretizadas todas as partes da salvação.<br />

É sem proveito se for avaliada por sua origem e natureza, pois a<br />

semente de Abraão, que em si mesma está sujeita à morte, não outorga<br />

vida, porém recebe do Espírito seu poder de nos alimentar. Por isso,<br />

também de nossa parte, para que possamos ser realmente nutridos<br />

por ela, devemos trazer a boca espiritual da fé.<br />

Quanto à sentença que interrompe de uma maneira tão abrupta,<br />

é provável que isso fosse feito por ter Cristo visto ser necessário agir<br />

dessa forma em relação aos incrédulos. Portanto, por meio desta sentença<br />

ele subitamente encerrou o sermão, porque não mereciam que<br />

ele lhes falasse mais extensamente. Não obstante, ele não ignorou os<br />

que são santos e passíveis de instrução, pois têm aqui, em poucas<br />

palavras, o que pode sobejamente satisfazê-los.<br />

As palavras que eu vos falo. Esta é uma alusão à afirmação anterior,<br />

porque então emprega a palavra Espírito em um sentido distinto.<br />

Mas, como havia falado do poder secreto do Espírito, elegantemente<br />

aplica isso a sua doutrina, porque ela é espiritual, pois o termo Espírito<br />

deve ser explicado no sentido espiritual. Agora a palavra é qualificada<br />

como sendo espiritual, porque ela chama para o alto a buscar Cristo<br />

em sua glória celestial, pela orientação do Espírito, mediante a fé, e<br />

não por nossa percepção carnal. Pois sabemos que, de tudo o que foi<br />

dito, nada pode ser compreendido senão pela fé. E é também digno<br />

de observação que ele conecta vida com o Espírito. Ele denomina sua<br />

palavra de vida, a partir de seu efeito, como se a chamasse vivificante,<br />

porém mostra que ela não será vivificante em relação a ninguém mais<br />

senão aos que a recebem espiritualmente, porque os demais nada extrairão<br />

dela senão morte. Para os santos, tal recomendação dada no<br />

evangelho é mais deleitosa, porque estão certos de que ela foi designada<br />

para sua eterna salvação. Ao mesmo tempo, porém, são lembrados<br />

a labutar para provar que são discípulos genuínos.


Capítulo 6 • 297<br />

64. Mas há alguns dentre vós que não creem. Ele novamente lhes<br />

imputa culpa, porque, sendo destituídos do Espírito, perversamente<br />

corrompem e vilipendiam sua doutrina, e assim a convertem em sua<br />

própria ruína. Pois do contrário se poderia objetar: “Deveras vos gloriais<br />

de que o que falais é vivificante, porém nada experimenteis dessa<br />

natureza”. Ele, pois, diz que ela é obstada por eles mesmos, pois a incredulidade,<br />

como é sempre orgulhosa, jamais entenderá algo nas palavras<br />

de Cristo, porque a despreza e a desdenha. Por isso, se quisermos tirar<br />

proveito de tudo que provém deste Mestre, tenhamos nossa mente bem<br />

disposta a ouvi-lo, pois se o acesso a sua doutrina não for desobstruído<br />

pela humildade e reverência, nossos entendimentos são mais duros que<br />

a pederneira, e não receberá parte alguma da sã doutrina. E por isso,<br />

quando na atualidade vemos tão poucos no mundo se beneficiando do<br />

evangelho, devemos recordar que isso provém da depravação dos homens.<br />

Pois quantos de nós seremos achados negando-se a si mesmos e<br />

verdadeiramente se submetendo a Cristo? Quanto a sua afirmação de<br />

que só havia alguns que não criam, ainda que quase todos eles eram<br />

merecedores dessa acusação, a razão para agir assim parece ter sido<br />

esta: se havia alguns que estavam ainda além da possibilidade de cura,<br />

poderiam precipitar suas mentes em desespero.<br />

Porque Jesus sabia desde o princípio. O evangelista adicionou<br />

isto para que ninguém concluísse que Cristo formara uma opinião<br />

sem definição sobre seus ouvintes. Muitos professavam pertencer a<br />

seu rebanho, mas uma súbita apostasia desmascarou sua hipocrisia.<br />

O evangelista, porém, diz que sua traição, embora desconhecida dos<br />

demais, era bem conhecido de Cristo. E isso é afirmado, não tanto por<br />

sua causa, mas para que pudéssemos aprender a não formar juízo exceto<br />

sobre temas que tenhamos investigado plenamente, pois quanto<br />

ao fato de que eram conhecidos de Cristo desde o princípio, isso era<br />

peculiar a sua deidade. Conosco se dá o contrário, porque, já que não<br />

conhecemos os corações, devemos demorar em formar juízo até que<br />

a impiedade se manifeste por sinais externos, e assim a árvore se faça<br />

conhecida por seus frutos [Mt 7.16].


298 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

[6.65-71]<br />

E ele dizia: Por isso eu vos dizia que ninguém pode vir a mim,<br />

se por meu Pai não lhe for concedido. Desde então muitos de<br />

seus discípulos recuaram, e não mais andavam com ele. Então<br />

disse Jesus aos doze: Quereis vós também retirar-vos? Simão<br />

Pedro, pois, lhe respondeu: Senhor, para quem iremos nós? Tu<br />

tens as palavras de vida eterna. E temos crido e conhecido que<br />

tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. Jesus lhes respondeu: Não<br />

vos escolhi, vós os doze? Um de vós é um diabo. Ora, ele falava<br />

de Judas Iscariotes, filho de Simão, pois era ele quem o trairia,<br />

ainda que fosse um dos doze.<br />

65. Por isso eu vos dizia. Uma vez mais ele declara que a fé é um<br />

dom inusitado e extraordinário do Espírito de Deus, para que não fiquemos<br />

perplexos diante do fato de que o evangelho não é recebido<br />

em todos os lugares e nem por todos. Porque, sendo mal qualificados<br />

a extrair vantagem do curso dos eventos, pensamos no evangelho em<br />

termos os mais medíocres, visto que o mundo inteiro não lhe dá seu<br />

assentimento. Vem a nossa mente este pensamento: Como é possível<br />

que a maioria dos homens deliberadamente rejeite a salvação? Cristo,<br />

pois, aponta uma razão por que há tão poucos crentes, isto é: porque<br />

ninguém, seja qual for sua capacidade, 57 pode obter fé por sua própria<br />

sagacidade, porque são todos cegos, até que seja iluminados pelo Espírito<br />

de Deus, e portanto só chega a ser participante de tão grande<br />

bênção aquele a quem o Pai designou fazê-lo participante dela. Se esta<br />

graça fosse outorgada a todos sem exceção, teria sido sem sentido e<br />

impróprio mencioná-la nesta passagem, pois devemos entender que o<br />

propósito de Cristo era mostrar que não são muitos os que creem no<br />

evangelho, porque a fé só é procedente da revelação secreta do Espírito.<br />

Se por meu Pai não lhe for concedido. Ele então usa a palavra<br />

conceder em vez da palavra que usara previamente, atrair, por meio da<br />

57 “Tant aigu soit il”.


Capítulo 6 • 299<br />

qual ele quer dizer que não há outra razão pela qual Deus atrai, senão<br />

porque ele nos ama por sua livre graça. Pois o que obtemos pelo dom<br />

e graça de Deus, ninguém conquista por si mesmo, através de seu próprio<br />

engenho.<br />

66. Desde então muitos de seus discípulos recuaram. O evangelista<br />

então relata o problema que aquele sermão acarretou. É algo terrível<br />

e monstruoso que um convite tão bondoso e gracioso estendido por<br />

Cristo houvesse alienado as mentes de tantos, especialmente daqueles<br />

que haviam anteriormente professado lhe pertencer, e ainda foram seus<br />

discípulos ordinários. Mas este exemplo nos é mantido como por um<br />

espelho, por assim dizer, no qual possamos perceber quão grande é a<br />

perversidade e ingratidão dos homens que convertem uma estrada plana<br />

numa ocasião de tropeço para si, com o intuito de não irem a Cristo.<br />

Muitos diriam que teria sido melhor que um sermão desse gênero jamais<br />

tivesse sido enunciado, o qual ocasionou a apostasia de muitos.<br />

Mas é preciso que formulemos um ponto de vista amplamente diferente,<br />

porque então se fazia necessário, e agora é diariamente necessário, que<br />

aquilo que fora previsto concernente a Cristo fosse percebido em sua<br />

doutrina, isto é, que ele é a pedra de tropeço [Is 8.14].<br />

Aliás, devemos regular nossa doutrina de tal maneira que ninguém<br />

se escandalize por nossa causa. Quanto for possível, devemos<br />

reter tudo, e, em suma, devemos tomar cuidado para que, inconsideradamente<br />

ou à revelia, 58 não perturbemos as mentes ignorantes ou<br />

fracas. Mas jamais nos será possível exercer tanta prudência ao ponto<br />

de a doutrina de Cristo não mais ser escândalo a muitos, porque os<br />

réprobos, que estão devotados à destruição, sorvem veneno do mais<br />

saudável alimento e fel do mel. O Filho de Deus indubitavelmente sabia<br />

muito bem o que era útil e, todavia, vemos que ele não pôde evitar 59<br />

dirigir ofensa a muitos de seus discípulos. Seja qual for, pois, a aversão<br />

que muitas pessoas nutram pela doutrina pura, contudo não temos<br />

a liberdade de suprimi-la. Basta que os mestres da Igreja se lembrem<br />

58 “Inconsiderément, ou à la volee”.<br />

59 “Il ne peut eviter”.


300 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

do conselho ministrado por Paulo: a palavra de Deus deve ser apropriadamente<br />

dividida [= ministrada] [2Tm 2.15], e em seguida avancem<br />

ousadamente no meio de todos os escândalos. E se ocorrer de muitos<br />

apostatarem, não sintamos aversão pela palavra de Deus só porque<br />

ela não é degustada prazerosamente pelos réprobos, pois aqueles que<br />

se sentem tão abalados pela revolta de alguns que se deparam com a<br />

apostasia de tais pessoas se veem imediatamente desencorajados, o<br />

fato é que são demasiadamente sensíveis e frágeis.<br />

E não mais andavam com ele. Quando o evangelista adiciona<br />

essas palavras, sua intenção é mostrar que tal apostasia não era completa<br />

[ou final], mas simplesmente que passaram a evitar uma relação<br />

familiar com Cristo, e, no entanto, ele os condena como apóstatas.<br />

Daqui devemos aprender que não podemos recuar sequer um passo<br />

sem imediatamente corrermos o risco de cair em traiçoeira negação<br />

de nosso Mestre.<br />

67. Jesus, pois, disse aos doze. Visto que a fé dos apóstolos poderia<br />

ficar grandemente abalada, ao verem que restou tão pequeno<br />

remanescente de uma grande multidão, Cristo dirige-lhes seu discurso<br />

e mostra que não há razão para se permitir sair correndo em virtude<br />

da leviandade e instabilidade de outros. Ao perguntar-lhes se queriam<br />

também ir embora, ele age assim com intuito de confirmar sua<br />

fé, porque, ao exibir-se a eles, para que pudessem permanecer com<br />

ele, igualmente os exorta a não se tornarem companheiros de apóstatas.<br />

E de fato, se a fé estiver fundada em Cristo, ela não dependerá<br />

dos homens e jamais oscilará, ainda que veja céu e terra em confusão.<br />

Devemos também observar esta circunstância, a saber, que Cristo,<br />

quando se viu privado de quase todos seus discípulos, retendo somente<br />

os doze, do mesmo modo a Isaías foi outrora ordenado a guardar<br />

o testemunho e a selar a lei entre os discípulos [Is 8.16]. Por meio de<br />

tais exemplos, cada um dos crentes é instruído a seguir a Deus, ainda<br />

quando ele não tenha nenhum companheiro.<br />

68. Simão Pedro, pois, lhe respondeu. Pedro responde, aqui, em<br />

nome de todos, como faz em outras ocasiões, porque todos eles eram


Capítulo 6 • 301<br />

do mesmo parecer, exceto o fato de em Judas não existir sinceridade.<br />

Esta resposta contém duas sentenças, pois Pedro primeiramente<br />

declara a razão por que ele alegremente adere a Cristo, juntamente<br />

com seus irmãos, isto é, porque sentem que sua doutrina é saudável<br />

e vivificante. E, segundo, ele reconhece que não tinham outro a quem<br />

ir, e se deixassem a Cristo, não lhes restaria nada mais senão a morte.<br />

Tu tens as palavras de vida eterna. Ao dizer, as palavras de vida,<br />

com esta frase ele quer dizer palavras vivificantes, usando o caso<br />

genitivo em vez do adjetivo, o que é uma forma de expressão muito<br />

comum entre os hebreus. É um notável enaltecimento outorgado no<br />

evangelho, o qual nos administra a vida eterna, como Paulo testifica: o<br />

evangelho é o pode de Deus para a salvação de todo aquele que crê [Rm<br />

1.16]. É verdade que a lei também contém vida, mas visto que ela anuncia<br />

contra todos os transgressores 60 a condenação de morte eterna, ela<br />

nada pode fazer senão matar. Amplamente diferente é o modo como<br />

a vida nos é oferecida no evangelho, isto é, quando Deus nos reconcilia<br />

consigo mesmo através da livre graça, não nos imputando nossos<br />

pecados [2Co 5.19]. Não é uma asseveração ordinária que Pedro faz<br />

concernente a Cristo, quando diz que ele tem as palavras de vida eterna,<br />

porém atribui isso a Cristo como pertencente exclusivamente a ele.<br />

Disso procede a segunda afirmação que relanceei um pouco antes, que<br />

tão logo eles se apartassem de Cristo, nada mais lhes restaria senão<br />

morte. Portanto, certa destruição aguarda a todos os que, não satisfeitos<br />

com esse Mestre, buscam abrigo nas invenções dos homens.<br />

69. E temos crido e conhecido. Os verbos estão no pretérito, porém<br />

podem ser postos no presente: cremos e conhecemos, porém faz<br />

pouca diferença no significado. Nestas palavras, Pedro apresenta um<br />

breve sumário da fé. Mas a confissão parece não ter nada a ver com<br />

a matéria em questão, pois a questão suscitada foi acerca de comer a<br />

carne de Cristo. Eis minha resposta: embora os doze não compreendessem<br />

imediatamente tudo o que Cristo ensinara, todavia é suficiente<br />

60 “A tous transgresseurs”.


302 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

que, segundo a capacidade de sua fé, o reconhecessem como o Autor<br />

da salvação e se lhe submetessem em todas as coisas. A palavra crer<br />

é posta em primeiro plano, visto que a obediência da fé é o princípio<br />

do reto entendimento, ou melhor, porque a fé em si é realmente os<br />

olhos do entendimento. Mas, imediatamente depois, acrescenta-se conhecimento,<br />

o qual distingue a fé de opiniões errôneas e falsas, pois<br />

os maometanos, judeus e papistas creem, porém nem conhecem nem<br />

entendem coisa alguma. Conhecimento é conectado com fé, porque<br />

estamos certos e plenamente convencidos da verdade de Deus, não da<br />

mesma forma que são aprendidas as ciências humanas, mas quando o<br />

Espírito a sela em nossos corações.<br />

70. Jesus lhes respondeu. Visto que a resposta de Cristo visa a<br />

todos, inferimos disto que todos haviam falado pelos lábios de Pedro.<br />

Além disso, Cristo agora prepara e fortalece os onze apóstolos contra<br />

um novo escândalo que já estava próximo. Era um poderoso instrumento<br />

de Satanás para abalar sua fé, quando se viam reduzidos a um<br />

número tão exíguo, mas a queda de Judas poderia desvanecer toda<br />

sua coragem, pois visto que Cristo havia escolhido aquele número sagrado,<br />

quem teria imaginado que alguma porção da totalidade aquele<br />

número poderia ser rasgada? Aquela admoestação de Cristo poderia<br />

ser interpretada assim: “Somente doze restaram de uma grande<br />

companhia. Se vossa fé não foi abalada pela incredulidade de muitos,<br />

preparai para uma nova peleja, pois esta companhia, ainda que pequena,<br />

será ainda diminuída pela retirada de um homem”.<br />

Não vos escolhi, vós doze? Quando Cristo diz que havia escolhido<br />

ou eleito doze, sua referência não é ao decreto eterno de Deus,<br />

pois é impossível que algum dos que foram predestinados à vida apostatem.<br />

Mas, tendo sido escolhidos para o ofício apostólico, eles devem<br />

ter excedido aos demais em piedade e santidade. Portanto, ele usou a<br />

palavra escolhidos para denotar os que foram eminentemente distinguidos<br />

da classe ordinária.<br />

E um de vós é um diabo. Inquestionavelmente, ele tencionava,<br />

com essa designação, tornar Judas ainda mais detestável, pois está


Capítulo 6 • 303<br />

equivocado quem atenua a atrocidade implícita em tal designação, e<br />

de fato não podemos execrar suficientemente os que desonram tão sacro<br />

ofício. Os mestres que fielmente cumprem seu ofício são chamados<br />

anjos. “Porque os lábios do sacerdote devem guardar o conhecimento,<br />

e de sua boca devem os homens buscar a lei porque ele é o anjo do<br />

Senhor dos Exércitos” [Ml 2.7]. Portanto, com razão, é ele considerado<br />

um diabo, o qual, depois de haver sido admitido numa classe tão honrosa,<br />

se deixa corromper através de sua traição e perversidade. Outra<br />

razão é que Deus permite mais poder e liberdade a Satanás sobre os<br />

ministros perversos e ímpios do que sobre os homens ordinários. Portanto,<br />

se os que foram escolhidos para serem pastores são conduzidos<br />

por uma fúria diabólica, ao ponto de se assemelharem a feras selvagens<br />

e monstruosas, ainda assim estamos longe de termos o direito<br />

de desprezarmos a honrosa classe a que pertencem, e que devemos,<br />

antes, honrá-la ainda mais, pois a sua profanação é seguida de tão terrível<br />

castigo.<br />

71. Ele falava de Judas. Embora Judas possuísse uma má consciência,<br />

todavia não lemos que fosse de modo algum sensibilizado. Os<br />

hipócritas são tão estúpidos que chegam a não sentir suas chagas, e<br />

na presença dos homens demonstram uma impudência tão empedernida,<br />

que não sentem qualquer escrúpulo de preferir a si mesmos ao<br />

melhor dos homens.


Capítulo 7<br />

[7.1-8]<br />

E depois dessas coisas, Jesus andava pela Galileia, pois não<br />

queria andar pela Judeia, porque os judeus procuravam matá-<br />

-lo. E a apresentação dos tabernáculos, festa dos judeus, estava<br />

próxima. Seus irmãos, pois, lhe disseram: Saia daqui, e vá para<br />

a Judeia, para que também teus discípulos vejam as obras que<br />

fazes, porque ninguém que busca ser conhecido faz algo em secreto,<br />

se fazes essas coisas, mostra-te ao mundo. Porque nem<br />

mesmo seus irmãos criam nele. Jesus, pois, lhes disse: Meu<br />

tempo ainda não chegou, porém o vosso está sempre presente.<br />

O mundo não pode odiar-vos, porém me odeia, porque testifico<br />

dele, de que suas obras são más. Subi vós para a festa, porque<br />

meu tempo ainda não está completado.<br />

1. Jesus andava pela Galileia. O evangelista parece não transcrever<br />

uma narrativa contínua, porém seleciona do que ocorreu em<br />

épocas diferentes os eventos que eram dignos de ser relatados. Ele<br />

diz que Cristo peregrinou por algum tempo na Galileia, porque não<br />

podia permanecer em segurança por entre os judeus. Se alguém pensa<br />

ser estranho que Cristo buscasse um lugar de refúgio, o qual, por um<br />

mero ato de sua vontade, poderia quebrar e tornar impotente todos<br />

os esforços de seus inimigos, a resposta é fácil, a saber, que ele se lembrava<br />

da comissão que recebera de seu Pai, e determinara confinar-se<br />

dentro dos limites que lhe pertenciam como homem, porque, “sendo


306 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

em forma de Deus, não teve como usurpação ser igual a Deus, mas<br />

esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante<br />

aos homens, e, achado na forma de homem, humilhou-se a si<br />

mesmo, sendo obediente até a morte, e morte de cruz” [Fp 2.6-8].<br />

Se alguém objetar, dizendo que assim como ele conhecia o tempo<br />

de sua morte, a qual fora preordenada e determinada no propósito<br />

divino, 1 não tinha razão para evitá-la, a solução anterior se aplica também<br />

aqui. Pois ele se conduzia como um homem que estava à mercê<br />

de perigos, e por isso não era próprio que se lançasse ao léu a situações<br />

perigosas. Ao nos depararmos com perigos, não é nosso negócio<br />

inquirir o que Deus determinou a nosso respeito em seu decreto, mas<br />

o que ele nos ordena e quer de nós, o que nosso ofício requer e demanda<br />

e qual o método próprio de regular nossa vida. Além disso,<br />

embora Cristo evitasse os perigos, ele não se esquivava um fio de cabelo<br />

do curso do dever, pois com que propósito seria a vida mantida<br />

e defendida, senão para que sirvamos ao Senhor? Portanto, devemos<br />

sempre precaver-nos de, em função da vida, não perder a razão de<br />

viver. Quando um pequeno e desprezível recanto da Galileia oferece<br />

abrigo a Cristo, o que a Judeia não pode suportar, aprendamos disto<br />

que a piedade e o temor de Deus nem sempre são encontrados nos<br />

principais lugares da Igreja.<br />

2. Ora, a festa dos judeus estava próxima. Ainda que eu não o afirme,<br />

todavia é provável que isso se deu durante o segundo ano depois<br />

do batismo de Cristo. Quanto a essa festa mencionada pelo evangelista,<br />

não é necessário no momento dizer muito, pois Moisés mostra<br />

qual o propósito e utilidade dela foram impostos [Lv 23.34]. Foi para<br />

que, por meio dessa festa anual, os judeus pudessem guardar na lembrança<br />

que seus pais viveram quarenta anos em tabernáculos, quando<br />

não tinham casas, para que assim pudessem celebrar a graça de Deus<br />

exibida em seu livramento. Já dissemos previamente que havia duas<br />

razões por que Cristo ia a Jerusalém durante essa festa. Uma delas era<br />

1 “Determiné au conseil de Dieu”.


Capítulo 7 • 307<br />

que, estando sujeito à lei, a fim de redimir-nos de sua servidão, ele não<br />

queria omitir nenhuma parte de sua observação, e a outra era que, em<br />

meio a numerosos e extraordinários ajuntamentos do povo, ele tinha<br />

melhor oportunidade de levar a avante o evangelho. Agora, porém, o<br />

evangelista relata que Cristo se mantinha em retiro na Galileia, como<br />

se não tencionasse ir a Jerusalém.<br />

3. Seus irmãos, pois, lhe disseram. Sob o termo irmãos, os hebreus<br />

incluíam todos os primos e outros parentes, quaisquer que<br />

fossem os graus de afinidade. Ele diz que escarneciam de Cristo,<br />

porque se esquivava de ser visto e conhecido, e se ocultava em um<br />

distrito pobre e desprezível da Judeia. Entretanto, há razão para se<br />

duvidar se foram levados por ambição a desejar que Cristo granjeasse<br />

celebridade. Mas, admitindo-o, ainda é evidente que o ridicularizavam,<br />

porque não criam que sua conduta fosse racional e judiciosa. E ainda o<br />

culpavam de insensatez, porque, embora desejasse ser algo, quisesse<br />

que se confiasse nele, contudo não se aventura a aparecer publicamente<br />

diante de todos. Ao dizer: teus discípulos também possam ver-te,<br />

tinham em mente não só seus domésticos, mas todos aqueles para<br />

quem desejava conquistar de toda a nação, pois acrescentam: “Tu desejas<br />

ser conhecido por todos, contudo te ocultas”.<br />

4. Se fazes essas coisas. Isto é, se aspiras tal grandeza para<br />

que possam te aplaudir, atrai para ti os olhares de todos. E acrescentam:<br />

mostra-te ao mundo, usando a palavra mundo em contraste<br />

com o pequeno número de pessoas entre as quais ele estava gastando<br />

tempo sem honra. Podemos ainda extrair dela outro significado.<br />

“Se fazes essas coisas, isto é, se está investido de tão grande poder<br />

ao ponto de granjear para ti reputação por meio de milagres,<br />

não desistas, pois tudo o que Deus te deu estás gastando aqui sem<br />

qualquer propósito, porque não há ninguém para dar testemunho,<br />

ou para ter-te em justa estima”. Daqui percebemos quão profunda<br />

é a indolência dos homens em sua avaliação das obras de Deus,<br />

pois os parentes de Cristo jamais teriam falado dessa forma se não<br />

tivessem, por assim dizer, pisoteado as claras provas de seu poder


308 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

divino, o qual teriam olhado com mais admiração e reverência. O<br />

que nos é dito concernente a Cristo ocorre na experiência diária, a<br />

saber, que os filhos de Deus sofrem mais aborrecimento vindo de<br />

seus próprios parentes do que dos estranhos, pois são instrumentos<br />

de Satanás, os quais, algumas vezes por ambição, outras por<br />

avareza, menosprezam os que desejam servir a Deus com pureza e<br />

fidelidade. Satanás, porém, recebe de Cristo uma tão vigorosa repulsa,<br />

que assim nos instrui por seu exemplo que não devemos ceder<br />

aos néscios desejos de irmãos ou de parentes. 2<br />

5. Pois nem mesmo seus irmãos criam nele. Daqui inferimos<br />

quão mesquinho é o valor do parentesco carnal, pois o Espírito Santo<br />

estampa com um estigma perpétuo de infâmia os parentes de Cristo,<br />

porque, ainda que convencidos pelos testemunhos de tantas obras,<br />

nem assim ainda creem. “Portanto, se alguém está em Cristo”, diz<br />

Paulo, “é nova criatura” [2Co 5.17, Gl 6.15]. Pois quem se dedica totalmente<br />

a Deus alcança o lugar de pai, de mãe e irmãos de Cristo,<br />

e repudia totalmente todos os demais [Mt 12.50]. Tanto mais ridícula<br />

é a superstição dos papistas que, desconsiderando tudo mais<br />

na Virgem Maria, exaltam-na somente no terreno do parentesco,<br />

outorgando-lhe o título Mãe de Cristo, 3 como se Cristo mesmo não<br />

reprovasse a mulher que exclamou do meio da multidão: “Bem-aventurado<br />

o ventre que te trouxe e os peitos em que mamaste. Mas ele<br />

disse: Antes bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e<br />

a guardam” [Lc 11.27, 28].<br />

6. Meu tempo ainda não chegou. Há quem erroneamente interpreta<br />

isto como uma referência ao tempo de sua morte, pois denota<br />

o tempo de sua determinação de ir à festa. 4 Ele lhes assegura que,<br />

neste aspecto, ele difere de seus parentes. Eles podiam aparecer<br />

livremente e sem correr riscos, a todo e qualquer momento, diante<br />

do mundo, porque o mundo lhes é fraterno e favorável. Ele, porém,<br />

2 “De nos parens”.<br />

3 “Le titre de Mere de Christ”.<br />

4 “De se mettre en chemin pour aller à la feste”.


Capítulo 7 • 309<br />

está apreensivo quanto a sua pessoa, e com razão, porque o mundo<br />

é seu inimigo mortal. Com essas palavras, ele quer dizer que estavam<br />

errados em lhe dar conselhos sobre uma questão que de forma<br />

alguma entendem.<br />

7. O mundo não pode odiar-vos. Ao dizer, o mundo não pode<br />

odiar-vos, ele os reprova por seu comportamento totalmente carnal,<br />

porque a paz com o mundo só pode ser adquirida por um perverso<br />

consentimento com os vícios e todo gênero de perversidade.<br />

Ele, porém, me odeia, porque eu testifico. Mundo aqui denota os<br />

homens que ainda não nasceram de novo, que retêm sua disposição<br />

natural, e, por conseguinte, ele declara que todos os que ainda não<br />

foram regenerados pelo Espírito são adversários de Cristo. Por quê?<br />

Porque ele condena suas obras. E se quisermos concordar com a decisão<br />

de Cristo, estamos sob a necessidade de reconhecer que toda<br />

a natureza do homem é tão pecaminosa e perversa, que nada justo,<br />

nem sincero, nem bom pode proceder dela. Esta é a única razão por<br />

que alguns de nós têm prazer em si mesmos, enquanto estiver em seu<br />

estado natural.<br />

Porque eu testifico dele, que suas obras são más. Quando Cristo<br />

afirma que o mundo o odeia por esse motivo, sua intenção é dizer<br />

que o evangelho não pode ser fielmente proclamado sem citar o mundo<br />

inteiro como culpado ante o tribunal de Deus, para que carne e<br />

sangue sejam assim esmagados e reduzidos a nada, segundo esta declaração:<br />

Quando o Espírito vier, ele convencerá o mundo do pecado<br />

[Jo 16.8]. Daqui também aprendemos que tão profunda é a soberba<br />

natural dos homens, que se lisonjeiam e se aplaudem em seus vícios,<br />

pois sua ira não se acenderia, quando são reprovados, não fosse o fato<br />

de que se acham cegos por excessivo amor por si próprios, e por isso<br />

se espojam em seus pecados. Inclusive entre os vícios dos homens,<br />

o principal e mais perigoso é a soberba e arrogância. Só o Espírito<br />

Santo pode abrandar-nos, ao ponto de suportarmos com paciência as<br />

reprovações, e assim aquiescer-nos a voluntariamente ser mortos pela<br />

espada da Igreja.


310 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

[7.9-13]<br />

E tendo dito isso, permaneceu na Galileia. E quando seus<br />

irmãos subiram, então ele também subiu para a festa, não publicamente,<br />

mas, por assim dizer, em secreto. Os judeus, pois,<br />

o procuravam na festa, e diziam: Onde está ele? E houve muito<br />

murmúrio entre a multidão sobre ele, pois alguns diziam: Ele<br />

é um bom homem, e outros diziam: Não, porque ele seduz a<br />

multidão. Não obstante, ninguém fala dele publicamente, por<br />

medo dos judeus.<br />

9. Ele permaneceu na Galileia. O evangelista, aqui, põe diante de<br />

nossos olhos os parentes de nosso Senhor Jesus Cristo, 5 os quais, em<br />

concordância com os costumes ordinários, pretendiam cultuar a Deus,<br />

porém no desfruto de boa amizade com os incrédulos, e por isso andavam<br />

sem qualquer tensão. Em contrapartida, ele põe diante de nossos<br />

olhos o próprio Cristo que, odiado pelo mundo, entra secretamente na<br />

cidade, até que desponte a necessidade de seu ofício o compelir a se<br />

mostrar publicamente. Mas, se nada há mais deplorável do que viver<br />

separado de Cristo, maldita seja aquela paz que custa um preço tão<br />

elevado que nos leva a abandonar o Filho de Deus. 6<br />

11. Os judeus, pois, o procuravam. Aqui temos que considerar<br />

qual era a condição da Igreja. Porque os judeus, naquele tempo, suspiravam<br />

pela redenção prometida como seres famintos. Contudo,<br />

quando Cristo se lhes manifesta, ficam em suspenso. Daqui vem a lume<br />

sussurrante e grande variedade de opiniões. O fato de cochicharem<br />

secretamente é uma indicação da tirania que os sacerdotes e escribas<br />

exerciam sobre eles. Realmente é uma chocante exibição o fato de que<br />

essa Igreja, que naquele tempo era a única Igreja sobre a terra, nos seja<br />

aqui representada como um caos total e imenso. 7 Os que governam,<br />

em vez de pastores, mantêm o povo oprimido pelo medo e terror, e<br />

5 “Les cousins de nostre Seigneur Jesus Christ”.<br />

6 “De quitter et renoncer le Fils de Dieu”.<br />

7 “Comme un abysme de confusion et disordre” – “como um abismo de confusão e<br />

desordem”.


Capítulo 7 • 311<br />

por todo o corpo há vergonhosa desolação e lamentável desordem.<br />

Pela expressão, os judeus, ele quer dizer o povo comum que, estando<br />

acostumado ao longo de dois anos a ouvir a Cristo, inquire sobre<br />

ele, porquanto ele não aparece segundo seu costume. Pois ao dizerem,<br />

Onde está ele?, descrevem um homem a quem conheciam muito<br />

bem, e no entanto essa expressão revela que não tinham sido ainda se<br />

sensibilizado sinceramente, e que sempre nutriam dúvidas e estavam<br />

sempre tensos.<br />

12. E havia muito murmúrio. Ele quer dizer que, sempre que os<br />

homens se juntavam em multidões, como geralmente acontece em<br />

grandes assembleias, mantinham conversação sigilosa sobre Cristo.<br />

A diversidade de opiniões, que aqui se relata, prova que não é um mal<br />

novo que os homens difiram em suas opiniões sobre Cristo, inclusive<br />

no próprio seio da Igreja. E como não hesitamos em receber a Cristo,<br />

o qual foi anteriormente condenado pela maioria de sua própria nação,<br />

assim devemos estar armados com o mesmo gênero de escudo,<br />

para que as dissensões que vemos diariamente não nos perturbem.<br />

Repetindo, podemos perceber quão grande é a temeridade dos homens<br />

nas coisas de Deus. Em uma questão de nenhuma importância,<br />

não assumem assim tão grande liberdade. Mas quando a questão se<br />

relaciona com o Filho de Deus e com sua santa doutrina, imediatamente<br />

se apressam em formular juízo sobre ela. Quão maior moderação<br />

deveríamos manifestar para que impensadamente não condenemos<br />

nossa vida com a eterna verdade de Deus. E se o mundo nos tiver<br />

por impostores, lembremo-nos de que estas são as marcas e estigmas<br />

de Cristo, contanto que mostremos, ao mesmo tempo, que somos fiéis.<br />

Esta passagem mostra igualmente que numa grande multidão há<br />

sempre quem pensa corretamente, mas essas poucas pessoas, cujas<br />

mentes são bem reguladas, são tragadas pela multidão daqueles cujo<br />

entendimento é confuso.<br />

13. Não obstante, ninguém falava dele publicamente por medo<br />

dos judeus. Aqui por os judeus ele quer dizer os líderes, os quais<br />

tinham o governo em suas mãos. <strong>Vol</strong>taram-se com tal ódio contra Cris-


312 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

to, que não permitiam que se pronunciasse uma palavra de ambos os<br />

lados. Tampouco se irritavam com qualquer censura que fosse cumulada<br />

contra ele, mas porque não podiam descobrir melhor expediente,<br />

senão que seu nome fosse sepultado no olvido. Assim, os inimigos<br />

da verdade, depois de haver descoberto que nada lucravam com sua<br />

crueldade, nada mais desejam senão a supressão de sua lembrança,<br />

e esse único objetivo tudo faziam para obter. Que todos viviam em<br />

silêncio, sendo subjugados pelo medo, era uma prova de grosseira tirania,<br />

como eu já disse, pois como não existe lugar para desenfreada<br />

licenciosidade numa Igreja bem regulada, assim, quando toda liberdade<br />

é reprimida pelo medo, essa é a mais miserável condição. Mas<br />

o poder de nosso Senhor Jesus Cristo resplandeceu com um fulgor<br />

muito maior e mais maravilhoso, quando – se fazendo ouvir por entre<br />

o inimigo armado, e no meio de seu furioso ressentimento e sob um<br />

governo tão formidável –, ele publicamente manteve e declarou a verdade<br />

de Deus.<br />

[7.14-19]<br />

E já no meio da festa, Jesus subiu ao templo e ensinava. E os judeus<br />

se maravilhavam, dizendo: Como este homem sabe letras,<br />

nas as tendo aprendido? Respondeu-lhes Jesus, e disse: Minha<br />

doutrina não é minha, mas daquele que me enviou. Se alguém<br />

quiser fazer a vontade dele, pela mesma doutrina saberá se ela<br />

procede de Deus ou seu eu falo de mim mesmo. Aquele que<br />

fala de si mesmo busca sua própria glória, aquele, porém, que<br />

busca a glória daquele que o enviou é verdadeiro, e nele não há<br />

injustiça. Não vos deu Moisés a lei? e nenhum de vós observa a<br />

lei. Por que procurais matar-me?<br />

14. Jesus subiu ao templo. Estão equivocados os que acreditam<br />

que Cristo foi recebido de tal maneira ao ponto de ser estimado e honrado.<br />

Pois a maravilha ou perplexidade dos judeus é de uma natureza<br />

tal que buscam ocasião para demonstrar-lhe seu desprezo. Pois tal é


Capítulo 7 • 313<br />

a ingratidão dos homens que, ao julgarem as obras de Deus, sempre<br />

buscam deliberadamente ocasião de cair em erro. Se Deus age fazendo<br />

uso de meios usuais e de uma maneira ordinária, esses meios que são<br />

visíveis aos olhos são, por assim dizer, véus que nos impedem de perceber<br />

a mão divina, e, por isso, nada discernimos neles senão o que é<br />

humano. Mas se um poder divino inusitado fulgura acima da ordem da<br />

natureza e dos meios geralmente conhecidos, então somos dominados<br />

pelo espanto, e o que teria afetado profundamente todos nossos sentidos<br />

se esvai como um sonho. Pois tal é nosso orgulho, que não temos<br />

interesse em coisa alguma em que não conhecemos a razão.<br />

Como este homem sabe letras? Era uma espantosa prova do poder<br />

e graça de Deus que Cristo, que não havia aprendido aos pés de<br />

nenhum mestre, ser, não obstante, eminentemente distinguido por seu<br />

conhecimento das Escrituras, e que ele, que nunca fora erudito, se tornasse<br />

o mais excelente mestre e instrutor. Mas, exatamente por essa<br />

razão os judeus desprezavam a graça de Deus, porque ela excede a<br />

capacidade deles. Admoestados por seu exemplo, pois, aprendamos a<br />

exercer mais profunda reverência por Deus do que costumamos fazer<br />

quando consideramos suas obras.<br />

16. Minha doutrina não é minha. Cristo mostra que esta circunstância,<br />

a qual se tornara um escândalo para os judeus, era antes<br />

uma escada por cujos degraus devemos erguer-nos mais alto a fim de<br />

visualizarmos a glória de Deus, como se quisesse dizer: “Ao olhardes<br />

para um mestre que não foi educado na escola dos homens, deveis<br />

saber que eu fui educado na escola de Deus”. Pois a razão pela qual<br />

o Pai celestial determinou que este Filho procedesse de uma oficina,<br />

em vez de sair das escolas dos escribas, era para que a origem<br />

do evangelho pudesse ser mais evidente, e assim ninguém concluísse<br />

que ela proviesse de uma indústria terrena ou imaginasse que<br />

algum ser humano fosse o autor dela. Assim também Cristo escolheu<br />

homens ignorantes e sem escolaridade para que fossem seus<br />

apóstolos, e lhes permitiu permanecerem três anos em grosseira<br />

ignorância, para que, instruindo-os num instante singular, pudesse


314 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

transformá-los em novos homens, e mesmo como anjos que acabassem<br />

de descer do céu.<br />

Mas daquele que me enviou. Entretanto, Cristo mostra donde devemos<br />

derivar a autoridade da doutrina espiritual: exclusivamente de<br />

Deus. E ao asseverar que a doutrina de seu Pai não era sua, ele olha<br />

para a capacidade dos ouvintes, que não nutriam a seu respeito uma<br />

opinião mais elevada além de um homem comum. À guisa de concessão,<br />

pois, ele admite ser considerado diferente de seu Pai, porém ao<br />

ponto de nada apresentar senão o que o Pai determinou. O equivalente<br />

do que se declara é isto: o que ele ensina, em nome de seu Pai,<br />

não é uma doutrina humana, e não procedeu dos homens, podendo<br />

ser desprezado impunemente. Assim descobrimos por qual método<br />

ele granjeia autoridade para sua doutrina, isto é, atribuindo-a a Deus<br />

como seu Autor. Vemos também sobre qual base e por qual razão ele<br />

demanda que seja ouvido. É porque o Pai o enviara a ensinar. Ambas<br />

essas coisas devem ser possuídas por cada pessoa que toma sobre si<br />

o ofício de mestre e deseja desfrutar de credibilidade.<br />

17. Se alguém quiser fazer a vontade dele. Ele antecipa as objeções<br />

que porventura surgissem. Porque, já que ele tinha muitos<br />

adversários naquele lugar, alguém poderia prontamente murmurar<br />

contra ele nestes termos: “Por que te glorias no nome de Deus? Pois<br />

nem sequer sabemos se procedeste dele. Por que, pois, nos impões<br />

uma máxima que sequer admitimos que se aplique a ti, ou seja, que<br />

nada ensinas senão pela ordem divina?”. Cristo, pois, replica que o<br />

são juízo emana do temor e reverência a Deus, de modo que, se suas<br />

mentes nutrem boa disposição pelo temor de Deus, facilmente perceberão<br />

se o que ele ensina é ou não verdadeiro. Igualmente lhes<br />

administra uma reprovação indireta, pois, como é possível que não<br />

possam distinguir entre falsidade e verdade, 8 senão pelo fato de lhes<br />

faltar o principal requisito para o são entendimento, isto é, piedade e<br />

o solícito desejo de obedecer a Deus?<br />

8 “Entre la fausseté et la verité”.


Capítulo 7 • 315<br />

Esta afirmação é mui digna de observação. Satanás continuamente<br />

trama contra nós e estende suas redes em todas as direções para<br />

que nos possa apanhar desprevenidos em suas ilusões. Aqui Cristo<br />

mui excelentemente nos previne a precaver-nos de nos expormos a<br />

alguma de suas imposturas, nos assegurando que, se estivermos preparados<br />

a obedecer a Deus, ele jamais deixará de nos iluminar com a<br />

luz de seu Espírito, de modo que seremos capazes de distinguir entre<br />

verdade e falsidade. Portanto, nada nos impede mais de julgar corretamente,<br />

do que sermos indisciplinados e voluntariosos, e toda vez<br />

que Satanás nos enganar, somos justamente castigados por nossa hipocrisia.<br />

De igual modo, Moisés adverte dizendo que, quando os falsos<br />

profetas surgem, somos testados e provados por Deus, pois aqueles<br />

cujos corações são íntegros jamais se deixarão enganar [Dt 13.3]. Daí<br />

ser evidente quão perversa e estultamente muitos na atualidade, temendo<br />

o perigo de cair em erro, por esse mesmo medo fecham a porta<br />

contra todo desejo de aprender, como se nosso Salvador não tivesse<br />

bons motivos de dizer: Batei, e abrir-se-vos-á [Mt 7.7].<br />

Ao contrário, se nos devotarmos inteiramente à obediência a<br />

Deus, não nutramos dúvida de que ele nos dará o espírito de discernimento<br />

para ser-nos diretor e guia contínuos. Caso outros prefiram<br />

usar de subterfúgios, por fim descobrirão quão inconsistentes são os<br />

pretextos para sua ignorância. E de fato notamos que todos os que<br />

ora hesitam, e preferem antes acalantar sua dúvida do que, lendo ou<br />

ouvindo, inquirir solicitamente onde está a verdade de Deus, têm a<br />

audácia de desafiar a Deus com princípios gerais. Alguém dirá que ele<br />

ora pelos mortos porque, desconfiando de seu próprio juízo, não pode<br />

aventurar-se a condenar as falsas doutrinas inventadas por homens<br />

perversos sobre o purgatório, e, no entanto, se permitirá livremente<br />

a prática de fornicação. Outro dirá não ser tão preciso ao ponto de<br />

poder distinguir entre a doutrina pura de Cristo e as invenções espúrias<br />

dos homens, não obstante terá suficiente sutileza de roubar ou de<br />

cometer perjúrio. Em suma, todos os que nutrem dúvidas, que se cobrem<br />

com um véu de dúvida em todas as questões que na atualidade


316 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

são temas de controvérsia, exibem um manifesto pouco caso de Deus<br />

sobre temas que não são absolutamente obscuros.<br />

Portanto, não cabe nos maravilharmos se a doutrina do evangelho<br />

for recebida por tão poucas pessoas em nossos dias, visto<br />

restar tão pouco temor de Deus no mundo. Além disso, essas palavras<br />

de Cristo contêm uma definição da verdadeira religião, isto é,<br />

prepararmo-nos sinceramente para seguir a vontade de Deus, o que<br />

ninguém pode fazer, a menos que o mesmo renuncie seus conceitos<br />

pessoais.<br />

Ou se eu falo de mim mesmo. Devemos observar de que maneira<br />

Cristo quer que se forme um juízo sobre toda e qualquer doutrina. Ele<br />

quer que o que provém de Deus seja recebido sem controvérsia, porém<br />

francamente nos permite rejeitar tudo quanto provém do homem,<br />

pois esta é a única distinção que ele estabelece, por meio da qual devemos<br />

distinguir entre doutrinas.<br />

18. Aquele que fala de si mesmo. Até aqui, ele demonstrou que<br />

não há outra razão por que os homens são cegos, senão porque não se<br />

deixam governar pelo temor de Deus. Ele agora estabelece outra marca<br />

para a própria doutrina, por meio da qual possamos saber se ela<br />

provém de Deus ou do homem. Porque tudo quanto exibe a glória de<br />

Deus é santo e divino, mas tudo quanto contribui para dolorosaa ambição<br />

humana e, ao exaltar os homens, obscurece a glória de Deus, não<br />

só perde o direito de ser crido, mas deve ser veementemente rejeitado.<br />

Aquele que faz da glória de Deus o objeto de sua aspiração jamais se<br />

envolverá em erro. Aquele que tentar e provar, por meio desta pedra<br />

de toque, o que é transmitido no nome de Deus, jamais será enganado<br />

pela aparência de certo. Com isso, somos também lembrados que ninguém<br />

pode cumprir fielmente o ofício de mestre na Igreja, a menos que<br />

descarte toda ambição e resolva fazer dela seu único objetivo, ou seja,<br />

promover ao máximo de sua potencialidade, a glória de Deus. Ao dizer<br />

que não há injustiça nele, sua intenção é dizer que não há nele nada de<br />

perverso ou hipócrita, senão que faz aquilo que torna um ministro de<br />

Deus íntegro e sincero.


Capítulo 7 • 317<br />

19. Moisés não vos deu a lei? O evangelista não apresenta uma<br />

narrativa completa e bem encadeada do sermão enunciado por Cristo,<br />

mas apenas uma breve seleção dos principais tópicos, os quais<br />

contêm a substância do que foi expresso. Os escribas o odiavam<br />

mortalmente, 9 e os sacerdotes se deixaram incendiar-se de fúria contra<br />

ele, só porque ele curara um paralítico, e declaravam que isso era<br />

oriundo de seu zelo pela lei. Para rebater sua hipocrisia, ele arrazoa,<br />

não a partir do tema, mas da pessoa. Todos eles, tendo espontaneamente<br />

se devotado a seus vícios, como se nunca tivessem conhecido<br />

qualquer lei, (ele infere disto que) eles não agiam movidos por algum<br />

amor ou zelo pela lei. Aliás, esta defesa não teria sido suficiente para<br />

provar o ponto. Admitindo que – sob falso pretexto – ocultaram seu<br />

perverso e injusto ódio, não obstante não se segue que Cristo agisse<br />

certo se cometesse algo contrário à injunção da lei, pois não devemos<br />

tentar atenuar nossa própria culpa pelos pecados de outrem.<br />

Cristo, porém, conecta aqui duas sentenças. Na primeira, ele fala<br />

à consciência de seus inimigos, e, visto que soberbamente se vangloriavam<br />

de serem defensores da lei, ele arranca do rosto deles essa<br />

máscara, pois lança contra eles esta censura: que se permitiam violar<br />

a lei como bem lhes aprazia, e por isso não se preocupavam com a lei.<br />

Em seguida, ele formula a pergunta propriamente dita, como veremos<br />

logo depois, de modo que a defesa é satisfatória e completa em todas<br />

suas partes. Consequentemente, o equivalente desta sentença é que<br />

não existe nenhum zelo pela lei naqueles que a desprezam. Daí Cristo<br />

inferir que algo mais impeliu os judeus a uma fúria tão intensa, quando<br />

buscam sua morte. Dessa forma devemos arrancar os ímpios de suas<br />

dissimulações sempre que lutarem contra Deus e a sã doutrina, e ainda<br />

sob o pretexto de agir assim movidos por motivos pios.<br />

Os que na atualidade constituem os mais ferozes inimigos do<br />

evangelho e os mais incansáveis defensores do papado nada têm mais<br />

plausível a alegar em sua defesa senão que são impelidos pelo ardor<br />

9 “Lds scribes le haissoyent mortellement”.


318 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

do zelo. Mas se sua vida for detidamente examinada, são todos eles<br />

dominados por crimes vis e motejam francamente de Deus. Quem não<br />

sabe que a corte papal está cheia de epicureus? 10 E no tocante aos<br />

bispos e abades, cultivam tanta modéstia ao ponto de ocultar suas<br />

vilezas para que alguma aparência de religião seja observada neles.<br />

Além disso, quanto aos monges e outros rixentos, não se entregaram a<br />

toda perversidade, impureza, cobiça e todo gênero de crimes hediondos,<br />

de modo que sua vida clama em alta voz que já se esqueceram<br />

totalmente de Deus? E agora não se envergonham de vangloriar-se de<br />

seu zelo por Deus e pela Igreja, não devemos nós reprimi-los fazendo<br />

uso desta réplica de Cristo?<br />

[7.20-24]<br />

A multidão respondeu e disse: Tu tens um demônio, quem procura<br />

matar-te? Jesus respondeu e lhes disse: Eu realizei uma<br />

obra, e todos vos maravilhais. Portanto, Moisés vos deu a circuncisão,<br />

não porque ela provém de Moisés, mas dos pais, e<br />

no sábado vós circuncidais um homem. Se um homem recebe<br />

a circuncisão no sábado, para que a lei de Moisés não seja<br />

transgredida, vos escandalizais em mim, só porque curei completamente<br />

a um homem no sábado? Não julgueis segundo a<br />

aparência, mas julgai segundo o reto juízo.<br />

20. Tu tens um demônio. Eis o sentido: “Tu estás louco”. Pois<br />

era uma frase costumeira entre os judeus que tinham sido educados<br />

na doutrina dizer que, quando alguém era excitado à fúria, ou quando<br />

perdesse o senso e a razão, ele era atormentado pelo diabo. E, aliás,<br />

como as varas paternais de Deus são corretivos suaves e moderados,<br />

assim quando ele nos ameaça com maior aspereza e severidade,<br />

parece não brandir sua própria mão, mas, antes, parece empregar o<br />

diabo como executor e ministro de sua ira. Além disso, a multidão cen-<br />

10 “Que la cour du Pape est remplie d’Epicuriens”.


Capítulo 7 • 319<br />

sura Cristo com simplicidade, pois as pessoas comuns não estavam<br />

familiarizadas com as intenções dos sacerdotes. Portanto, aqueles<br />

homens insensatos lhe atribuem demência quando Cristo se queixa<br />

de que estavam planejando entregá-lo à morte. Aprendemos disto que<br />

devemos ser excessivamente cautelosos, não formando uma opinião<br />

sobre temas que estão fora do alcance de nosso entendimento. Mas,<br />

se porventura acontecer de sermos temerariamente condenados por<br />

homens ignorantes, saibamos digerir a afronta com brandura.<br />

21. Eu realizei uma obra. Deixando de lado suas pessoas, ele agora<br />

passa a falar do fato, pois ele prova que o milagre que realizara não<br />

é inconsistente com a lei de Deus. Ao dizer que realizara uma obra,<br />

significa que ele está sendo acusado não de um crime singular, nem<br />

que é culpado de uma obra singular, que foi a de curar um homem<br />

no dia de repouso, 11 mas que eles, em cada dia de repouso, realizam<br />

muitas obras do mesmo ou de um gênero similar, e não são tidos como<br />

criminosos, pois não passava sequer um sábado em que não houvesse<br />

muitas crianças para serem circuncidadas na Judeia. Com este exemplo,<br />

ele defende sua ação, embora não argumente meramente com<br />

base no que é semelhante, mas traça uma comparação entre o maior e<br />

o menor. Existe esta similaridade entre a circuncisão e a cura do paralítico:<br />

ambas eram obras de Deus. Cristo, porém, afirma que a última<br />

é mais excelente, porque o benefício dela se estende à totalidade do<br />

homem. Ora, se ele meramente tivesse curado a enfermidade corporal<br />

do homem, a comparação não teria sido aplicável, pois a circuncisão<br />

teria maior excelência, visto estar relacionada com a cura da alma.<br />

Cristo, pois, conecta a vantagem espiritual do milagre com o benefício<br />

externo concedido ao corpo, e com isso ele, com razão, prefere a cura<br />

total de um homem à circuncisão.<br />

Poderia haver também outra razão para a comparação, a saber,<br />

que os sacramentos nem sempre acompanhados de poder e eficácia,<br />

enquanto Cristo operou eficazmente na cura do paralítico. Mas prefiro<br />

11 “Au jour de Repos”.


320 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

a primeira exposição, isto é, que os judeus maliciosa e caluniosamente<br />

reprovam uma obra, na qual a graça de Deus refulge com maior esplendor<br />

do que na circuncisão, à qual outorgavam tanta honra, ao ponto de<br />

acreditarem que o sábado não era assim violado.<br />

E todos vos maravilhais. O espanto de que fala era este: o que<br />

Cristo fizera causara tal murmuração, que imaginavam que ele se<br />

aventurara a fazer mais do que lhe era lícito.<br />

22. Portanto, Moisés vos deu a circuncisão. A partícula portanto<br />

parece estar fora de lugar, e, por conseguinte, alguns tomam διὰ τούτο<br />

(por essa conta, ou portanto) no sentido de διὰ τούτο (porque), porém<br />

a sintaxe grega não favorece tal opinião. 12 Explico-a simplesmente no<br />

sentido em que a circuncisão foi ordenada de tal maneira que a prática<br />

daquele rito simbólico era necessário mesmo que fosse no sábado.<br />

Portanto, diz ele, isto é, ela lhes foi assim suficientemente demonstrada<br />

que a veneração do sábado não é violada pelas obras de Deus. E<br />

embora Cristo acomode o exemplo da circuncisão ao presente tema,<br />

contudo faz uso imediato de uma correção quando diz que Moisés<br />

não foi o primeiro ministro da circuncisão. Mas era suficiente para seu<br />

propósito dizer que Moisés, que tão rigidamente exigiu a guarda do<br />

sábado, ordenou que as crianças fossem circuncidadas ao oitavo dia,<br />

mesmo quando ele caísse no dia de repouso. 13<br />

24. Não julgueis segundo a aparência. Havendo concluído sua defesa,<br />

igualmente administra uma censura com base neste motivo: que<br />

se deixam arrebatar por disposições perversas e não formam um juízo<br />

12 A dificuldade é obviada pela redação das palavras διὰ τούτο (com Scholz, Bloomfield<br />

e outros) como a conclusão do versículo 21, e não como o início do versículo 22, καὶ<br />

πάντες Θαυμάζετε διὰ τούτο e todos vos maravilhais nisto ou por essa conta. Nosso<br />

autor, com sua usual sagacidade, neste exemplo também antecipou os resultados da<br />

crítica moderna, pois sua versão francesa, a qual contém seus pontos de vista mais<br />

recentes, vem assim: “J’ay fait une œuvre, et vous en estes tous emerveillez, ou, et vous<br />

estes esmerveillez de cela. Moise vous a donne la Circoncision”. – “Eu tenho feito uma obra,<br />

e todos vós estais atônitos com ela, ou, e todos vós estais perplexos com isso. Moisés vos<br />

deu a circuncisão”. É notável que, enquanto uma versão francesa copia a tradução de<br />

Calvino bem estritamente, et vous en êtes tous étonnés (e todos vós estais perplexos com<br />

ela), o tradutor ignorou a força de διὰ τούτο, for en (nela), que é marcada por ele com<br />

itálico, como um suplemento.<br />

13 “Au jour de Repos”.


Capítulo 7 • 321<br />

em conformidade com o fato e a matéria em mãos. A circuncisão era<br />

propriamente mantida por eles em reverência, e quando era efetuada<br />

no sábado, sabiam que a lei não estava sendo por isso violada, porque<br />

as obras de Deus se harmonizam plenamente entre si. Por que não chegavam<br />

à mesma conclusão no tocante à obra de Cristo, senão porque<br />

suas mentes estavam entulhadas do preconceito que formavam contra<br />

sua pessoa? Portanto, o juízo nunca será correto, a menos que seja regulado<br />

pela veracidade do fato, pois assim que as pessoas aparecem em<br />

público, volvem seus olhos e sentidos para si mesmas, de modo que a<br />

verdade se desvanece imediatamente. Embora esta admoestação deva<br />

ser observada em todas as causas e atividades, ela é peculiarmente necessária<br />

quando a questão se relaciona com a doutrina celestial, pois<br />

não há nada a que mais nos inclinamos do que antipatizar com essa<br />

doutrina em virtude do ódio ou desprezo dos homens.<br />

[7.25-30]<br />

Portanto, alguns dos habitantes de Jerusalém diziam: Não é<br />

este aquele a quem procuram matar? E ei-lo a falar ousadamente,<br />

e nada lhe dizem. Os líderes realmente sabem que este é<br />

verdadeiramente o Cristo? Nós, porém, sabemos de onde este<br />

homem é. Mas quando o Cristo vier, ninguém saberá de onde<br />

ele é. Jesus, pois, exclamou no templo, ensinando e dizendo:<br />

Vós me conheceis, e vós sabeis de onde eu sou, eu não vim por<br />

conta própria, mas aquele que me enviou é verdadeiro, a quem<br />

não conheceis. Eu, porém, o conheço, porque dele sou e ele me<br />

enviou. Por isso procuravam apoderar-se dele, mas ninguém<br />

lhe punha as mãos, porque sua hora ainda não havia chegado.<br />

25. Alguns dos habitantes de Jerusalém. Isto é, aqueles a quem<br />

os líderes tinham comunicado sua trama, e que sabiam o quanto Cristo<br />

era odiado. Pois o povo em geral, como já vimos recentemente, via<br />

isto como um sonho, ou como uma loucura. Portanto, as pessoas que<br />

sabiam com que inveterado furor os líderes de sua nação queimavam


322 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

contra Cristo tinham alguma razão para espanto, porque, enquanto<br />

Cristo está no templo não só dialoga publicamente, mas também<br />

prega livremente, sem qualquer intervenção dos líderes. Eles, porém,<br />

erram a esse respeito, a saber, que em um milagre totalmente divino<br />

não conseguem vê-lo como oriundo da providência divina. Assim, os<br />

homens carnais, sempre que se deparam com alguma obra inusitada<br />

de Deus, realmente espantam, porém sem levar em conta que o poder<br />

de Deus jamais tem acesso em sua mente. Nosso dever, porém, é examinar<br />

mais sabiamente as obras de Deus, especialmente quando os<br />

perversos, com todos seus engenhos, não conseguem impedir o avanço<br />

do evangelho, como gostariam, devemos persuadir-nos plenamente<br />

que seus esforços se tornaram infrutíferos porque Deus, se interpondo<br />

com sua palavra, os derrotou.<br />

27. Nós, porém, sabemos de onde este homem é. Aqui vemos<br />

não só quão profunda é a cegueira dos homens, quando passam a julgar<br />

as coisas de Deus, este vício, porém, é quase natural aos que são<br />

engenhosos, maquinando o que poderia impedi-los de chegar ao conhecimento<br />

da verdade. Aliás, frequentemente faz parte da astúcia de<br />

Satanás o surgimento de escândalos, os quais levam muitos a virar as<br />

costas para Cristo, mas ainda que a estrada fosse plana e lisa, cada<br />

pessoa inventaria um escândalo para si. Enquanto os líderes se opunham<br />

a Cristo, sua incredulidade por si só teria mantido essa multidão<br />

afastada, mas quando esse obstáculo foi removido, inventaram para<br />

si um novo motivo, para que se chegassem à fé. E ainda quando fosse<br />

oportuno que se deixassem influenciar pelo exemplo de seus líderes,<br />

se encontram tão longe de seguir o que é correto, que voluntariamente<br />

tropeçam no primeiro degrau. Assim sucede frequentemente que os<br />

homens que tinham começado bem tão depressa apostatam, a não ser<br />

que o Senhor os conduza até o final de sua carreira.<br />

Mas quando Cristo vier. O argumento pelo qual obstruem seu<br />

próprio progresso é este: “Os profetas testificaram que a origem de<br />

Cristo seria desconhecida. Ora, nós sabemos de onde este homem é,<br />

e por isso não podemos considerá-lo como sendo o Cristo”. Desse


Capítulo 7 • 323<br />

fato, somos lembrados quão pernicioso é mutilar as Escrituras, inclusive<br />

o próprio Cristo, a ponto de não admitir dele mais que a metade.<br />

Deus prometeu que o Redentor procederia da semente de Davi, mas<br />

ele frequentemente reivindica este ofício como sendo peculiar a ele.<br />

Portanto, ele teria de ser manifestado na carne para que pudesse ser o<br />

Redentor de sua Igreja. Assim Miqueias aponta para o lugar onde Cristo<br />

nasceria. De ti, Belém, diz ele, sairá um Príncipe para governar meu<br />

povo. Mas imediatamente depois ele fala de outra origem que é muito<br />

mais elevada, e então diz que ela é velada e secreta [Mq 5.2]. Não<br />

obstante, esses homens miseráveis, por não perceberem em Cristo,<br />

senão o que é digno de desprezo, chegam à absurda conclusão de que<br />

ele não é a pessoa que fora prometida. Sobre a humilde condição de<br />

Cristo na carne, aprendamos, pois, a discernir de tal maneira, que esse<br />

estado de humilhação, que é desprezado pelos homens perversos,<br />

pode elevar-nos a sua glória celestial. Assim Belém, onde o homem<br />

nasceria, nos será a porta pela qual podemos ter acesso à presença<br />

do Deus eterno.<br />

28. Jesus, pois, exclamou no templo. Ele os censura amargamente<br />

por sua temeridade, porque arrogantemente se vangloriavam em sua<br />

falsa opinião, e assim se excluíam do conhecimento da verdade, como<br />

se ele dissesse: “Vós conheceis todas as coisas, e, no entanto, nada<br />

sabeis”. E de fato não há uma praga mais destrutiva do que quando os<br />

homens se intoxicam tanto por uma mísera porção de conhecimento<br />

que possuem, que ousadamente rejeitam tudo quanto é contrário a<br />

sua opinião.<br />

Vós me conheceis, e sabeis de onde eu sou. Esta é uma linguagem<br />

irônica. Com a falsa opinião que tinham formado a seu respeito,<br />

ele contrasta o que é verdadeiro, como se dissesse: “Enquanto tendes<br />

vossos olhos fixos na terra, acreditais que todas as partes de<br />

mim estão diante de vossos olhos, e por isso me desprezais como vil<br />

e desconhecido. Mas Deus testificará que eu vim do céu, e ainda que<br />

eu seja rejeitado por vós, Deus reconhecerá que eu sou realmente<br />

seu próprio Filho”.


324 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Mas aquele que me enviou é verdadeiro. Ele denomina Deus de<br />

verdadeiro no mesmo sentido que Paulo o denomina de fiel. Se somos<br />

incrédulos, diz ele, ele permanece fiel, porque não pode negar-se a si<br />

mesmo [2Tm 2.13]. Porque seu objetivo é provar que o crédito que se<br />

deve ao evangelho não é no mínimo grau diminuído por mais esforço o<br />

mundo faça para destruí-lo. Que embora os homens perversos tentem<br />

arrebatar de Cristo o que lhe pertence, não obstante ele permanece<br />

intocado, porque a verdade de Deus é firme e sempre inviolável. Cristo<br />

percebe que é desprezado, porém longe está de ceder. Ao contrário,<br />

ele repele ousadamente a furiosa arrogância daqueles que não lhe dão<br />

nenhum valor. Todos os crentes devem ser revestidos com aquela fortaleza<br />

que é inabalável e heroica. sim, ainda mais, nossa fé jamais será<br />

tão sólida ou durável, a menos que ela trate com desprezo a presunção<br />

dos perversos, quando se insurgem contra Cristo. Acima de tudo, os<br />

santos mestres, refugiando-se nesse apoio, devem prosseguir firmes<br />

na sã doutrina, ainda quando ela seja negada pelo mundo inteiro. Assim,<br />

Jeremias apela para Deus como seu defensor e guardião, porque<br />

ele é condenado como impostor: Tu me enganaste, ó Senhor, diz ele, e<br />

eu fui enganado [Jr 20.7]. Assim, Isaías, oprimido de todos os lados por<br />

calúnias e reproches, foge para este refúgio, dizendo que Deus aprovará<br />

sua causa [Is 50.8]. Assim, Paulo, oprimido por juízos injustos, apela<br />

contra todos para o dia do Senhor [1Co 4.5], considerando apenas ser<br />

suficiente que Deus se ponha contra o mundo inteiro, por mais que ele<br />

ruja e se enfureça.<br />

A quem vós não conheceis. Ele quer dizer que não é de admirar<br />

que ele não seja conhecido pelos judeus, porque eles não conhecem a<br />

Deus, pois o princípio da sabedoria é contemplar a Deus.<br />

29. Eu, porém, o conheço. Ao dizer que conhecia a Deus, sua<br />

intenção é que não é sem bons motivos que ele se ergue com tão confiança.<br />

E através de seu exemplo ele nos aconselha a não tomarmos<br />

levianamente o nome de Deus, a fim de nos gloriarmos nele como o<br />

patrono e defensor de nossa causa. Pois muitos são também presunçosos,<br />

gabando-se da autoridade de Deus. De fato, é impossível imaginar


Capítulo 7 • 325<br />

mais prontidão e ousadia em rejeitar as opiniões de todos os homens<br />

do que ser encontrado entre fanáticos que se entregam a suas próprias<br />

invenções como se fossem oráculos de Deus. Somos, porém, instruídos<br />

por essas palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, ou seja, que<br />

devemos precaver-nos especialmente da confiança orgulhosa e insensata,<br />

e que, quando tivermos nos certificado plenamente da verdade<br />

de Deus, devemos ousadamente resistir os homens. E aquele que está<br />

plenamente ciente de que Deus está de seu lado, não tem razão para<br />

temer a acusação de ser insolente, pisando sob a planta de seus pés<br />

toda a arrogância do mundo.<br />

Porque eu sou dele, e ele me enviou. Há quem distingue essas<br />

duas sentenças. Atribuem a primeira sentença – eu sou dele – à essência<br />

divina de Cristo e a última sentença – ele me enviou – ao ofício que<br />

lhe foi imposto pelo Pai, no interesse da realização de tomar sobre si a<br />

carne e a natureza humana. Ainda que não me aventure a rejeitar este<br />

ponto de vista, todavia não sei se Cristo pretendia falar tão obscuramente.<br />

Prontamente reconheço que a ausência de Cristo do céu pode<br />

ser inferida dela, porém não seria uma prova suficientemente forte de<br />

sua deidade eterna contra os arianos.<br />

30. Por isso eles procuravam apoderar-se dele. Falta de vontade<br />

não lhes faltava de fazer-lhe mal. Tentativa também não faltou,<br />

e tinham poder para isso. Por que, pois, no meio de tanto trabalho,<br />

sentem-se entorpecidos, como se tivessem suas mãos e pés atados? O<br />

evangelista responde: porque a hora de Cristo não havia ainda chegado.<br />

Com isso, ele quer dizer que, contra toda sua violência e ataques<br />

furiosos, Cristo era guardado pela proteção de Deus. E ao mesmo tempo<br />

ele se vê frente a frente com o escândalo da cruz, pois não temos<br />

razão para alarde quando descobrimos que Cristo foi arrastado para a<br />

morte, não pelo capricho humano, mas porque ele foi destinado pelo<br />

decreto do Pai a fazer esse sacrifício. E disso devemos inferir uma doutrina<br />

geral, pois ainda que vivamos dia após dia, todavia o tempo da<br />

morte cada pessoa já foi fixado por Deus. É difícil crer que, enquanto<br />

estamos sujeitos a tantos acidentes, expostos a tantos ataques pú-


326 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

blicos e velados, seja da parte dos homens, seja da parte de feras, e<br />

vulneráveis a tantas enfermidades, somos guardados de todo risco até<br />

que Deus se agrade em chamar-nos para si. Mas devemos lutar contra<br />

nossa própria falta de confiança. Devemos atentar primeiro para<br />

a própria doutrina que é aqui ensinada, e em seguida para o objeto a<br />

que ela almeja e para a exortação que é extraído dela, isto é, que cada<br />

um de nós, lançando toda sua preocupação em Deus [Sl 55.22, 1Pe 5.7],<br />

siga sua própria vocação, e não se deixe desviar da realização de seu<br />

dever movido por algum temor. Que ninguém vá além de seus próprios<br />

limites, pois a confiança na providência de Deus não deve ir além do<br />

que Deus mesmo ordena.<br />

[7.31-36]<br />

E muitos dentre a multidão creram nele e diziam: Quando<br />

Cristo vier, ele fará mais milagres do que faz este homem? Os fariseus<br />

ouviam a multidão sussurrar essas coisas sobre ele, e os<br />

fariseus e sacerdotes enviaram oficiais para prendê-lo. Jesus,<br />

pois, lhes disse: Ainda um pouco de tempo estou convosco, e<br />

eu vou para aquele que me enviou. Vós me buscareis, e não me<br />

achareis, e onde eu estou, não podeis ir. Os judeus, pois, diziam<br />

entre si: Para onde ele vai que não o acharemos? Irá porventura<br />

para aqueles que estão dispersos entre os gregos, 14 e ensinará<br />

os gregos? Que palavra é esta que ele falou: Vós me buscareis, e<br />

não me achareis, e para onde vou, vós não podeis ir?<br />

31. E muitos dentre a multidão creram nele. Poderíamos imaginar<br />

que Cristo pregou a pessoas surdas e completamente obstinadas,<br />

e, no entanto, o evangelista diz que houve a produção de alguns frutos.<br />

E por isso, embora alguns murmurassem e outros escarnecessem, e<br />

ainda outros caluniassem, e ainda que muitas diferenças de opinião<br />

surgissem, não obstante a pregação do evangelho não será sem efeito,<br />

14 “Vers ceux qui sont espars entre les Grecs”.


Capítulo 7 • 327<br />

de modo que temos de semear a semente e aguardar com paciência<br />

até que, no processo do tempo, o fruto entre em cena. O verbo crer é<br />

aqui usado não num sentido exato, pois dependiam mais de milagres<br />

do que confiavam na doutrina, e não estavam convencidos de que Jesus<br />

era de fato o Cristo. Mas como estavam preparados para ouvi-lo,<br />

e se mostravam dispostos a receber instrução dele como seu Mestre,<br />

tal preparação para a fé é chamada fé. Quando o Espírito Santo outorga<br />

tão honrosa designação a uma pequena fagulha de boa disposição,<br />

isso deve encorajar-nos, para que não duvidemos de que a fé, por menor<br />

que seja, é aceitável a Deus.<br />

32. Os fariseus ouviam. Daqui transparece que os fariseus, como<br />

pessoas em postos de vigilância, estavam ansiosos, em todas as ocasiões,<br />

a não permitir que Cristo fosse conhecido. Na primeira instância o<br />

evangelista os chama apenas fariseus, e em seguida lhes acrescenta os<br />

sacerdotes, dos quais os fariseus eram parte. Não pode haver dúvida de<br />

que, como queriam ser considerados os maiores zelotes da lei, se opunham<br />

a Cristo de forma mais dolorosa do que todas as demais seitas,<br />

mas descobrindo que seus esforços sem reforços não eram suficientes<br />

para reprimir a Cristo, delegaram a ação a toda a ordem dos sacerdotes.<br />

E assim os que, em outros aspectos, diferiam entre si, agora<br />

conspiram de mãos dadas, sob as diretrizes de Satanás, contra o Filho<br />

de Deus. Entretanto, visto que os fariseus nutriam um ardente zelo e<br />

um esforço incessante em defender sua tirania e o corrupto estado<br />

da Igreja, quanto mais zelosos devemos nós ser na manutenção do<br />

reino de Cristo! Os papistas, na atualidade, não são menos loucos nem<br />

menos ansiosos em extinguir o evangelho, e, no entanto, é monstruosamente<br />

perverso que seu exemplo não instigue um mínimo sequer de<br />

nossos desejos, e não nos leva a labutar com maior ousadia na defesa<br />

da verdadeira e sã doutrina.<br />

33. Ainda um pouco de tempo eu estou convosco. Há quem pensa<br />

que este sermão foi pronunciado à assembleia do povo que estava<br />

presente, e outros, que ele foi pronunciado aos oficiais que haviam sido<br />

enviados a prender a Cristo. De minha parte, porém, não tenho dúvida


328 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

de que Cristo falou particularmente a seus inimigos, os quais tinham tomado<br />

conselho para destruí-lo. Pois ele ridiculariza seus esforços, visto<br />

que seriam totalmente ineficazes, até que chegasse o tempo decretado<br />

pelo Pai. E, ao mesmo tempo, ele os repreende por sua obstinação, porque<br />

não só rejeitavam, porém se opunham furiosamente, à graça que<br />

lhes é oferecida, e ameaça que não demora muito e ela será tomada<br />

deles. Ao dizer: eu estou convosco, ele censura sua ingratidão, porque,<br />

embora ele lhes fosse dado pelo Pai, tivesse descido da glória celestial<br />

para eles, chamando-os para que fossem seus íntimos associados, nada<br />

mais desejava do que assisti-los, contudo houve poucos que o receberam.<br />

Ao dizer: Ainda por pouco tempo, os adverte que Deus não mais<br />

suportará que sua graça seja exposta a um desprezo tão vergonhoso.<br />

Ele ainda afirma que nem sua vida nem sua morte estão postas à disposição<br />

deles, senão que seu Pai já fixou um tempo que se cumprirá.<br />

Eu vou para aquele que me enviou. Com estas palavras, ele testifica<br />

que não será extinto por sua morte, senão que, ao contrário,<br />

quando ele se desfizer de seu corpo mortal, será declarado o Filho<br />

de Deus pelo honroso triunfo de sua ressurreição, como se quisesse<br />

dizer: “Labutai o quanto puderdes, contudo jamais impedireis o Pai<br />

de receber-me em sua glória celestial, quando eu tiver cumprido o ofício<br />

de Embaixador que ele me confiou. E assim não só minha posição<br />

permanecerá imutável depois de minha morte, mas uma condição ainda<br />

mais excelente me será então propiciada”. Além disso, devemos<br />

extrair disto uma admoestação geral, pois enquanto Cristo nos chama<br />

à esperança de salvação pela proclamação do evangelho, ele está<br />

presente conosco. Pois não é sem razão que a pregação do evangelho<br />

seja chamada a descida de Cristo a nós, onde se diz: ele veio e pregou<br />

paz aos que estavam longe, e aos que estavam perto [Ef 2.17]. Se<br />

aceitarmos a mão que nos estende, ele nos levará ao Pai. E enquanto<br />

peregrinarmos por este mundo, ele não só demonstrará estar perto de<br />

nós, mas habitará incessantemente em nós. E se desconsiderarmos<br />

sua presença, ele nada perderá, senão que, afastando-se de nós, nos<br />

deixará totalmente alienados tanto de Deus quanto da vida.


Capítulo 7 • 329<br />

34. Vós me buscareis. Eles buscavam a Cristo para matá-lo. Aqui<br />

Cristo alude ao à ambígua significação do verbo buscar, porque logo o<br />

buscariam de outra maneira, como se dissesse: “Minha presença, que<br />

ora vos é maçante e intolerável, será de pouca duração, mas não levará<br />

muito tempo, e me buscareis em vão, porque, estando muito longe<br />

de vós, não só meu corpo, mas também meu poder, contemplarei do<br />

céu vossa destruição”. Aqui, porém, pode-se formular uma pergunta:<br />

De que natureza era essa busca de Cristo? Pois é bastante evidente<br />

que Cristo fala dos réprobos, cuja obstinação em rejeitar a Cristo havia<br />

atingido o ponto máximo. Alguns a referem à doutrina, porque os<br />

judeus, reduzidos a extremos, em vão imploravam por um Redentor.<br />

De minha parte, porém, a explico como denotando meramente os gemidos<br />

de angústia exprimidos pelos ímpios, quando, compelidos por<br />

necessidade, de alguma maneira olharão para Deus.<br />

E não me achareis. Quando o buscam, não o acham, pois a incredulidade<br />

e a obstinação – fechando, por assim dizer, seus corações<br />

– os impedem de aproximar-se de Deus. Aliás, desejariam que Deus os<br />

ajudasse e fosse seu Redentor, mas, por sua impenitência e dureza de<br />

coração, obstruíram sua vereda. Temos um exemplo 15 mui notável em<br />

Esaú, em virtude de haver perdido sua primogenitura, não só é consumido<br />

pela tristeza, mas geme e range seus dentes e se prorrompe em<br />

furiosa indignação [Gn 27.38, Hb 12.17]. Não obstante, o caminho certo<br />

de buscar a bênção se achava longe dele. Quanto mais o buscava, 16<br />

mais indigno se tornava dele. É dessa maneira que Deus geralmente<br />

pune o desprezo de sua graça por parte dos réprobos, de modo que,<br />

quer afligidos por castigos severos ou oprimidos pela convicção de<br />

sua miséria, ou ainda reduzidos a extremos, se queixam e clamam e<br />

uivam, porém sem colher qualquer benefício. Porque, sendo sempre<br />

amantes de si mesmos, nutrem em seus corações a mesma crueldade<br />

que anteriormente exibiam, e não vão a Deus, ao contrário desejam<br />

que ele fosse mudado, já que não podem destruí-lo.<br />

15 “Un fort bel exemple”.<br />

16 “Quand il la cherche”.


330 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Aprendamos deste fato que devemos receber Cristo sem delonga,<br />

enquanto ele ainda está conosco, para que não suceda de a oportunidade<br />

de desfrutá-lo se afaste de nós. Porque se acontecer de a porta<br />

ser fechada, nos será inútil tentar abri-la. Buscai o Senhor, diz Isaías,<br />

enquanto puder ser achado, invocai-o, enquanto estiver perto [Is 55.6].<br />

Portanto, devemos ir a Deus o quanto antes, enquanto durar o tempo de<br />

seu beneplácito, segundo as palavras do profeta [Is 49.8], pois não sabemos<br />

quanto tempo Deus vai suportar nossa negligência. Em outros<br />

termos, onde eu estou, vós não podeis ir, ele emprega o tempo presente,<br />

em vez do futuro, onde eu estarei, vós não podereis ir.<br />

35. Para onde ele vai? Isto foi adicionado pelo evangelista com<br />

o expresso propósito de mostrar quão profunda era a estupidez do<br />

povo. E assim não só os homens perversos são surdos para ouvir a<br />

instrução divina, mas ainda permitem que as terríveis ameaças sejam<br />

tratadas com desdém, como se estivessem ouvindo uma fábula. Cristo<br />

falou expressamente do Pai, porém eles continuam presos na terra, e<br />

em nada mais pensam senão em uma partida para países distantes.<br />

Ele irá porventura para a dispersão dos gregos? É bem notório<br />

que os judeus deram o título de gregos a todas as nações de além mar.<br />

Mas não pensavam que Cristo fosse para as nações incircuncisas, mas<br />

para os judeus que haviam sido dispersos pelos vários países do mundo.<br />

Pois a palavra dispersão não se aplicaria aos naturais da região<br />

e que habitavam seu solo natal, mas se aplica bem aos judeus que<br />

eram fugitivos e exilados. Assim, Pedro registra em sua Primeira Epístola:<br />

παρεπιδήμοις διασπορᾶς, aos forasteiros da dispersão, isto é, aos<br />

forasteiros que estavam dispersos pelo Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia<br />

e Bitínia [1Pe 1.1], e Tiago saúda as doze tribos ἐν τὣ διασπορᾷ, na<br />

dispersão, isto é, dispersos em rincões distantes [Tg 1.1]. Portanto, o significado<br />

das palavras é: “Ele cruzará o mar, irá aos judeus que moram<br />

em um mundo que nos é desconhecido?” E é possível que tencionassem<br />

amofinar Cristo com esta zombaria. “Se este é o Messias, fixará ele<br />

a sede de seu reinado na Grécia, se Deus lhe designou a terra de Canaã<br />

como sua própria habitação?”. Mas, seja o que for, percebemos que a<br />

severa ameaça que Cristo pronunciou de forma alguma os afetou.


Capítulo 7 • 331<br />

[7.37-39]<br />

Ora, no último dia, que era o maior dia da festa, Jesus se pôs<br />

em pé e clamou, dizendo: Se alguém tem sede, venha a mim<br />

e beba. Aquele que crê em mim, como diz a Escritura, de seu<br />

interior fluirão rios de água viva. Mas isso disse ele do Espírito<br />

que haviam de receber os que nele cressem. Porque o Espírito<br />

Santo ainda não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda<br />

glorificado.<br />

37. No último dia. O primeiro elemento que devemos observar<br />

aqui é que nenhuma trama ou intriga por parte dos inimigos havia<br />

amedrontado a Cristo ao ponto de levá-lo a desistir de seu dever. Mas,<br />

ao contrário disso, sua coragem despertou-se frente aos perigos, de<br />

modo a perseverar com maior determinação. Isso é provado pela circunstância<br />

do tempo, com a multidão aglomerada e a liberdade que<br />

ele teve em exclamar, embora saibamos que mãos se estendiam de todos<br />

os lados para agarrá-lo, pois é provável que os oficiais estivessem,<br />

naquele tempo, prontos a executar seu compromisso.<br />

Em seguida, devemos observar que nada mais além da proteção<br />

de Deus, à qual ele se entregou, o capacitava a permanecer<br />

firme contra esforços tão violentos daqueles que tinham tudo em<br />

seu poder. Pois, que outra razão se poderia determinar pela qual<br />

Cristo pregasse no dia mais público da festa, no meio do templo,<br />

sobre o qual seus inimigos exerciam um tranquilo reinado, e depois<br />

de prepararem um bando de oficiais, senão porque Deus restringia<br />

seu furor? Não obstante, é-nos muitíssimo proveitoso que o evangelista<br />

introduza Cristo exclamando em voz alta: Todo aquele que<br />

tiver sede, venha a mim. Pois disto inferimos que o convite não<br />

era dirigido a apenas uma ou duas pessoas, ou em um suave e manso<br />

sussurro, senão que esta doutrina é proclamada a todos, de tal<br />

maneira que ninguém poderia ignorá-la, senão que todos quantos,<br />

espontaneamente, fechasse seus ouvidos não receberiam este clamor<br />

audível e distinto.


332 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Se alguém tem sede. Com esta sentença ele exorta a todos a participarem<br />

de suas bênçãos, desde que, partindo da convicção de sua<br />

própria pobreza, desejassem obter assistência. Pois é verdade que todos<br />

nós somos pobres e destituídos de toda bênção, porém longe de<br />

ser verdade que todos se despertem pela convicção de sua pobreza e<br />

busquem alívio. Daí, ocorre que muitas pessoas não arredam um pé,<br />

senão que miseravelmente se intimidam e decaem, e há ainda muitos<br />

que não se deixam afligir pela percepção de seu vazio, até que o Espírito<br />

de Deus, com seu próprio fogo, lance fome e sede em seus corações.<br />

Portanto, pertence ao Espírito despertar em nós fome por sua graça.<br />

Quanto à presente passagem, devemos observar, primeiramente,<br />

que ninguém é chamado a tomar posse das riquezas do Espírito, senão<br />

aqueles que ardem de anseio por elas. Pois sabemos que o anseio da<br />

sede é mui agudo e torturante, de modo que as pessoas mais fortes,<br />

e as que não podem suportar qualquer quantidade de dificuldade são<br />

debilitadas pela sede. E, no entanto, ele convida os sedentos, em vez de<br />

os famintos, para que sigam a metáfora que ele em seguida emprega no<br />

substantivo água e no verbo beber, para que todas as partes do discurso<br />

se harmonizem entre si. E não tenho dúvida de que ele alude àquela<br />

passagem de Isaías: Todos vós que tendes sede, vinde às águas [Is 55.1].<br />

Porque o que o profeta ali atribui a Deus teria sido, finalmente, cumprido<br />

em Cristo, como também aquilo que a bem-aventurada virgem<br />

cantou: aqueles que são ricos e satisfeitos, ele despediu vazios [Lc 1.53].<br />

Ele, pois, nos concita a ir diretamente a ele, como se quisesse dizer<br />

que é somente ele quem pode saciar plenamente a sede de todos, e<br />

que todos quantos buscam, ainda que seja o menor alívio de sua sede,<br />

em qualquer outra parte, estão equivocados, e labutam inutilmente.<br />

E beba. Uma promessa é adicionada à exortação, pois ainda que<br />

a expressão, e beba, comunique uma exortação, no entanto ela contém<br />

em si uma promessa. Porque Cristo testifica que ele não é uma<br />

cisterna seca e rota, mas uma fonte inexaurível, a qual ampla e abundantemente<br />

supre todos os que vão beber. Desse fato, segue-se que,<br />

se lhe pedirmos o de que carecemos, nosso desejo não será frustrado.


Capítulo 7 • 333<br />

38. Aquele que crê em mim. Ele agora realça a maneira de vir,<br />

ou seja, que devemos aproximar-nos, não com os pés, mas pela fé, ou<br />

melhor, vir nada mais é que crer, pelo menos se o leitor definir com<br />

exatidão o verbo crer, como já dissemos que cremos em Cristo quando<br />

o abraçamos como ele nos é apresentado no evangelho, cheio de poder,<br />

sabedoria, justiça, pureza, vida e todos os dons do Espírito Santo.<br />

Além disso, ele agora confirma mais clara e plenamente a promessa<br />

que acabamos de mencionar, pois ele mostra que possui uma rica<br />

abundância para satisfazer-nos à saciedade.<br />

De seu interior fluirão rios de água viva. Sem dúvida, a metáfora<br />

parece algo um tanto abrupto, ao dizer ele que rios de água viva<br />

fluiriam do interior dos crentes, mas não pode haver dúvida quanto<br />

ao significado, a saber, que os que creem não terão falta de bênçãos<br />

espirituais. Ele denomina de água viva a fonte que jamais seca nem<br />

cessa de fluir continuamente. Quanto ao termo rios no plural, interpreto<br />

como que denotando as graças diversificadas do Espírito, as quais<br />

são indispensáveis à vida espiritual da alma. Em suma, a perpetuidade,<br />

bem como a abundância, dos dons do Espírito Santo, 17 nos é aqui<br />

prometida. Alguns entendem a expressão, que águas fluirão do interior<br />

dos crentes – neste sentido: aquele a quem o Espírito foi outorgado<br />

forma um componente na emanação a seus irmãos, visto que deve haver<br />

mútua comunicação entre nós. Mas considero que aqui temos um<br />

significado simples, a saber, que todos quantos creem em Cristo terão<br />

uma fonte de vida fluindo, por assim dizer, de seu interior, como Cristo<br />

dissera previamente: Aquele que beber desta água jamais terá sede [Jo<br />

4.14], pois enquanto a bebida comum só mata a sede por breve momento,<br />

Cristo diz que pela fé atraímos o Espírito para que ele se torne<br />

uma fonte de água fluindo para a vida eterna.<br />

Contudo, ele não diz que no primeiro dia os crentes já se acham<br />

tão plenamente satisfeito com Cristo que não mais sentem nem fome<br />

nem sede, mas, ao contrário, o desfruto de Cristo faz nascer um novo<br />

17 “Des dons et graces du Sainct Espirit”.


334 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

desejo dele. Mas, o significado consiste em que o Espírito Santo é<br />

como uma fonte viva que flui continuamente nos frentes, como Paulo<br />

também declara que ele é vida em nós [Rm 8.10], embora o corpo<br />

esteja morto por causa do pecado. E deveras, como cada um de nós<br />

participa dos dons e graças do Espírito Santo, segundo a medida de<br />

sua fé, não podemos possuir uma plenitude perfeita deles na presente<br />

vida. Os crentes, porém, embora façam progresso na fé, aspiram continuamente<br />

novo aumento do Espírito, de modo que as primícias que<br />

têm provado os conduzam à perpetuidade da vida. Mas somos também<br />

lembrados de quão pequena é a capacidade de nossa fé, visto que<br />

as graças do Espírito quase sempre chegam a nós em gotas, as quais<br />

fluiriam como rios caso déssemos a devida admissão a Cristo, isto é, se<br />

a fé nos capacitasse para recebê-lo.<br />

Como diz a Escritura. Há quem limita esta afirmação à primeira<br />

sentença, e outros, à última sentença. De minha parte, porém, estendo-<br />

-a a todo o escopo do discurso. Além disso, Cristo aqui, em minha<br />

opinião, não realça alguma passagem particular da Escritura, mas<br />

produz um testemunho extraído da doutrina ordinária dos profetas.<br />

Pois sempre que o Senhor, ao prometer uma abundância de seu Espírito,<br />

compara-a a águas vivas, ele visa principalmente ao reino de<br />

Cristo, para o qual ele dirige as mentes dos crentes. Portanto, todas<br />

as predições de águas vivas têm seu cumprimento em Cristo, porque<br />

tão-somente ele tem aberto e exibido os tesouros ocultos de Deus. A<br />

razão pela qual as graças do Espírito são derramadas sobre ele é para<br />

que todos nós possamos receber de sua plenitude [Jo 1.16]. Essas pessoas,<br />

pois, a quem Cristo tão bondosa e graciosamente chama, e que se<br />

desviam em toda direção, merecem perecer miseravelmente.<br />

39. Mas isso ele falava do Espírito. O termo água é às vezes aplicado<br />

ao Espírito em virtude de sua pureza, porque seu ofício é purificar<br />

nossas impurezas. Mas nesta e em passagens semelhantes este termo<br />

é empregado em uma acepção diferente, ou seja, que somos destituídos<br />

de toda seiva e umidade de vida, a não ser quando o Espírito de<br />

Deus nos vivifica e quando ele nos rega, por assim dizer, por meio de


Capítulo 7 • 335<br />

um vigor secreto. Em uma parte ele inclui o todo, 18 porque sob a palavra<br />

água ele inclui todas as partes da vida. Daí inferirmos também que<br />

todos quantos não foram regenerados pelo Espírito de Cristo deve ser<br />

reputado como estando morto, seja qual for o pretexto de vida de que<br />

se vangloriam.<br />

Porque o Espírito Santo ainda não tinha sido outorgado. Sabemos<br />

que o Espírito é eterno. O evangelista, porém, declara que,<br />

no que respeita à habitação de Cristo no mundo, na humilde forma<br />

de servo, que a graça do Espírito, que foi derramada sobre os homens<br />

depois da ressurreição de Cristo, não tinha sido publicamente<br />

manifesta. E ele fala comparativamente, da mesma maneira quando<br />

o Novo Testamento é comparado com o Velho. Deus promete seu<br />

Espírito a seus eleitos crentes, 19 como se jamais fora dado aos Pais.<br />

Naquela mesma ocasião, os discípulos indubitavelmente tinham recebido<br />

as primícias do Espírito, pois donde procede a fé senão do<br />

Espírito? O evangelista, pois, não afirma absolutamente que a graça<br />

do Espírito não fora oferecida e outorgada 20 aos crentes antes da<br />

morte de Cristo, mas que ela ainda não era tão luzente e eminente<br />

como veio a ser mais tarde. Pois é o mais eminente ornamento do<br />

reino de Cristo o fato de ele governar sua Igreja por meio de seu<br />

Espírito, mas ele tomou posse legítima e – se poderia chamar – solenemente<br />

de seu reino quando foi exaltado à destra do Pai, de modo<br />

que não carece que nos maravilhemos que ele tenha prorrogado até<br />

o tempo da plena manifestação do Espírito.<br />

No entanto, uma pergunta ainda permanece sem resposta. Sua intenção<br />

é focalizar aqui as graças visíveis do Espírito ou a regeneração que é<br />

o fruto da adoção? Eis minha resposta: O Espírito, que foi prometido na<br />

vinda de Cristo, se manifestou naqueles dons visíveis, como em espelhos,<br />

aqui, porém, a pergunta se relaciona estritamente com o poder do Espírito,<br />

pelo qual renascemos em Cristo e nos tornamos novas criaturas. Que<br />

18 “Sous une partie il comprend le tout”.<br />

19 “A ses eleus et fideles”.<br />

20 “Offerte et donnee”.


336 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

estamos em pobreza terrena e famintos, e quase destituídos de bênçãos<br />

espirituais, enquanto agora Cristo se assenta em glória à destra do Pai e<br />

vestido com a mais eminente majestade governamental, deve ser imputado<br />

à nossa indolência e à pequena medida de nossa fé.<br />

[7.40-44]<br />

Muitos dentre a multidão, pois, tendo ouvido este sermão, disseram:<br />

Este é verdadeiramente um profeta. 21 Outros disseram:<br />

Este é o Cristo. E outros: Mas porventura Cristo virá da Galileia?<br />

Não diz a Escritura que Cristo virá da semente de Davi e<br />

da cidade de Belém, onde Davi morou? Portanto, houve diferença<br />

de opinião da parte da multidão a respeito dele. E alguns<br />

deles queriam prendê-lo, porém ninguém lhe pôs as mãos.<br />

40. Muitos dentre a multidão. Agora o evangelista relata qual o<br />

resultado deste último sermão de nosso Senhor Jesus Cristo, a saber,<br />

que alguns pensavam uma coisa, e outros, outra, de modo que suscitou-se<br />

uma diferença de opinião entre o povo. É preciso observar que<br />

<strong>João</strong> não fala dos inimigos públicos de Cristo, nem dos que já estavam<br />

dominados por ódio mortal 22 contra a sã doutrina, mas do populacho,<br />

entre o qual haveria alguns de mais sólida integridade. Ele enumera<br />

três classes dentre eles.<br />

Ele é verdadeiramente profeta. Os primeiros reconheciam que<br />

Jesus realmente era profeta, do que inferimos que eles não se sentiam<br />

ofendidos com sua doutrina. Mas, em contrapartida, quão leviana e<br />

vulgar era esta confissão, é evidente à luz do fato que, enquanto aprovavam<br />

o Mestre, não entendiam sua intenção nem se apraziam no que<br />

ele dizia, pois não podiam realmente recebê-lo na qualidade de profeta<br />

sem, ao mesmo tempo, reconhecer que ele é o Filho de Deus e o Autor<br />

de sua salvação. Todavia, isso é bom neles, pois percebiam em Cristo<br />

21 “Cestruy-ci est veritablement Prophete, ou, le Prophete”. – “Este é verdaeiramente um<br />

Profeta, ou, o Profeta”.<br />

22 “De mortelle haine”.


Capítulo 7 • 337<br />

algo divino, o que os leva a avaliá-lo com reverência. Poderiam com<br />

esta disposição aprender depois a dar uma fácil abertura à fé.<br />

41. Outros diziam: Ele é o Cristo. Os segundos têm uma opinião<br />

mais correta do que os primeiros. Porque claramente reconheciam<br />

que ele é o Cristo. Mas os terceiros 23 se insurgiram contra eles, e daí<br />

surge uma controvérsia. Com este exemplo, somos advertidos que não<br />

devemos estranhar que nos dias atuais os homens se acham divididos<br />

entre si por várias controvérsias. Aprendemos que o sermão de Cristo<br />

produziu um cisma, e isso não entre os gentios que eram estranhos<br />

à fé, mas no seio da Igreja de Cristo, e inclusive na sede principal da<br />

Igreja. A doutrina de Cristo deve ser acusada por essa conta, como se<br />

ela fosse a causa de distúrbio? Absolutamente não! Ainda que o mundo<br />

inteiro entrasse em comoção, a palavra de Deus é tão preciosa que devemos<br />

desejar que ela seja recebida pelo menos por uns poucos. Não<br />

há razão, portanto, para nossas consciências serem oprimidas quando<br />

vemos os que querem ser considerados o povo de Deus lutando uns<br />

contra os outros por opiniões contrárias.<br />

Entretanto, é preciso que observemos também que as divisões<br />

não têm propriamente sua origem no evangelho, porque não pode haver<br />

nenhuma sólida concordância entre os homens exceto na verdade<br />

inconteste. Quanto à paz mantida entre os que não conhecem a Deus,<br />

ela provém mais da estupidez do que de uma genuína concordância.<br />

Em suma, de todas as diferenças que vêm a lume, quando o evangelho<br />

é proclamado, a causa e a semente subjacentes estão ocultas nos homens,<br />

mas quando são despertados, por assim dizer, de sua letargia,<br />

começam a movimentar-se, justamente como os vapores são produzidos<br />

por algo mais além do sol, embora ainda não seja o sol nascente<br />

que os faz vir à existência.<br />

Mas porventura Cristo virá da Galileia? Para que não se pensasse<br />

que rejeitavam a Cristo sobre bases inconsistentes, fortificam-se pelo<br />

testemunho da Escritura, E ainda que façam violência a esta passagem,<br />

23 “Les troisiemes”.


338 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

por voltá-la impropriamente contra Cristo, não obstante existe alguma<br />

aparência de veracidade. Neste ponto, laboram em erro tentando fazer<br />

Cristo um galileu. Mas de onde provém tal ignorância senão do desdém?<br />

Pois se tivessem tomado tempo e trabalho de inquirir, teriam descoberto<br />

que Cristo era adornado com ambos os títulos: ele nascera em Belém<br />

e também era o filho de Davi. Mas tal é nossa disposição natural, que em<br />

matéria de pouca importância nos envergonhamos de ser indolentes,<br />

enquanto que, nos mistérios do reino celestial, cochilamos sem qualquer<br />

preocupação. É de igual importância observar que esses homens<br />

são diligentes e industriosos em buscar justificativa para afastar-se de<br />

Cristo, porém, são espantosamente morosos e obtusos em receber a sã<br />

doutrina. E assim, das próprias Escrituras que nos guiam pela mão de<br />

Cristo, os homens frequentemente criam para si obstáculos a fim de não<br />

abraçarem a Cristo. A intenção do evangelista é dizer que não só desprezaram<br />

a Cristo, mas que sua perversa rejeição dele era acompanhada<br />

de crueldade e de solicitude em injuriá-lo, pois a superstição é sempre<br />

cruel. O fato de seus esforços serem frustrados, isso se deve atribuir à<br />

providência de Deus, pois já que a hora de Cristo ainda não havia chegado,<br />

como já dissemos previamente, guardado pela proteção de seu Pai,<br />

na qual confiava, ele enfrentou todos os perigos.<br />

[7.45-53]<br />

Então os oficiais foram ter com os principais dos sacerdotes<br />

e fariseus, e estes lhes disseram: Por que não o trouxestes?<br />

Os oficiais responderam: Nunca homem falou como este. Os<br />

fariseus, pois, lhes responderam: Vós também sois seduzidos?<br />

Porventura algum dos líderes e dos fariseus creu nele? Esta<br />

multidão, porém, que nada sabe da lei, é maldita. Nicodemos<br />

(aquele que foi ter com ele de noite, que era um deles) lhes<br />

disse: Nossa lei julga um homem antes de ouvi-lo e tomar conhecimento<br />

do que ele fez? Eles lhe responderam e disseram:<br />

És tu também da Galileia? Examina e verás que da Galileia não<br />

se levantou nenhum profeta. E cada um foi para sua casa.


Capítulo 7 • 339<br />

45. Então os oficiais foram. Aqui podemos ver quão cega é a arrogância<br />

dos homens. A uma extensão tal admiram e adoram a grandeza<br />

que os torna eminentes, que não hesitam em pisotear a moralidade<br />

e a religião. Se algo ocorre contrariando seus desejos, de bom grado<br />

transtornam céu e terra, pois quando esses sacerdotes, 24 arrogantes e<br />

perversos, perguntam: por que não trouxestes Cristo, glorificam seu poder<br />

tão altaneiramente, a ponto de permitirem que nada se lhes oponha.<br />

46. Nunca homem falou como este. Esses oficiais reconhecem que<br />

se viram subjugados e vencidos pela palavra de Cristo, e, no entanto,<br />

nem assim se arrependem nem dão a devida honra à Palavra. Se é verdade<br />

que nunca homem algum falara como este, por que o poder divino, o<br />

qual foram compelidos a sentir, não tocou seus corações de tal maneira<br />

que os levasse a devotar-se totalmente a Deus? Era necessário, porém,<br />

que a predição de Isaías fosse assim cumprida: e com o sopro de seus lábios<br />

matará o ímpio [Is 11.4]. Ainda mais, depois veremos como aqueles<br />

que tentaram entregá-lo à morte se viram esmagados só de ouvir a voz<br />

de Cristo, e como se fossem golpeados por marretas, caíram de costas<br />

[Jo 18.6]. Portanto, aprendamos que a doutrina de Cristo possui tal poder,<br />

que é capaz de apavorar os perversos, mas como isso serve para<br />

sua destruição, cuidemos bem para que sejamos sensibilizados, em vez<br />

de sermos quebrados. Mesmo na atualidade vemos muitas pessoas que<br />

muito se assemelham a esses oficiais, que relutantemente se deixam arrebatar<br />

de admiração pela doutrina do evangelho, e, no entanto, longe<br />

estão de render-se a Cristo, permanecendo ainda nas tendas dos inimigos.<br />

Há outros que são ainda piores, os quais, tudo fazendo para obter o<br />

favor dos perversos, lançam mão de todos os termos desprezíveis que<br />

podem achar para vilmente caluniar aquela doutrina que, não obstante,<br />

reconhecem proceder de Deus, porque em seus corações estão convencidos<br />

a respeito dela.<br />

47. E vós também sois seduzidos? Enquanto reprovam seus oficiais,<br />

ao mesmo tempo usam sua força para mantê-los em sujeição.<br />

24 “Ces orgueilleur et mechans scrificateus”.


340 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Pois usam esses termos para significar que seria irracional e inconveniente<br />

que não estivessem em prontidão, ainda que todo o povo se<br />

revoltasse. Mas é preciso ver que argumento eles usam quando insultam<br />

a Cristo com tanta arrogância.<br />

48. Porventura algum dos líderes ou dos fariseus creu nele?<br />

“Ele não tem ninguém de seu lado”, dizem eles, “senão homens da<br />

ralé e ignorantes, os líderes, bem como toda pessoa de distinção,<br />

se lhe opõem”. Expressamente, nomeiam os fariseus porque eles<br />

desfrutavam de uma reputação acima dos demais, tanto por conhecimento<br />

quanto por santidade, de modo que se podia dizer que eram<br />

os príncipes do povo. Esta objeção parece possuir alguma plausibilidade,<br />

pois se os líderes e governantes da Igreja não retiverem sua<br />

autoridade, é impossível que se faça adequadamente alguma coisa,<br />

ou que a boa ordem da Igreja se prolongue. Sabemos no que resulta<br />

a paixão feroz do populacho. Em consequência da qual se segue a<br />

mais medonha desordem, quando se permite que cada pessoa faça o<br />

que bem quer. A autoridade dos que governam é, portanto, um freio<br />

indispensável na preservação da boa ordem da Igreja. E, por conseguinte,<br />

foi provido pela lei de Deus que, se surgisse alguma questão<br />

ou controvérsia, a mesma devia ser submetida à decisão do sumo<br />

sacerdote [Dt 17.8].<br />

Mas, neste aspecto, enquanto reivindicam para si a suprema autoridade,<br />

não nutrem nenhuma disposição de submeter-se a Deus.<br />

É verdade que Deus conferiu o poder de juízo ao sumo sacerdote.<br />

Deus, porém, não tencionava que o sumo sacerdote decidisse a não<br />

ser em concordância com a lei. Portanto, toda a autoridade que os<br />

pastores possuem está sujeita à Palavra de Deus, para que todos sejam<br />

mantidos em seu devido posto, desde o maior até o menor, e<br />

que tão-somente Deus seja exaltado. Se os pastores que honesta e<br />

sinceramente cumprem seu dever reivindicam autoridade para si,<br />

que essa glória seja santa e legítima. Mas quando a mera autoridade<br />

dos homens é sustentada sem a autoridade da Palavra de Deus, ela<br />

não passa de fútil e nociva vanglória. Mas, às vezes, sucede que ho-


Capítulo 7 • 341<br />

mens perversos governam a Igreja, por isso, devemos precaver-nos<br />

de atribuir alguma autoridade aos homens assim que apostatam da<br />

Palavra de Deus.<br />

Aprendemos que quase todos os profetas foram atormentados<br />

por esse gênero de aborrecimento. Porque, com o fim de sepultar sua<br />

doutrina, continuamente homens portavam contra eles títulos honrosos<br />

de príncipes e de sacerdotes da Igreja. Utilizando-se da mesma<br />

armadura, os papistas da atualidade rugem não com menos ferocidade<br />

que os adversários de Cristo e dos profetas no passado. Aliás, é<br />

uma horrível cegueira quando um homem mortal não se envergonha<br />

de opor-se a Deus, porém Satanás leva a tal extremo de demência os<br />

que dão mais elevado valor a sua própria ambição do que à verdade de<br />

Deus. Entretanto, é nosso dever nutrir tal reverência pela Palavra de<br />

Deus a ponto de extinguir todo o esplendor do mundo e dispersar suas<br />

vãs pretensões, porquanto miserável seria nossa condição se nossa<br />

salvação dependesse da vontade de príncipes, e tão oscilante nossa<br />

fé seria se ela ficasse de pé ou caísse ao sabor do beneplácito deles.<br />

49. Esta multidão, porém. A primeira parte de seu orgulho era<br />

que, pondo sua confiança no título sacerdotes, almejavam sujeitar todos<br />

eles de uma maneira tirânica. A segunda é que desprezavam os<br />

demais como pessoas de nenhum préstimo, como alguém que se lisonjeia<br />

excessivamente e está sempre disposto a abusar dos demais,<br />

e um imoderado amor por si mesmo é acompanhado pelo desprezo<br />

aos irmãos. Declaram que todo o populacho é maldito. Por quê? Sem<br />

dúvida alegavam que o povo não tem nenhum conhecimento da lei,<br />

porém ocultavam outra razão, a saber, acreditavam que não havia santidade<br />

exceto em sua própria categoria. De igual modo, os sacerdotes<br />

papistas de nossos dias pretende que ninguém além deles mereça ser<br />

chamado Igreja, e todos os demais, a quem chamam leigos, desprezam<br />

como não passando de pessoas profanas. Mas, para destruir tal<br />

demência de soberba, Deus prefere os humildes e desprezados aos<br />

que retêm a suprema autoridade e poder. E é preciso observar que<br />

aqui eles se vangloriam no conhecimento, não aquele que instrui os


342 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

homens na religião e no temor de Deus, mas aquele que possuíam enquanto,<br />

como soberba magistral, apresentavam suas respostas, como<br />

se tão-somente eles fossem qualificados para a interpretação da lei.<br />

Indubitavelmente, é verdade que todos quantos não foram instruídos<br />

na lei de Deus são malditos, porque pelo conhecimento dela somos<br />

realmente santificados. Este conhecimento, porém, não se confina a<br />

uns poucos que, inchados com falsa confiança, desejam excluir-se da<br />

categoria dos demais homens, porém pertence geralmente a todos os<br />

filhos de Deus, para que todos, do menor ao maior deles, sejam unidos<br />

na mesma obediência da fé.<br />

50. Disse-lhes Nicodemos. O evangelista descreve Nicodemos<br />

como um homem neutro, que não se aventura a empreender de bom<br />

grado a defesa da sã doutrina, e, no entanto, não pode tolerar ver a<br />

verdade sendo oprimida.<br />

Aquele que foi a Jesus de noite. Esta circunstância é mencionada<br />

pelo evangelista, em parte para enaltecer, e em parte para denegrir<br />

Nicodemos. Se ele não tivera amado a doutrina de Cristo, jamais teria<br />

ousado a enfrentar a fúria dos perversos, pois ele sabia que, se algum<br />

deles apenas abrisse a boca, ele se veria imediatamente exposto ao desagrado<br />

e ao perigo. Quando, pois, ele se aventura a pronunciar uma<br />

palavra, por mais leve que seja, uma pequena fagulha de piedade se<br />

irradiaria de seu coração, porém, não defender a Cristo publicamente<br />

foi uma manifestação de excessiva timidez. Assim, o evangelista tem<br />

em mente que, depois de desviar-se secretamente dentro da noite,<br />

mesmo ainda nutrindo ardente aspiração, ele não é um genuíno discípulo<br />

de Cristo. Afirma ainda que ele certa vez foi ter com Jesus de noite,<br />

contudo permanecia publicamente entre seus inimigos e conservava<br />

seu lugar em suas trincheiras.<br />

Isso precisa ser observado com a máxima prudência, porque<br />

há muitos nos dias atuais que alegam assemelhar-se a Nicodemos, e<br />

esperam que, ao assumirem essa farsa, desdenhem de Deus impunemente.<br />

Admitindo sua alegação, a saber, que não há diferença alguma<br />

entre eles e Nicodemos, que defesa derivam de tal exemplo? Nicode-


Capítulo 7 • 343<br />

mos afirma que Cristo não deve ser condenado até que seja ouvido, e<br />

o mesmo se poderia dizer em prol de um ladrão ou de um assassino,<br />

pois é um sentimento notório e proverbial que é melhor inocentar o<br />

inocente do que condenar o culpado. Além disso, em suas tentativas<br />

de livrar a pessoa de Cristo, ele deixa e abandona a doutrina. O que<br />

encontraremos aqui que seja digno de um cristão? 25 Assim, a semente<br />

do evangelho, que depois produziu fruto, estava ainda oculta e incubada<br />

nele. Aplicaremos este exemplo muito mais proveitosamente a<br />

outro propósito, a saber, que o Senhor frequentemente faz com que<br />

a doutrina, que parecia haver perecido, gradualmente tome uma raiz<br />

oculta e, depois de um longo período, germine algum broto, primeiramente<br />

como uma planta prematura, depois uma planta vicejante e<br />

vigorosa, justamente como a fé de Nicodemos adquiriu, da morte de<br />

Cristo, novo e súbito vigor.<br />

52. És tu também da Galileia? Diziam que todos quantos favorecessem<br />

a Cristo eram procedentes da Galileia, e isso é expresso de<br />

modo infame, como se ele não pudesse ter ninguém entre seus seguidores<br />

que não fosse procedente de um pequeno e desconhecido<br />

recanto da Galileia. 26 A extrema violência a que incitam contra Nicodemos<br />

mostra com que furioso ódio ardia contra Cristo, pois ele não<br />

tinha empreendido defender a Cristo em termos partidários, mas dissera<br />

apenas que ele não devia ser condenado sem antes ser ouvido.<br />

Assim se dá entre os papistas de nossos próprios dias, ninguém pode<br />

demonstrar a mais leve aparência de brandura para que o evangelho<br />

não seja oprimido sem ser imediatamente considerado herege pelos<br />

inimigos que ardem de paixão.<br />

53. E cada um foi para sua própria casa. Agora surge um impressionante<br />

desfecho da transação. Se alguém levar em conta o reinado<br />

dos sacerdotes naquele tempo, com que furor eram excitados e quão<br />

numerosa era sua comitiva, e, em contrapartida, se considerarmos<br />

que Cristo estava desarmado e indefeso e que não havia nenhum gru-<br />

25 “D’un homme fidele et Chrestien”.<br />

26 “De ce petit coin incognee de Galilee”.


344 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

po de homens a protegê-lo, a conclusão seria que eram superiores a<br />

ele centenas de vezes. Quando tão formidável conspiração é dissolvida<br />

de comum acordo, e quando todos aqueles homens, como as ondas<br />

do mar, se dissolvem por sua própria violência, quem não reconheceria<br />

que foram dispersos pela mão divina? Deus, porém, continua a<br />

ser o que sempre foi. Portanto, sempre que lhe apraz, ele transforma<br />

em nada todos os esforços dos inimigos, de modo que, enquanto têm<br />

tudo em seu poder, e estão prontos e preparados para executar seus<br />

desígnios, se dispersam sem ter levado avante sua obra. E, com frequência,<br />

descobrimos que, quaisquer que sejam os inventos de nossos<br />

inimigos com o intuito de extinguir o evangelho, não obstante, mediante<br />

a espantosa bondade de Deus, imediatamente caem por terra<br />

destituídos de todo poder.


Capítulo 8<br />

[8.1-11]<br />

Jesus, porém, foi para o Monte das Oliveiras. E pela manhã<br />

cedo, ele voltou ao templo e todo o povo vinha ter com<br />

ele, e, assentando-se, os ensinava. E os escribas e fariseus<br />

trazem-lhe uma mulher apanhada em adultério, e, pondo-a<br />

no meio, lhe dizem: Mestre, esta mulher foi apanhada no<br />

próprio ato, enquanto cometia adultério. Ora, na lei, Moisés<br />

nos ordenou a apedrejar tais pessoas, tu, porém, que dizes?<br />

Ora, diziam isso, tentando-o, para que tivessem motivo<br />

para acusá-lo. Jesus, porém, abaixando seus olhos, 1 escrevia<br />

com o dedo na terra. E como persistiam em indagar-lhe,<br />

ele ergueu seus olhos 2 e lhe disse: Aquele dentre vós que<br />

está sem pecado, que seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra.<br />

E voltou a inclinar-se, e escrevia na terra. E ao ouvirem<br />

isso, e sendo reprovados pela própria consciência, se retiraram,<br />

um após outro, começando do mais velho até o<br />

último, de modo que Jesus foi deixado sozinho, e a mulher<br />

que estava no meio. E Jesus, erguendo seus olhos, a ninguém<br />

mais vendo senão a mulher, disse-lhe: Mulher, onde<br />

estão teus acusadores? Ninguém te condenou? Ela disse:<br />

Ninguém, Senhor. Jesus lhe respondeu: Nem eu te condeno,<br />

vai, e não peques mais.<br />

1 “S’enclinant en bas”. – “Curvando-se”.<br />

2 “Il se dressa”.


346 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

3. E os escribas e fariseus lhe trouxeram. É bastante óbvio que<br />

esta passagem não era conhecida das igrejas gregas, e alguns conjeturam<br />

que ela foi trazida de alguma outra fonte e inserida aqui. Visto,<br />

porém, que a mesma sempre foi aceita pelas igrejas latinas, e está presente<br />

em muitos manuscritos gregos antigos e nada contém de indigno<br />

de um espírito apostólico, não há razão por que devamos recusar<br />

aplicá-la para nosso proveito. Ao dizer o evangelista que os escribas<br />

e fariseus lhe trouxeram uma mulher, sua intenção é dizer que isso foi<br />

feito de comum acordo entre si, com o fim de apanhar Cristo numa<br />

armadilha. Ele menciona expressamente os fariseus porque eram as<br />

principais pessoas na ordem dos escribas. Ao adotarem tal pretexto<br />

para exprimir sua calúnia, eles exibem a hediondez de sua perversidade,<br />

e até mesmo seus próprios lábios os acusam, pois não dissimulam<br />

que possuem um claro mandamento da lei, e daí se segue que agem<br />

maliciosamente, formulando uma pergunta como se fosse uma matéria<br />

indubitável. Sua intenção, porém, era constranger a Cristo a afastar-se<br />

de seu ofício de pregoeiro da graça, para que parecesse ser volúvel e<br />

instável. Declaram expressamente que as adúlteras estão condenadas<br />

por Moisés [Lv 20.10], para que obrigassem Cristo pela sentença já<br />

formulada pela lei, pois não era lícito inocentar aqueles a quem a lei<br />

condenava. E, em contrapartida, se ele desse seu assentimento à lei,<br />

forçaria a conclusão de ser um tanto incoerente consigo mesmo.<br />

6. E Jesus, inclinando-se. Com essa atitude ele pretendia mostrar<br />

que os menosprezava. Os que conjeturam que ele escrevia isto ou<br />

aquilo, em minha opinião, não captam sua intenção. Tampouco aprovo<br />

a ingenuidade de Agostinho que cria que dessa forma se realçava a distinção<br />

entre a lei e o evangelho, porque Cristo não escreveu em tábuas<br />

de pedra [Êx 31.18], mas no homem, que é pó e terra. Pois Cristo, antes,<br />

pretendia nada mais nada menos que mostrar quão indignos eram<br />

eles de ser ouvidos, justamente como se alguém, enquanto outro lhe<br />

falava, se pusesse a rabiscar a parede ou virasse as costas ou por meio<br />

de algum outro gesto, insinuasse que nada entendia do que lhe era<br />

dito. Assim, na atualidade, quando Satanás tenta, por vários métodos,


Capítulo 8 • 347<br />

desviar-nos da reta vereda da instrução, devemos desdenhosamente<br />

passar por alto muitas coisas que ele põe diante de nós. Os papistas<br />

nos provocam o máximo que podem, fazendo uso de sofismas triviais,<br />

como se lançassem fumaça ao ar. Se mestres piedosos empregarem<br />

laboriosamente seu tempo em examinar cada uma dessas sofismas,<br />

começarão a envolver-se nas tramas de Penélope, 3 e, portanto, se delongam<br />

de tal sorte, que nada mais fazem senão estorvar o progresso<br />

do evangelho, e são sabiamente desconsiderados.<br />

7. Aquele dentre vós que estiver sem pecado. Ele declarou isso<br />

em conformidade com o costume da lei, pois Deus ordenara que a testemunha,<br />

com suas próprias mãos, tomasse a iniciativa na morte dos<br />

malfeitores, em conformidade com a sentença por eles pronunciada, a<br />

fim de haver mais prudência em dar-se testemunho [Dt 17.7]. Há muitas<br />

pessoas que procedem temerariamente ao esmagarem seu irmão<br />

com perjúrio, porquanto não imaginam que estão abrindo uma ferida<br />

mortal com suas línguas. E este mesmo argumento foi de muito peso<br />

para esses caluniadores, desesperados como estavam, pois nem bem<br />

tiveram uma visão dele, se descartaram das incandescentes paixões<br />

com que se deixaram encher de vaidades quando chegaram. Todavia<br />

existe esta diferença entre a injunção da lei e as palavras de Cristo, a<br />

saber, que na lei Deus meramente ordenara que não se condenasse<br />

uma pessoa com a língua, a menos que lhes fosse permitido matá-la<br />

com as próprias mãos. Aqui, porém, Cristo demanda das testemunhas<br />

inocência plenária, de modo que ninguém pudesse acusar outrem de<br />

crime, a menos que fosse puro e isento de toda falha. Ora, o que ele<br />

disse naquele tempo a umas poucas pessoas, temos de considerar<br />

como havendo falado a todos, para que todo aquele que acusar ou-<br />

3 “Ce sera troujours à recommencer” – “terão sempre que começar de novo”. Recorrendo<br />

à alusão clássica, nosso autor assim comunicou o significado a seus patrícios em termos<br />

claros. Todos quantos leem a Odisseia de Homero se lembrará de Penélope, a esposa de<br />

Ulisses, especialmente aquela parte de sua história a que Calvino refere, a saber, o que<br />

ela fiava durante o dia, desfiava durante a noite, e assim concretizou sua resolução de se<br />

empregar diariamente fiar, e no entanto essa fiação não terminaria enquanto se esposo<br />

não regressasse. Penelopes telam texere, a trama que Penélope tecia, era uma expressão<br />

proverbial, a qual os romanos emprestaram dos gregos.


348 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

trem, imponha a si uma lei de inocência, do contrário, não estamos<br />

indo ao encalço de atos ímpios, e, sim, estamos sendo hostis às pessoas<br />

dos homens.<br />

Entretanto, dessa forma Cristo parece anular no mundo todas as<br />

decisões judiciais, de modo que ninguém ousará a dizer que tem o<br />

direito de punir os crimes. Porque, é possível encontrar um único juiz<br />

que não tenha a consciência de haver cometido algum erro? É possível<br />

encontrar uma única testemunha que não seja culpada de alguma<br />

falha? Portanto, é como se ele proibisse a todas as testemunhas de<br />

apresentar seu testemunho público, e a todos os juízes de ocupar seu<br />

tribunal. Eis minha resposta: esta não é uma proibição absoluta e ilimitada,<br />

por meio da qual Cristo proíba os pecadores de seu dever de<br />

corrigir os pecados de outrem. Senão que, por meio dessa palavra, ele<br />

apenas reprova os hipócritas que suavemente se lisonjeiam e abrandam<br />

seus vícios, contudo são excessivamente severos, e inclusive<br />

chegam a ser cruéis, ao censurarem outros. Ninguém, pois, será impedido<br />

por seus próprios pecados de corrigir os pecados de outrem, e<br />

inclusive de puni-los sempre que achar necessário, contanto que em<br />

si e nos outros ele odeie o que deve ser condenado. E além de tudo<br />

isso, cada pessoa deve começar interrogando sua própria consciência<br />

e agindo como testemunha e como juiz contra si mesmo, antes de<br />

chegar a outros. E assim, sem odiar os homens, faremos guerra contra<br />

os pecados.<br />

9. E sendo reprovados por sua consciência. Aqui percebemos<br />

quão grande é o poder de uma consciência em conflito. Ainda que<br />

aqueles hipócritas perversos tencionassem induzir Cristo a cair em<br />

suas sofismas, todavia sem embaraço ele fere suas consciências<br />

com uma única palavra, e envergonhados se põem em fuga. Este é o<br />

martelo com o qual devemos despedaçar a soberba dos hipócritas.<br />

Devem ser citados a comparecer diante do tribunal divino. Embora<br />

seja possível que vexame, com que se viram atingidos diante dos<br />

homens, tivesse maior influência sobre eles do que o temor de Deus,<br />

ainda é uma questão de muita importância que, de sua própria inicia-


Capítulo 8 • 349<br />

tiva, se tenham reconhecido culpados, quando assim desaparecem<br />

como se fossem dominados pela confusão mental. Acrescenta-se<br />

imediatamente:<br />

Começando do mais velho até o último. Nossa atenção é atraída<br />

para esta circunstância, a saber, à proporção que cada um deles<br />

excedia os demais em honrosa posição, mais rapidamente o mesmo<br />

se conscientizava de sua condenação. Tomara que nossos escribas, 4<br />

que na atualidade vendem seus serviços ao papa para fazer guerra<br />

a Cristo, tivessem pelo menos tanta modéstia como esses homens.<br />

Mas são tão destituídos de vergonha que, enquanto se tornam infames<br />

por crimes tão detestáveis, gloriam-se no fato de que lhes é<br />

permitido ser tão abomináveis como bem lhes apraz sem qualquer<br />

punição. Devemos também observar quão amplamente essa convicção<br />

de pecado, pela qual os escribas se viram afetados, difere do<br />

arrependimento genuíno. Pois devemos deixar-nos afetar pelo juízo<br />

divino de uma maneira tal que não busquemos um refúgio para evitar<br />

a presença do Juiz, mas, ao contrário, nos dirijamos diretamente a<br />

ele a fim de implorar seu perdão.<br />

Jesus foi deixado sozinho. Isso foi ocasionado pelo Espírito de<br />

sabedoria, ou seja, que aqueles homens perversos, não tendo lucrado<br />

nada em tentarem a Cristo, se foram [sem nada conseguirem].<br />

Tampouco há alguma razão para dúvida de que continuaremos a desmantelar<br />

todos os artifícios de nossos inimigos, contanto que nos<br />

deixemos governar pelo mesmo Espírito. Mas frequentemente sucede<br />

que levam a melhor sobre nós, só porque, não atentando para<br />

suas armadilhas, não cuidamos em tomar conselho, ou melhor, confiando<br />

em nossa própria sabedoria, não levamos em conta o quanto<br />

carecemos do governo do Espírito Santo. Ele diz que Cristo ficou<br />

sozinho, não que o povo a quem anteriormente ensinava o tivesse<br />

abandonado, mas porque todos aqueles escribas que tinham trazido<br />

a adúltera não lhe deram mais aborrecimento. Ao lermos que a mu-<br />

4 “Pleust à Dieu que”.


350 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

lher permaneceu com Cristo, aprendamos que esse exemplo que não<br />

há nada melhor para nós do que conduzidos, como culpados, perante<br />

seu tribunal, desde que nos rendamos meiga e submissamente ao<br />

seu governo.<br />

11. Tampouco eu te condeno. Não somos informados se Cristo<br />

absolveu absolutamente a mulher, senão que lhe permitiu ir<br />

livremente. Nem isso surpreende, pois ele não deseja empreender<br />

algo que não pertença a seu ofício. Ele fora enviado pelo Pai a<br />

congregar as ovelhas perdidas [Mt 10.6], e, por isso, cônscio de<br />

sua vocação, ele exorta a mulher ao arrependimento e a conforta<br />

com uma promessa da graça. Aqueles que inferem disto que o<br />

adultério não deve ser punido com a morte, devem, pela mesma<br />

razão, admitir que as heranças não devem ser divididas só porque<br />

Cristo se recusou ser árbitro numa questão entre dois irmãos [Lc<br />

12.13]. Aliás, se o adultério não for punido, então não existe nenhum<br />

crime que não possa ser isentado de qualquer penalidade<br />

da lei. E então a porta estará escancarada a todo e qualquer tipo<br />

de traição, de corrupção, de homicídio e de latrocínio. Além disso,<br />

a adúltera, quando ilicitamente dá à luz a uma criança, não só<br />

rouba o nome da família, mas violentamente destrói o direito de<br />

herança da prole legítima e a entrega a estranhos. Mas, o que é<br />

ainda pior, a esposa não só desonra o esposo, a quem um dia se<br />

unira, mas se prostitui de uma maneira vergonhosamente perversa,<br />

e igualmente viola a sacra aliança de Deus, sem que nenhuma<br />

santidade possa continuar existindo no mundo.<br />

Todavia, na teologia papal, nesta passagem Cristo nos deixou<br />

aberta a lei da graça, pela qual os adúlteros são isentados de punição.<br />

E ainda que se empenhem, lançando mão de todo e qualquer método,<br />

em apagar das mentes dos homens a graça de Deus, graça tal como se<br />

acha declarada pela doutrina do evangelho, contudo somente nesta<br />

passagem acharam de proclamar em alto e bom som a lei da graça.<br />

Por que isto, senão para que possam poluir, com desenfreada luxúria,<br />

quase todo leito conjugal e ainda possam escapar impunemente? Na


Capítulo 8 • 351<br />

verdade esse é o excelente fruto 5 que temos colhido do diabólico sistema<br />

do celibato, ou seja, que não lhes é permitido casar-se com uma<br />

esposa legítima para que cometam fornicação sem restrição. Lembremo-nos,<br />

porém, que, embora Cristo perdoe os pecados dos homens,<br />

ele não subverteu a ordem política nem reverteu as sentenças e castigos<br />

designados pelas leis.<br />

Vai, e não peques mais. Daí inferirmos qual é o desígnio da graça<br />

de Cristo. É para que o pecador, uma vez reconciliado com Deus, possa<br />

honrar o Autor de sua salvação vivendo uma vida boa e santa. Em<br />

suma, pela mesma palavra de Deus, quando o perdão nos é oferecido,<br />

somos igualmente chamados ao arrependimento. Além disso, ainda<br />

que esta exortação aponte para o futuro, contudo ela humilha os pecadores<br />

despertando sua memória para sua vida pregressa.<br />

[8.12-14]<br />

Portanto, Jesus lhes falou novamente, dizendo: Eu sou a luz do<br />

mundo, aquele que me segue não andará em trevas, mas terá a<br />

luz da vida. Os fariseus, pois, lhe disseram: Tu testificas acerca<br />

de ti mesmo, teu testemunho não é verdadeiro. 6 Respondeu Jesus,<br />

e lhes disse: Embora eu testifique a meu próprio respeito,<br />

meu testemunho é verdadeiro, 7 pois eu sei donde vim e para<br />

onde vou, vós, porém, não sabeis donde eu vim nem para onde<br />

eu vou.<br />

12. Eu sou a luz do mundo. Os que excluem a narrativa anterior,<br />

a que se relaciona com a adúltera, 8 conectam este discurso de Cristo<br />

com o sermão que ele enunciara no último dia da assembleia. É<br />

um belo enaltecimento de Cristo quando ele é denominado a luz do<br />

5 “Voyla la beau fruict”.<br />

6 “Ton tesmoignage n’est pas vrai c’est à dire, n’est point digne de foy”. – “Teu testemunho<br />

não é verdadeiro,,,, isto é, não é digno de crédito”.<br />

7 “Mon tesmoignage este vray, c’est à dire, digne de foy”. – “Meu testemunho é verdadeiro,<br />

isto é, digno de crédito”.<br />

8 “De la femme adultere”.


352 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

mundo, porque, visto que por natureza todos nós somos cegos, um<br />

remédio nos é oferecido, pelo qual possamos ser libertos e resgatados<br />

das trevas e feitos participantes da genuína luz. Nem é apenas a uma<br />

ou outra pessoa que se oferece este benefício, pois Cristo declara que<br />

ele é a luz do mundo inteiro. Por meio desta afirmação ele tencionava<br />

remover a distinção, não apenas entre judeus e gentios, mas entre o<br />

erudito e o ignorante, entre as pessoas de distinção e os plebeus.<br />

Mas devemos primeiramente averiguar que necessidade há para<br />

se buscar esta luz, pois os homens jamais se apresentarão a Cristo<br />

para serem iluminados, até que saibam que este mundo já em trevas e<br />

que eles mesmos são totalmente cegos.<br />

Portanto, saibamos que, quando a maneira de se obter esta luz<br />

nos remete para Cristo, somos todos condenados por cegueira, tudo<br />

quanto consideramos como sendo luz é comparado a trevas e a uma<br />

noite muito tenebrosa. Pois Cristo não fala dela como que pertencente<br />

a ele em comum com outros, mas a reivindica como sendo peculiarmente<br />

sua. Donde se segue que fora de Cristo não existe sequer uma<br />

fagulha de luz genuína. Pode haver certa aparência de luminosidade,<br />

porém se assemelha a um relâmpago que apenas ofusca os olhos. Deve-<br />

-se observar ainda que o poder e o ofício de iluminar não se confinam<br />

à presença pessoal de Cristo, pois ainda que ele esteja muito afastado<br />

de nós no que concerne a seu corpo, todavia diariamente jorra sua<br />

luz sobre nós, através da doutrina do evangelho e pelo poder secreto<br />

de seu Espírito. Todavia não teremos uma definição plena desta luz, a<br />

menos que aprendamos que somos iluminados pelo evangelho e pelo<br />

Espírito de Cristo, para que saibamos que a fonte de todo o conhecimento<br />

e sabedoria está oculta nele.<br />

Aquele que me segue. À doutrina ele adiciona uma exortação, a<br />

qual ele imediatamente depois confirma por meio de uma promessa.<br />

Pois quando aprendemos que todos os que se deixar governar por<br />

Cristo estão fora do perigo de apostatar, devemos sentir-nos impelidos<br />

a segui-lo e, deveras, ao estender sua mão, por assim dizer, ele<br />

nos atrai a si. Devemos ainda deixar-nos ser poderosamente afeta-


Capítulo 8 • 353<br />

dos por uma promessa tão imensa e magnificente, a saber, que todos<br />

quantos dirigirem seus olhos para Cristo estão certos de que, mesmo<br />

no meio das trevas, serão preservados de apostasia, e que não só por<br />

um curto período, mas até que concluam sua trajetória. Pois esse<br />

é o significado das palavras usadas no tempo futuro: não andarão<br />

em trevas, mas terá a luz da vida. Tal também é a substância desta<br />

última sentença, na qual a perpetuidade da vida é declarada em termos<br />

expressos. Não devemos temer, pois, que ela nos deixe no meio<br />

da jornada, porque ela nos conduz inclusive à vida. Emprega-se o<br />

genitivo da vida, em concordância com o idioma hebreu, em vez do<br />

adjetivo, para denotar o efeito, como se ele houvera dito: a luz geradora<br />

de vida. Não precisamos admirar-nos que trevas tão maciças de<br />

erros e superstições prevaleçam no mundo, onde tão poucos há que<br />

mantêm seus olhos fixos em Cristo.<br />

13. Os fariseus, pois, disseram. Trazem a lume como objeção o<br />

que se diz comumente, que ninguém deve ser confiável quando legisla<br />

em causa própria. Pois um testemunho verdadeiro é expresso no lugar<br />

de “o que é lícito e digno de crédito”. Em suma, o que querem dizer é<br />

que não lhe adiantava nada falar se não apresentasse prova extraída<br />

de alguma outra parte.<br />

14. Embora eu testifique a meu próprio respeito. Cristo replica,<br />

dizendo que seu testemunho possui crédito e autoridade suficientes,<br />

porque ele não é uma pessoa individual que pertence à grande agremiação<br />

de seres humanos, mas que detém uma condição diferente.<br />

Pois quando ele diz: eu sei donde vim e para onde vou, ele assim se exclui<br />

da categoria ordinária dos homens. Portanto, o significado é que<br />

cada pessoa é ouvida com suspeita quando fala em sua própria causa,<br />

e é constante nas leis que ninguém seja crido quando fala em seu próprio<br />

benefício. Mas isso não se aplica ao Filho de Deus que mantém<br />

uma posição acima de todo o mundo, pois ele não é reputado como<br />

pertencente à classe de seres humanos, senão que tal privilégio ele o<br />

recebeu de seu Pai, a fim de reduzir todos os homens à obediência a<br />

ele por uma palavra singular.


354 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Eu sei donde vim. Com estas palavras ele declara que sua origem<br />

não provém deste mundo, mas que procedeu de Deus, e por isso seria<br />

injusto e irracional que sua doutrina, que é divina, fosse sujeitada às<br />

leis dos homens. Mas visto que ele, naquele tempo, estivesse vestido<br />

com a forma de um servo, em consequência do quê o desprezavam por<br />

conta da humilde condição da carne, ele os remete à futura glória de<br />

sua ressurreição, da qual sua deidade, anteriormente oculta e ignota,<br />

recebeu uma clara demonstração. Portanto, essa condição intermédia<br />

não deve impedir que os judeus se submetam ao único embaixador de<br />

Deus, o qual lhes fora anteriormente prometido na lei.<br />

Mas não sabeis donde eu vim nem para onde eu vou. Ele quer<br />

dizer que sua glória não é absolutamente ofuscada pela incredulidade<br />

deles. Além disso, visto que ele nos deu o mesmo testemunho, nossa<br />

fé deve desprezar todos os rumores e calúnias dos homens perversos.<br />

Pois ela não pode fundamentar-se em Deus sem se pôr muito acima da<br />

mais acirrada soberba do mundo. Mas, a fim de percebermos a majestade<br />

de seu evangelho, temos sempre que dirigir nossos olhos à glória<br />

celestial do Filho de Deus, 9 e ouvi-lo falando no mundo para recordar<br />

de onde ele veio e que autoridade ele agora possui, depois de haver<br />

cumprido seu ofício de embaixador. Pois como ele se humilhou por<br />

algum tempo, assim agora ele é soberanamente exaltado 10 à destra do<br />

Pai, para que todo joelho se curve diante dele [Fp 2.10].<br />

[8.15-20]<br />

Vós julgais segundo a carne, eu a ninguém julgo. E se eu julgo,<br />

meu juízo é verdadeiro, 11 porque não estou só, mas eu e meu<br />

Pai, que me enviou. Ainda está escrito em vossa lei que o testemunho<br />

de dois homens é válido. Eu sou quem testifica a meu<br />

próprio respeito, e o Pai que me enviou testifica a meu respeito.<br />

Disseram-lhe, pois: Onde está teu Pai? Respondeu Jesus: Vós<br />

9 “Du Fils de Dieu”.<br />

10 “Aussi maintenant est-il haut elevé”.<br />

11 “Mon jugement est vray, c’est à dire, digne de foy”. – “Meu juízo é verdadeiro, isto é, digno<br />

de crédito”.


Capítulo 8 • 355<br />

não conheceis nem a mim nem a meu Pai. Se me tivésseis conhecido,<br />

também teríeis conhecido a meu Pai. Essas palavras<br />

Jesus as proferiu junto ao gazofilácio, ensinando no templo, e<br />

ninguém o prendeu, porque sua hora ainda não havia chegado.<br />

15. Vós julgais segundo a carne. Esta expressão pode ser explicada<br />

de duas formas: ou que eles julgavam em concordância com<br />

pontos de vista perversos provenientes da carne, ou que julgavam<br />

em concordância com as aparências externas da pessoa. Pois a carne<br />

às vezes denota a aparência externa de uma pessoa, e ambos<br />

os significados se harmonizam bem com esta passagem, visto que,<br />

onde quer que prevaleçam os sentimentos da carne ou o respeito<br />

humano regula o juízo, ali não habita nem a verdade nem a justiça.<br />

Quanto a mim, porém, creio que o significado será mais assentado<br />

se carne for contrastada com Espírito, entendendo seu significado<br />

assim: que não são juízes legítimos e competentes, porquanto não<br />

possuem o Espírito como seu Guia.<br />

Eu a ninguém julgo. Aqui também os comentaristas diferem.<br />

Alguns fazem a seguinte distinção: ele não julga como homem. Outros<br />

fazem referência ao tempo, ou seja, enquanto estava na terra,<br />

ele não exerceu o ofício de Juiz. Agostinho esposa ambas as exposições,<br />

porém não se define entre elas. Mas a distinção anterior não<br />

se pode de forma alguma aplicar. Pois esta sentença contém duas<br />

cláusulas, a saber, que Cristo não julga, e que, se julgar, seu juízo<br />

é sólido e justo, porque ele é divino. Portanto, quanto à primeira<br />

cláusula, na qual ele diz que não julga, limito-a ao que pertence<br />

peculiarmente a esta passagem. Pois a fim de convencer mais plenamente<br />

seus inimigos, de soberba, ele emprega esta comparação,<br />

que injustamente assumem a liberdade de julgar e contudo não podem<br />

condená-lo, enquanto ele meramente ensina e se abstém de<br />

exercer o ofício de juiz.<br />

16. E se eu julgo. Ele adiciona esta correção para não parecer que<br />

estava suprimindo inteiramente seu direito. Se eu julgo, diz ele, meu


356 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

juízo é verdadeiro, ou seja, é dotado de autoridade. Ora, a autoridade<br />

é oriunda desta consideração, a saber, que ele nada faz senão em consonância<br />

com o mandamento do Pai.<br />

Porque não estou sozinho. Esta frase equivale a uma afirmativa de<br />

que ele não pertencia à classe ordinária dos homens, mas que deve ser<br />

considerado em conexão com o ofício que lhe fora designado pelo Pai.<br />

Mas, por que ele não faz de vez uma franca declaração de sua deidade,<br />

como poderia realmente e com justiça ter feito? A razão é esta: como<br />

sua deidade estava oculta sob o véu da carne, ele apresenta seu Pai em<br />

quem ela era mais manifesta. Todavia, o objetivo do discurso é mostrar<br />

que tudo aquilo que ele faz e ensina deve ser visto na esfera divina.<br />

17. Ainda em vossa lei está escrito. À primeira vista, o argumento<br />

poderia parecer fraco, porque ninguém é recebido como testemunha<br />

em sua própria causa. Mas devemos ter em mente o que eu já disse, a<br />

saber, que o Filho de Deus 12 tem de ser excluído do número ordinário<br />

dos demais homens, 13 porque ele não é um indivíduo particular nem<br />

realiza seu próprio negócio particular. Quanto ao fato de ele se distinguir<br />

de seu Pai, fazendo isso ele se acomoda à capacidade de seus<br />

ouvintes, e isso por causa de seu ofício, porque ele era naquele tempo<br />

servo do Pai, de quem, portanto, ele assevera que toda sua doutrina<br />

procedia.<br />

19. Onde está teu Pai? Não pode haver dúvida alguma de que<br />

inquiriam a respeito de seu Pai em tom de pilhéria. Porque, com seu<br />

costumeiro orgulho, não só tratavam desdenhosamente o que ele dizia<br />

sobre o Pai, mas igualmente o ridicularizavam quando falava soberanamente<br />

de seu Pai, como se seu nascimento procedesse do céu.<br />

Portanto, com essas palavras querem dizer que não davam um valor<br />

tão elevado ao Pai de Cristo, ao ponto de atribuir algo ao Filho por<br />

essa conta. E a razão por que não tantos na atualidade que, com ousada<br />

presunção, desprezam a Cristo é que poucos consideram que foi<br />

Deus quem o enviou.<br />

12 “Le Fils de Dieu”.<br />

13 “Du nombre commumn des autres hommes”.


Capítulo 8 • 357<br />

Vós não conheceis nem a mim nem a meu Pai. Ele nem se dá ao<br />

trabalho de dirigir-lhes uma resposta direta, mas em poucas palavras<br />

os censura pela ignorância que ostentam. Inquiriram acerca do Pai, e,<br />

no entanto, enquanto tinham o Filho diante de seus olhos, vendo, não<br />

viam [Mt 13.13]. Portanto, era um justo castigo de seu orgulho e ímpia<br />

ingratidão que, ao desprezarem o Filho, que lhes fora familiarmente<br />

oferecido, nunca chegaram a ter acesso ao Pai. Pois como algum mortal<br />

ascenderá às excelsitudes de Deus, se o mesmo não for elevado<br />

pela mão de seu Filho? Deus em Cristo se condescendeu em assumir<br />

a humilde condição dos homens para que pudesse estender-lhes sua<br />

mão, e aos que rejeitam a Deus, quando este se aproxima deles, de fato<br />

não merecem ser excluídos do céu?<br />

Tenhamos consciência de que a mesma coisa é expressa a respeito<br />

de todos nós, pois quem aspira conhecer a Deus, e não tiver<br />

seu ponto de partida em Cristo, vagueará, por assim dizer, por entre<br />

labirintos. Porque não é sem boas razões que Cristo é chamado a<br />

imagem do Pai, como já ficou expresso. Além do mais, como todos os<br />

que, abandonando a Cristo, tentam subir ao céu, como tentavam os<br />

gigantes, 14 são destituídos de todo reto conhecimento de Deus, assim<br />

toda pessoa que dirigir sua mente e todos seus sentidos a Cristo, será<br />

conduzida diretamente ao Pai. Por bons motivos Deus declara que,<br />

pelo espelho do evangelho visualizamos claramente a Deus na pessoa<br />

de Cristo [2Co 3.18]. E certamente é um espantoso galardão da obediência<br />

[proveniente] da fé que todos quantos se humilham diante do<br />

Senhor Jesus 15 penetra acima de todas as nuvens, sim, inclusive aqueles<br />

mistérios que os anjos contemplam e adoram.<br />

20. Jesus pronunciou essas palavras junto ao gazofilácio. O<br />

gazofilácio era uma parte do templo onde as ofertas sagradas eram<br />

depositadas. Era um lugar bem frequentado, e daí inferirmos que este<br />

sermão foi enunciado por Cristo no meio de uma grande assembleia<br />

de homens, de modo que o povo tivesse menos desculpas. O evange-<br />

14 Veja-se neste volume, p. ...., nota ......<br />

15 “Quiconque s’humilie devant le Seigneur Jesus”.


358 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

lista igualmente nos põe em relevo o espantoso poder de Deus a esse<br />

respeito, a saber, que se viram constrangidos a suportar que publicamente<br />

Cristo ensinasse no templo, ainda que só mais tarde buscassem<br />

lançar-lhe as mãos e o entregar à morte. Pois visto que mantinham<br />

uma inquestionável preponderância no templo, por isso administravam<br />

ali com a ferocidade dos tiranos, e poderiam ter banido Cristo de<br />

lá com uma só palavra. E quando ele se aventurou a assumir o ofício de<br />

mestre, por que eles não lançaram suas mãos, instantânea e violentamente,<br />

sobre ele? Vemos, pois, que Deus obrigou os homens a ouvi-lo,<br />

e o guardou com sua proteção, de modo que aquelas bestas selvagens<br />

não o tocassem, ainda que tivessem suas gargantas escancaradas para<br />

tragá-lo. 16 O evangelista menciona uma vez mais sua hora, para que<br />

pudéssemos aprender que não é pela vontade dos homens, mas pela<br />

vontade de Deus, que vivemos e morremos.<br />

[8.21-24]<br />

Falou-lhes, pois, Jesus outra vez: Eu me vou, e vós me buscareis,<br />

e morrereis em vosso pecado. Para onde eu vou, não<br />

podeis vir. Os judeus, pois, diziam: Quererá ele matar-se? Porque<br />

dissera: Para onde eu vou, não podeis vir. Então lhes disse:<br />

Vós sois de baixo, eu sou de cima. Vós sois deste mundo, eu<br />

não sou deste mundo. Por isso eu vos disse que morrereis em<br />

vossos pecados, pois se não crerdes que eu sou, morrereis em<br />

vossos pecados.<br />

21. Eu me vou. Percebendo que não produzia nenhum bem entre<br />

esses homens obstinados, ele ameaça sua destruição, e este é o fim de<br />

todos quantos rejeitam o evangelho. Porquanto ele não é lançado ao<br />

ar sem qualquer proveito, senão que ele exala o odor ou de vida ou de<br />

morte [2Co 2.16]. O significado dessas palavras equivale a isto: “Por<br />

fim os ímpios sentirão quão grande perda sofrerão por rejeitarem a<br />

16 “Combien qu’ils eussent leurs gueules ouvertes pour l’engloutir”.


Capítulo 8 • 359<br />

Cristo, quando graciosamente se lhes ofereceu. Sentirão, porém tarde<br />

demais, porque naquele momento já não haverá lugar para o arrependimento”.<br />

E para deixá-los ainda mais abalados, ao mostrar-lhes que<br />

seu juízo está bem perto, primeiramente ele lhes diz que não demora<br />

e ele partirá, significando com isso que o evangelho lhes é pregado só<br />

por breve tempo, e que se permitirem que esta oportunidade passe, o<br />

tempo aceitável e os dias designados para a salvação [Is 49.8, 2Co 6.2]<br />

não serão de longa duração. Assim também, em nossos próprios dias,<br />

quando Cristo bater em nossa porta, devemos correr imediatamente a<br />

seu encontro, para que ele não se enfade com nossa morosidade e se<br />

afaste de nós. E temos aprendido, ao longo das eras e através de muitas<br />

experiências, quão profundamente essa partida de Cristo deveria<br />

ser temida.<br />

E vós me buscareis. Devemos, antes de tudo, certificar de que<br />

maneira as pessoas ora indicadas buscariam a Cristo, pois se tivessem<br />

verdadeiramente se convertido, não o teriam buscado em vão, porquanto<br />

ele não prometeu falsamente que, tão logo um pecador sussurre um<br />

gemido, o mesmo será prontamente assistido por ele [Cristo]. Portanto,<br />

Cristo não insinua que o buscariam pelas vias certas da fé, mas que<br />

o buscariam, como homens, esmagados por angústias extremas, procurando<br />

livramento em suas mãos. Porque os incrédulos desejariam<br />

que Deus os tivera reconciliado consigo, porém não cessam de fugir<br />

dele. Deus os chama, sua aproximação consiste em fé e arrependimento,<br />

porém se opõem a Deus com coração petrificado e, esmagados pelo<br />

desespero, gritam contra ele. Em suma, estão tão longe de desejar o<br />

desfruto do favor de Deus, que não lhe dão permissão de assisti-los, a<br />

menos que ele negue a si próprio, o que jamais fará.<br />

E assim, por mais perversos fossem os escribas, voluntariamente<br />

teriam aplicado a si a redenção que lhes fora prometida pela<br />

mão do Messias, desde que se transformasse para adequar a natural<br />

disposição deles. Por isso, com essas palavras Cristo ameaça e denuncia<br />

a todos os incrédulos, dizendo que, depois de haverem eles<br />

desprezado a doutrina do evangelho, se verão dominados por uma


360 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

angústia tão grande que se verão constrangidos a clamar a Deus, porém<br />

seus gritos de nada lhes adiantarão, porque, como já dissemos,<br />

procurando, não procuram. E isso é ainda mais nitidamente expresso<br />

na próxima sentença, quando ele diz: vós morrereis em vossos pecados,<br />

com isso mostrando que causa de sua destruição será esta:<br />

foram desobedientes e rebeldes até o fim. Qual a natureza de seu<br />

pecado se verá em seguida.<br />

22. Quererá ele matar-se? Os escribas perseveravam não só em<br />

destemidamente escarnecer, mas também em afrontar. Porquanto ridicularizam<br />

o que ele dissera: para onde eu vou, vós não podereis me<br />

seguir, como se quisesse dizer: “Se ele suicidar, então reconhecemos<br />

que não podemos acompanhá-lo, porque não decidimos agir assim”.<br />

Consideravam a ausência de Cristo como uma questão de nenhuma<br />

importância, e criam que em todos os aspectos levariam a melhor sobre<br />

ele, e assim o convidam a ir para onde bem quisesse. Chocante<br />

estupidez! Mas é assim que Satanás ensoberbece os réprobos para<br />

que, intoxicados com uma indiferença mais que brutal, 17 se precipitem<br />

no meio das chamas da ira de Deus. Nos dias atuais, não vemos<br />

a mesma ira em muitos que, havendo entorpecido suas consciências,<br />

insolentemente atiram suas pilhérias e bufonarias contra tudo quanto<br />

ouvem acerca do terrível juízo de Deus? Embora seja verdade que esse<br />

é um riso afetado e sardônico, pois se acham intimamente feridos com<br />

feridas invisíveis, porém todos em um repente, como homens privados<br />

de seus sentidos, se prorrompem em furiosa gargalhada.<br />

23. Vós sois de baixo, eu sou de cima. Visto que não mereciam<br />

ser instruídos por ele, seu intuito era apenas deixá-los abalados com<br />

reprimendas expressas em poucas palavras, como nesta passagem ele<br />

declara que não recebem sua doutrina porque nutrem total repulsa<br />

pelo reino de Deus. Sob as palavras mundo e de baixo ele inclui tudo o<br />

que os homens naturalmente possuem, e assim põe em relevo a desarmonia<br />

que existe entre seu evangelho e a engenhosidade e sagacidade<br />

17 “Enyvrez d’une stupidité plus que brutale”.


Capítulo 8 • 361<br />

da mente humana, pois o evangelho é sabedoria celestial, porém nossa<br />

mente se rasteja na terra. Portanto, ninguém jamais será qualificado a<br />

tornar-se discípulo de Cristo, até que este o tenha formado por meio<br />

de seu Espírito. Daí ocorrer que a fé seja tão raramente encontrada no<br />

mundo, porque todo o gênero humano é naturalmente oposto e avesso<br />

a Cristo, exceto aqueles a quem ele eleva mediante a graça especial de<br />

seu Espírito Santo.<br />

24. E morrereis em vossos pecados. Havendo previamente empregado<br />

o singular, em vosso pecado, ele agora lança mão do plural,<br />

em vossos pecados, porém o significado é o mesmo, exceto que na passagem<br />

anterior ele pretendia realçar que a incredulidade é a fonte e<br />

causa de todos os males. Não que não haja nenhum outro pecado além<br />

da incredulidade, 18 nem que a incredulidade seja o único pecado que<br />

nos sujeita à condenação de morte eterna na presença de Deus, como<br />

alguns tão extravagantemente afirmam, mas porque ela nos afasta de<br />

Cristo e nos priva de sua graça, da qual devemos esperar o livramento<br />

de todos nossos pecados. O fato de os judeus rejeitarem a medicina<br />

[divina] com malícia obstinada, isso revela sua doença mortal, e daí<br />

ocorre que os escravos de Satanás não cessam de cumular pecados<br />

sobre pecados, e de continuamente atrair condenações sobre sua própria<br />

carne. E por isso ele adiciona imediatamente:<br />

Se não crerdes que eu sou. Porque não existe outra via para os<br />

homens perdidos recobrar sua salvação senão recorrendo-se a Cristo.<br />

A frase que eu sou é enfática, pois, para tornar o significado completo,<br />

temos de proporcionar tudo quanto a Escritura atribui ao Messias, e<br />

tudo o que ela nos incita a esperar dele. Mas a suma e substância é a<br />

restauração da Igreja, cujos primórdios são a luz da fé, da qual procedem<br />

a justiça e a nova vida. Alguns dos antigos escritores deduziram<br />

desta passagem a essência divina de Cristo, porém agir assim é um<br />

equívoco, pois ele fala de seu ofício em relação a nós. Esta afirmação<br />

é digna de observação, pois os homens jamais consideram suficiente-<br />

18 “Non pas qu’il n’y a point d’autres pechez que l’incredulité”.


362 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

mente os males em que se engajam, e ainda que se veem constrangidos<br />

a reconhecer sua destruição, todavia negligenciam a Cristo e olham<br />

em sua volta, em todas as direções, em busca de remédios sem valia.<br />

Por essa razão devemos crer que, até que a graça de Cristo se manifeste<br />

para livrar-nos, nada senão uma massa disforme de todos os males<br />

reina perpetuamente em nós. 19<br />

[8.25-29]<br />

Então lhe disseram: Quem és tu? Jesus lhes disse: Isso mesmo<br />

que desde o princípio 20 também vos falo. 21 Eu tenho muitas<br />

coisas que falar e julgar a vosso respeito, mas aquele que me<br />

enviou é verdadeiro, e eu falo ao mundo aquelas coisas que<br />

ouvi dele. Não sabiam que ele lhes falava do Pai. Jesus, pois,<br />

lhes disse: Quando tiverdes exaltado o Filho do homem, então<br />

sabereis que eu sou e que nada faço de mim mesmo, mas como<br />

o Pai me ensinou, eu falo. E aquele que me enviou está comigo.<br />

O Pai não me deixou sozinho, porque eu sempre faço as coisas<br />

que lhe agradam.<br />

25. Desde o princípio. Os que traduzem as palavras τὴν ἀρχὴν<br />

como se estivessem no caso nominativo, Eu sou o princípio, 22 e como<br />

se Cristo estivesse aqui asseverando sua deidade eterna, laboram em<br />

grande erro. Não existe ambiguidade desse gênero no grego, porém<br />

inclusive os comentaristas gregos diferem quanto ao significado. Aliás,<br />

todos eles concordam que uma preposição deve estar subentendida,<br />

porém muitos lhe dão a função de advérbio, como se Cristo dissesse:<br />

“Isto deve ser primeiramente (τὴν ἀρχὴν) observado”. Alguns também<br />

– entre os quais Crisóstomo – a traduzem ininterruptamente assim: O<br />

princípio que também vos falo eu tenho muitas coisas a dizer-vos e a jul-<br />

19 “Il n’y a qu’un amas infini de tous maux qui regne continuellement en nous”.<br />

20 “Ou, ce dont je vous parle dés le commencement” – “ou, o que vos disse desde o princípio”.<br />

21 “Ou, comme aussi je vous em parle” – “ou, como também eu vos falo dele”.<br />

22 “Ceux qui traduisent, “Je suis le commencement”.


Capítulo 8 • 363<br />

gar-vos. Foi Nonnus que impôs este significado ao versículo. 23 Mas uma<br />

redação diferenciada é mais geralmente adotada, e parece a única genuína.<br />

Minha interpretação de τὴν ἀρχὴν é desde o princípio, de modo<br />

que o significado, em minha opinião, é este: “Não surgi repentinamente,<br />

porém, como fui anteriormente prometido, assim agora compareço<br />

em público”. E acrescenta:<br />

Porque eu também vos falo. Significando que ele testifica com suficiente<br />

clareza quem ele é, contanto que tivessem ouvidos para ouvir.<br />

Esta palavra ὄτι, porque, não é empregada meramente para assinalar uma<br />

razão, como se Cristo tencionasse provar que ele era desde o princípio,<br />

porque ele agora fala, mas assevera que existe uma tal concordância<br />

entre sua doutrina e a eternidade de que ele fala, que aquela deve ser<br />

considerada uma indubitável confirmação desta. O que pode ser explicado<br />

assim: “De acordo com o princípio, isto é, o que eu disse previamente<br />

agora, por assim dizer, eu confirmo de novo”, ou: “E verdadeiramente o<br />

que também agora falo está em concordância com as condições feitas<br />

em todas as eras, de modo a ser uma forte confirmação dela”.<br />

Em suma, esta resposta consiste de duas sentenças, porque, sob a<br />

palavra princípio ele inclui uma sucessão ininterrupta de eras, durante<br />

as quais Deus fez um pacto com seus pais. Ao dizer que ele também<br />

fala, ele anexa sua doutrina com as predições antigas e mostra que<br />

ela depende delas. Daí se segue que os judeus não tinham outra razão<br />

para sua ignorância, além do fato de que não criam nem nos profetas<br />

nem no evangelho, porque é o mesmo Cristo que é exibido a todos<br />

eles. Pretendiam ser discípulos dos profetas e cuidar do pacto eterno<br />

de Deus, não obstante rejeitavam o Cristo que lhes fora prometido desde<br />

o princípio e agora está presente diante deles.<br />

23 Ele indica Nonnus, escritor grego, que traduziu em verso hexâmetro o <strong>Evangelho</strong> de<br />

<strong>João</strong>. A passagem está nesta forma:<br />

Γἰς σὺ πἐλει; καί Χριστός ἀνίαχεν ὅττι παρ᾽ ὑπν<br />

᾽Εξ ἀρχς ἀόριζον ἒχων νήρθμα διχάζειν<br />

Καί Λαλέειν.<br />

Quem és tu? e Cristo clamou em alta voz: O QUE (EU DIGO) A VÓS DESDE O PRINCÍPIO, tendo<br />

uma inumerável multidão de coisas a dizer e a julgar. No que diz respeito a τὴν ἀρχὴν,<br />

Nonnus parece concordar com Calvino,,,, pois ele traduz ἐξ ἀρχη̈ς, desde o princípio.


364 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

26. Tenho muitas coisas a dizer-vos e a julgar-vos. Percebendo<br />

que está na mesma posição de alguém que canta para surdos, ele<br />

não avança mais em seu discurso, mas apenas declara que Deus defenderá<br />

a doutrina que ora desprezam, porque ele é seu Autor. “Se<br />

eu quisesse acusar-vos”, diz ele, “vossa malícia e perversidade me<br />

fornecem abundantes materiais, porém no momento vos deixo. Meu<br />

Pai, porém, que me confiou o ofício de mestre, não deixará de cumprir<br />

sua promessa, porque ele sempre vindicou sua palavra contra<br />

o ímpio e sacrílego desprezo dos homens”. Esta afirmação de Cristo<br />

é da mesma substância daquela de Paulo: Se o negarmos, ele permanece<br />

fiel, porque não pode negar-se a si mesmo [2Tm 2.13]. Em suma,<br />

ele ameaça os incrédulos com o juízo de Deus, todos quantos se recusam<br />

em dar crédito a sua palavra, e ele age assim com base no fato<br />

de que Deus inevitavelmente defenderia sua verdade. Ora, esta é a<br />

genuína firmeza da fé, a saber, quando cremos que somente Deus é<br />

suficiente para estabelecer a autoridade de sua doutrina, ainda que<br />

o mundo inteiro a rejeite. Todos quantos, confiando em sua doutrina,<br />

servem a Cristo fielmente podem destemidamente acusar o mundo<br />

inteiro de falsidade.<br />

E eu falo ao mundo aquelas coisas que ouvi dele. Sua afirmação<br />

é que ele nada fala senão o que recebeu do Pai, e esta é a única confirmação<br />

de uma doutrina, quando o ministro mostra que o que ele fala<br />

procedeu do Pai. Agora sabemos que Cristo detinha, naquele tempo,<br />

o ofício de ministro, e por isso não precisamos ficar surpresos se ele<br />

demanda que os homens o ouçam, porque lhes traz os mandamentos<br />

de Deus. Além disso, por seu exemplo ele promulga uma lei geral para<br />

toda a Igreja, a saber, que ninguém deve ser ouvido, a menos que o<br />

mesmo fale [o que procede] da boca de Deus. Mas enquanto ele põe<br />

abaixo a perversa ignorância daqueles homens que ousam falar sem<br />

a palavra de Deus, os mestres fiéis, que bem conhecem a natureza de<br />

sua vocação, são fortificados e armados por ele com inabalável firmeza,<br />

para que, sob a diretriz de Deus, possam ousadamente desafiar a<br />

todos os mortais.


Capítulo 8 • 365<br />

27. Não sabiam que ele lhes falava acerca do Pai. Desse fato<br />

notamos quão estúpidos eram aqueles homens cujo entendimento era<br />

possuído por Satanás. Nada podia ser mais claro do que o fato de que<br />

estavam sendo citados a comparecerem ante o tribunal de Deus. Mas,<br />

e daí? São totalmente cegos. Isso ocorre diariamente com outros inimigos<br />

do evangelho, e tal cegueira deve instruir-nos a andar com temor. 24<br />

28. Quando levantardes o Filho do homem. Ofendido com a<br />

estupidez que o evangelista tem descrito, Cristo declara uma vez<br />

mais que não mereciam que ele abrisse sua boca para lhes falar<br />

algo mais. 25 “Agora”, diz ele, “tendes todos vossos sentidos, por assim<br />

dizer, fascinados, e por isso nada entendeis de tudo o que vos<br />

digo, porém virá o tempo em que sabereis que um Profeta de Deus<br />

viveu entre vós e vos falou”. Esta é a maneira como devemos tratar<br />

os homens perversos, 26 devemos convocá-los a comparecerem<br />

ante o tribunal de Deus. Mas este conhecimento, do qual Cristo fala,<br />

vem tarde demais quando os réprobos e incrédulos, arrastados pelo<br />

castigo, reconhecem relutantemente que Deus, a quem prazenteiramente<br />

deviam ter dado honra e reverência, é seu Juiz. Pois ele não<br />

lhes promete arrependimento, porém declara que, depois de terem<br />

sido golpeados com novo e inexpressivo horror da ira de Deus, serão<br />

despertados da modorra a que ora desfrutam. Assim é que os olhos<br />

de Adão se abriram, de modo que, esmagado pela vergonha, buscou<br />

em vão esconderijos para se esconder e, por fim, se convenceu de<br />

que estava arruinado. Mas aquele conhecimento de Adão, que era<br />

em si mesmo inútil, se converteu em vantagem sua através da graça<br />

de Deus, os réprobos, porém, se vendo esmagados pelo desespero,<br />

têm seus olhos abertos só com este propósito a fim de perceber sua<br />

destruição. A esse tipo de conhecimento Deus os conduz de várias<br />

maneiras. Às vezes ocorre que, constrangidos por profundas aflições,<br />

aprendem que Deus está irado contra eles, às vezes, sem qualquer<br />

24 “A cheminer en crainte”.<br />

25 “Qu’il ouvre plus sa bouche pour leur dire rien”.<br />

26 “Les reprouvez et infideles”.


366 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

castigo externo, ele os atormenta interiormente, e, outras vezes, ele<br />

lhes permite dormir até que os arrebata deste mundo.<br />

Pelo termo exaltar, Cristo realça sua própria morte. Ele faz menção<br />

de sua morte a fim de adverti-los de que, ainda que o destruam<br />

segundo a carne, nada lucrarão com isso, como se quisesse dizer:<br />

“Enquanto eu falo convosco, me tratais com arrogante escárnio, mas<br />

antes que vossa perversidade avance mais, a morte me dominará.<br />

Então vos triunfareis, como se vosso desejo tivesse vencido, porém<br />

dentro de pouco tempo experimentareis vossa completa ruína<br />

e quão amplamente minha morte difere da destruição”. Ele emprega<br />

o termo exaltar a fim de os exasperar ainda mais. A intenção deles<br />

era precipitar a Cristo no mais profundo inferno. Ele lhes diz que<br />

ficarão totalmente desapontados, e que o evento será totalmente<br />

contrário à expectativa deles. Na verdade sua intenção poderia ser<br />

evocar a forma externa de sua morte, que ele seria levantado numa<br />

cruz, ele, porém, está visando principalmente o glorioso resultado<br />

dela, o que se concretizaria logo depois, contrariando a expectativa<br />

de todos. É verdade que foi na própria cruz que ele conquistou<br />

esplêndido triunfo sobre Satanás, diante de Deus e dos anjos, apagando<br />

o manuscrito do pecado e cancelando a condenação oriunda<br />

da morte [Cl 2.14], mas somente depois que o evangelho foi proclamado<br />

que esse triunfo começou a ser conhecido dos homens.<br />

A mesma coisa que aconteceu pouco depois – que Cristo saiu do<br />

túmulo e ascendeu aos céus – é o que devemos diariamente esperar,<br />

pois, a despeito de todas as invenções dos ímpios com o intuito de<br />

oprimir a Cristo e a sua Igreja, ele não só ressuscitará a despeito<br />

deles, mas converterá seus ímpios esforços no meio de promover o<br />

progresso de seu reino.<br />

Que eu sou. Já declarei que isso não é uma referência à essência<br />

divina de Cristo, mas ao seu ofício, o que transparece ainda mais claramente<br />

à luz do que se segue, quando afirma que nada faz senão em<br />

obediência à ordem do Pai, pois significa que ele foi enviado por Deus<br />

e que executa seu ofício com toda fidelidade.


Capítulo 8 • 367<br />

E que nada faço de mim mesmo. Isto é, não me ponho na dianteira,<br />

tentando agir precipitadamente. Além disso, o verbo falar se refere<br />

à mesma coisa, isto é, ao ofício pedagógico, pois quando Cristo quer<br />

provar que nada faz senão em obediência ao mandamento do Pai, ele<br />

diz que fala segundo a instrução que recebeu dele. Portanto, o significado<br />

das palavras pode ser sumariado assim: Na totalidade desses<br />

procedimentos que condenais, nenhuma parte é propriamente minha,<br />

mas apenas executo o que Deus me incumbiu fazer, e as palavras que<br />

ouvis de meus lábios são palavras dele, e minha vocação, da qual é ele<br />

o Autor, é exclusivamente dirigida por ele. Lembremo-nos, contudo, do<br />

que já mencionei algumas vezes, a saber, que essas palavras são acomodadas<br />

à capacidade dos ouvintes. Porque, uma vez que concluíam<br />

que Cristo era meramente um dentre a classe ordinária dos homens,<br />

ele assevera que tudo quanto nele é divino não procede propriamente<br />

dele, significa que provém do homem nem é forjado pelo homem, porque<br />

o Pai nos ensina por meio dele e o designa para ser o único Mestre<br />

da Igreja. E por essa razão ele afirma que foi instruído pelo Pai.<br />

29. E aquele que me enviou está comigo. Uma vez mais ele se<br />

gloria de que Deus, sob cuja diretriz e autoridade ele age em tudo, o<br />

assistirá, de modo que não labutará em vão e sem qualquer propósito,<br />

como se quisesse dizer: o poder do Espírito de Deus acompanha meu<br />

ministério. Todos os mestres fiéis devem ser dotados com a mesma<br />

confiança para que não nutram nenhuma dúvida de que a mão de Deus<br />

estará sobre eles, quando, com uma consciência pura, cumprirem o<br />

ministério que lhes impôs. Pois Deus não os mune com sua palavra<br />

a fim de golpearem o ar com um som indolente e inútil, senão que faz<br />

sua palavra bem sucedida pela secreta eficácia de seu Espírito, e ao<br />

mesmo tempo os guarda com sua proteção, para que, quando seus<br />

inimigos forem todos subjugados, permaneçam invencíveis contra o<br />

mundo inteiro. E deveras, se julgarem a si mesmos e a suas próprias<br />

faculdades, se renderiam no mesmo instante, de modo que o único<br />

método de seguir adiante é se convencendo de que são sustentados<br />

pela mão divina.


368 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Porque sempre faço as coisas que lhe agradam. Devemos observar<br />

a razão por que Cristo declara que Deus está a seu lado e que<br />

ele jamais será privado de sua assistência. Isso porque ele é inteiramente<br />

regulado por sua vontade e o serve com sinceridade. Pois<br />

isso é o que ele pretende dizer pela palavra sempre, ou seja: que não<br />

obedece a Deus apenas em parte, mas é inteiramente e sem reservas<br />

devotado a seu serviço. Dessa forma, se quisermos desfrutar a<br />

mesma presença de Deus, toda nossa razão deve se sujeitar a sua autoridade,<br />

pois se nossos sentidos sustentarem o governo em alguma<br />

extensão, todos nossos esforços serão infrutíferos, porque a bênção<br />

de Deus não estará neles [esforços]. E ainda que por algum tempo<br />

nos deleitemos com o ditoso prospecto de êxito, todavia o resultado<br />

final será sinistro.<br />

O Pai não me deixou sozinho. Com estas palavras ele indiretamente<br />

se queixa da traição de sua nação, no seio da qual ele encontrou<br />

uns poucos que lhe deram seu apoio. Contudo ele mostra que considera<br />

uma coisa sobejamente suficiente, a saber, que tem Deus para<br />

o proteger. Tal é a coragem com que devemos nos animar e dar vazão,<br />

em nossos próprios dias, em decorrência do pequeno número de<br />

crentes, porque, ainda que o mundo inteiro se oponha a sua doutrina,<br />

todavia não estamos sozinhos. Daí ser também evidente quão estulta é<br />

a vanglória dos papistas que, enquanto negligenciam Deus, com soberba<br />

se vangloriam de seu vasto número.<br />

[8.30-38]<br />

Enquanto falava essas coisas, muitos criam nele. Jesus, pois,<br />

disse aos judeus que creram nele: Se continuardes em minha<br />

palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos. E conhecereis<br />

a verdade, e a verdade vos fará livres. Eles responderam:<br />

Somos descendentes de Abraão, e jamais fomos escravos de<br />

alguém, como, pois, disseste: Sereis livres? Respondeu-lhes Jesus:<br />

Em verdade, em verdade eu vos digo: Todo homem que


Capítulo 8 • 369<br />

comete pecado é escravo do pecado. 27 E o escravo 28 não permanece<br />

sempre na casa, mas o filho permanece para sempre. Se<br />

o Filho, pois, vos fizer livres, verdadeiramente sereis livres. Eu<br />

sei que sois os descendentes de Abraão, porém buscais matar-<br />

-me, porque minha palavra não habita em vós. 29 Eu falo o que<br />

ouvi de meu Pai, e vós, o que tens ouvido de vosso pai.<br />

30. Enquanto ele falava essas coisas. Ainda que os judeus,<br />

naquele tempo, quase se assemelhavam a um solo seco e estéril,<br />

todavia Deus não permitiu que a semente de sua palavra se perca<br />

totalmente. E assim, contrariando todas as esperanças e em meio a<br />

tantas obstruções, algum fruto aparece. O evangelista, porém, não<br />

com exatidão, intitula fé àquilo que era apenas certo tipo de preparação<br />

para a fé. Porquanto ele nada mais afirma sobre eles senão que<br />

estavam dispostos a receber a doutrina de Cristo, à qual também se<br />

refere o que vem antes.<br />

31. Se continuardes em minha palavra. Aqui Cristo os adverte,<br />

em primeiro lugar, que não é bastante que alguém tenha tido um bom<br />

começo, se seu progresso até o fim não lhe corresponder, e por essa<br />

razão ele exorta à perseverança na fé aos que tiverem provado sua<br />

doutrina. Ao dizer que os que se radicam solidamente em sua palavra,<br />

ao ponto de permanecerem nele, verdadeiramente serão seus discípulos,<br />

ele quer dizer que muitos professam ser seus discípulos, e, no entanto,<br />

não o são realmente, e não têm o direito de ser considerados como<br />

tais. Ele distingue seus seguidores dos hipócritas por meio desta marca:<br />

que aqueles que falsamente se vangloriavam de sua fé desistiam<br />

assim que se ingressavam no caminho, ou pelo menos na metade dele,<br />

os crentes, porém, perseveram constantemente até o fim. Portanto, se<br />

quisermos que Cristo nos reconheça como seus discípulos, temos que<br />

nos esforçar por perseverarmos.<br />

27 “Il est serf de peché”.<br />

28 “Le serf”.<br />

29 “Pource que ma parole n’a point de lieu en vous” – “porque minha palavra não tem lugar<br />

em vós”.


370 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

32. E conhecereis a verdade. Ele afirma que aqueles que chegam<br />

a algum conhecimento dele conhecerão a verdade. Aliás, aqueles a<br />

quem Cristo falava eram ainda incultos e mal conheciam os primeiros<br />

rudimentos, e por isso não cabe surpresa se ele lhes promete um pleno<br />

discernimento de sua doutrina. No entanto a afirmação é de caráter<br />

geral. Por isso, seja qual for o progresso que algum de nós tenha feito<br />

no evangelho, que o mesmo saiba que necessita de novas adições.<br />

Esta é a recompensa que Cristo outorga a sua perseverança: que ele<br />

lhes admite que tenham maior familiaridade com ele, ainda que dessa<br />

forma ele nada mais faz senão acrescentar outro dom ao primeiro,<br />

assim ninguém deve imaginar que tem direito a alguma recompensa.<br />

Pois é ele quem imprime sua palavra em nossos corações por meio<br />

de seu Espírito, e é ele quem diariamente dissipa de suas mentes as<br />

nuvens de ignorância que obscurecem a refulgência do evangelho. A<br />

fim de que a verdade nos seja plenamente revelada, devemos sincera<br />

e solicitamente lutar por tomar posse dela. É a mesma verdade invariável<br />

que Cristo ensina a seus seguidores, do princípio ao fim, mas<br />

naqueles que a princípio foram iluminados por ele, como que por pequenas<br />

fagulhas, por fim ele derramará a plena luz. Assim os crentes,<br />

até que tenham sido plenamente confirmados, são em alguma medida<br />

ignorantes do que conhecem, no entanto o conhecimento da fé não é<br />

tão pequeno ou obscuro que não contenha eficácia para a salvação.<br />

A verdade vos fará livres. Ele enaltece o conhecimento do evangelho<br />

a partir do fruto que dele derivamos, ou – o que equivale a<br />

mesma coisa – a partir de seu efeito, isto é, que ele nos restaura à<br />

liberdade. Esta é uma bênção inaudita. Daí se segue que nada é mais<br />

excelente ou desejável do que o conhecimento do evangelho. Todos<br />

quantos sentem e sabem que a escravidão é uma condição em extremo<br />

miserável, e já que o evangelho nos liberta dela, segue-se que derivamos<br />

do evangelho o tesouro de uma vida bem-aventurada.<br />

Agora devemos averiguar que gênero de liberdade é aqui descrito<br />

por Cristo, isto é, aquela que nos faz livres da tirania de Satanás,<br />

do pecado e da morte. E se tomarmos posse dela por meio do evan-


Capítulo 8 • 371<br />

gelho, é evidente à luz desse fato que somos inerentemente escravos<br />

do pecado. Além disso, devemos averiguar qual é o método de nosso<br />

livramento. Porque, enquanto formos governados por nossos sentidos<br />

e por nossa natural disposição, somos servos do pecado, quando, porém,<br />

o Senhor nos regenera por seu Espírito, ao mesmo nos faz livres,<br />

de modo que, libertados das tramas de Satanás, espontaneamente<br />

obedecemos à justiça. A regeneração, porém, procede da fé, e daí ser<br />

evidente que a liberdade procede do evangelho.<br />

Que agora os papistas soberbamente prossigam a vangloriar-se<br />

de seu livre-arbítrio, nós, porém, que temos consciência de nossa<br />

própria escravidão, em ninguém mais nos gloriemos senão em Cristo<br />

nosso Libertador. Pois a razão pela qual o evangelho deve ser reconhecido<br />

como aquilo que produz nosso livramento é que ele nos oferece e<br />

nos dá Cristo que nos liberta do jugo do pecado. Finalmente, devemos<br />

observar que a liberdade tem seus graus de conformidade com a medida<br />

da fé de cada um, e por isso Paulo, ainda que evidentemente fosse<br />

livre, contudo geme e aspira aquela perfeita liberdade [Rm 7.24].<br />

33. Somos descendentes de Abraão. É incerto se o evangelista<br />

aqui introduz as mesmas pessoas com quem anteriormente falava, 30 ou<br />

eram outras. Minha opinião é que replicaram a Cristo de uma maneira<br />

confusa, como usualmente ocorre numa multidão mista e confusa, e<br />

que essa réplica foi feita mais por desdenhadores do que pelos que<br />

criam. É uma forma de expressão bem costumeira na Escritura, sempre<br />

que se mencione um grupo de pessoas, atribuir em termos gerais<br />

a todos o que pertence apenas a uma parte.<br />

Os que objetam dizendo que são descendentes de Abraão e que<br />

sempre foram livres, inferiam facilmente das palavras de Cristo que a<br />

liberdade lhes foi prometida como pessoas que eram escravas. Não podem,<br />

porém, suportar ouvir que eles, que são um povo santo e eleito,<br />

sejam reduzidos à escravidão. Pois que validade tinham a adoção e o<br />

pacto [Rm 9.4], por meio dos quais foram separados de outras nações,<br />

30 “Ceux-la mesmes parlans, qui parloyent auparavant”.


372 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

senão porque eram considerados filhos de Deus? Portanto, concluem<br />

que são insultados quando a liberdade lhes é exibida como uma bênção<br />

da qual ainda não tinham tomado posse. Mas é possível imaginar-se<br />

estranho que sustentassem que jamais foram escravizados, quando<br />

tinham sido tão frequentemente oprimidos por vários tiranos, e que<br />

naquele tempo viviam sujeitados ao jugo romano e gemiam sob o mais<br />

pesado fardo de escravidão, e por isso pode-se facilmente notar quão<br />

insensata era sua vanglória.<br />

Não obstante, tinham esta plausível justificativa, isto é, que o injusto<br />

domínio de seus inimigos não os impedia de continuar a ser livres<br />

por direito. Mas estavam errados: primeiro, neste aspecto, a saber,<br />

que não consideravam que o direito de adoção estivesse fundamentado<br />

unicamente no Mediador, pois como se dá que a semente de Abraão<br />

fosse livre, senão porque, pela graça extraordinária do Redentor, ela<br />

é isenta da escravidão geral da raça humana? Há, porém, outro erro<br />

menos tolerável do que o primeiro, a saber, embora fossem totalmente<br />

degenerados, queriam ser contados entre os filhos de Abraão, e não<br />

atinavam que nada mais, senão a regeneração procedente do Espírito,<br />

é que os fazia legítimos filhos de Abraão. E, aliás, tinha sido tão comum<br />

um vício em quase todas as épocas, ou seja, associar à origem da<br />

carne os dons extraordinários de Deus, e atribuir à natureza aqueles<br />

remédios que Cristo outorga para corrigir a natureza. Entrementes,<br />

vemos como todos os que, inflados com falsa confiança, se gloriam em<br />

sua condição alienada da graça de Cristo. E, no entanto, esse orgulho<br />

é difundido por todo o mundo, de modo que há raramente uma pessoa<br />

em centenas que sente necessitar da graça de Deus.<br />

34. Todo homem que comete pecado é escravo do pecado. Este é<br />

um argumento extraído das coisas contrárias. Vangloriavam-se de que<br />

eram livres. Ele prova que eram escravos do pecado, porque, estando<br />

escravizados pelos desejos da carne, pecavam sem cessar. É espantoso<br />

que os homens não se convençam pela própria experiência, de modo<br />

que, pondo de parte seu orgulho, aprendam a ser humildes. E é uma<br />

ocorrência muito frequente na atualidade que, quanto maior é o fardo


Capítulo 8 • 373<br />

de vícios pelos quais o homem se sobrecarrega, mais ardentemente<br />

ele pronuncia palavras sem sentido para enaltecer o livre-arbítrio.<br />

É como se Cristo nada mais dissesse aqui senão o que disseram<br />

antigamente os filósofos, a saber, que aqueles que se devotam a suas<br />

luxúrias vivem sujeitos à mais degradante escravidão. Há, porém, um<br />

significado mais profundo e mais oculto. Pois ele não argumenta sobre<br />

o que os homens maus trazem em sua própria natureza, mas qual é a<br />

condição da natureza humana. Os filósofos pensavam que cada um é<br />

escravo por seu próprio arbítrio, e que pelo mesmo arbítrio ele readquire<br />

a liberdade. Aqui, porém, Cristo afirma que todos quantos não se<br />

deixam libertar por ele vivem em um estado de escravidão, e que todos<br />

quantos derivam o contágio do pecado da natureza corrompida são<br />

escravos desde seu nascimento. Devemos atentar para a comparação<br />

entre graça e natureza, sobre as quais Cristo aqui insiste, do quê se<br />

torna fácil ver que os homens serão destituídos de liberdade, a menos<br />

que a conquistem de alguma outra fonte. Não obstante, essa escravidão<br />

é voluntária, de modo que, os que necessariamente pecam, não<br />

são compelidos a pecar.<br />

35. Ora, o escravo não permanece sempre na casa. Ele adiciona<br />

uma comparação, extraída das leis e da lei política, no sentido em que<br />

um escravo, ainda que tenha poder por algum tempo, todavia não é o<br />

herdeiro da casa, do quê ele infere que não há liberdade perfeita e durável,<br />

senão que é obtida através do Filho. E assim ele acusa os judeus<br />

de futilidade, porque usavam apenas uma máscara em vez da realidade.<br />

Porque, quanto a serem eles descendência de Abraão, nada mais<br />

eram que uma mera máscara. Mantinham um lugar na Igreja de Deus,<br />

porém o lugar de Ismael, um escravo, que se pôs contra seu irmão<br />

nascido livre, usurpado por breve tempo [Gl 4.29]. A conclusão é que<br />

todos quantos se vangloriam de ser filhos de Abraão nada possuem<br />

senão uma fútil e ilusória pretensão.<br />

36. Se, pois, o Filho vos libertar. Com estas palavras ele quer<br />

dizer que o direito de liberdade pertence unicamente a ele mesmo, e<br />

que todos os demais, nascendo escravos, não podem ser libertados


374 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

senão por sua graça. Porque o que ele possui como seu por direito e<br />

por natureza, ele reparte conosco por meio da adoção, quando somos<br />

enxertados, pela fé, em seu corpo e nos tornamos membros seus. Assim<br />

devemos lembrar o que eu disse previamente, que o evangelho<br />

é o instrumento por meio do qual tomamos posse de nossa liberdade.<br />

Assim, pois, nossa liberdade é um benefício conferido por Cristo,<br />

porém a obtemos por meio da fé, em consequência do quê também<br />

Cristo nos regenera por meio de seu Espírito. Ao dizermos que verdadeiramente<br />

serão livres, há uma ênfase na palavra verdadeiramente,<br />

pois temos que suprir o contraste com a tola persuasão por meio da<br />

qual os judeus se inflavam com orgulho, da mesma forma que a maior<br />

parte do mundo se imagina possuir um reino, enquanto vivem na mais<br />

miserável escravidão.<br />

37. Eu sei que sois descendência de Abraão. Como eu disse, explico<br />

isto à guisa de concessão. Não obstante, ao mesmo tempo ele<br />

ridiculariza sua estultícia em se vangloriar em tão absurdo título,<br />

como se quisesse dizer: “Admitindo aquilo em que tanto vos vangloriais,<br />

não obstante, que valor existe se os homens são chamados filhos<br />

de Abraão, enquanto continuam a lutar contra Deus e seus ministros,<br />

e que agem com um ódio tão perverso e detestável contra a verdade,<br />

que se precipitam temerariamente a derramar sangue inocente?” Daí<br />

se segue que nada está mais distante de seu verdadeiro caráter que a<br />

justificativa de serem assim chamados, porque não trazem em si nenhuma<br />

semelhança com Abraão.<br />

Buscais matar-me, porque minha palavra não tem lugar em vós.<br />

Sua intenção é dizer que não são meramente assassinos, mas que são<br />

induzidos a tal furor por odiarem a Deus e sua verdade, o que é muitíssimo<br />

hediondo, pois tal hediondez não se estende meramente aos<br />

homens, mas igualmente desonra a Deus. Ele diz que não podem receber<br />

suas palavras, porque por sua malícia conservam suas mentes<br />

fechadas, de modo que não podem admitir nada que seja saudável.<br />

38. Eu falo que o vi com meu Pai. Ele já havia feito frequente<br />

menção de seu Pai, e agora, por meio de um argumento extraído de


Capítulo 8 • 375<br />

coisas contrárias, ele infere que eles são inimigos de Deus, e são filhos<br />

do diabo, porque se opõem a sua doutrina. “Porque”, diz ele, “de minha<br />

parte nada trago, senão o que aprendi de meu Pai. Como é possível,<br />

pois, que a palavra de Deus exerça em vós tal fúria, senão porque tendes<br />

um pai oposto?” Ele diz que fala, e que faz, porque cumpre o ofício<br />

de mestre, enquanto que eles tenazmente labutavam com o intuito de<br />

extinguir sua doutrina. Ao mesmo tempo, ele protege o evangelho contra<br />

o desprezo, mostrando que ele não admira que ele seja resistido<br />

pelos filhos do diabo. Em vez de vós fazeis, alguns traduzem: fazeis<br />

o que tendes visto em vosso pai, como se Cristo dissesse: “Vinde, vos<br />

mostrarei que sois filhos do diabo, fazendo-me oposição, porque nada<br />

fala senão o que Deus ordenou”.<br />

[8.39-42]<br />

Responderam eles, e lhe disseram: Abraão é nosso pai. Disse-<br />

-lhes Jesus: Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de<br />

Abraão. Agora, porém, buscais matar-me, um homem que vos<br />

falou a verdade que ouviu de Deus. Abraão não agiu assim. Vós<br />

fazeis as obras de vosso pai. Disseram-lhe, pois: Não nascemos<br />

de fornicação, temos um Pai que é Deus. Disse-lhes Jesus: Se<br />

Deus fosse vosso Pai, me amaríeis, porque procedi e vim de<br />

Deus, pois não procedi de mim mesmo, mas ele me enviou.<br />

39. Abraão é nosso pai. Esta altercação mostra com suficiente<br />

nitidez quão arrogante e ferozmente desprezavam todas as censuras<br />

de Cristo. O que reivindicam contínua e vangloriosamente é que<br />

são filhos de Abraão, pelo quê não significam meramente que são<br />

descendentes da linhagem de Abraão, mas que são uma raça santa,<br />

a herança de Deus e os filhos de Deus. E, no entanto, em nada<br />

confiam senão na carne. Descendente carnal, porém, sem fé, nada<br />

mais é do que falsa pretensão. Agora entendemos o que foi que tão<br />

terrivelmente os cegava, ao ponto de tratarem a Cristo com desdém,<br />

ainda que armado com mortíferos trovões. Assim a palavra de


376 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Deus, que pode remover as pedras, é ridicularizada na atualidade<br />

pelos papistas, como se não passasse de fábula, e furiosamente perseguida<br />

pelo fogo e pela espada, e por nenhuma outra razão senão<br />

que confiavam em seu falso título de “a Igreja”, e esperavam que<br />

fossem capazes de enganar a Deus e ao homem. Em suma, tão logo<br />

os hipócritas tenham granjeado plausível cobertura, se opõem a<br />

Deus com empedernida pertinácia, como se ele não tivesse como<br />

penetrar seus corações.<br />

Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão. Cristo<br />

então distingue mais claramente entre os filhos bastardos e degenerados<br />

de Abraão e os filhos reais e legítimos, 31 porquanto ele se recusa<br />

a dar o mesmo nome a todos os que não se assemelham a Abraão.<br />

Aliás, frequentemente ocorre que os filhos não se assemelham, em sua<br />

conduta, a seus pais de quem foram gerados, mas aqui Cristo não argumenta<br />

sobre descendente carnal, mas apenas afirma que os que não<br />

retêm pela fé a graça da adoção não são considerados entre os filhos<br />

de Abraão na presença de Deus. Pois visto que Deus prometera à semente<br />

de Abraão que ele seria seu Deus, dizendo: Estabelecerei meu<br />

pacto entre mim e ti, e à tua descendência depois de ti, em suas gerações,<br />

por um pacto eterno, para ser o teu Deus, e o Deus de tua descendência<br />

depois de ti [Gn 17.7], todos os incrédulos, ao rejeitarem esta promessa,<br />

se excluíam da família de Abraão.<br />

Portanto, o estado da pergunta é este: Deve ser contado entre<br />

os filhos de Abraão quem a bênção que lhes é oferecida na Palavra,<br />

de modo que, a despeito disso, sejam uma nação santa, a herança de<br />

Deus e um sacerdócio real? [Ex 19.6, Jl 3.2.] Cristo nega tal coisa, e<br />

com razão, porque quem não é filho da promessa deve renascer pelo<br />

Espírito Santo, e todos quantos desejam granjear um lugar no reino<br />

de Deus devem ser novas criaturas. Ser descendente carnal de Abraão<br />

não deve de fato ser algo inútil e de nenhum valor, desde que a verdade<br />

lhe fosse adicionada. Pois a eleição reside na semente de Abraão,<br />

31 “Entre les enfans d’Abraham qui sont bastars et forlignans, et le vrais et legitimes”.


Capítulo 8 • 377<br />

porém é gratuita, de modo que, todos aqueles a quem Deus santifica<br />

por seu Espírito são considerados herdeiros da vida.<br />

40. Agora, porém, buscais matar-me. Ele prova, a partir do efeito,<br />

que não eram filhos de Deus, como se blasonavam, porque se opunha<br />

a Deus. E realmente existe em Abraão algo que é mais sublimemente<br />

enaltecido do que a obediência da fé? 32 Esta, pois, é a marca distintiva,<br />

sempre que se nos requer distingamos entre seus filhos e os estranhos,<br />

pois títulos vazios, por mais que granjeiem a estima do mundo,<br />

são de nenhuma valia aos olhos de Deus. Portanto, Cristo conclui uma<br />

vez mais que são filhos do diabo, porque odeia com ódio visceral 33 a<br />

verdadeira e sã doutrina.<br />

41. Não nascemos de fornicação. Reivindicam para si não mais<br />

que o que fizeram previamente, pois dava no mesmo ser filhos de<br />

Abraão e ser filhos de Deus. Mas erravam clamorosamente neste aspecto:<br />

imaginavam que Deus estava vinculado a toda a semente de<br />

Abraão. Pois arrazoavam assim: “Deus adotou para si a família de<br />

Abraão, portanto, já que somos descendentes de Abraão, certamente<br />

somos filhos de Deus”. Então vemos como pensavam possuir santidade<br />

desde o ventre materno, porque provinham de uma raiz santa. Em<br />

suma, afirmavam que eram a família de Deus, porquanto eram descendentes<br />

de pais santos. De igual modo, os papistas, em nossos dias, são<br />

procedentes dos pais por sucessão ininterrupta. Por feitiçarias desse<br />

gênero Satanás os engoda, de modo que alienam Deus de sua Palavra,<br />

a Igreja da fé e o reino do céu do Espírito.<br />

Saibamos, pois, que aqueles que têm corrompido a semente da<br />

vida muito longe estão de ser os filhos de Deus, ainda que, segundo<br />

a carne, não sejam bastardos, mas pretendem um direito ao plausível<br />

título de Igreja. Portanto, escondam-se onde bem quiserem, contudo<br />

jamais evitarão a descoberta de que a única base de sua arrogante vanglória<br />

é esta: “Procedemos dos santos pais, portanto, somos a Igreja”.<br />

E se a réplica de Cristo foi suficiente para confundir os judeus, não é<br />

32 “Et de faict, y a-il chose qu’on puisse plustost luër en Abraham?”<br />

33 “Ils haissent de haine mortelle”.


378 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

menos suficiente agora para reprovar os papistas. Deveras jamais os<br />

hipócritas cessarão de empregar o nome de Deus falsamente, com a<br />

mais perversa afronta, porém as falsas bases de vanglória, sobre as<br />

quais se empertigam, jamais cessarão de parecer ridículas aos olhos<br />

de todos quantos aderem à decisão de Cristo.<br />

42. Se Deus fosse vosso Pai, vós me amaríeis. O argumento de<br />

Cristo é o seguinte: “Quem quer que seja filho de Deus reconhecerá<br />

seu Filho Primogênito, vós, porém, me odiais, e por isso não tendes<br />

motivo para vangloriar-vos de que sois filhos de Deus”. Devemos<br />

prudentemente prestar atenção a esta passagem, de que não existe<br />

piedade nem temor de Deus onde Cristo é rejeitado. A religião hipócrita,<br />

aliás, presunçosamente se esconde sob o nome de Deus, mas como<br />

é possível que concorde com o Pai quem discorda de seu único Filho?<br />

Que gênero de conhecimento de Deus é esse no qual sua viva imagem<br />

é rejeitada? E isso é o que Cristo tem em mente quando testifica que<br />

ele veio do Pai.<br />

Porque eu procedi e vim do Pai. Sua intenção é dizer que tudo<br />

o que ele tem é divino, e por isso é muito inconsistente que os verdadeiros<br />

adoradores de Deus fujam de sua verdade e de sua justiça. “Eu<br />

não vim”, diz ele, “por iniciativa minha. Não podeis provar que alguma<br />

coisa em mim seja contrária a Deus. Em suma, não achareis nada que<br />

seja terreno ou humano em minha doutrina, ou em todo meu ministério”.<br />

Pois ele não fala de sua essência, mas de seu ofício.<br />

[8.43-45]<br />

Por que não entendeis minha linguagem, que não podeis ouvir<br />

minha palavra? Vós sois de vosso pai, o diabo, e quereis executar<br />

os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio,<br />

e jamais permaneceu na verdade, porque nele não existe verdade.<br />

E porque eu vos digo a verdade, vós não me credes.<br />

43. Por que não entendeis minha linguagem? Nesta passagem,<br />

ele censura os judeus por sua obstinação, a qual era tão grande que


Capítulo 8 • 379<br />

nem mesmo podiam suportar ouvi-lo falar. Daí ele inferir que estavam<br />

agindo e se debatendo com fúria diabólica. Há alguns que fazem distinção<br />

aqui entre linguagem e palavra, como se palavra tivesse um sentido<br />

mais extenso. Eu, porém, não o vejo assim. 34 Além disso, não seria<br />

apropriado que o termo que significa menos fosse expresso primeiro.<br />

Muitos expressam este versículo de tal maneira ao ponto de tornar a<br />

pergunta estreitamente relacionada com a palavra linguagem, 35 como<br />

se a pergunta consistisse apenas nestas palavras: Por que não entendeis<br />

minha linguagem? De modo que a razão é imediatamente assinalada:<br />

Porque não podeis ouvir minha palavra. Eu, porém, penso que ela deve,<br />

antes, ser lida em conexão imediata, como se ele dissesse: “Qual é a<br />

razão por que minha palavra vos parece bárbara e desconhecida, de<br />

modo que nada consigo vos falando, e de modo que nem mesmos vos<br />

digneis abrir seus ouvidos para receber o que vos digo?” Portanto, na<br />

primeira sentença ele censura sua estupidez, e na última ele reprova<br />

seu ódio obstinado e descontrolado por sua doutrina. E em seguida assinala<br />

a razão para ambas, quando diz que são procedentes do diabo.<br />

Porque, ao formular esta pergunta, ele pretendia retirar de suas mãos<br />

o que era o tema contínuo de sua vanglória, a saber, que eram levados<br />

pela razão e pelo juízo a opor-se a ele.<br />

44. Vós sois de vossa pai, o diabo. O que ele dissera duas vezes<br />

mais obscuramente, agora expressa maus plenamente, a saber, que<br />

são filhos do diabo. Devemos, porém, completar o contraste, ou seja,<br />

que não podiam acalentar tão intenso ódio pelo Filho de Deus, não fosse<br />

o fato de que tinham por seu pai o perpétuo inimigo de Deus. Ele os<br />

denomina de filhos do diabo, não só porque o imitavam, mas porque se<br />

deixavam guiar por sua instigação a lutar contra Cristo. Porque, visto<br />

que somos chamados filhos de Deus, não só porque nos assemelhamos<br />

a ele, mas porque ele nos governa por seu Espírito, porquanto Cristo<br />

vive e é vigoroso em nós, a ponto de conformar-nos à imagem de seu<br />

34 “Aucuns font ici difference entre Langage et Partole, pource que a parole emporte plus,<br />

mais je n’y en voy point”.<br />

35 “En ce mot Langage”.


380 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Pai, e assim, em contrapartida, lemos que o diabo é o pai daqueles<br />

cujo entendimento ele cega, cujos corações ele move a cometer toda<br />

injustiça e em quem, em suma, ele age poderosamente e exerce sua<br />

tirania, como em 2 Coríntios 4.4, Efésios 2.2 e em outras passagens.<br />

Os maniqueus néscia e ineficientemente abusaram desta passagem<br />

com o intuito de provar seus princípios absurdos. Pois visto<br />

que, quando a Escritura nos chama filhos de Deus, isso não se refere<br />

à transmissão ou origem de substância, mas à graça do Espírito, o<br />

qual nos regenera para novidade de vida, assim este dito de Cristo<br />

não se relaciona com a transmissão de substância, mas à corrupção<br />

da natureza, da qual a revolta humana foi a causa e origem. Portanto,<br />

quando os homens nascem filhos do diabo, não se deve imputar à<br />

criação, mas à culpa do pecado. Ora, Cristo prova isso a partir do<br />

efeito, porque voluntariamente, e de sua própria iniciativa, se dispuseram<br />

a seguir o diabo.<br />

Ele foi homicida desde o princípio. Ele explica quais são esses<br />

desejos e menciona dois exemplos: crueldade e falsidade, nos quais<br />

os judeus tanto se assemelhavam a Satanás. Ao dizer que o diabo era<br />

homicida, sua intenção é dizer que ele engendrara a destruição do<br />

homem, pois tão logo o homem foi criado, Satanás, impelido por um<br />

perverso desejo de causar dano, inclinou sua força a destruí-lo. Cristo<br />

não quer dizer o princípio da criação, como se Deus implantasse nele<br />

a disposição para fazer mal, porém condena em Satanás a corrupção<br />

da natureza, a qual ele trouxe a si mesmo. Isso transparece mais nitidamente<br />

à luz da segunda sentença, na qual ele diz:<br />

Ele não permaneceu na verdade. Pois embora os que imaginam<br />

que o diabo foi inerentemente perverso, canalizando todo seu esforço<br />

em fazer evasões, todavia tais palavras claramente expressam que<br />

houve uma mudança para pior, e que a razão pela qual Satanás era<br />

mentiroso foi esta: ele se revoltou contra a verdade. Que ele é mentiroso,<br />

não provém de sua natureza ter sido sempre contrária à verdade, mas<br />

porque ele se apartou dela por uma queda voluntária. Esta descrição<br />

de Satanás nos é altamente útil, para que cada pessoa por si mesma


Capítulo 8 • 381<br />

se muna de toda prudência contra suas armadilhas e, ao mesmo tempo,<br />

repila sua violência e fúria, pois ele rodeia rosnando como leão,<br />

buscando a quem possa devorar [1Pe 5.8] e tem em seu poder milhares<br />

de estratagemas para enganar. Quanto mais são os crentes supridos<br />

com armas espirituais para que possa lutar, tanto mais solicitamente<br />

devem eles se manter vigilantes e sóbrios. Ora, se Satanás não pode<br />

desfazer-se de tal disposição, não devemos ficar alarmados com isso,<br />

como se fosse uma nova e inusitada ocorrência, quando surgem erros<br />

excessivamente numerosos e variados, pois Satanás incita seus<br />

seguidores com seus vagalhões para enganar o mundo com suas imposturas.<br />

E nem precisamos sentir-nos surpresos com o fato de que<br />

Satanás faça esforços tão ingentes com o fim de extinguir a luz da verdade,<br />

pois ela é a única vida da alma. Assim, pois, a mais importante e<br />

mais mortal ferida para matar a alma é a falsidade. Como todos os que<br />

têm olhos para ver percebem, na atualidade, tal retrato do diabo no<br />

papado, devem, antes de tudo, considerar com que inimigo deflagram<br />

a guerra, e, em seguida, devem recorrer à proteção de Cristo como seu<br />

General, sob cuja bandeira deve lutar.<br />

Porque nele não há verdade. Esta afirmação, que imediatamente<br />

segue a outra, é uma confirmação a posteriori, como a frase é, ou seja,<br />

é extraída do efeito. Pois Satanás odeia a verdade, e por isso não pode<br />

suportá-la, senão que, ao contrário, jaz inteiramente coberto de falsidades.<br />

Daí Cristo inferir que ele é inteiramente apostatado da verdade<br />

e alienado dela. Não nos maravilhemos, pois, se ele diariamente exibe<br />

os frutos de sua apostasia.<br />

Quando ele fala falsidade. Estas palavras geralmente são explicadas<br />

como se Cristo afirmasse que a culpa da falsidade não pertence<br />

a Deus, que é o Autor da natureza, senão que, ao contrário, procede<br />

da corrupção. Quanto a mim, porém, a explico de uma forma mais simples,<br />

a saber, que é costumeiro no diabo falar falsidade, e que ele nada<br />

mais conhece senão engendrar corrupções, fraudes e ilusões. E, no<br />

entanto, com razão inferimos dessas palavras que no diabo este vício<br />

é inerente, e que, embora lhe seja peculiar, pode-se dizer também que


382 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

o mesmo lhe é acidental, porque, enquanto Cristo faz com que o diabo<br />

seja o inventor da mentira, evidentemente o separa de Deus, e até mesmo<br />

o declara contrário a Deus. Pois ele é mentiroso e o pai da mentira.<br />

O termo pai tem o mesmo objetivo que a afirmação anterior, pois a<br />

razão por que se diz que Satanás é o pai da falsidade é porque ele é<br />

alienado de Deus, unicamente em quem a verdade habita, e de quem<br />

ela emana como de uma única fonte.<br />

45. Mas porque eu falo a verdade. Ele confirma a afirmação<br />

anterior, porque, visto que não possuem nenhuma outra razão para<br />

opor-se, senão porque a verdade lhes é odiosa e intolerável, mostram<br />

claramente que são filhos de Satanás.<br />

[8.46-50]<br />

Quem dentre vós me convence de pecado? E se eu falo a verdade,<br />

por que não me credes? Aquele que é de Deus ouve as<br />

palavras de Deus, vós não as ouvis, porque não sois de Deus.<br />

Os judeus, pois responderam e lhe disseram: Não dissemos<br />

bem que és samaritano e tens demônio? Respondeu Jesus:<br />

Eu não tenho demônio, porém honro a meu Pai, e vós me tendes<br />

desonrado. Eu, porém não busco minha própria glória, há<br />

quem a busque e a julgue. 36<br />

46. Quem dentre vós? Esta pergunta procede da confiança perfeita,<br />

porque, sabendo que eles não podiam com justiça apresentar<br />

alguma censura contra ele, ele se gloria sobre seus inimigos, como<br />

já havendo obtido a vitória. E, no entanto, ele não diz que está livre<br />

de suas calúnias, porque, embora não tivessem razão para acusá-<br />

-lo, contudo não cessavam de derramar suas calúnias sobre Cristo,<br />

ele, porém, quer dizer que nele não habita nenhum delito. E tal é o<br />

conteúdo da palavra grega, ἐλέγχειν, que os latinos usam coarguere<br />

(convencer), quando uma pessoa está convicta de um fato. Quem<br />

dentre vós me convence de pecado? Não obstante, estão equivoca-<br />

36 “Il y a qui la cherche, et qui en juge”.


Capítulo 8 • 383<br />

dos os que pensam que Cristo aqui assevera sua plena inocência,<br />

só porque unicamente ele excede a todos os homens, no que tange<br />

ser ele o Filho de Deus. Pois esta defesa deve restringir-se ao que<br />

pertence a esta passagem, como se ele tivesse asseverado que nada<br />

podia ser apresentado para provar que ele não era um servo fiel de<br />

Deus. De igual modo Paulo também se gloria de que ele não tem qualquer<br />

consciência de crime [1Co 4.4], pois isso não se estende a toda<br />

a vida, mas somente no que concerne à defesa de sua doutrina e<br />

apostolado. Portanto, está fora de contexto especular, como fazem<br />

alguns, sobre a perfeição da justiça que pertence tão-somente ao<br />

Filho de Deus, visto que o único objetivo que ele tinha em vista é<br />

imprimir autoridade a seu ministério, como claramente transparece<br />

do que se segue, pois ele novamente adiciona imediatamente: Se eu<br />

falo a verdade, por que não me credes? Do que inferimos que Cristo<br />

está antes defendendo sua doutrina, e não sua pessoa.<br />

47. Aquele que é de Deus. Como ele tem pleno direito de tomar<br />

isso como admitido, ou seja, que ele é o embaixador do Pai celestial, e<br />

que ele cumpre fielmente o ofício que lhe foi confiado, em seu íntimo<br />

acende uma indignação mais forte contra eles, porquanto sua impiedade<br />

não mais se dissimulava, visto serem obstinados demais em rejeitar<br />

a Palavra de Deus. Ele mostrara que não podiam apresentar algo de concreto<br />

do que ensinara que não procedesse dos lábios de Deus. Portanto,<br />

ele conclui que nada tinham em comum com Deus, porque não davam<br />

ouvidos à Palavra de Deus, 37 e, sem dizer algo mais sobre si mesmo, ele<br />

os acusa de fazerem guerra contra Deus. Além disso, nesta passagem<br />

somos instruídos que não há um sinal mais evidente de uma mente réproba<br />

do que quando alguém não pode suportar a doutrina de Cristo,<br />

ainda quando, em outros aspectos, ela resplandecia com santidade angelical,<br />

como se, ao contrário, abraçando essa doutrina efusivamente,<br />

tivéssemos o que poderíamos chamar selo visível de nossa eleição. Porque<br />

aquele que possui a Palavra desfruta do próprio Deus, mas aquele<br />

37 “Ils n’oyent point les paroles de Dieu”.


384 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

que a rejeita se exclui da justiça e da vida. Por isso, não há nada que<br />

devamos temer tanto do que cair sob uma sentença tão terrível.<br />

48. Não dizemos bem? Revelam-se mais e mais quão profundamente<br />

estão entorpecidos por Satanás, pois, ainda que estejam<br />

plenamente convictos, todavia se acham enraivecidos e não se envergonham<br />

de revelar que estão completamente desesperados. 38 Além<br />

disso, embora lancem uma dupla reprimenda contra Cristo, contudo<br />

nada mais querem fazer senão dizer umas poucas palavras, que ele é<br />

um homem detestável e que está agindo movido por um espírito perverso.<br />

Os judeus consideravam os samaritanos como sendo apóstatas<br />

e corruptores da lei. Portanto, sempre que desejavam estigmatizar um<br />

homem com infâmia, chamam-no samaritano. Portanto, não achando<br />

em Cristo nenhum crime mais hediondo, lançam mão ao léu e sem<br />

qualquer ponderação desse sarcasmo vulgar. Para expressá-lo em<br />

poucas palavras, notamos que o amaldiçoam afrontosamente, como<br />

os homens costumam fazer quando enfurecidos como cães raivosos<br />

não conseguem encontrar algo a dizer.<br />

49. Eu não tenho demônio. Ele ignora a primeira acusação e se<br />

exime apenas da segunda. Há alguns que pensam que ele agiu assim<br />

em virtude de haver desconsiderado o insulto dirigido a sua pessoa,<br />

e simplesmente empreendeu a defesa da doutrina. Em minha opinião,<br />

tais pessoas estão equivocadas, pois não é provável que os judeus<br />

fossem tão ingênuos em distinguir entre a vida e a doutrina do Senhor<br />

Jesus. 39 Além disso, a aversão por este nome se originou, por assim<br />

dizer, desta circunstância: os samaritanos, sendo perversos e degenerados<br />

observadores da lei, tinham se aviltado por muitas superstições<br />

e corrupções, e tinham contaminado todo o culto divino através de<br />

invenções estranhas. Agostinho inventa alegorias e diz que Cristo não<br />

recusou ser chamado samaritano por ser um genuíno guardião de seu<br />

rebanho. A intenção de Cristo, porém, parece-me ter sido diferente,<br />

pois visto que as duas censuras lançadas sobre ele tivessem o mesmo<br />

objetivo, ao refutar uma, ele refuta a outra, aliás, se a questão for<br />

38 “Neantmoins, ils sont enragez, et n’ont pointe honte de se monstrer du tout desesperez”.<br />

39 “Du Seigneur Jesus”.


Capítulo 8 • 385<br />

devidamente considerada, o insultaram mais gravemente chamando-o<br />

samaritano do que chamando-o endemoninhado. Mas, como eu já afirmei,<br />

Cristo se satisfaz com uma simples refutação, a qual ele extrai do<br />

que é contrário, quando assevera que trabalha para promover a honra<br />

de seu Pai, pois aquele que devida e sinceramente o honrar será guiado<br />

pelo Espírito de Deus e será um fiel servo de Deus.<br />

Vós me tendes desonrado. Esta sentença pode ser explicada<br />

como se fosse uma queixa de Cristo, a saber, que ele não recebe a honra<br />

que lhe é devida por promover ele a glória de Deus. Creio, porém,<br />

que ele está olhando muito mais alto, e conecta a glória do Pai com a<br />

sua, desta maneira: “Eu nada reivindico para mim mesmo que vise à<br />

glória de Deus, pois sua majestade brilha em mim, seu poder e autoridade<br />

habitam em mim, e, portanto, quando me tratais de forma tão<br />

desdenhosa, estais derramando desprezo sobre Deus mesmo”. Portanto,<br />

imediatamente ele adiciona que Deus se vingará desse insulto. Pois<br />

poderiam ter alegado que ele era ambicioso, se não tivesse testificado<br />

que não procedia de sentimentos pessoais de natureza carnal que se<br />

preocupasse da honra ou do desprezo demonstrado a si próprio, mas<br />

no que diz respeito à honra ou desprezo lançado sobre Deus. Além<br />

disso, ainda que estejamos muitíssimo distantes de Cristo, que cada<br />

de nós se convença plenamente de que, se aspirar sinceramente promover<br />

a glória de Deus, descobrirá que Deus assegurou-se para si de<br />

abundante enaltecimento, porque sempre nos convenceremos de ser<br />

verdadeiro aquele dito: Os que me honram, eu os honrarei [1Sm 2.30].<br />

Se os homens não só o desprezam, mas ainda o cumulam de reproches,<br />

então que aguardem calmamente a chegada do dia do Senhor.<br />

[8.51-55]<br />

Em verdade, em verdade eu vos digo: Se alguém guardar minha<br />

palavra, jamais verá a morte. Por isso os judeus lhe disseram:<br />

Agora sabemos que tens demônio. 40 Abraão está morto, e [também]<br />

os profetas, e tu dizes: Se alguém guardar minha palavra,<br />

40 “Que tu as le diable”.


386 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

jamais provará a morte. És tu maior que nosso pai Abraão, que<br />

está morto? Os profetas também estão mortos. Quem te fazes<br />

ser? Respondeu Jesus: Se eu me glorifico, minha glória nada é, é<br />

meu Pai quem me glorifica, de quem dizeis ser vosso Pai. E vós<br />

não o conheceis, eu, porém, o conheço. E se eu disser que não<br />

o conheço, serei mentiroso como vós, eu, porém, o conheço e<br />

guardo sua palavra.<br />

51. Em verdade, em verdade vos digo. Inquestionavelmente,<br />

Cristo sabia que algumas pessoas naquela multidão eram curáveis, e<br />

que outras dentre ela não se opunham a sua doutrina. Por essa razão,<br />

ele pretendia terrificar os perversos cuja malícia era encarniçada, mas<br />

que age de uma maneira tal que deixa base de consolação para os<br />

bem intencionados, ou atrai a si os que ainda não estavam totalmente<br />

arruinados. Portanto, seja quem for que nutra aversão pela Palavra de<br />

Deus, o papel do mestre fiel é empregar todo seu esforço para reprovar<br />

os perversos, mas deve também comunicar a doutrina da salvação<br />

aos filhos de Deus e esmerar-se em conduzi-los à formação de conceitos<br />

sadios, caso algum deles não seja totalmente incurável. Portanto,<br />

nesta passagem Cristo promete a seus discípulos a vida eterna, porém<br />

demanda dos discípulos não só que fiquem em alerta, ou que professem<br />

com os lábios que aprovam sua doutrina, mas que conservem sua<br />

doutrina como um precioso tesouro. Ele diz que jamais verão a morte,<br />

porque, quando a fé vivifica a alma do homem, a aguilhão da morte já<br />

foi extraído e sua peçonha, removida, e portanto não pode mais desferir<br />

uma ferida mortal.<br />

52. Agora sabemos. Os réprobos persistem em sua estupidez e<br />

não se deixam abalar por promessas, e tampouco por ameaças, de<br />

modo que não podem ser levados nem atraídos a Cristo. Há os que<br />

pensam que eles caluniosamente desvirtuam as palavras dele fazendo<br />

uso da expressão: provar a morte, a qual Cristo não usou, mas isso<br />

me parece sem fundamento. Antes creio que ambas as frases, provar<br />

a morte e ver a morte, eram usadas pelos hebreus no mesmo sentido,


Capítulo 8 • 387<br />

isto é, morrer. Eles, porém, são falsos intérpretes neste aspecto, ou<br />

seja, aplicam a doutrina espiritual de Cristo ao corpo. Nenhum crente<br />

verá a morte, porque os crentes, havendo já renascido de semente incorruptível<br />

[1Pe 1.23], vivem mesmo estando mortos, porque, unidos<br />

com Cristo, sua Cabeça, não podem ser extintos pela morte [física],<br />

porque a morte é para eles uma passagem para o reino celestial, visto<br />

que o Espírito, neles habitando, é vida por causa da justiça [Rm 8.10],<br />

até que ele traga tudo quanto pertence à morte. Aqueles homens,<br />

porém, sendo carnais, não podem perceber qualquer livramento da<br />

morte, a menos que ela se manifeste no corpo. E é uma enfermidade<br />

tão comum no mundo que a maioria dos homens quase não nutrem<br />

qualquer preocupação pela graça de Cristo, visto que a julgam apenas<br />

por sua percepção carnal. Para que a mesma coisa não nos suceda,<br />

devemos manter nossas mentes em alerta, para que discirnamos bem<br />

a vida espiritual no meio da morte.<br />

53. És tu maior que nosso pai Abraão? Esta é outra ofensa<br />

que empreenderam com o fim de obscurecer a glória de Cristo, lançando<br />

mão do esplendor de Abraão e dos santos. Mas como todas<br />

as estrelas são precipitadas à sombra pelo esplendor do sol, assim<br />

toda a glória que porventura seja vista em todos os santos se<br />

desvanece diante do incomparável esplendor de Cristo. Portanto,<br />

agem injusta e absurdamente quando contrastam os santos com<br />

o Senhor, e ainda agem impropriamente em relação a Abraão e os<br />

profetas, usando mal seu nome em oposição ao de Cristo. Esta perversidade,<br />

porém, tem prevalecido em quase toda época, e ainda<br />

prevalece atualmente, ou seja: homens perversos, confundindo as<br />

obras de Deus, o fazem parecer contradizer-se a si mesmo. Deus se<br />

glorifica por meio dos apóstolos e mártires, os papistas arquitetam<br />

para si ídolos dos apóstolos e mártires a fim de ocuparem o lugar<br />

de Deus, e dessa forma não manufaturam instrumentos dos próprios<br />

favores divinos com o fim de destruir seu poder? Pois quão<br />

pouco resta para Deus ou para Cristo, se os santos possuem tudo<br />

quanto os papistas tão profusamente lhes outorgam! Por isso é pre-


388 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

ciso que saibamos que toda a ordem do reino de Deus é destruída,<br />

a menos que os profetas, apóstolos, e tudo o que se pode chamar<br />

santo, sejam postos muito abaixo de Cristo, para que tão-somente<br />

ele seja mantido em soberana posição. E de fato não podemos falar<br />

dos santos com mais respeito do que quando os pomos abaixo<br />

de Cristo. Os papistas, porém, ainda que enganem os ignorantes,<br />

vangloriando-se de que são os fiéis admiradores dos santos, dirigem<br />

insultos a Deus e aos próprios santos, porque, designando-lhes<br />

uma condição de soberania, reduzem a Cristo ao mesmo nível com<br />

eles. Aliás, caem em duplo erro, porque, em doutrina, preferem os<br />

santos a Cristo, e porque, vestindo-se com os despojos de Cristo,<br />

privam-no de quase todo seu poder.<br />

54. Se eu me glorifico. Antes de responder a uma comparação tão<br />

injusta, ele começa dizendo que não busca sua própria glória, e assim<br />

rebate sua calúnia. Se alguém objetar, dizendo que Cristo também se<br />

glorificou, a resposta é fácil, a saber, ele agiu assim, não como homem,<br />

mas pela diretriz e autoridade de Deus. Pois aqui, como em muitas<br />

outras passagens, ele distingue entre si mesmo e Deus, à guisa de concessão.<br />

Em suma, ele declara que não deseja qualquer outra glória<br />

senão a que lhe foi outorgada pelo Pai. Com estas palavras somos instruídos<br />

que, quando Deus glorifica a seu Filho, ele não permitirá que o<br />

mundo o odeie ou o despreze 41 impunemente.<br />

Entrementes, as vozes que ecoam do céu – Beijai o Filho [Sl 2.12],<br />

que todos os anjos o adorem [Hb 1.6], que todo joelho se dobre diante<br />

dele [Fp 2.10], ouvi-o [Mt 17.5], que os gentios o busquem [Rm 15.11], e<br />

que toda carne se humilhe – devem encorajar profundamente os crentes<br />

a render a Cristo honra e reverência. Com estas palavras somos<br />

também lembrados que toda a honra que os homens granjeiam para<br />

si é trivial e sem valor. Quão cega, pois, é a ambição, quando labutamos<br />

tão ansiosamente por nada! Mantenhamos, pois, continuamente<br />

diante de nossos olhos aquela palavra de Paulo: “Pois não é aprovado<br />

41 “En haine et mespris”.


Capítulo 8 • 389<br />

aquele que a si mesmo se louva, mas, sim, aquele a quem o Senhor<br />

louva” [2Co 10.18]. Além disso, visto que somos destituídos da glória<br />

de Deus, aprendamos a nos gloriar somente em Cristo, até onde por<br />

sua graça ele nos faz participantes de sua glória.<br />

De quem dizeis ser ele vosso Deus. Ele arranca deles a falsa máscara<br />

do nome de Deus que costumavam empregar. “Eu sei”, diz ele,<br />

“quão presunçosamente vos jactais de ser o povo de Deus, pois esse<br />

vos é um falso título, porque não conheceis a Deus”. Daí também aprendermos<br />

qual é a verdadeira e legítima 42 profissão de fé. Ela é aquele<br />

elemento que procede do genuíno conhecimento. E donde vem tal<br />

conhecimento, senão da Palavra? Consequentemente, todos quantos<br />

se gloriam do nome de Deus sem a Palavra de Deus são meros mentirosos.<br />

Não obstante, à audácia deles Cristo opõe a segurança de sua<br />

consciência, e assim todo servo de Deus deve estar preparado em seu<br />

coração para se satisfazer unicamente com isto: que Deus está a seu<br />

lado, ainda que o mundo inteiro se erga contra ele. Assim, outrora os<br />

profetas e apóstolos possuíam coragem e magnanimidade invencíveis,<br />

os quais permaneceram firmes contra os terríveis ataques do mundo<br />

inteiro, porque conheciam aquele por quem foram enviados. Mas<br />

quando o sólido conhecimento de Deus está ausente, nada mais resta<br />

para sustentar-nos.<br />

E se eu disser que não o conheço. Com esta sentença Cristo testifica<br />

que a necessidade de seu ofício o constrange a falar, porque o<br />

silêncio seria uma traiçoeira negação da verdade. Eis aqui uma notável<br />

afirmação: Deus se nos revela com este propósito: para que confessemos<br />

diante dos homens a fé que temos em nossos corações, quando<br />

se fizer necessário. Pois ela deve poderosamente desferir terror em<br />

nossas mentes, para que, aqueles que agem hipocritamente, com o fim<br />

de agradar a homens, e ou negam a verdade de Deus ou a desfiguram<br />

por interpretações perversas, são não só amavelmente reprovados,<br />

mas são enviados de volta aos filhos do diabo.<br />

42 “La vraye et legitimo profession”.


390 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

[8.56-59]<br />

Vosso pai Abraão exultou quando viu meu dia, ele o viu e se<br />

regozijou. Disseram-lhe, pois, os judeus: Ainda não tens cinquenta<br />

anos, e viste a Abraão? Disse-lhes Jesus: Em verdade,<br />

em verdade eu vos digo: Antes que Abraão existisse, eu sou.<br />

Então apanharam pedras para atirar nele, Jesus, porém, se<br />

ocultou, e se retirou do templo.<br />

56. Vosso pai Abraão. Ele lhes concede, apenas em palavras, o<br />

que previamente tirara deles, a saber, que Abraão é o pai deles. Mostra,<br />

porém, quão fútil é a objeção extraída do nome de Abraão. “Ele<br />

não teve outro objetivo”, diz ele, “durante toda sua vida, senão ver o<br />

florescimento de meu reino. Ele aspirava por mim enquanto eu estava<br />

ausente, vós me desprezais, enquanto estou presente”. O que Cristo<br />

aqui assevera concernente só a Abraão se aplica a todos os santos.<br />

Esta doutrina, porém, tem maior peso na pessoa de Abraão, porque<br />

ele é o pai de toda a Igreja. Quem, pois, deseja ser incluído no número<br />

dos santos, então que se regozije, o quanto pode e deve, na presença<br />

de Cristo, pela qual Abraão ardentemente anelava.<br />

Exultou quando viu meu dia. O verbo exultar expressa um veemente<br />

zelo 43 e ardente afeto. Agora devemos fornecer o contraste. Ainda que<br />

o conhecimento de Cristo fosse ainda extremamente obscuro, Abraão<br />

se viu inflamado por tão forte desejo, que preferiu o desfruto dele a<br />

tudo quanto lhe parecesse desejável. Quão vil, pois, é a ingratidão dos<br />

que o desprezam e o rejeitam, quando ele lhes é claramente oferecido!<br />

O termo dia, nesta passagem, não denota eternidade (como pensava<br />

Agostinho), mas o tempo do reino de Cristo, quando ele aparecesse no<br />

mundo vestido com carne, para cumprir o ofício de Redentor.<br />

Mas agora vem a lume a pergunta: Como Abraão visualizou, mesmo<br />

com os olhos da fé, a manifestação de Cristo? Porque isso não<br />

parece harmonizar-se com outra afirmação de Cristo: Muitos reis e pro-<br />

43 “Un vehement zele”.


Capítulo 8 • 391<br />

fetas quiseram ver as coisas que vedes, e, contudo, não as viram [Lc<br />

10.24]. Respondo, dizendo que a fé tem seus graus na contemplação de<br />

Cristo. Assim os antigos profetas contemplaram a Cristo à distância,<br />

como lhes fora prometido, e, contudo, não lhes foi permitido vê-lo presente,<br />

quando se fez familiar e plenamente visível, vindo a eles do céu.<br />

Além disso, somos ensinados, com estas palavras, que, como<br />

Deus não frustrou o desejo de Abraão, assim ele agora não permitirá<br />

que alguém aspire a Cristo sem a obtenção de algum bom fruto que<br />

corresponda a seu santo anelo. A razão por que ele não outorga a<br />

muitos desfrutarem dele é esta: a perversidade dos homens, porque<br />

poucos o desejam. A alegria de Abraão testifica que ele considerava o<br />

conhecimento do reino de Cristo como um tesouro incomparável, e a<br />

razão pela qual somos informados que ele se regozijou quando viu o<br />

dia de Cristo é para que saibamos que nada havia que ele mais sublimemente<br />

valorizasse. Todos os crentes, porém, recebem este fruto de<br />

sua fé: sentindo-se satisfeitos unicamente com Cristo, em quem vivem<br />

plena e completamente felizes e abençoados, sua consciência se acalma<br />

e se regozija. E deveras ninguém conhece a Cristo corretamente, a<br />

menos que ele lhe conceda a honra de confiar inteiramente nele.<br />

Outros a explicam neste sentido: que Abraão, estando já morto,<br />

desfrutou da presença de Cristo quando ele apareceu ao mundo, e<br />

assim diferenciam o tempo de desejar e o tempo de ver. É de fato verdade<br />

que a vinda de Cristo foi manifestada aos santos espíritos depois<br />

da morte, de cuja vinda mantiveram em expectativa durante toda sua<br />

vida. Não sei se uma exposição tão refinada se harmoniza com as palavras<br />

de Cristo.<br />

57. Ainda não tens cinquenta anos. Tudo fazem por refutar a<br />

afirmação de Cristo, mostrando que ele asseverava o que era impossível,<br />

visto que ainda não tinha cinquenta anos de idade e se faz igual a<br />

Abraão que havia morrido há muitos séculos antes. Embora Cristo ainda<br />

não contasse trinta e quatro anos de idade, contudo lhe permitem<br />

ser um pouco mais velho, para que não parecessem ser rígidos e exatos<br />

demais ao tratar com ele. Como se quisessem dizer: “Certamente


392 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

não te farás tão velho, embora estejas se gloriando de já ter cinquenta<br />

anos de idade”. Por conseguinte, os que conjeturam que ele parecesse<br />

mais velho do que realmente era, ou que os anos mencionados nesta<br />

passagem não fossem anos solares, em ambos os casos lutam sem<br />

qualquer propósito. A noção dos papistas que dizem que Cristo viveu<br />

mais de quarenta anos em hipótese alguma pode ser admitida.<br />

58. Antes que Abraão existisse. Visto que os incrédulos julgam só<br />

à luz da aparência da carne, Cristo os lembra que ele possui algo maior<br />

e mais elevado que a mera aparência humana, que se acha oculto dos<br />

sentidos da carne e só é percebido pelos olhos da fé, e que, neste<br />

aspecto, ele pôde ser visto pelos santos pais antes mesmo que se manifestasse<br />

na carne. Mas ele usa verbos diferentes. Antes que Abraão<br />

existisse, 44 ou: Antes que Abraão nascesse, 45 Eu sou. 46 Com estas palavras,<br />

porém, ele se exclui da classe ordinária dos homens e reivindica<br />

para si um poder mais que humano, 47 poder esse celestial e divino,<br />

cuja percepção atingiu desde o princípio do mundo por todas as eras.<br />

Não obstante, essas palavras podem ser explicadas de duas maneiras.<br />

Há os que pensam que isso se aplica simplesmente à Deidade<br />

eterna de Cristo, e a compara com aquela passagem nos escritos de<br />

Moisés: Eu Sou o que Sou [Ex 3.14]. Eu, porém, a estendo muito mais,<br />

porque o poder e graça de Cristo, quanto a ser ele o Redentor do mundo,<br />

era comum a todas as eras. Portanto, ela se harmoniza com o dito<br />

do apóstolo: Cristo, ontem, hoje e para sempre [Hb 13.8]. Porque o contexto<br />

parece demandar esta interpretação. Anteriormente ele disse<br />

que Abraão anelava por ver seu dia com um ardente desejo, e visto<br />

que isso para os judeus parecia inacreditável, ele acrescenta que ele<br />

mesmo também existia naquele tempo. A razão assinalada não parecerá<br />

suficientemente forte, se não entendermos que ele ainda foi então<br />

44 “Avant qu’Abraham fust”.<br />

45 “Priusquam Abraham nasceretur”.<br />

46 πρὶν Αβραὰμ γενέσθαι, ἐγώ εἰμι. A ideia do Autor, à qual ele meramente alude, parece<br />

ser que, em vez de dizer: ἐγὼ ἐγενόμνη, ou ἐγὼ γίνομαι, Cristo intencionalmente disse:<br />

ἐγώ εἰμι, porque o verbo εἰμῖ, estando contrastado com γενέσθαι, comunica a ideia de<br />

existência não derivada.<br />

47 “Une vertu plus qu’humanine”.


Capítulo 8 • 393<br />

reconhecido como o Mediador, por meio de quem Deus seria apaziguado.<br />

E, contudo, a eficácia que pertencia, em todas as eras, à graça do<br />

Mediador dependia de sua eterna Deidade, de modo que este dito de<br />

Cristo contém um extraordinário testemunho de sua essência divina.<br />

Devemos ainda observar a solene forma de juramento: Em verdade,<br />

em verdade. Tampouco reprovo a opinião de Crisóstomo, de que<br />

o tempo do verbo é enfático, pois ele não diz: Eu fui, mas Eu sou, pelo<br />

quê ele denota uma condição invariavelmente a mesma do princípio<br />

ao fim. E ele não diz: Antes que Abraão fosse, mas Antes que Abraão<br />

existisse, o que implica que Abraão teve um princípio.<br />

59. Então apanharam pedras. Há razão para crer que fizeram<br />

isso em decorrência de Cristo dever ser apedrejado conforme a injunção<br />

da lei [Lv 24.16]. Daí inferirmos quão grande é a demência do<br />

zelo inconsiderado, pois não quiseram ouvir sobre a causa, senão<br />

que já tinham as mãos prontas a cometer homicídio. Não tenho dúvida<br />

de que Cristo se livrou por seu poder secreto, não obstante, sob<br />

a aparência de uma humilde condição, pois ele não pretendia fazer<br />

uma clara exibição de sua deidade sem deixar algo para a debilidade<br />

humana. Algumas cópias trazem as palavras: E assim Jesus passou<br />

por entre eles, as quais Erasmo com razão considera tomadas por<br />

empréstimo do <strong>Evangelho</strong> de Lucas [4.30]. Merece ainda nota que<br />

os sacerdotes e escribas perversos, depois de haver banido Cristo,<br />

em quem habita toda a plenitude da Deidade [Cl 2.9], retêm a posse<br />

do templo externo, porém são grandemente enganados quando<br />

concluem que possuíam um templo no qual Deus não habita. Esse é<br />

o curso seguido hoje pelo papa e seus seguidores. Depois de haver<br />

banido a Cristo, e dessa forma profanaram a Igreja, nesciamente se<br />

gloriam no falso disfarce de Igreja.


Capítulo 9<br />

[9.1-5]<br />

E Jesus, passando, viu um homem cego de nascença. E seus<br />

discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este<br />

homem ou seus pais, para que nascesse cego? Respondeu Jesus:<br />

Nem este homem pecou, nem seus pais, mas para que as<br />

obras de Deus se manifestassem nele. Devo realizar as obras<br />

daquele que me enviou, enquanto é dia, a noite vem, quando<br />

ninguém pode trabalhar. Enquanto estou no mundo, eu sou a<br />

luz do mundo.<br />

1. Jesus viu um homem cego. Neste capítulo, o evangelista descreve<br />

a restauração da vista a um homem cego, ao mesmo tempo<br />

combinando uma doutrina com o fim de realçar o fruto do milagre.<br />

De nascença. Esta circunstância faz uma exibição adicional do poder<br />

de Cristo, porque a cegueira que ele trazia desde o ventre materno,<br />

e que tinha suportado até a chegada da idade adulta, não podia ser<br />

curada por medicamentos humanos. Isso propicia aos discípulos<br />

ocasião de compor uma pergunta: Este castigo era proveniente do<br />

pecado de quem?<br />

2. Rabi, quem pecou, este homem, ou seus pais? Em primeiro<br />

lugar, visto que as Escrituras testificam que todos os sofrimentos aos<br />

quais a raça humana está sujeita são procedentes do pecado, sempre<br />

que vemos alguma pessoa em estado desditoso não conseguimos evitar<br />

que um pensamento invada imediatamente nossas mentes, a saber, que


396 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

as aflições que sobrevêm pesadamente sobre ela são castigos infligidos<br />

pela mão divina. Aqui, porém, comumente erramos de três formas.<br />

Eis o primeiro erro: enquanto cada ser humano está pronto a censurar<br />

outrem com extrema mordacidade, há poucos que aplicam a si<br />

mesmos, como se deve fazer, a mesma severidade. Se meu irmão tem<br />

um encontro com a adversidade, instantaneamente reconheço o juízo<br />

divino, mas se Deus me castiga com um golpe mais pesado, eu fecho<br />

os olhos para meus pecados. Ao considerar os castigos, porém, cada<br />

um deve começar por sua própria pessoa, e ser menos piedoso para<br />

consigo mesmo do que para com outrem. Portanto, ser quisermos ser<br />

juízes cândidos nesta matéria, aprendamos a ser rápidos em discernir<br />

nossos próprios males do que os males de outrem.<br />

O segundo erro está na excessiva severidade. Nem bem uma pessoa<br />

foi tocada pela mão divina e já concluímos que isso é suficiente<br />

prova de ódio mortal, e convertemos pequenas ofensas em crimes e<br />

quase perdemos a esperança de sua salvação. Ao contrário disso, ao<br />

atenuarmos nossos pecados, raramente pensamos que cometemos as<br />

mesmas pequenas ofensas, quando estamos cometendo um crime extremamente<br />

grave.<br />

O terceiro erro é quando falhamos neste aspecto: pronunciamos<br />

condenação sobre todos, sem exceção, aos quais Deus visita<br />

com a cruz ou com tribulação. 1 O que acabamos de dizer é indubitavelmente<br />

real, a saber, que todas nossas aflições são oriundas do<br />

pecado, Deus, porém, aflige seu povo por várias razões. Pois visto<br />

que há algumas pessoas cujos delitos ele não castiga neste mundo,<br />

mas cujo castigo ele prorroga até a vida futura, a fim de que ele as<br />

aflija com tormentos muito mais terríveis, assim ele frequentemente<br />

trata seu povo crente com maior severidade, não porque tenham<br />

pecado mais gravemente, mas para que mortifiquem os pecados da<br />

carne para o futuro. Algumas vezes ele também não leva em conta<br />

seus pecados, mas apenas prova sua obediência, ou os treina na<br />

1 “Par croix ou tribulation”.


Capítulo 9 • 397<br />

paciência, como vemos o caso do santo Jó – homem justo, e que<br />

era temente a Deus, 2 e que se torna o mais miserável de todos os<br />

homens. E, no entanto, não é por causa de seus pecados que é dolorosamente<br />

afligido, senão que o propósito divino era diferente,<br />

a saber, para que sua piedade fosse mais plenamente certificada<br />

inclusive na adversidade. Portanto, são falsos intérpretes os que<br />

asseveram que todas as aflições, sem qualquer distinção, são enviadas<br />

em decorrência de pecados, como se a medida de castigos<br />

fosse igual, ou como se Deus nada mais considerasse ao castigar os<br />

homens além daquilo que cada um merece.<br />

Por isso, aqui há duas coisas que devem ser observadas: que o<br />

juízo começa, na maioria das vezes, na casa de Deus [1Pe 4.17], e, consequentemente,<br />

enquanto passa por alto os perversos, ele castiga seu<br />

próprio com severidade, quando este o ofende, e que, ao corrigir as<br />

atitudes pecaminosas da Igreja, seus açoites são muito mais severos.<br />

Em seguida devemos observar que há várias razões pelas quais ele<br />

aflige os homens, pois ele entregou Pedro e Paulo nas mãos do executor,<br />

como se fossem os mais perversos ladrões. Daí inferirmos que<br />

nem sempre podemos pôr nosso dedo nas causas do castigo que os<br />

homens têm de suportar.<br />

Quando os discípulos, seguindo a opinião popular, formulam a<br />

pergunta, que tipo de pecado era aquele que o Deus do céu castigava<br />

mesmo antes que esse homem nascesse, sua opinião não é tão absurda<br />

como quando perguntam se ele havia pecado antes de nascer. E, no<br />

entanto, esta pergunta, por mais absurda que seja, foi extraída de uma<br />

opinião popular que prevalecia naquele tempo, pois é bem evidente,<br />

à luz de outras passagens bíblicas, que eles criam na transmigração<br />

(μετεμψύχωσις) de que sonhava Pitágoras, ou que as almas passavam<br />

de um corpo para outro. 3 Com isso notamos que a curiosidade dos homens<br />

é um labirinto excessivamente profundo, especialmente quando<br />

se lhe acrescenta presunção. Notavam que alguns nasciam aleijados,<br />

2 “Homme juste, et craignant Dieu”.<br />

3 “Que les ames passoyent d’un corps en l’autre”.


398 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

outros, estrábicos, outros, totalmente cegos, e ainda outros, com um<br />

corpo deformado, mas em vez de reverenciarem, como se deve fazer,<br />

os juízos secretos de Deus, queriam ter uma razão concreta em suas<br />

obras. E assim, através de sua temeridade caíam naquelas estultícias<br />

pueris, chegando a crer que a alma, quando tiver completado o ciclo<br />

da vida, se transmigra para um novo corpo, e aí suporta o castigo devido<br />

àquela vida que já passou. Tampouco os judeus de nossos dias<br />

se envergonham de proclamar esse sonho pueril em suas sinagogas,<br />

como se o mesmo fosse uma revelação celestial.<br />

Por esse exemplo somos instruídos que devemos munir-nos de<br />

excessiva prudência para não impor nossas inquirições aos juízos<br />

divinos além da medida da sobriedade, para que as divagações e erros<br />

de nosso entendimento não nos apressem nem nos mergulhem<br />

em terríveis abismos. Era realmente monstruoso que um erro tão<br />

grosseiro encontrasse guarida no seio do povo eleito de Deus, em<br />

cujo seio a luz da sabedoria celestial foi acesa pela Lei e pelos Profetas.<br />

Mas se Deus castigou tão severamente sua presunção, nada nos<br />

é melhor, ao considerarmos as obras de Deus, que esta modéstia:<br />

quando a razão delas está oculta, nossas mentes se prorrompem<br />

em admiração e nossas línguas imediatamente exclamarão: “Tu és<br />

justo, ó Senhor, e teus juízos são retos, ainda que não sejam compreendidos”.<br />

Não é sem razão que os discípulos formulassem a pergunta: Seus<br />

pais pecaram? Pois ainda que o filho inocente não seja punido pelo<br />

erro de seus pais, senão que a alma que pecar, também morrerá [Ez<br />

18.20], contudo não é uma ameaça fútil que o Senhor lance os crimes<br />

dos pais no regaço dos filhos, e os vinga até a terceira e quarta geração<br />

[Êx 20.5]. E assim com frequência sucede que a ira de Deus repousa<br />

sobre uma casa durante muitas gerações, e visto que ele abençoa os<br />

filhos dos crentes em virtude de seus pais, assim ele também rejeita<br />

uma prole perversa, destinando os filhos, com um castigo justo, à mesma<br />

ruína de seus pais. Tampouco pode alguém queixar-se, por essa<br />

conta, que é injustamente punido por conta do pecado de outra pes-


Capítulo 9 • 399<br />

soa, pois onde a graça do Espírito está ausente, como diz o provérbio, 4<br />

de aves daninhas só pode provir ovos ruins. Isso propiciou aos apóstolos<br />

dúvida se o Senhor castigava no filho algum crime de seus pais.<br />

3. Este não pecou, nem seus pais. Cristo absolutamente não diz<br />

que o cego, e seus pais, estavam isentos de toda culpa, mas declara<br />

que não devemos buscar no pecado a causa da cegueira. E isto é o<br />

que já dissemos, ou seja: que Deus às vezes tem outro objetivo em vista<br />

além de castigar os pecados humanos, quando lhes envia aflições.<br />

Consequentemente, quando as causas das aflições são secretas, devemos<br />

restringir a curiosidade, para que não desonremos a Deus nem<br />

sejamos maliciosos para com nossos irmãos. Portanto, Cristo assinala<br />

outra razão. Este homem, diz ele, nasceu cego<br />

Para que as obras de Deus se manifestassem nele. Ele não usa<br />

o singular, obra, mas o plural, obras, porque, no que diz respeito a ser<br />

cego, fora exibida nele uma prova da severidade de Deus, da qual outros<br />

pudessem aprender a temer e a humilhar-se. Ela foi seguida pelo benefício<br />

de sua cura e livramento, 5 nos quais a espantosa benevolência<br />

divina foi extraordinariamente exibida. Assim, pois, Cristo tencionava,<br />

com essas palavras, exercitar em seus discípulos a expectativa de um<br />

milagre, ao mesmo tempo, porém, os lembra, de uma maneira geral,<br />

que isso seria sobejamente exibido no teatro do mundo, como sendo a<br />

causa genuína e legítima, quando Deus glorifica seu nome. Tampouco<br />

têm os homens algum direito de queixar-se de Deus quando ele os faz<br />

os instrumentos de sua glória de ambas as formas, quer se revelando<br />

como misericordioso ou como severo.<br />

4. Devo realizar as obras daquele que me enviou. Ele agora testifica<br />

que fora enviado com o propósito de manifestar a bondade de<br />

Deus em outorgar vista ao cego. Ele também tomou por empréstimo<br />

uma comparação do costume ordinário do cotidiano, pois quando o<br />

sol se levanta, o homem também se levanta para os labores, porém a<br />

noite é concedida para o repouso, como se diz: Nasce o sol... o homem<br />

4 “Comme dit le proverbe”.<br />

5 “De sa guairison et delivrance”.


400 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

sai para sua obra e seu trabalho, até a noite [Sl 104.22, 23]. Ele, pois,<br />

emprega a palavra dia para denotar o tempo que o Pai fixou, durante o<br />

qual ele deve concluir a obra que lhe fora designada. Da mesma forma<br />

como cada ser humano que foi chamado para algum ofício público<br />

deve empregar-se no que pode chamar-se sua tarefa diária, a realizar<br />

o que demanda a natureza de seu ofício. Daqui devemos também deduzir<br />

uma norma universal, a saber, que a cada ser humano o curso<br />

de sua vida pode chamar-se seu dia. Portanto, como a curta duração<br />

da luz deve incitar os trabalhadores à indústria e labuta, para que as<br />

trevas da noite não os surpreendam, antes que seus exercícios tenham<br />

um bom começo, assim, quando notamos que um breve período da<br />

vida nos é concedido devemos, devemos envergonhar-nos de nossa<br />

languidez e ociosidade. Em suma, tão logo Deus nos ilumina com seu<br />

chamamento, não devemos permitir qualquer delonga, para que não<br />

se perca a oportunidade.<br />

5. Enquanto estou no mundo, eu sou a luz do mundo. Considero<br />

isso como um acréscimo à guisa de antecipação, pois é possível que se<br />

ache estranho que Cristo fale de seu tempo de trabalhar como sendo<br />

limitado, como se houvesse o risco de que a noite lhe chegasse de surpresa,<br />

como ocorre com os demais homens. E assim, enquanto faz uma<br />

distinção entre si e os demais, contudo diz que seu tempo de trabalhar<br />

é limitado. Pois ele se compara ao sol que, embora ilumine toda a terra<br />

com seu brilho, não obstante, quando se põe, o dia também se vai com<br />

ele. E assim ele declara que sua morte se assemelhará ao pôr-do-sol,<br />

não que sua morte extinga ou obscureça sua luz, mas que ela subtrai<br />

de si a visão do mundo. Ao mesmo tempo, ele mostra que, quando se<br />

manifestou na carne, esse foi realmente o tempo da luz diurna do mundo.<br />

Pois embora Deus propiciou luz a todas as eras, contudo Cristo,<br />

com sua vinda, difundiu um novo e inusitado esplendor. Daí inferir ele<br />

que esse era um tempo excessivamente adequado e próprio, e que se<br />

poderia dizer dele ser um dia muito radiante para ilustrar a glória de<br />

Deus, quando Deus pretendia fazer a mais extraordinária exibição de<br />

si mesmo em suas obras maravilhosas.


Capítulo 9 • 401<br />

Aqui, porém, suscita-se outra questão. Depois da morte de Cristo,<br />

o poder de Deus esplendeu mais ilustrativamente, tanto no fruto da<br />

doutrina quanto nos milagres, e Paulo aplica esse fato estritamente<br />

ao tempo de sua própria pregação, ou seja: que Deus, que desde o<br />

princípio do mundo ordenou que a luz surgisse das trevas, neste tempo<br />

ela brilhou na face de Cristo por meio do evangelho [2Co 4.6]. Pergunta-<br />

-se: Cristo agora concede menos luz ao mundo do que quando esteve<br />

entre os homens e conversou com eles? Eis minha resposta: quando<br />

Cristo concluiu o curso de seu ofício, ele não trabalhou menos poderosamente<br />

através de seu ministério do que trabalhara pessoalmente<br />

enquanto vivia no mundo. Reconheço ser isso verdadeiro, mas, em<br />

primeiro lugar, não é inconsistente com o que ele disse, a saber, que<br />

fora obrigado a realizar pessoalmente o que lhe fora designado pelo<br />

Pai, e no tempo em que se manifestou na carne com esse propósito.<br />

Em segundo lugar, não é inconsistente com o que ele disse, a saber,<br />

que sua presença física era o verdadeiro e especial dia do mundo, cujo<br />

esplendor se difundiu por todas as eras. Pois, como os santos pais<br />

nos tempos de outrora, ou como nós agora, desejavam luz e dia, senão<br />

porque a manifestação de Cristo sempre dardejou seus raios a<br />

uma grande distância, para formar um dia contínuo? Do que se conclui<br />

que todos quantos não tem Cristo como seu Guia tropeçam nas trevas<br />

como cegos e vagueiam em confusão e desordem. Não obstante, devemos<br />

manter por esse significado das obras que, como o sol descortina<br />

a nossa o deleitoso espetáculo da terra e céu, bem como toda a organização<br />

da natureza, assim Deus visivelmente tem exibido a glória<br />

primordial de suas obras em seu Filho.<br />

[9.6-12]<br />

Havendo dito isso, ele cuspiu na terra, e com a saliva fez barro<br />

e com o barro untou os olhos do cego, e disse-lhe: Vai, lava-<br />

-te no tanque de Siloé, o qual, interpretado, significa Enviado.<br />

Portanto, ele foi e lavou-se, e voltou vendo. Então os vizinhos,<br />

e aqueles que anteriormente o tinham visto, e que ele era um


402 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

mendigo, disseram: Não é este aquele que se sentava e mendigava?<br />

Uns diziam: É ele. E outros: Parece-se com ele. Ele,<br />

porém, disse: Sou eu. Disseram-lhe, pois: Como teus olhos foram<br />

abertos? Ele respondeu e disse: Um homem, que se chama<br />

Jesus, fez barro e untou meus olhos, e me disse: Vai ao tanque<br />

de Siloé e lava-te. E depois que fui e me lavei, eu vi. Disseram-<br />

-lhe, pois: Onde está ele? Ele disse: Não sei.<br />

6. Ele cuspiu na terra. A intenção de Cristo era restaurar a vista<br />

ao cego, porém começa a operação de uma maneira que aparenta<br />

totalmente absurda, pois, untando seus olhos com barro, ele em certo<br />

sentido duplica a cegueira. Quem jamais concluiu, ou que ele estava<br />

motejando da miséria do homem, ou que estava praticando uma brincadeira<br />

sem sentido e absurda? Mas com isso ele tencionava testar a<br />

fé e obediência do cego, para vir a ser um exemplo a todos. Certamente<br />

essa não foi uma prova ordinária de fé, ou seja: que o cego, cofiando<br />

numa mera palavra, está plenamente convicto de que sua vista lhe<br />

será restaurada, e com essa convicção correu ao lugar que lhe fora<br />

ordenado. O fato de simplesmente obedecer a Cristo serviu de extraordinário<br />

enaltecimento de sua obediência, ainda que houvesse muita<br />

distração para mudar de curso. E aqui está a prova da verdadeira fé,<br />

quando a mente devota, satisfeita com a mera palavra de Deus, promete<br />

e faz o que parece incrível. A fé é instantaneamente seguida da<br />

prontidão para obedecer, de modo que aquele que se convence de que<br />

Deus será seu fiel Guia tranquilamente se entrega à diretriz divina. Não<br />

pode haver dúvida de que alguma suspeita e temor, de que pudesse<br />

estar sendo zombado, vieram à mente do cego, ele, porém, achou fácil<br />

romper tal obstrução, ao chegar à conclusão de que se sentia seguro<br />

em seguir a Cristo. Pode objetar-se que o cego não sabia quem era<br />

Cristo, e por isso poderia não prestar-lhe a hora que lhe era devida<br />

como o Filho de Deus. Reconheço tal possibilidade, mas, como ele cria<br />

que Cristo fora enviado por Deus, se lhe submeteu e não nutriu dúvida<br />

de que ele falava a verdade, e nada mais viu nele senão o que era divi-


Capítulo 9 • 403<br />

no, e, além de tudo isso, sua fé recebe um enaltecimento muito mais<br />

excelente, porque, embora seu conhecimento fosse tão pequeno, ele<br />

devotou-se totalmente a Cristo.<br />

7. Vai, lava-te no tanque de Siloé. Inquestionavelmente, não havia,<br />

nem no barro e nem na água de Siloé, poder algum ou propriedade<br />

alguma para curar os olhos, Cristo, porém, graciosamente fez uso daqueles<br />

símbolos externos, em várias ocasiões, com o fim de adornar<br />

seus milagres, ou para habituar os crentes ao uso de sinais, ou para<br />

mostrar que todas as coisas estavam a sua disposição, ou para testificar<br />

que cada um desses elementos tem aquele poder que ele decide<br />

atribuir-lhe. Mas alguém pode inquirir sobre o que está implícito no<br />

barro composto de pó e cuspe, e o mesmo poderia entender ter sido<br />

uma figura de Cristo, porque o pó denota a natureza terrena da carne,<br />

e o cuspe, oriundo da boca dele, denota a essência divina do Verbo. De<br />

minha parte, descarto essa alegoria como sendo mais engenhosa do<br />

que sólida, e fico satisfeito com este simples ponto de vista: como o<br />

homem, no princípio, foi feito do barro, assim, ao restaurar os olhos,<br />

Cristo fez uso do barro para que mostrar que ele tinha o mesmo poder<br />

sobre uma parte do corpo que o Pai exibira na formação do homem<br />

inteiro. Ou talvez, pretendesse declarar, por meio desse sinal, que não<br />

lhe era mais difícil remover a obstrução, e abrir os olhos ao cego, do<br />

que lavar o barro de qualquer pessoa, seja quem for, e, em contrapartida,<br />

que tanto estava em seu poder restaurar a vista ao homem quanto<br />

estava em untar seus olhos com barro. Prefiro a última interpretação.<br />

Quanto ao poço de Siloé, talvez tenha ordenado ao cego a lavar-se<br />

nele com o fim de reprovar os judeus por não serem capazes de discernir<br />

o poder de Deus quanto este está presente. Como Isaías censura<br />

os homens de seu tempo, dizendo que desprezavam as águas de Siloé<br />

que correm brandamente [Is 8.6], e preferiam as correntes rápidas e<br />

impetuosas. Esta foi também a razão, creio eu, por que Eliseu ordenou<br />

a Naamã, o sírio, a ir lavar-se no Jordão [2Rs 5.10]. Este tanque, se<br />

podemos confiar em Jerônimo, era formado por águas que fluíam, em<br />

certos momentos, do Monte Sião.


404 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

O qual, interpretado, significa Enviado. O evangelista intencionalmente<br />

adiciona a interpretação da palavra Siloé, porque aquela<br />

fonte, que ficava próxima ao templo, recordava diariamente aos judeus<br />

Cristo que estava por vir, mas a quem desprezaram quando se<br />

pôs diante deles. O evangelista, pois, engrandece a graça de Cristo,<br />

porque é tão-somente ele quem ilumina nossas trevas e restaura a vista<br />

ao cego. Porque a condição de nossa natureza é delineada na pessoa<br />

de um só homem, para nos lembrar que todos nós somos destituídos<br />

de luz e entendimento desde o ventre materno, e que devemos buscar<br />

a cura desse mal unicamente em Cristo.<br />

É preciso observar que, embora Cristo estivesse então presente,<br />

não obstante não quis dispensar os sinais, e visava a reprovar a estupidez<br />

da nação que descartava a substância e retinha apenas uma fútil<br />

sombra dos sinais. Além disso, a espantosa bondade de Deus é exibida<br />

neste fato, para que, de iniciativa própria, curasse o cego e não esperasse<br />

que ele lhe apresentasse sua oração por socorro. Aliás, visto que<br />

somos inerentemente avessos a ele, caso não nos encontre antes que o<br />

invoquemos, e antecipe sua mercê em nosso favor, nós que mergulhamos<br />

no esquecimento da luz e da vida, estamos arruinados.<br />

8. Então os vizinhos e os que o tinham visto anteriormente. O<br />

cego era conhecido não só dos vizinhos, mas de todos os habitantes<br />

da cidade, estando acostumado a sentar-se e a mendigar à porta do<br />

templo, e o povo comum via com mais interesse tais pessoas do que<br />

os demais. Esta circunstância – de o homem ser conhecido – contribuiu<br />

para tornar muitas pessoas familiarizadas com a notoriedade do milagre.<br />

Mas, visto que a impiedade é engenhosa em obscurecer as obras<br />

de Deus, muitos chegaram à conclusão de que aquele não era o mesmo<br />

homem, porque um novo poder divino publicamente se manifestou<br />

nele. E assim descobrimos que quanto mais esplendente a majestade<br />

de Deus se manifesta em suas obras, menos crédito granjeiam entre os<br />

homens. Mas as dúvidas daqueles homens corroboraram para provar<br />

o milagre, porque, em decorrência das dúvidas, o cego celebrou ainda<br />

mais sublimemente a graça de Cristo com seu testemunho. Não é sem


Capítulo 9 • 405<br />

boas razões, pois, que o evangelista enfeixa todas as circunstâncias<br />

que pareciam exibir ainda mais claramente a veracidade do milagre.<br />

E depois que eu fui e me lavei. Tão ditoso resultado provindo<br />

da obediência nos anima a superar cada obstáculo e a prosseguir corajosamente<br />

por onde quer que o Senhor nos chamar, e nem mesmo a<br />

entreter alguma dúvida de que tudo quanto empreendermos por meio<br />

de sua autoridade, e sob sua diretriz, terá um resultado feliz.<br />

[9.13-17]<br />

Levaram aos fariseus aquele que antes fora cego. E era sábado<br />

quando Jesus fez o barro e abriu os olhos dele. Portanto, os<br />

fariseus também lhe perguntaram novamente como ele recebera<br />

a visão. E ele lhes disse: Ele pôs barro em meus olhos, e eu<br />

lavei, e vi. Por essa razão alguns dentre os fariseus disseram:<br />

Esse homem não é de Deus, porque não guarda o sábado. Outros<br />

diziam: Como é possível que um homem pecador faça tais<br />

sinais? E houve divisão entre eles. E disseram ao que antes fora<br />

cego: 6 O que dizes a respeito dele, por haver aberto teus olhos?<br />

E ele disse: Ele é um profeta.<br />

13. Levaram aos fariseus. A narrativa seguinte mostra que os homens<br />

perversos estão tão longe de extrair proveito das obras de Deus,<br />

que quanto mais são instigados por seu poder, mais se veem constrangido<br />

a derramar a peçonha que jaz em seu íntimo. A restauração da<br />

vista ao cego deveria por certo ter abrandado até mesmo os corações<br />

de pedra, ou pelo menos, os fariseus deveriam ter se deixado abalar<br />

pela novidade e grandeza do milagre, ao ponto de ficarem em dúvida<br />

por um breve tempo, até que inquirissem se ele era de fato uma obra<br />

divina, mas seu ódio por Cristo os levou a uma estupidez tal, que instantaneamente<br />

condenaram a informação que haviam recebido sobre<br />

o que ele fizera.<br />

6 “Ils disent derechef à l’aveugle” – “disseram novamente ao cego”.


406 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

O evangelista faz menção de os fariseus, não que outras seitas fossem<br />

favoráveis a Cristo, mas porque essa seita era mais zelosa do que<br />

as demais em manter a atual condição. A hipocrisia é sempre soberba<br />

e cruel. Vivendo inflados com uma falsa opinião acerca de sua santidade,<br />

eles se sentiram os principais feridos pela doutrina do evangelho,<br />

a qual condenava toda a simulação de justiça nutrida por eles, e, acima<br />

de tudo, todos eles lutavam em prol de seu próprio poder e reino sob<br />

o pretexto de empreender a manutenção da lei.<br />

Quando o evangelista diz que a multidão levou o homem cego aos<br />

fariseus, é difícil determinar com que disposição ou com que intenção<br />

fizeram isso. Raramente um indivíduo dentre eles poderia ignorar a<br />

inveterada hostilidade dos fariseus contra Cristo, e por isso é possível<br />

que muitos bajuladores, com o fim de obter seu favor, intencionalmente<br />

tentassem ocultar a glória do milagre. Todavia creio ser possível<br />

que a maioria dentre o povo, suspendendo seu juízo, como usualmente<br />

sucede, determinaram atribuir a arbitragem e decisão dos que<br />

mantinham o governo. Mas, voluntariamente fechando seus olhos, enquanto<br />

o sol ainda brilha no céu, envolvem-se a si mesmos com trevas<br />

com o fim de obscurecer sua luz. É uma louca superstição da plebe<br />

que, sob o pretexto de honrar a Deus, adorem os ímpios tiranos da<br />

Igreja e desprezem o próprio Deus, tanto em sua palavra quanto em<br />

suas obras, ou pelo menos, não se dignam de olhar para ele.<br />

14. E era sábado. Cristo intencionalmente escolheu o dia de sábado<br />

com o intuito de propiciar aos judeus motivo de escândalo. Ele já<br />

havia descoberto, no caso do paralítico, que esta obra era passível de<br />

calúnia. Por que ele não evita o escândalo – o que facilmente poderia<br />

ter feito –, senão porque o escândalo, malignamente promovido pelos<br />

homens, tenderia a engrandecer o poder de Deus? O dia de sábado<br />

serve como acicate para incitá-los a inquirir mais solicitamente sobre<br />

toda a questão. E, não obstante, que vantagem têm eles a colher em<br />

fazer um cuidadoso e exaustivo exame da questão, senão isto: que a<br />

verdade do evangelho esplende com um brilho cada vez mais intenso?<br />

Por este exemplo somos instruídos que, se seguirmos a Cristo, é mister


Capítulo 9 • 407<br />

que excitemos a ira dos inimigos do evangelho, e aqueles que empreendem<br />

efetuar um compromisso entre o mundo e Cristo, ao ponto de<br />

condenar todo gênero de escândalos, são extremamente dementes,<br />

visto que Cristo, ao contrário, consciente e deliberadamente provocava<br />

os homens perversos. Portanto, é preciso que atentemos bem para<br />

a regra que ele estabelece: que aqueles que são cegos, e condutores de<br />

cegos [Mt 15.14], sejam tratados sem qualquer consideração.<br />

15. Os fariseus também lhe perguntaram. As pessoas já tinham<br />

ouvido essa confissão dos próprios lábios do cego, e agora os fariseus<br />

também se tornam testemunhas dela, os quais poderiam ter objetado<br />

que um boato tinha infundadamente circulado por entre a plebe, e que<br />

tinham crido sem qualquer fundamento. E, em primeiro lugar, deixando<br />

de fora a questão quanto ao fato, polemizam somente sobre a lei<br />

que envolve o caso, porquanto não negam que Cristo restaurou a vista<br />

ao cego, porém descobrem um delito na circunstância do tempo em<br />

que ele feito realizado, e asseveram que não poderia ser uma obra de<br />

Deus, porquanto violava o sábado. Mas, em primeiro lugar, devemos<br />

inquirir se uma obra de Deus constituía uma violação do sábado. E o<br />

que os impede de perceber isso, senão o fato de que, em consequência<br />

de terem sido cegados por pecaminosos motivos e por malícia, nada<br />

conseguem ver? Além disso, já tinham sido sobejamente instruídos<br />

por Cristo de que os benefícios que Deus outorga aos homens não<br />

são mas inconsistentes em relação ao sábado do que à circuncisão, e<br />

as obras da lei obrigavam os homens a se absterem somente de suas<br />

próprias obras, e não das obras de Deus [Ex 20.8, 23.12]. Quando não<br />

reconhecem um erro que tem sido tão frequentemente refutado, tal<br />

atitude deve ser imputada à malícia obstinada, ou pelo menos, não<br />

existe nenhuma outra razão por que continuam no erro, senão porque<br />

decidiram continuar errando.<br />

Assim os papistas não cessam de manifesta, com empedernida<br />

impudência, suas descaradas e pueris calúnias, as quais já foram respondidas<br />

centenas de vezes. O que, pois, devemos fazer com eles?<br />

Quando surge uma oportunidade, devemos lutar, até onde vai nosso


408 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

poder, para fazer oposição às ímpias tentativas dos que, movidos por<br />

falso zelo, censuram e caluniam o evangelho. Se nenhuma defesa, por<br />

mais justa que seja, não fechar sua boca, não temos motivo para desânimo,<br />

senão que devemos pisotear sob a planta de nossos pés, com<br />

ousadia e magnanimidade, aquela solicitude em caluniar com a qual<br />

tudo fazem para nos oprimir. Elaboram máximas que prontamente<br />

lhes revertemos, ou seja, que não devemos ouvir os que se revoltam<br />

contra a Igreja e esmigalham a unidade da fé. Eles, porém, ignoram,<br />

e pretendem não ter observado – aquilo que deve formar o principal<br />

tema de uma inquirição e o que já explicamos claramente em muitas<br />

passagens – que nada pode estar mais distante da Igreja do que o papa<br />

com todo seu séquito, que uma miscelânea composta de mentiras e<br />

imposições, e contaminada por tantas supersticiosas invenções, está<br />

muitíssimo distante da pureza da fé. Mas com toda sua furiosa arrogância,<br />

jamais obstruem a verdade, a qual tem sido tão contínua e tão<br />

solidamente sustentada por nós, de finalmente ser vitoriosa. De igual<br />

modo, os fariseus apresentavam contra Cristo uma máxima plausível:<br />

que aquele que não observa o sábado não é de Deus, porém injusta e falsamente<br />

asseveravam que a obra de Deus é uma violação do sábado.<br />

16. Como é possível que um homem pecador faça essas coisas? A<br />

palavra pecador é aqui empregada, como em muitas outras passagens,<br />

para denotar uma pessoa de conduta imoral e alguém que despreza<br />

a Deus. Por que vosso Mestre come com publicanos e pecadores? [Mc<br />

2.16]. Isto é, “Por que vosso Mestre come com homens de vida ímpia e<br />

pervertida, cuja vileza é estigmatizada com infâmia universal?” Porque<br />

da violação do sábado os inimigos de Cristo inferiram que ele era uma<br />

pessoa profana e destituída de toda religião. Os que se mantém na neutralidade<br />

e julgam com mais candura, em contrapartida, concluem que<br />

ele é um homem bom e religioso, porque Deus o revestira com notável<br />

poder de realizar milagres. E, no entanto, o argumento não parece ser<br />

totalmente conclusivo, pois Deus às vezes permite que falsos profetas<br />

realizem alguns milagres, e sabemos que Satanás, à semelhança de um<br />

símio, imita as obras de Deus ao ponto de enganar os incautos.


Capítulo 9 • 409<br />

Suetônio relata que, quando Vespasiano se encontrava em Alexandria,<br />

e se achava sentado em seu tribunal para dispensar justiça<br />

na corte pública, um cego lhe pediu que untasse seus olhos com saliva,<br />

e afirmou que, em sonho, um Serapis 7 lhe havia propiciado tal<br />

cura. E que Vespasiano, não estando disposto a expor-se à zombaria<br />

sem razão plausível, ficou quieto e relutante em aquiescer, mas que,<br />

quando seus amigos insistiam de todos os lados, ele admitiu ao cego o<br />

que este pedia, e que dessa forma seus olhos foram instantaneamente<br />

abertos. Quem haveria de incluir Vespasiano entre os servos de Deus<br />

por essa conta, ou o adornaria com o aplauso da piedade? Respondo<br />

que, entre os bons homens e aqueles que temem a Deus, os milagres<br />

são sem dúvida penhores do poder do Espírito Santo, mas ocorre por<br />

um justo juízo divino que Satanás engane os incrédulos por meio de<br />

falsos milagres, como por meio de encantamentos. O que acabo de<br />

citar como sendo de Suetônio, não considero como pertencente à esfera<br />

da fábula, mas, ao contrário, o atribuo à justa vingança divina,<br />

para que os judeus, que desprezavam tantos e tão gloriosos milagres<br />

de Cristo, fossem, por fim – como mereciam ser – arrastados para Satanás.<br />

Pois deveriam ter tirado proveito dos milagres de Cristo para<br />

oferecerem a Deus um culto puro, deveriam ter sido confirmados por<br />

eles na doutrina da lei e ter se encaminhado ao próprio Messias, o<br />

qual era o fim da lei. E sem dúvida Cristo, ao recobrar a vista ao cego,<br />

provou nitidamente que era o Messias.<br />

Os que se recusam a reconhecer Deus em suas obras fazem tal<br />

recusa não só através da indiferença, mas através de desdém malicioso,<br />

e não merecem que Deus os entregue às ilusões de Satanás?<br />

Lembremo-nos, pois, que devemos buscar Deus com uma sincera<br />

disposição de coração, para que ele se nos revele pelo poder de seu<br />

Espírito, e que devemos inclinar nossos ouvidos submissamente<br />

a sua palavra, para que claramente manifeste os verdadeiros profetas<br />

por meio de milagres que não sejam ilusórios. E assim nos<br />

7 “Un certain Serapis”.


410 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

beneficiaremos, como devemos fazer, dos milagres, e evitaremos<br />

expor-nos às fraudes de Satanás.<br />

Quanto aos homens propriamente ditos, ainda que neste aspecto<br />

ajam elogiosamente, que falem com reverência sobre os milagres nos<br />

quais se exibe o poder de Deus, todavia não manifestam um argumento<br />

suficientemente forte para provar que Cristo deve ser reconhecido<br />

como Profeta de Deus. E inclusive o evangelista não pretende que sua<br />

resposta seja considerada um oráculo. Ele apenas exibe a ímpia obstinação<br />

dos inimigos de Cristo, os quais maliciosamente provocam uma<br />

disputa com o que não podem senão reconhecer ser obras de Deus,<br />

e, quando advertidos, nem ainda atentam para eles por breve tempo.<br />

E houve divisão entre eles. Um cisma é um mal terrivelmente pernicioso<br />

e destrutivo na Igreja de Deus, e como provém, pois, que Cristo<br />

provoque ocasião de discórdia entre os próprios mestres da Igreja? A<br />

resposta é fácil. Cristo não tinha outro objetivo em vista senão conduzir<br />

todos os homens a Deus o Pai, estendendo-lhes sua mão. A divisão<br />

originou-se da obstinada malícia 8 daqueles que não nutriam disposição<br />

de ir a Deus. Portanto, todos os que não cultivam obediência à<br />

verdade de Deus causam cisma na Igreja. Contudo é preferível que os<br />

homens difiram entre si do que todos, em consentimento mútuo, se rebelem<br />

contra a verdadeira religião. 9 Por essa causa, sempre surgirem<br />

diferenças, devemos sempre avaliar bem sua fonte.<br />

17. Disseram ao que fora cego. Quanto mais diligentemente inquirem,<br />

mais impressionantemente a verdade de Deus se destaca.<br />

Porquanto agem como se alguém estivesse lutando para extinguir uma<br />

forte chama 10 com seu sopro. E assim, quando vemos os perversos<br />

engendrando tudo o que podem para esmagar a verdade de Deus, não<br />

temos motivo para temer nem de ficar excessivamente ansiosos com<br />

o resultado, pois tudo o que podem granjear com isso será fazer com<br />

que sua luz brilhe com maior esplendor.<br />

8 “De la malice obstinee”.<br />

9 “De la vraye religion”.<br />

10 “Une grande flamme”.


Capítulo 9 • 411<br />

O que dizes sobre ele? Ao pedirem ao cego sua opinião pessoal,<br />

agem assim não porque desejassem estabelecer a verdade com<br />

o testemunho dele, ou que vissem algum valor nele, mas porque esperam<br />

que o homem, trêmulo de medo, respondesse de acordo com<br />

o desejo deles. Neste aspecto o Senhor os desaponta, pois quando<br />

o pobre homem desconsidera suas ameaças, e ousadamente afirma<br />

que Cristo é Profeta, devemos com razão atribuir isso à graça de<br />

Deus, de modo que tal ousadia vem a ser outro milagre. E se ele<br />

tão ousada e publicamente reconhecia Cristo como Profeta, embora<br />

não soubesse até então que o Senhor Jesus 11 era o Filho de Deus,<br />

quão desditosa é a traição daqueles que, subjugados pelo medo,<br />

ou o negam, ou mantêm silêncio sobre ele, ainda quando saibam<br />

que ele se acha sentado à destra do Pai e de lá virá para ser o Juiz<br />

do mundo inteiro! Visto que esse cego não tinha acesa sequer uma<br />

fagulha de conhecimento, devemos tudo fazer para que uma confissão<br />

pública e plena acenda em nossos corações um brilho muito<br />

mais refulgente.<br />

[9.18-23]<br />

Os judeus, porém, não criam acerca dele, que fora cego e que<br />

recobrou sua vista, até que chamaram os pais daquele que recobrara<br />

a vista. E lhes perguntaram, dizendo: É este vosso filho,<br />

que dizeis ter nascido cego? Como, pois, ele agora vê? Seus<br />

pais responderam e disseram: Sabemos ser este nosso filho, e<br />

que ele nasceu cego. Mas como ele agora vê, não o sabemos,<br />

nem sabemos quem foi que lhe abriu os olhos, ele tem idade,<br />

perguntai-lhe, ele falará de si mesmo. Seus pais disseram essas<br />

coisas porque temiam os judeus, pois os judeus já haviam<br />

determinado que, se alguém confessasse que ele era o Cristo,<br />

seria expulso da sinagoga. Por esse motivo seus pais disseram:<br />

Ele tem idade, perguntai-lhe.<br />

11 “Le Seigneur Jesus”.


412 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

18. Os judeus, porém, não criam. Há duas coisas aqui que devem<br />

ser observadas: que eles não criam que um milagre fosse realizado,<br />

e que, deixando-se voluntariamente cegar por um perverso ódio de<br />

Cristo, não conseguiam perceber o que se manifesta. O evangelista<br />

nos conta que eles não criam. Se se pedir a razão, não pode haver<br />

dúvida de que sua cegueira era voluntária. Pois, o que os impede<br />

de ver uma obra de Deus posta ante seus olhos? Ou, depois de se<br />

convencerem plenamente, o que os impede de crer no que já sabiam,<br />

senão que a malícia interior de seu coração conserva seus olhos fechados?<br />

Paulo nos informa que o mesmo acontece com a doutrina<br />

do evangelho, pois ele diz que ela não está oculta nem é obscura,<br />

exceto para os réprobos, cujo entendimento o deus deste mundo cegou<br />

[2Co 4.3, 4]. Advertidos por tais exemplos, aprendamos a não trazer<br />

sobre nós aqueles obstáculos que nos afastam da fé. Pela expressão<br />

os judeus o evangelista quer dizer aquela parte deles que mantinha o<br />

governo do povo.<br />

19. É este vosso filho? Não conseguindo êxito na primeira tentativa,<br />

lançam mão de outra. O Senhor, porém, não só frustra suas<br />

tentativas de uma forma maravilhosa, porém as converte para um<br />

propósito contrário. Não formulam meramente uma única pergunta,<br />

mas astutamente formulam um grande número de perguntas bem enfeixadas,<br />

com vistas a impedir uma resposta. Mas de uma variedade<br />

de perguntas entrelaçadas e capciosas, os pais do cego escolheram<br />

apenas um meio termo, a saber:<br />

20. Sabemos que este é nosso filho, e que ele nasceu cego. Daí<br />

se segue que ele não vê naturalmente, mas que seus olhos tinham sido<br />

miraculosamente abertos. Eles, porém, ignoraram este último ponto<br />

– que sua visão fora miraculosamente restaurada –, porque ele produzira<br />

escândalo. Por meio de seu silêncio revelam sua ingratidão,<br />

pois havendo recebido de Deus um dom tão eminente, deveriam ardentemente<br />

ter desejado celebrar seu nome. Mas, trêmulos de medo,<br />

sepultam a graça de Deus, o quanto podem, com esta exceção: que<br />

põem em seu lugar, como testemunha, seu filho, que explicará a


Capítulo 9 • 413<br />

questão toda tal como aconteceu, e o qual será ouvido com menos<br />

preconceito e será mais prontamente crido. Mas ainda que prudentemente<br />

evitem o perigo e prosseguem sua vereda mediana, testificando<br />

indiretamente sobre Cristo pela boca de seu filho, contudo tal atitude<br />

não impede o Espírito Santo de condenar sua covardia pelos lábios do<br />

evangelista, porquanto deixaram de cumprir seu dever pessoal. Quanto<br />

menos escusa, pois, terão os que, com traiçoeira negação, sepultam<br />

totalmente a Cristo, juntamente com sua doutrina, com seus milagres,<br />

com seu poder e com sua graça!<br />

22. Os judeus haviam determinado. Esta passagem revela que o<br />

costume da excomunhão é bem antigo, e que foi observado em todos<br />

os tempos. Pois a excomunhão não então pela primeira vez inventada,<br />

senão que era um costume que fora antigamente usado contra os<br />

apóstatas e desprezadores da lei, e que se volveu contra os discípulos<br />

de Cristo. Portanto, aprendemos que a prática da excomunhão surgiu<br />

da disciplina muito antiga da Igreja. Aprendemos também que ela é<br />

um crime que não teve uma origem recente, e que não era peculiar a<br />

uma única época, e que os homens perversos e incrédulos 12 corromperiam<br />

as santas ordenanças de Deus com seus atos de sacrilégio. Deus<br />

determinou, desde o princípio do mundo, 13 que haveria alguma forma<br />

de correção, por meio da qual os rebeldes seriam restringidos. Os sacerdotes<br />

e escribas não só abusaram desse poder de uma forma tirana<br />

com o intuito de oprimir pessoas inocentes, mas por fim, com execração,<br />

atacaram a Deus mesmo e a sua doutrina. A verdade de Cristo,<br />

sendo tão poderosa, não sendo capazes de destruí-la por meio de lei,<br />

nem por meio de um curso regular de procedimentos, dardejaram os<br />

trovões de excomunhões com o fim de esmagá-la.<br />

O mesmo se tem feito também com os cristãos, pois é impossível<br />

expressar a bárbara tirania que os pretensos bispos têm exercido<br />

e escravizado o povo, de modo que ninguém ousa nem mesmo cochichar,<br />

e então vemos com que crueldade lançaram esse dardo de<br />

12 “Les infideles”.<br />

13 “Dès le commencement du monde”.


414 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

excomunhão contra todos os que adoram a Deus. Mas devemos crer<br />

que a excomunhão, quando é violentamente aplicada com um propósito<br />

diferente, movida pelas paixões humanas, pode seguramente ser<br />

tratada com desdém. Pois quando Deus confiou a sua Igreja o poder<br />

da excomunhão, ele não armou tiranos ou executores para estrangular<br />

as almas, mas estabeleceu uma norma para governar seu povo,<br />

e que sob a condição de que ele manteria o governo supremo, teria<br />

homens por seus ministros. Que os pretensos bispos, pois, brandem<br />

como puderem, com seus fúteis ruídos não terrificarão a ninguém,<br />

senão aqueles que oscilam com dúvidas e incertezas, os quais ainda<br />

não foram instruídos pela voz do Supremo Pastor que fala ao verdadeiro<br />

rebanho.<br />

Em suma, nada pode ser mais certo do isto: aqueles que, como<br />

o percebemos, não se sujeitam a Cristo se privam do poder legítimo<br />

da excomunhão. Tampouco devemos temer ser excluídos por<br />

eles de sua assembleia, visto que Cristo, que é nossa vida e salvação,<br />

está banido dela. Mui longe estamos nós de ter alguma razão<br />

de temermos ser expulsos dela, ao contrário disso, se desejarmos<br />

viver unidos a Cristo, é preciso que, por nossa própria iniciativa, nos<br />

apartemos das sinagogas de Satanás. Ainda quando a ordenança de<br />

excomunhão fosse tão vilmente corrompida na Igreja antiga, contudo<br />

Cristo não tencionava que ela fosse abolida com sua vinda, mas restaurada<br />

a sua pureza, para que estivesse em pleno vigor entre nós. E<br />

assim, ainda que em nossos dias prevaleça no papado uma execrável<br />

profanação dessa santa disciplina, todavia, em vez de aboli-la, devemos<br />

antes imprimir a máxima diligência em restaurá-la a sua antiga<br />

completude. Jamais haverá uma ordem mundial tão satisfatória, que<br />

ainda as leis de Deus mais santas não se degenerem em corrupção,<br />

através dos erros humanos. Com toda certeza, Satanás receberia tanto<br />

poder se ele pudesse reduzir a nada tudo quanto ele corrompe.<br />

Então não teríamos batismo, nem Ceia do Senhor e, em suma, nem<br />

religião, porque não há parte dela que ele não tenha contaminado<br />

com suas poluições.


Capítulo 9 • 415<br />

[9.24-33]<br />

Chamaram, pois, pela segunda vez o homem que fora cego, e<br />

lhe disseram: Dá glória a Deus, nós sabemos que esse homem é<br />

um pecador. Portanto ele respondeu e disse: Se ele é pecador,<br />

não sei, de uma coisa eu sei, que eu era cego, e agora vejo.<br />

Por isso lhe disseram novamente: O que ele te fez? Como abriu<br />

teus olhos? Ele lhes respondeu: Já lhes disse, e não ouvistes,<br />

por que quereis ouvir novamente? Desejais também tornar-vos<br />

seus discípulos? Então o repreenderam, dizendo: Sê tu seu discípulo,<br />

quanto a nós, 14 somos discípulos de Moisés. Sabemos<br />

que Deus falou a Moisés, quanto a esse homem, porém, nem<br />

sabemos de onde ele é. O homem respondeu, dizendo-lhes:<br />

Certamente isso é admirável, não saberdes vós de onde ele é,<br />

e, no entanto, 15 me abriu os olhos. Ora, nós sabemos que Deus<br />

não ouve a pecadores, mas se alguém é adorador de Deus, e<br />

faz sua vontade, ele o ouve. Jamais se ouviu 16 antes que alguém<br />

abrisse os olhos a alguém que nascesse cego. Se esse homem<br />

não vem de Deus, ele nada poderia fazer.<br />

24. Chamaram, pois, pela segunda vez o homem que fora cego.<br />

Não pode haver dúvida de que se viram constrangidos pelo vexame<br />

de chamar o cego, a quem previamente haviam descoberto ser tão<br />

firme e resoluto. E assim, quanto mais ferozmente lutam contra Deus,<br />

mais numerosas são as cordas que se enroscam em seus pescoços, 17 e<br />

mais solidamente se tornam cegos. Além disso, questionam o fato em<br />

termos tais que tentam levar o homem a dizer o que queriam. Aliás,<br />

é um prefácio plausível quando o exortam a dar glória a Deus, porém<br />

imediatamente a seguir o proíbem estritamente a responder de acordo<br />

com a convicção de sua mente, e por isso, sob o pretexto do nome de<br />

Deus, demandam dele servil obediência.<br />

14 “Quant às nous”.<br />

15 “Et toutesfois”.<br />

16 “Il ne fut jamais ouy”.<br />

17 “Tant plus de lags se mettent-ils au col”.


416 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Dá glória a Deus. Ainda que este juramento esteja associado ao<br />

que se conecta com a presente causa, ou seja, que o cego não deveria<br />

obscurecer a glória de Deus, atribuindo ao homem o benefício que<br />

havia recebido, contudo concordo mais com aqueles que acreditam<br />

haver aqui uma forma solene que costumavam empregar quando se<br />

administrava um juramento a alguma pessoa. Pois nessas mesmas<br />

palavras quando Josué faz Acã jurar, ao desejar extrair dele uma confissão<br />

veraz de haver se apossado de coisa sob anátema [Js 7.19]. Com<br />

essas palavras eles o lembram de que nenhum leve insulto se oferece<br />

a Deus quando alguém, em seu nome, pratica falsidade. Aliás, sempre<br />

que somos chamados a jurar, devemos ter em mente esse prefácio, de<br />

modo que a verdade não seja menos sublimemente valorizada por nós<br />

do que a própria glória de Deus. Se isso fosse feito, a sacralidade de um<br />

juramento seria considerada por um prisma muito diferente. Ora, visto<br />

que a maioria dos homens – não considerando que estão negando a<br />

Deus quando invocam seu Nome para solidificar uma falsidade – temerária<br />

e ousadamente se precipitam a jurar, a consequência é que<br />

cada lugar se enche de perjúrios. Entrementes, notamos como os hipócritas,<br />

embora pretendam cultivar a maior reverência por Deus, são<br />

culpados não só de hipocrisia, mas também de insolente zombaria,<br />

pois ao mesmo tempo expressam o desejo de que o cego impiamente<br />

jure de acordo com a diretriz deles, com franco desdém a Deus. E assim<br />

Deus é arrastado a amenizar seus perversos desígnios, quaisquer<br />

que sejam as tentativas que façam para dar-lhes uma aparência plausível<br />

ou para ocultá-los com pretextos hipócritas.<br />

25. Se ele é pecador, eu não sei. Aparentemente, o cego não se<br />

sentiu totalmente refreado pelo medo de apresentar um testemunho<br />

sincero e franco. Pois não há razão para se crer que nutrisse alguma<br />

dúvida acerca de Cristo, como suas palavras parecem subentender,<br />

no entanto prefiro antes crer que ele falou em termos irônicos, com o<br />

fim de feri-los ainda mais profundamente. Ele já havia confessado que<br />

Cristo era Profeta [v. 17]. Percebendo que ele nada lucra agindo assim,<br />

então suspende seu juízo sobre a pessoa e realça o fato propriamente


Capítulo 9 • 417<br />

dito, de modo que, enquanto faz essa admissão em seu favor, ele não<br />

perde a chance de ridicularizá-los.<br />

26. Portanto, lhe disseram novamente. Ao notarmos os perversos<br />

tão deleitosamente praticando seus próprios atos vis, devemos<br />

envergonhar-nos de nossa indolência, agindo com tanta tibiez acerca<br />

das atividades de Cristo. Ainda que busquem de todos os lados lançar<br />

mão de motivos para caluniarem, o Senhor frustra suas tentativas, de<br />

uma maneira extraordinária, pela inabalável firmeza do cego, pois não<br />

só persiste em sua opinião, mas franca e severamente os censura por<br />

sobejamente asseverarem conhecimento da verdade e contudo tudo<br />

fazerem para sepultá-la por meio de suas contínuas inquirições. Ele os<br />

acusa também de impiamente odiarem a Cristo, quando diz:<br />

Quereis vós também tornar-vos seus discípulos? Querendo dizer<br />

que, ainda que fossem centenas de vezes convencidos, são tão radicalmente<br />

preconceituosos, oriundo de perversas e hostis disposições,<br />

que jamais cederiam. É uma espantosa exibição de liberdade quando<br />

alguém de humilde condição, especialmente passível de censura<br />

em decorrência de sua pobreza, destemidamente provoque a fúria de<br />

todos os sacerdotes contra sua própria pessoa. Se aquilo que nada<br />

mais era senão uma modesta preparação para a fé lhe imprimiu tanta<br />

ousadia, quando entrou em pugna, que justificativa poderiam alegar<br />

os grandes mestres do evangelho, os quais, ainda que estejam longe<br />

do alcance de dardos inflamados, fecham suas bocas tão logo se veem<br />

ameaçados por algum perigo? Esta é igualmente uma pergunta irônica.<br />

Pois sua intenção é dizer que são inspirados pela malícia, e não por<br />

sincero zelo pela verdade, com o fim de pressioná-lo energicamente a<br />

dar resposta sobre este fato. 18<br />

28. Então o repreenderam. É provável que tenham energicamente<br />

lançado sobre ele todos os reproches que foram inspirados pela<br />

violência de seu furor e indignação. Mas houve um reproche digno de<br />

nota que fluiu de seus lábios: chamaram-no de apóstata da lei. Porque,<br />

18 “Quand ils le pressent si instamment à respondre sur ce faict”.


418 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

em sua opinião, ele não podia ser discípulo de Cristo sem se rebelar<br />

contra a lei de Moisés, e expressamente representam esses dois<br />

elementos como sendo inconsistentes entre si. É um pretexto bem<br />

plausível que temam rebelar-se contra a doutrina de Moisés. Pois esta<br />

é a verdadeira norma da piedade: que devemos dar ouvido aos profetas,<br />

por meio de quem certamente sabemos que Deus tem falado,<br />

para que nossa fé não se concretize por qualquer doutrina humana.<br />

À luz deste princípio deduzem sua convicção quanto à lei de Moisés,<br />

porém mentem quando dizem que são discípulos de Moisés, porquanto<br />

tinham apostatado do propósito da lei. E assim os hipócritas costumam<br />

temer a Deus convenientemente, 19 pretendendo ocultar-se sob<br />

seu nome. Se Cristo é a alma da lei, como Paulo nos afirma [Rm 10.4],<br />

em que se converte a lei quando dissociada dele, senão um corpo morto?<br />

Por este exemplo somos instruídos que ninguém realmente ouve<br />

a Deus, a menos que seja um atento ouvinte de sua Palavra, para que<br />

entenda o que Deus pretende e declara.<br />

29. Quanto a esse homem, não sabemos de onde ele é. Ao falarem<br />

assim, não estão pensando em seu país ou lugar de nascimento, mas<br />

no ofício profético. Pois alegam que não têm nenhum conhecimento de<br />

sua vocação, para que o recebam como sendo de procedência divina.<br />

30. Certamente isso é admirável. Indiretamente, ele os reprova<br />

por permanecerem insensíveis ante um milagre tão proeminente, e em<br />

pretenderem que não tinham nenhum conhecimento da vocação de<br />

Cristo, como se quisesse dizer que era tremendamente impróprio que<br />

tal testemunho do poder divino não fosse tido em nenhuma estima, e<br />

que a vocação de Cristo, tão provada e atestada, não granjeasse nenhum<br />

crédito entre eles. E, com o fim de demonstrar mais claramente<br />

sua estupidez ou malícia, ele engrandece a excelência do milagre a partir<br />

de sua consideração, ou seja: que, até onde pode ir a memória dos<br />

homens, ninguém jamais ouvira dizer que tal coisa fosse feita por um<br />

homem. Daí se segue que são maliciosos e ingratos, porque volunta-<br />

19 “De deschirer Dieu par pieces”.


Capítulo 9 • 419<br />

riamente fecharam seus olhos para a obra manifesta de Deus. Disto ele<br />

infere que Cristo fora enviado por Deus, porque ele se acha revestido<br />

com incomensurável poder do Espírito de Deus para granjear crédito<br />

para si e para sua doutrina.<br />

31. Ora, nós sabemos que Deus não ouve a pecadores. Os que<br />

pensam que o homem falou isso em concordância com a opinião do<br />

povo estão equivocados. Pois o termo pecador, nesta passagem, como<br />

em outra há pouco discutida, significa uma pessoa ímpia e imoral. É<br />

a doutrina invariável da Escritura que Deus não ouve a qualquer um,<br />

senão àqueles que o invocam em verdade e sinceridade. Pois enquanto<br />

somente a fé nos abre a porta de acesso a Deus, é certo que todos<br />

os perversos estão excluídos do acesso a ele, e ele ainda declara que<br />

odeia suas orações [Pv 28.9], bem como abomina seus sacrifícios [Pv<br />

15.8]. É por um privilégio especial que convida a si a seus filhos, e é<br />

tão-somente o Espírito de adoção que clama em nossos corações: Aba,<br />

Pai [Rm 8.15, Gl 4.6]. Em suma, ninguém está devidamente disposto<br />

a orar a Deus, a menos que seu coração seja purificado pela fé. Os<br />

perversos, porém, com suas orações profanam o sacro nome de Deus,<br />

e por isso merecem, antes, ser punidos por tal sacrilégio, em vez da<br />

obtenção de algo para a salvação. Consequentemente, o cego não arrazoa<br />

inconclusivamente, dizendo que Cristo veio de Deus, porque Deus<br />

inclina seus ouvidos favoravelmente a suas orações.<br />

[9.34-41]<br />

Responderam, e lhe disseram: Tu nasceste totalmente em pecados,<br />

e nos ensinas a nós? E o expulsaram. Jesus ouviu que<br />

o haviam expulsado, e o tendo encontrado, lhe disse: Crês no<br />

Filho de Deus? Ele respondeu e disse: Quem é ele, Senhor, para<br />

que eu nele creia? E Jesus lhe disse: Tu o tens visto, e é ele<br />

que fala contigo. E ele lhe disse: Senhor, eu creio, e o adorou.<br />

Então disse Jesus: Eu vim a este mundo para juízo, para que os<br />

que não veem vejam, e para que os que veem se tornem cegos.<br />

Alguns dentre os fariseus, que estavam com ele, ouviram essas


420 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

coisas e lhe disseram: E nós, também somos cegos? Disse-lhes<br />

Jesus: Se fôsseis cegos, não teríeis pecado, 20 mas agora dizeis:<br />

Nós vemos, por isso vosso pecado permanece.<br />

34. Tu nasceste totalmente em pecados. Não tenho dúvidas de<br />

que aludiam à cegueira dele. Com quanto orgulho costumam os homens<br />

caçoar de quem enfrenta algum estresse ou calamidade! E é<br />

por isso que eles o insultam sem cessar, como se saísse do ventre<br />

materno portando o estigma de seus pecados. Pois todos os escribas<br />

estavam convencidos em seus corações de que as almas, depois de<br />

haver concluído uma vida, ingressavam-se em novos corpos, e ali sofriam<br />

o castigo de seus crimes anteriores. Daí concluírem que aquele<br />

que nascia cego era concomitantemente coberto e contaminado por<br />

seus pecados.<br />

Essa injusta censura deve instruir-nos a sermos excessivamente<br />

cautelosos, evitando avaliar os pecados de alguém pelos castigos de<br />

Deus, pois, como já vimos, Deus tem vários fins a concretizar, ao infligir<br />

calamidades nos homens. Mas esses hipócritas não apenas insultam<br />

aquele que fora desafortunado, igualmente rejeitam desdenhosamente<br />

seus conselhos, embora fossem santos e bons, como deveras ocorre<br />

com muita frequência de alguém não poder suportar que seja instruído<br />

por quem ele mesmo despreza. Ora, visto que devemos sempre<br />

ouvir a Deus, seja quem for que ele use para isso, aprendamos a não<br />

desprezar a alguém, para que Deus sempre nos encontre dóceis e<br />

submissos, ainda quando ele empregue uma pessoa totalmente insignificante<br />

e desprezível para instruir-nos. Pois não há uma praga mais<br />

danosa do que quando o orgulho fecha nossos ouvidos, de modo que<br />

não nos dignamos ouvir aqueles que nos aconselham para nosso proveito.<br />

E frequentemente ocorre que Deus intencionalmente escolhe<br />

pessoas vis e indignas para instruir-nos e aconselhar-nos, a fim de que<br />

subjugar nosso orgulho.<br />

20 “Vous n’auriez point de peché” – “não teríeis nenhum pecado”.


Capítulo 9 • 421<br />

E o expulsaram. Embora seja possível que aqueles rabinos 21 arrogantes<br />

o tenham expulsado violentamente do templo, contudo creio<br />

que o evangelista tem uma intenção diferente, a saber, que o excomungaram.<br />

E assim sua expulsão dele teria a aparência de lei. Isso também<br />

se harmoniza melhor com o que se segue, pois se o tivessem expulsado<br />

de uma maneira desdenhosa e furiosa, não teria sido de tão grande<br />

importância como tornar provável que a notícia dela [a expulsão] chegasse<br />

a Cristo.<br />

35. Jesus ouviu que o expulsaram. À luz dessa circunstância conjeturo<br />

que todo o procedimento dela teve um toque de solenidade,<br />

como uma atividade de grande importância. Com este exemplo somos<br />

instruídos quão triviais e quão pouco devem ser temidas as excomunhões<br />

dos inimigos de Cristo. Se formos expulsos daquela assembleia<br />

que Cristo preside, é um terrível julgamento que se executa contra<br />

nós, para que sejamos entregues a Satanás [1Co 5.5], porque somos<br />

banidos do reino do Filho de Deus. Mas quanto a ter algum motivo<br />

de temer o julgamento tirânico por meio do qual os ímpios insultam<br />

os servos de Cristo, ainda quando ninguém nos expulse, devemos<br />

deliberadamente fugir daquele lugar onde Cristo não preside pela instrumentalidade<br />

de sua Palavra e seu Espírito.<br />

E o tendo encontrado. Se lhe fora permitido permanecer na sinagoga,<br />

teria corrido o risco de tornar-se paulatinamente alienado de<br />

Cristo e mergulhado na mesma destruição com os perversos. Então<br />

Cristo o encontra, quando não mais se acha no templo, mas vagava<br />

de um lado para outro. Ele o recebe e o abraça, quando é expulso<br />

pelos sacerdotes. Ele o soergue do pó e lhe oferece a vida depois de<br />

haver recebido a sentença de morte. Temos conhecimento de pessoas<br />

que têm tido a mesma experiência em nosso tempo. Pois quando o Dr.<br />

Martinho Lutero 22 e outras pessoas da mesma estirpe inicialmente reprovaram<br />

os mais grosseiros abusos do papa, quase ainda não tinham<br />

o mais leve sabor do cristianismo puro, porém depois que o papa vo-<br />

21 “Ces Rabbins orgueilleux”.<br />

22 “Le Docteur Martin Luther”.


422 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

ciferou contra eles, e os expulsou da sinagoga romana por meio de<br />

bulas terrificantes, Cristo estendeu sua mão e veio a ser plenamente<br />

conhecido deles. Portanto, nada nos é melhor do que manter-nos o<br />

mais distante possível dos inimigos do evangelho, para que Cristo se<br />

chegue mais perto de nós.<br />

Crês tu no Filho de Deus? Ele fala a um judeu que fora desde a<br />

infância instruído na doutrina da lei e aprendera que Deus havia prometido<br />

o Messias. Portanto, esta pergunta tem o mesmo significado<br />

como se Cristo o exortasse a seguir o Messias e a devotar-se a ele, embora<br />

empregue um título mais honroso do que costumavam empregar<br />

naquele tempo, porquanto o Messias era considerado meramente o<br />

filho de Davi [Mt 22.42].<br />

36. Quem é ele, Senhor, para que eu nele cria? À luz desta resposta<br />

do cego se faz evidente que, embora não tivesse ainda alcançado<br />

um claro e sólido conhecimento de Cristo, contudo era obediente<br />

e disposto a receber instrução, pois essas palavras significam: “Até<br />

onde ele se destina a mim, estou pronto a abraçá-lo”. Mas é preciso<br />

observar que o cego deseja ser instruído por Cristo no caráter de Profeta,<br />

pois ele já se convencera de que Cristo fora enviado por Deus, e<br />

por isso não deposita aleatoriamente confiança em sua doutrina.<br />

37. Tu o tens visto. Com estas palavras de Cristo o cego não podia<br />

estar em situação melhor do que com aquela porção ínfima e insípida<br />

de fé. Pois Cristo não faz menção de seu poder nem da razão por<br />

que fora enviado pelo Pai, nem do que trouxe aos homens. Mas o que<br />

primordialmente pertence à fé é saber que, mediante o sacrifício de<br />

sua morte, ele fez expiação por nossos pecados e somos reconciliados<br />

com Deus, que sua ressurreição foi um triunfo sobre a morte vencida,<br />

que somos renovados por seu Espírito a fim de morrermos para a carne<br />

e para o pecado e possamos viver para a justiça, que ele é o único<br />

Mediador, que o Espírito é o penhor de nossa adoção, em suma, que<br />

nele se encontra tudo quanto pertence à vida eterna. O evangelista,<br />

porém, ou não relata toda a conversão que teve com ele, ou apenas<br />

tem em mente que o cego professou sua adesão a Cristo, de modo que,


Capítulo 9 • 423<br />

doravante, passou a ser um de seus discípulos. Quanto a mim, particularmente,<br />

não tenho dúvida de que Jesus pretendia ser reconhecido<br />

por ele como o Cristo, para que, desde o nascedouro da fé, ele fosse<br />

em seguida levado a um conhecimento mais íntimo dele.<br />

38. E o adorou. É possível que se pergunte: O cego honrou ou<br />

adorou a Cristo como Deus? 23 A palavra que o evangelista emprega<br />

(προσέκυνησει) nada mais significa que expressar respeito e homenagem,<br />

pondo-se de joelhos ou por meio de outros sinais. Pessoalmente<br />

creio que ela denota algo raro e incomum, isto é, que o cego prestou<br />

a Cristo mais honra que faria a homem comum, ou inclusive a um<br />

profeta. E, no entanto, não creio que naquele momento ele tivesse<br />

feito progresso suficiente ao ponto de reconhecer que Cristo era manifestado<br />

na carne. Então, o que está implícito nesse adorou? O cego,<br />

convencido de que Jesus era o Filho de Deus, quase perdeu o controle<br />

de si mesmo e, extasiado de admiração, prostrou-se de joelhos<br />

diante dele.<br />

39. Eu vim a este mundo para juízo. O termo juízo, nesta passagem,<br />

não pode ser entendido como significando simplesmente o<br />

castigo que é infligido sobre os incrédulos, 24 e sobre aqueles que desprezam<br />

a Deus, pois nele está inclusa a graça da iluminação. Cristo,<br />

pois, o denomina de juízo, porque ele restaura à perfeita ordem o que<br />

estava desordenado e confuso, mas tenciona dizer que isso é feito pelo<br />

maravilhoso propósito de Deus e contraria a opinião comum dos homens.<br />

E a razão humana considera nada haver mais irracional do que<br />

dizer: aqueles que veem se tornem cegos pela luz do mundo. Este, pois,<br />

é um dos juízos secretos de Deus, pelo qual ele lança ao pó da terra<br />

o orgulho humano. É preciso observar que a cegueira que aqui é mencionada<br />

não procede tanto de Cristo quanto por culpa dos homens.<br />

Porque, por sua própria natureza e estritamente falando, ela não cega<br />

a ninguém, porém, como não há nada que os réprobos mais ansiosamente<br />

desejam do que extinguir sua luz, os olhos de sua mente, que se<br />

23 “Si l’aveugle a honoré ou adoré Christ comme Dieu”.<br />

24 “Aux infideles”.


424 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

acham enfermos pela malícia e depravação, seriam ofuscados pela luz<br />

que se lhes exibe. Em suma, visto que Cristo é, por sua própria natureza,<br />

a luz do mundo [Jo 8.12], é um resultado acidental que alguns se<br />

tornem cegos com sua vinda.<br />

Mas, uma vez mais se pode inquirir: Visto que todos são universalmente<br />

acusados de cegueira, quem são os que veem? Eis minha<br />

resposta: isso é expresso ironicamente à guisa de concessão, porque<br />

os incrédulos, ainda que sejam cegos, acreditam que sua vista é inusitadamente<br />

penetrante e poderosa, e inflado por tal confiança, não se<br />

dignam ouvir a Deus. Além disso, fora de Cristo a sabedoria da carne<br />

tem a aparência de realidade, porque o mundo não discerne o que é<br />

ser verdadeiramente sábio. Assim, pois, eles veem, diz o Senhor Jesus<br />

Cristo, 25 os quais, enganando a si mesmos e a outros com a néscia confiança<br />

em sua sabedoria, são guiados por sua própria opinião e creem<br />

que suas vãs imaginações equivalem a grande sabedoria. 26 Tais pessoas,<br />

tão logo Cristo surja no esplendor de seu evangelho, se tornam<br />

cegas, não só porque sua estultícia, que anteriormente estava envolvida<br />

pelas densas trevas da incredulidade, agora se põe a descoberto,<br />

mas porque, estando mergulhada nas mais profundas trevas pela justa<br />

vingança de Deus, perdem aquele pequeno raio sei lá de que tipo de<br />

luz que anteriormente possuíam.<br />

É verdade que todos nós nascemos cegos, mas até que, no meio<br />

das trevas da natureza corrompida e depravada, algumas fagulhas<br />

passem a brilhar, de modo que os homens difiram dos animais brutos.<br />

Ora, se alguém, inflado por soberba confiança em sua própria<br />

opinião, se recuse a submeter-se a Deus, o mesmo parecerá – à parte<br />

de Cristo – ser sábio, porém o esplendor de Cristo o golpeará com<br />

desvanecimento, porque jamais a vaidade da mente humana passa a<br />

ser descoberta até que a sabedoria celestial seja introduzida em seu<br />

íntimo. Cristo, porém, como eu já sugeri, pretendia expressar algo<br />

mais por essas palavras. Pois os hipócritas não resistem tão obstina-<br />

25 “Ceux voyent, dit nostre Seigneur jesus Christ”.<br />

26 “Pour une grande ságesse”.


Capítulo 9 • 425<br />

damente a Deus antes que Cristo resplandeça, mas tão logo a luz é<br />

trazida para perto deles, então, em guerra franca – por assim dizer,<br />

com bandeira hasteada –, 27 se erguem contra Deus. Portanto, é em decorrência<br />

dessa depravação e ingratidão que se tornam duplamente<br />

cegos, e que Deus, com justa vingança, apaga totalmente seus olhos, os<br />

quais previamente eram destituídos da verdadeira luz.<br />

Agora percebemos o equivalente do que se declara nesta passagem,<br />

a saber, que Cristo veio ao mundo para dar vista ao cego, bem<br />

como conduzir à demência aqueles que pensam que são sábios. Na<br />

primeira parte ele menciona a iluminação: aqueles que veem, não vejam,<br />

porque esta é estritamente a causa de sua vinda, pois ele não veio<br />

para julgar o mundo, mas para salvar aquilo que estava perdido [Mt<br />

18.11]. Da mesma forma Paulo, ao declarar que ele [Deus] exerce vingança<br />

preparada contra todos os rebeldes, ao mesmo tempo acrescenta<br />

que esse castigo se concretizará depois que os crentes tiverem cumprido<br />

sua obediência [2Co 10.6]. E essa vingança não deve limitar-se à<br />

pessoa de Cristo, como se ele não efetuasse a mesma coisa diariamente<br />

pela instrumentalidade dos ministros de seu evangelho.<br />

Devemos ser mui precavidos para que não suceda que algum de<br />

nós, através de uma tola e extravagante opinião sobre sua sabedoria,<br />

atraia sobre si esse terrível castigo. A experiência, porém, nos mostra<br />

a veracidade dessa afirmação que Cristo enunciou, pois observamos<br />

muitas pessoas abaladas com vertigem e furor, por nenhuma outra razão<br />

senão porque não podem suportar a manifestação do Sol da Justiça.<br />

Adão viveu e foi revestido com a verdadeira luz do entendimento, embora<br />

perdesse aquela bênção divina por desejar ver mais do que lhe<br />

fora permitido. Ora, se enquanto estivermos mergulhados em cegueira<br />

e assim humilhados pelo Senhor, contudo nos vangloriarmos de nossas<br />

trevas, e opondo nossa má visão à sabedoria celestial, não carece que<br />

nos surpreendamos se a vingança de Deus recair do céu sobre nós, de<br />

modo a nos tornarmos duplamente cegos. Este mesmo castigo foi anti-<br />

27 “Et comme à enseigne desployes”.


426 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

gamente infligido sobre os perversos e incrédulos 28 sob a lei, porquanto<br />

Isaías é enviado a cegar o antigo povo para que, vendo, não vejam, cega<br />

o coração desse povo e fecha-lhe os ouvidos [Is 6.9]. Mas, em proporção,<br />

como o esplendor da luz divina é mais plenamente exibido em Cristo do<br />

que nos profetas, assim muito mais notavelmente deve este exemplo de<br />

cegueira ter-se manifesto e percebido, como ainda agora a luz meridiana<br />

do evangelho desperta nos hipócritas extremo furor.<br />

40. Alguns dos fariseus ouviram. Instantaneamente perceberam<br />

que eram visados por esse dito de Cristo, e, no entanto, não parecem<br />

ter pertencido à pior classe, pois os inimigos francos sentiam por Cristo<br />

uma aversão tão forte que de forma alguma se associavam com ele.<br />

Esses homens, porém, se sujeitavam ouvir a Cristo, não obstante sem<br />

qualquer proveito, pois ninguém é qualificado a ser discípulo de Cristo<br />

até que renuncie a si mesmo, e eles estavam longe desse padrão.<br />

Nós também somos cegos? Esta pergunta fluiu da indignação, porque<br />

criam estar sendo insultados ao serem classificados como cegos,<br />

e, ao mesmo tempo, ela mostra um arrogante desdém pela graça de<br />

Cristo, acompanhado por motejo, como se quisessem dizer: “Tu não<br />

podes atingir nossa reputação sem envolver-nos em desgraça, e devemos<br />

suportar que granjeies honra para ti nos censurando? Quanto à<br />

promessa que fazes de dar nova luz aos cegos, morre e nos deixe com<br />

teu benefício, pois não escolhemos receber vista de ti sob a condição<br />

de admitir que temos sido até então cegos”. Com isso percebemos que<br />

a hipocrisia sempre existiu saturada de soberba e veneno. A soberba<br />

se manifesta em os soberbos viverem satisfeitos consigo mesmos e recusar<br />

permitir que algo lhes seja tirado, e o veneno por se enfurecerem<br />

contra Cristo e em resisti-lo quando ele realça suas feridas, como se<br />

lhes houvera infligido um grave golpe. Daí surgir o desprezo por Cristo<br />

e pela graça que lhes é oferecida.<br />

A palavra também é enfática, pois significa que, embora todos os<br />

demais sejam cegos, contudo é impróprio que sejam considerados per-<br />

28 “Les mechans et infideles”.


Capítulo 9 • 427<br />

tencentes à condição ordinária. É uma falta muito comum entre os que<br />

se distinguem acima dos demais, que se deixam intoxicar pela soberba<br />

e quase se esquecem que também são seres humanos.<br />

41. Se fôsseis cegos. Estas palavras podem ser explicadas de duas<br />

formas: ou que a ignorância, em algum grau, aliava sua culpa, caso não<br />

fossem plenamente convencidos e deliberadamente não lutassem contra<br />

a verdade, ou que havia razão para esperança de que sua doença<br />

de ignorância fosse curada, caso apenas a reconhecessem. O primeiro<br />

ponto de vista é endossado pelas palavras de Cristo: Se eu não viera<br />

e não lhes houvera falado, não teriam pecado nenhum [Jo 15.22]. Mas<br />

como se acrescenta nesta passagem, mas gora que vos fala, vós vedes,<br />

a fim de que os pontos de contraste se correspondam reciprocamente,<br />

parece ser mais consistente explicá-las no sentido em que cego é<br />

aquele que, tendo ciência de sua própria cegueira, busca um remédio<br />

para a cura de sua enfermidade. 29 Dessa forma o significado será: “Se<br />

reconhecerdes vossa doença, não sereis totalmente incuráveis, mas<br />

agora, visto que pensais estardes em perfeita saúde, continuais num<br />

estado irremediável”. Ao dizer que se fossem cegos não teriam pecado<br />

algum, isso não justifica a ignorância, como se ela fosse inofensiva e<br />

estivesse além do alcance da condenação. Ele apenas insinua que a<br />

doença seria facilmente curada, se fosse realmente sentida, porque,<br />

quando o cego está desejoso de obter livramento, Deus está pronto a<br />

atendê-lo, mas aqueles que, insensíveis a suas doenças, desprezam a<br />

graça de Deus, são incuráveis.<br />

29 “Pour guairir son mal”.


Capítulo 10<br />

[10.1-6]<br />

Em verdade, em verdade eu vos digo: Aquele que não entra<br />

no aprisco pela porta, mas que sobe por outra via, é ladrão e<br />

salteador. Aquele, porém, que entra pela porta é o pastor das<br />

ovelhas. A esse o porteiro abre e as ovelhas ouvem sua voz, e<br />

ele chama suas próprias ovelhas pelo nome, e as conduz para<br />

fora. E havendo tirado para fora suas próprias ovelhas, ele<br />

vai adiante delas, e as ovelhas o seguem, pois conhecem sua<br />

voz. Elas, porém, não seguirão um estranho, mas fugirá dele,<br />

porque não conhecem a voz de estranhos. Jesus lhes contou<br />

esta parábola, eles, porém, não entenderam o que era que ele<br />

lhes dizia.<br />

1. Em verdade, em verdade eu vos digo. Visto que Cristo tinha a<br />

ver com os escribas e sacerdotes, que eram considerados os pastores<br />

da Igreja, era necessário que fossem despidos da honra desse título,<br />

se ele quisesse que sua doutrina fosse recebida. O pequeno número<br />

de crentes poderia também diminuir grandemente a autoridade de sua<br />

doutrina. Ele, pois, argumenta dizendo que não devemos levar em conta,<br />

no número de pastores ou de ovelhas, todos quantos externamente<br />

reivindicam um lugar na Igreja. Mas jamais seremos capazes de, por<br />

meio dessa marca, distinguir os pastores legítimos dos réprobos, e as<br />

ovelhas verdadeiras das falsas, caso tenhamos todos o mesmo objetivo<br />

do princípio ao fim.


430 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Esta advertência tem sido sumamente útil em todas as épocas, e<br />

na atualidade ela é especialmente necessária. Nenhuma praga é mais<br />

destrutiva à Igreja do que quando lobos devastam sob a vestimenta<br />

de pastores. E também sabemos quão grave ofensa é quando israelitas<br />

bastardos e degenerados pretendem ser os filhos da Igreja e, sob esse<br />

pretexto, insultam os crentes. Na atualidade, porém, não há nada que<br />

leva as pessoas fracas e ignorantes a se sentirem mais alarmadas do<br />

que quando veem o santuário de Deus ocupado pelos mais ferrenhos<br />

inimigos da Igreja, pois não é fácil fazê-las entender que é à doutrina<br />

de Cristo que os pastores da Igreja tão ferozmente resistem. Além<br />

disso, como a maioria dos homens é levada a vários erros por falsas<br />

doutrinas, enquanto os pontos de vista e expectativas de cada pessoa<br />

são dirigidos a outros, raramente alguém permite ser conduzido<br />

à vereda reta. Portanto, devemos acima de tudo guardar-nos contra o<br />

engano procedente de pretensos pastores ou ovelhas falsas, caso não<br />

queiramos, de iniciativa própria, expor-nos aos lobos e ladrões. O título<br />

‘Igreja’ é sumamente honroso e meritoriamente. Mas, por mais<br />

reverência ela mereça, tanto mais cuidadosos e atentos devemos ser<br />

em traçar a distinção entre a verdadeira e a falsa doutrina. Cristo aqui<br />

declara publicamente que não devemos considerar como pastores todos<br />

os que se gabam de ser tais, e que não devemos considerar como<br />

ovelhas todas as que se gabam de marcas externas. Ele fala da Igreja<br />

judaica, porém o que diz se aplica igualmente bem à nossa. Devemos<br />

também considerar seu propósito e desígnio, a saber, que as consciências<br />

fracas não podem ser alarmadas nem desencorajadas, quando<br />

percebem que aqueles que governam na Igreja, em vez de ser pastores,<br />

são hostis ou opostos ao evangelho, e que não podem apostatar da fé,<br />

porque contam com poucos co-discípulos atendendo a Cristo, entre os<br />

que são chamados cristãos.<br />

Aquele que não entra pela porta. É inútil, creio eu, examinar de<br />

forma demasiadamente minuciosa cada parte desta parábola. Descansemos<br />

satisfeitos com este conceito geral: como Cristo declara haver<br />

certa semelhança entre a Igreja e um aprisco, no qual Deus congrega


Capítulo 10 • 431<br />

todo seu povo, assim ele se compara a uma porta, porque não existe<br />

outro ingresso na Igreja senão por meio dele. Daí se segue que só serão<br />

bons pastores os que conduzem os homens diretamente a Cristo, e<br />

que só se reunirão verdadeiramente no redil de Cristo, para que pertençam<br />

a seu rebanho, os que se devotam exclusivamente a Cristo.<br />

Mas tudo isso se relaciona à doutrina, porque, visto que todos os<br />

tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos em Cristo [Cl 2.3],<br />

aquele que se desvia dele, tomando outros desvios, não se mantém<br />

na estrada nem entra pela porta. Ora, todo aquele que não despreza<br />

a Cristo nem a seu instrutor facilmente se desvencilhará daquela hesitação<br />

que mantém tantos em um estado de perplexidade, qual é a<br />

Igreja e quem são aqueles a quem devemos ouvir como pastores. Pois<br />

se aqueles que se chamam pastores tentam nos desviar de Cristo, nosso<br />

dever é fugir deles, sob a ordem de Cristo, como fugiríamos dos<br />

lobos e dos ladrões, e não devemos formar nem manter comunhão com<br />

qualquer sociedade senão com aquela que se harmoniza com a fé pura<br />

do evangelho. Por essa razão Cristo exorta seus discípulos a se separarem<br />

da multidão incrédula de toda a nação, não se deixar governar<br />

por sacerdotes ímpios e não permitir que se imponham com títulos<br />

soberbos e fúteis.<br />

3. A ele o porteiro abre. Se pelo termo Porteiro 1 alguém prefere<br />

entender uma referência a Deus, não faço objeção, e Cristo parece<br />

contrastar expressamente o juízo divino com a falsa opinião humana<br />

na aprovação dos pastores, como se quisesse dizer: “De fato há outros<br />

a quem o mundo geralmente aplaude e sobre quem espontaneamente<br />

confere honra, Deus, porém, que mantém as rédeas do governo, não<br />

reconhece nem aprova a qualquer um senão aqueles que conduzem as<br />

ovelhas por essa vereda”.<br />

Ele chama pelo nome suas próprias ovelhas. Considero isso<br />

como uma referência ao consenso mútuo da fé, porque o discípulo e<br />

o mestre se acham intimamente unidos pelo mesmo Espírito de Deus,<br />

1 “Si par ce mot de Portier”.


432 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

de modo que o mestre vai adiante, e o discípulo segue após. Há alguns<br />

que pensam que aqui se denota o conhecimento íntimo que cada pastor<br />

deve manter com cada membro de seu rebanho, porém não sei se<br />

isso repousa sobre bases sólidas.<br />

4. Porque conhecem sua voz. Embora ele fale aqui de ministros,<br />

contudo, em vez de desejar que sejam ouvidos, ele deseja que Deus<br />

seja ouvido falando através deles, pois devemos atentar para a distinção<br />

que ele estabelece, de que o único pastor ou ministro 2 fiel da Igreja<br />

é aquele que conduz e governa suas ovelhas pela orientação de Cristo.<br />

Devemos atentar para a razão por que se diz que as ovelhas o seguem,<br />

é porque sabem como distinguir os pastores dos lobos pela voz. Este é<br />

o espírito de discernimento, pelo qual os eleitos discriminam entre a<br />

verdade de Deus e as falsas invenções dos homens. Portanto, nas ovelhas<br />

de Cristo o conhecimento da verdade vai adiante, e depois segue<br />

um ardente desejo de obedecer, de modo que não só entendem o que<br />

é verdadeiro, mas o recebem com efusivo afeto. E ele não apenas enaltece<br />

a obediência da fé, porque as ovelhas se reúnem submissamente<br />

à voz do pastor, mas também porque não ouvem a voz dos estranhos<br />

e não se dispersam quando alguém grita com elas.<br />

6. Esta parábola. Eis a razão por que, orgulhosamente se jactando<br />

de sua sabedoria, rejeitaram a luz de Cristo, porque em uma<br />

questão não tão obscura revelam que sua apreensão é excessivamente<br />

embotada.<br />

Eles, porém, não entenderam de que tipo de coisas ele lhes<br />

falava. Nesta sentença os manuscritos gregos diferem. Algumas cópias<br />

podem ser literalmente traduzidas: eles não entenderam o que<br />

ele dizia. Outra redação, a que tenho seguido, é mais completa, ainda<br />

que seu significado seja equivalente. A terceira redação é: eles não<br />

sabiam que aquele que lhes falava era o Filho de Deus, porém esta não<br />

é muito aprovada.<br />

2 A palavra pastor significa ministro, porém, por causa do leitor que talvez não esteja<br />

ciente de sua etimologia, tem se tornado necessário, em alguns casos, empregar ambos<br />

os termos, especialmente onde a figura mantém um lugar tão proeminente na discussão.


Capítulo 10 • 433<br />

[10.7-10]<br />

E Jesus lhes disse outra vez: Em verdade, em verdade eu vos<br />

digo: Eu sou a porta das ovelhas. Todos quantos entraram antes<br />

de mim são ladrões e salteadores, mas as ovelhas não os<br />

ouviram. Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, esse será<br />

salvo, e entrará, e sairá, e achará pastagem. O ladrão não vem<br />

senão para roubar, matar e destruir, eu vim para que tenham<br />

vida, e para que a tenham com mais abundância.<br />

7. Eu sou a porta. Se esta explanação não fosse adicionada, todo<br />

o discurso teria sido alegórico. Ele agora explica mais claramente qual<br />

era a parte primordial da parábola quando declara que: eu sou a porta.<br />

O equivalente dessa afirmação é que o ponto principal de toda a<br />

doutrina espiritual, da qual as almas se alimentam, consiste em Cristo.<br />

Daí Paulo, um dos pastores, também dizer: Nada considero digno de<br />

ser conhecido, senão Jesus Cristo [1Co 2.2]. E essa forma de expressão<br />

comunica o mesmo significado como se Cristo tivesse testificado que<br />

somente a ele é que todos nós devemos congregar-nos. Portanto, ele<br />

convoca e exorta a todos os que desejam a salvação a ir a ele. Com<br />

essas palavras, sua intenção é dizer que em vão vagueiam aqueles que<br />

o deixam para ir [diretamente] a Deus, porque só existe uma porta<br />

aberta, e todo acesso, de qualquer outra maneira, é proibido.<br />

8. Todos quantos vieram antes de mim. As palavras πάντες ὅσοι<br />

podem ser literalmente traduzidas todos, tantos quantos vieram antes<br />

de mim. Os que restringem esta expressão a Judas o galileu, em<br />

minha opinião, se afastam muito da intenção de Cristo. Pois ele contrasta<br />

toda falsa doutrina, em geral, com o evangelho, e todos os falsos<br />

profetas com os mestres fiéis. Nem mesmo seria razoável estender<br />

esta afirmação aos gentios, todos os que, desde o princípio do mundo,<br />

têm professado ser mestres e não labutado para unir as ovelhas a<br />

Cristo têm usado mal este título para destruir as almas. Mas isso não<br />

se plica absolutamente a Moisés e aos Profetas, os quais não tiveram<br />

outro propósito em vista senão estabelecer o reino de Cristo. Pois é


434 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

preciso observar que um contraste é aqui traçado entre as palavras de<br />

Cristo e aquelas coisas que se lhe opõem. Longe, porém, estamos de<br />

descobrir qualquer contradição entre a lei e a doutrina do evangelho,<br />

que a lei nada mais é senão a preparação para o evangelho. Em suma,<br />

Cristo testifica que todas as doutrinas, por meio das quais o mundo<br />

se tem desviado dele, são tantas pragas mortais, porque, à parte dele,<br />

nada há senão destruição e horrível confusão. Entrementes, vemos de<br />

que importância é a antiguidade em relação a Deus, e em que estima<br />

deve ela ser tida por nós, quando entramos, por assim dizer, em disputa<br />

com Cristo. Que ninguém se deixe comover pela consideração de<br />

que tem havido mestres, em todas as épocas, que não se preocupam<br />

um mínimo sequer em conduzir os homens a Cristo, e este declara expressamente<br />

que não é de nenhuma importância quantos têm existido<br />

desse gênero, ou quão cedo começaram a surgir, pois é preciso levar<br />

em conta que só existe uma única porta, e que aqueles que a abandonam<br />

e fazem aberturas ou brechas nos muros são ladrões.<br />

As ovelhas, porém, não os ouviram. Ele agora confirma mais claramente<br />

o que já havia falado de uma forma obscura e na figura de<br />

uma alegoria, dizendo que os que se deixaram desviar do caminho por<br />

impostores não pertencem à Igreja de Deus. Em primeiro lugar, lemos<br />

que quando virmos uma grande multidão de pessoas se desviando,<br />

não devemos deixar-nos perecer seguindo o mesmo exemplo, e, em segundo<br />

lugar, que não oscilemos quando Deus permitir que impostores<br />

enganem a muitos. Pois não é uma fraca consolação, nem pequeno motivo<br />

de confiança, quando sabemos que Cristo, por sua fiel proteção,<br />

sempre guardou suas ovelhas quando estas se veem no meio de variados<br />

ataques e astutos engenhos dos lobos e salteadores, de modo que<br />

nunca haja alguma delas que se deserte dele. 3<br />

Aqui, porém, vem a lume uma pergunta: Quando uma pessoa começa<br />

a pertencer ao rebanho do Filho de Deus? 4 Pois notamos muitos<br />

que se perdem e perambulam pelos desertos durante a maior parte<br />

3 “En sorte qu’il n’y en a pas eu une seule qui l’ait laissé”.<br />

4 “Du troupeau du Fils de Dieu”.


Capítulo 10 • 435<br />

de sua vida, e que por fim são reconduzidos ao rebanho de Cristo. Eis<br />

minha resposta: a palavra ovelha é aqui usada de duas formas. Quando<br />

Cristo diz em seguida que ele tem outras ovelhas além destas, ele inclui<br />

todos os eleitos de Deus, os quais naquele tempo se assemelhavam a<br />

ovelhas. Aqui, ele quer dizer as ovelhas que portam a marca do pastor.<br />

Estamos, por natureza, longe demais de ser ovelhas, mas, ao contrário,<br />

nascemos leões, tigres, lobos e ursos, 5 até que o Espírito de Cristo nos<br />

domestique, e de bestas selvagens e indomáveis nos transforma em<br />

dóceis ovelhas. E assim, de acordo com a eleição secreta de Deus, já<br />

somos ovelhas em seu coração, antes mesmo de nascermos, porém<br />

começamos a ser ovelhas em nós mesmos pela vocação, por meio da<br />

qual ele nos congrega ao seu rebanho. Cristo declara que aqueles que<br />

são chamados para a ordem dos crentes são tão firmemente agregados<br />

uns aos outros, que não podem se transviar nem perambular, nem<br />

mesmo ser arrebatados por algum vento de nova doutrina.<br />

Talvez surja a objeção: mesmo aqueles que se têm devotados a<br />

Cristo frequentemente se transviam, e que isso é provado pela frequente<br />

experiência, e que não é sem boas razões que Ezequiel atribua<br />

ao bom Pastor o fato de as ovelhas dispersas [Ez 34.12] serem arrebanhadas.<br />

Prontamente reconheço que se dá com muita frequência<br />

que aqueles que pertenciam à família da fé são, por algum tempo,<br />

alienados, mas isso não constitui uma contradição com a afirmação<br />

de Cristo, porque, enquanto se desviam, cessam, em alguns aspectos,<br />

de ser ovelhas. O que Cristo tem em mente é simplesmente isto:<br />

que todos os eleitos de Deus, ainda que sejam tentados a se desviar<br />

por inumeráveis caminhos, são mantidos em obediência à fé pura, de<br />

modo a não se transformarem em presa de Satanás nem em seus ministros.<br />

Mas esta obra de Deus não é menos espantosa, quando ele<br />

novamente congrega as ovelhas que por um pouco se extraviaram,<br />

do que se tivessem todas elas juntas continuado a viver fechadas no<br />

aprisco. É sempre verídico, e sem uma única exceção, que aqueles que<br />

5 “Lions, tygres, loups, et ours”.


436 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

se apartam de nós, não são dos nossos, mas aqueles que são dos nossos<br />

permanecem conosco até o fim [1Jo 2.19].<br />

Esta passagem deveria nos golpear com a mais profunda vergonha,<br />

primeiramente, porque somos tão mal acostumados com a voz de<br />

nosso Pastor, que dificilmente há um que não a ouça com indiferença,<br />

e, em segundo lugar, porque somos por demais morosos e indolentes<br />

em segui-lo. Falo dos bons, ou daqueles que são pelo menos admissíveis,<br />

pois a maioria dos que se gabam de que são discípulos de Cristo<br />

escoiceiam ferozmente contra ele. Por último, tão logo a voz de algum<br />

estranho soa em nossos ouvidos, passamos a correr de um lado a outro,<br />

e essa leviandade e instabilidade mostram suficientemente quão<br />

pouco progresso na fé temos feito até agora. Mas se o número de crentes<br />

é menor do que se poderia desejar, e se desse pequeno número<br />

uma grande proporção for continuamente diminuindo, os mestres fiéis<br />

têm esta consolação em seu apoio: que os eleitos de Deus, que são<br />

as ovelhas de Cristo, os ouvirão. É nosso dever, aliás, labutar diligentemente,<br />

e usarmos todos os métodos possíveis, pela unidade da fé,<br />

mas que nós, nesse ínterim, vivamos bem satisfeitos em pertencer ao<br />

número dos fiéis.<br />

9. Se alguém entrar por mim. A mais sublime consolação dos<br />

crentes é que quando já tiverem abraçado a Cristo, aprendam que estão<br />

fora de perigo, pois Cristo lhes promete a salvação e a felicidade.<br />

Em seguida ele os divide em duas partes.<br />

Entrarão e sairão e acharão pastagem. Primeiro, irão em segurança<br />

sempre que for necessário, e, segundo, serão alimentados até<br />

serem saciados. Por entrar e sair, a Escritura às vezes denota todas<br />

as ações da vida, como dizemos em francês: aller et venir (ir e vir), 6<br />

que significa habitar. Estas palavras, pois, nos apresentam uma dupla<br />

vantagem do evangelho, de que nossas almas acharão pastagens nele<br />

[evangelho], as quais de outra forma viriam a desfalecer de fome, e<br />

6 Uma frase na lei escocesa, denotando o pleno direito de ocupar uma casa ou qualquer<br />

propriedade é plena saída e entrada, ou em outros termos, o direito de sair e de entrar,<br />

segundo o agrado dos ocupantes.


Capítulo 10 • 437<br />

seriam alimentadas com nada mais senão com vento, e, em segundo<br />

lugar, porque ele fielmente nos protegerá e nos guardará contra os ataques<br />

de lobos e salteadores.<br />

10. O ladrão não vem. Com este dito Cristo – se pudermos<br />

usar a expressão – nos puxa as orelhas, para que os ministros de<br />

Satanás não nos sobrevenham de surpresa, quando nos acharmos<br />

em estado de torpor e displicência. Pois nossa excessiva indiferença<br />

nos expõe, de todos os lados, às falsas doutrinas. Pois donde<br />

surge credulidade tão arraigada, que aqueles que deveriam ter permanecido<br />

firmes em Cristo, se deixam levar por uma multidão de<br />

erros, senão porque não temem suficientemente nem se guardam<br />

contra tantos falsos mestres? E não apenas isso, mas nossa insaciável<br />

curiosidade se deleita tanto com novas e estranhas invenções<br />

dos homens, que voluntariamente corremos displicentemente para<br />

os braços dos ladrões e dos lobos. Portanto, não é sem razão que<br />

Cristo testifica que os falsos mestres, por mais que sejam dóceis e<br />

plausíveis em sua conduta, sempre aplicam um veneno letal, para<br />

que sejamos mais cuidadosos em espantá-los de nós. Um conselho<br />

semelhante é ministrado por Paulo: Vede que ninguém vos defraude<br />

com sua vão filosofia [Cl 2.8].<br />

Eu vim. Esta é uma comparação diferente, pois Cristo, tendo até<br />

agora se autodenominado a porta, e declara que aqueles que conduzem<br />

as ovelhas a esta porta são verdadeiros pastores, agora assume o<br />

caráter de um pastor, e deveras afirma que ele é o único Pastor. Aliás,<br />

não há outro a quem esta honra e título pertencem estritamente, pois,<br />

no que concerne a todos os pastores da Igreja, é ele que os levanta, os<br />

dota com as qualificações necessárias, os governa por meio de seu<br />

Espírito e opera por meio deles. E por isso eles não o impedem de ser<br />

o único Governante de sua Igreja, ou de manter a distinção de ser o<br />

único Pastor. Porque, ainda que faça uso de seus ministros, contudo<br />

não cessa de cumprir e de desempenhar o ofício de pastor por seu próprio<br />

poder, e aqueles que são mestres ou mentores, que forma alguma<br />

interfiram com sua autoridade como se fossem senhores. Em suma,


438 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

quando o termo pastor é aplicado aos homens, ele é usado, como dizemos,<br />

em um sentido subordinado, e Cristo partilha a honra com seus<br />

ministros de uma maneira tal que ele ainda continua a ser o único<br />

pastor, tanto deles quanto de todo o rebanho.<br />

Para que tenham vida. Ao dizer que ele veio para que as ovelhas<br />

tenham vida, sua intenção é que somente os que não se submetem ao<br />

seu bordão e ao seu cajado [Sl 23.4] é que se expõem à voracidade dos<br />

lobos e ladrões, e – para imprimir-lhes maior confiança – declara que<br />

a vida é continuamente aumentada e fortalecida naqueles que não se<br />

rebelam contra ele. E, deveras, quanto maior progresso que alguém<br />

faz na fé, mais perto ele se aproxima da plenitude da vida, porque o<br />

Espírito, que é vida, cresce nele.<br />

[10.11-15]<br />

Eu sou o bom pastor, o bom pastor dá sua vida pelas ovelhas.<br />

O mercenário, porém, e aquele que não é o pastor, a quem não<br />

pertencem as ovelhas, vê vir o lobo e abandona as ovelhas e<br />

foge, e o lobo as dilacera e dispersa as ovelhas.O mercenário<br />

foge porque é mercenário e não tem cuidado com as ovelhas.<br />

Eu sou bom pastor, e conheço minhas ovelhas e por elas sou<br />

conhecido. Como o Pai me conhece, eu também conheço o Pai,<br />

e dou minha vida pelas ovelhas.<br />

11. O bom pastor dá sua vida pelas ovelhas. Com base no extraordinário<br />

afeto que ele nutre para com as ovelhas ele mostra quão<br />

veridicamente ele age em favor delas no caráter de pastor, pois ele se<br />

sente tão ansioso pela salvação delas, que nem mesmo poupa sua própria<br />

vida. Daí se segue que, aqueles que rejeitam a guarda de um pastor<br />

tão bondoso e confiável são excessivamente ingratos, e merecem morrer<br />

centenas de vezes e se expõem a todo tipo de males. A observação<br />

de Agostinho é extremamente justa, a saber, que esta passagem nos<br />

informa sobre o que devemos desejar, sobre o que devemos evitar e<br />

sobre o que devemos suportar, no governo da Igreja. Nada é mais de-


Capítulo 10 • 439<br />

sejável do que ser a Igreja governada por bons e diligentes pastores.<br />

Cristo declara que ele é o bom pastor, que conserva sua Igreja segura<br />

e saudável, em primeiro lugar por ele mesmo, e em segundo por seus<br />

agentes. Sempre que houver boa ordem e homens aptos à testa do<br />

governo, Cristo mostra que realmente ele está ali como o pastor. Mas<br />

também há muitos lobos e ladrões que, travestidos de pastores, perversamente<br />

dispersam a Igreja. Seja qual for o nome que tais pessoas<br />

assumam, Cristo adverte que nosso dever é evitá-los.<br />

O mercenário, porém. Por mercenários devemos entender os<br />

que retêm a sã doutrina e que proclamam a verdade, como diz Paulo,<br />

para servir a um propósito que está bem longe de ser zeloso e puro.<br />

Ainda que tais pessoas não sirvam a Cristo fielmente, contudo devemos<br />

ouvi-las, pois Cristo desejava que os fariseus o ouvissem, porque<br />

se sentavam na cadeira de Moisés [Mt 23.2], e de igual modo deve ser<br />

nossa honra ao evangelho, não nos esquivando de seus ministros, ainda<br />

quando não sejam homens bons. E mesmo quando os mais leves<br />

escândalos tornem o evangelho desagradável a nosso paladar, para<br />

não servos detidos por esses falsos manjares, lembremo-nos sempre<br />

do que tenho com frequência sugerido: que se o Espírito de Cristo não<br />

operar mui poderosamente nos ministros, ao ponto de tornar claramente<br />

evidente que ele é o pastor deles, sofremos o castigo de nossos<br />

pecados e, no entanto, nossa obediência é provada.<br />

E aquele que não é o pastor. Ainda que Cristo reivindique exclusivamente<br />

para si o título de pastor, contudo indiretamente ele afirma<br />

que, em alguns aspectos, ele o partilha com os agentes por meio de<br />

quem ele age. Pois sabemos que tem havido muitos, desde os tempos<br />

de Cristo, que não hesitam em derramar seu próprio sangue para<br />

a salvação da Igreja, e inclusive os profetas, antes de sua vinda, não<br />

pouparam sua própria vida. Mas em sua própria pessoa ele exibe um<br />

exemplo perfeito, para que fosse estabelecida uma norma para seus<br />

ministros. Pois quão vil e vergonhoso é nossa indolência, se nossa vida<br />

nos for mais preciosa do que a salvação da Igreja, a qual Cristo preferiu<br />

a sua própria vida!


440 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

O que aqui se diz sobre dar a vida pelas ovelhas pode ser considerado<br />

como uma marca indubitável e primordial de afeição paternal.<br />

Em primeiro lugar Cristo pretendia demonstrar que prova extraordinária<br />

ele deu de seu amor por nós, e, em segundo lugar, ele anima a<br />

todos seus ministros a imitarem seu exemplo. Não obstante, devemos<br />

atentar para a diferença existente entre eles e ele. Ele deu sua<br />

vida como o preço da satisfação, derramou seu sangue para purificar<br />

nossas almas, ofereceu seu corpo como um sacrifício propiciatório<br />

para reconciliar o Pai conosco. Nada de tudo isso pode existir nos<br />

ministros do evangelho, todos eles necessitam de ser purificados e<br />

receber a expiação e reconciliação divinas por meio daquele sacrifício<br />

singular. Cristo, porém, não argumenta aqui sobre a eficácia ou<br />

benefício de sua morte, ao ponto de comparar-se com outros, mas<br />

para provar com que zelo e afeto 7 ele se sensibiliza por nós, e, em segundo<br />

lugar, convida outros a seguirem seu exemplo. Em suma, visto<br />

que pertence exclusivamente a Cristo granjear-nos vida por meio de<br />

sua morte, e cumprir tudo o que está contido no evangelho, assim é o<br />

dever universal de todos os pastores ou ministros defender a doutrina<br />

que proclamam, ainda que seja às custas de sua própria vida, e selar<br />

a doutrina do evangelho com seu próprio sangue, bem como mostrar<br />

que não é sem razão que ensinam que Cristo conquistou a salvação<br />

para eles e para outros.<br />

Aqui, porém, pode formular-se uma pergunta. Podemos considerar<br />

como mercenário aquele homem que, por alguma razão, se esquiva<br />

de confrontar-se com os lobos? Isso antigamente foi debatido como<br />

uma questão prática, quando tiranos se enfureciam cruelmente contra<br />

a Igreja. Tertuliano e outros da mesma classe eram, em minha opinião,<br />

demasiadamente rígidos sobre este ponto. Prefiro muito mais a<br />

moderação de Agostinho, o qual admite que os pastores fujam, sob a<br />

condição que, com sua fuga, contribuam mais para a segurança pública<br />

do que fariam levando o rebanho a ser entregue por sua culpa. E ele<br />

7 “De quel zele et affection”.


Capítulo 10 • 441<br />

mostra que isso é feito quando a Igreja se vê privada de ministros bem<br />

qualificados, e quando a vida do pastor em particular é avidamente<br />

procurada, para que sua ausência mitigue a fúria dos inimigos. Mas se<br />

o rebanho – tanto o pastor – estiver em perigo, 8 e se houver razão para<br />

se crer que o pastor foge, não tanto pelo desejo de promover o benefício<br />

público, mas pelo medo de morrer, Agostinho afirma que isso não é<br />

absolutamente lícito, porque o exemplo de sua fuga será mais injurioso<br />

do que sua vida produzir o bem no futuro. O leitor pode consultar<br />

a Epístola ao bispo Honório (Ep. cviii). Sobre esta base, era lícito que<br />

Cipriano fugisse, o qual longe estava de tremer ante a morte, porque<br />

nobremente recusou-se a aceitar a oferta de salvar sua vida negando e<br />

atraiçoando seu Mestre. Fique apenas estabelecido que o pastor deve<br />

dar preferência a seu rebanho, ou mesmo a uma única ovelha, e não a<br />

sua própria vida.<br />

A quem não pertencem as ovelhas. Aqui parece que Cristo transforma<br />

em mercenários, sem exceção, a todos os pastores além dele<br />

mesmo. Porque, já que ele é o único Pastor, nenhum de nós tem o direito<br />

de dizer que as ovelhas que ele alimenta são suas. Tenhamos,<br />

porém, em mente que aqueles que são guiados pelo Espírito de Deus<br />

reconhecem ser suas aquelas que pertencem a sua Cabeça, e não para<br />

reivindicar poderes para si, mas para guardar fielmente o que foi confiado<br />

a seu cuidado. Pois aquele que está realmente unido a Cristo<br />

jamais cessará de ter interesse naquilo que ele tão sumamente valoriza.<br />

Isso é o que ele afirma em seguida:<br />

13. O mercenário foge. A razão é porque ele não se preocupa com<br />

as ovelhas, significando que seu coração não se sensibiliza ante a dispersão<br />

do rebanho, porque acredita que o rebanho de forma alguma<br />

lhe pertence. Porque aquele que tem sua atenção voltada para o salário,<br />

e não para o rebanho, ainda que engane a outros, quando a Igreja<br />

se encontra em situação de tranquilidade, mas quando entra em disputa<br />

evidenciará sua perfídia.<br />

8 “Que s’il y a danger aussi bien pour les brebis que pour la personne du pasteur”.


442 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

14. E eu conheço minhas ovelhas, e elas conhecem a mim. Na<br />

sentença anterior, ele uma vez mais realça seu amor para conosco,<br />

porque o conhecimento procede do amor e é acompanhado pelo desvelo.<br />

Mas significa também que ele desconsidera totalmente todos os<br />

que não obedecem ao evangelho, como reitera na segunda sentença, e<br />

confirma o que já dissera previamente, ou seja, em contrapartida ele é<br />

conhecido pelas ovelhas.<br />

15. Como o Pai me conhece. Faz-se desnecessário, e nem mesmo<br />

é conveniente, entrarmos em questões espinhosas, como esta: Como<br />

é possível que o Pai conheça sua própria Sabedoria? Pois Cristo simplesmente<br />

declara que, no que diz respeito ao vínculo de nossa união<br />

com Deus, ele está situado entre ele e nós, como se quisesse dizer<br />

que não lhe é mais possível esquecer-nos do que sermos rejeitados ou<br />

desconsiderados pelo Pai. Ao mesmo tempo ele demanda o dever que<br />

mutuamente lhe devemos, porque, como ele emprega todo o poder<br />

que recebeu do Pai em nossa proteção, assim deseja que lhe sejamos<br />

obedientes e devotados, como ele mesmo se devotara plenamente a<br />

seu Pai, e a ele tudo atribui.<br />

[10.16-18]<br />

E tenho outras ovelhas que não são deste aprisco, a elas também<br />

devo conduzir, e ouvirão minha voz, e haverá um só rebanho e<br />

um só pastor. É por isso que o Pai me ama, porque eu dou minha<br />

vida para que eu a reassuma. Ninguém a toma de mim, mas<br />

espontaneamente a dou. Tenho poder para dá-la e poder para<br />

reassumi-la. Este mandamento eu recebi de meu Pai.<br />

16. E tenho outras ovelhas. Ainda que alguns atribuam isso<br />

indiscriminadamente a todos, judeus e gentios, os quais não eram<br />

ainda discípulos de Cristo, contudo não tenho dúvida de que ele tinha<br />

diante de seus olhos a vocação dos gentios. Pois ele intitula de<br />

redil à assembleia do povo antigo, por meio da qual eram separados<br />

das demais nações do mundo, e unidos em um só corpo como a


Capítulo 10 • 443<br />

herança de Deus. Os judeus tinham sido adotados por Deus, de tal<br />

maneira, que ele os cercou num determinado ambiente que consistia<br />

de ritos e cerimônias, para que não fossem confundidos com os<br />

incrédulos, ainda que a porta do redil fosse o gracioso pacto de vida<br />

eterna confirmado em Cristo. Por essa razão ele chama ovelhas aos<br />

que não portavam a mesma marca, porém pertenciam a uma classe<br />

distinta, ou outras ovelhas. Em suma, o significado é que o ofício pastoral<br />

de Cristo não se confina dentro dos tacanhos limites da Judeia,<br />

mas se estende com muito mais amplitude.<br />

A observação de Agostinho sobre esta passagem é indubitavelmente<br />

verdadeira, a saber, visto existir muitos lobos no seio da Igreja,<br />

assim há muitas ovelhas fora dela. Mas isso não se aplica, em cada<br />

aspecto, à presente passagem, a qual se relaciona ao aspecto externo<br />

da Igreja, porque os gentios, que por algum tempo eram estranhos,<br />

foram depois convidados para o reino de Deus, juntamente com os judeus.<br />

Todavia reconheço que a afirmação de Agostinho se aplica neste<br />

aspecto: que Cristo dá o título de ovelhas aos incrédulos que por si<br />

mesmos mui longe estavam de merecer a designação ovelhas. E com<br />

esse termo ele não só realça o que seriam, mas, antes, atribui tudo<br />

isso à eleição secreta de Deus, porque já somos ovelhas de Deus antes<br />

mesmo de termos consciência de ser ele nosso Pastor. De igual modo,<br />

em outro lugar lemos que éramos inimigos, quando Deus nos amou [Rm<br />

5.10], e por essa razão Paulo também diz que éramos conhecidos de<br />

Deus, antes que o conhecêssemos [Gl 4.9].<br />

Então devo também conduzi-las. Ele quer dizer que a eleição<br />

divina será assegurada, de modo que nenhum de todos quantos desejam<br />

ser salvos pereça. 9 Pois o propósito secreto de Deus, pelo qual os<br />

homens foram ordenados à vida, por fim se manifesta em seu devido<br />

tempo através da vocação – a vocação eficaz, quando ele regenera por<br />

seu Espírito, para que sejam seus filhos, aos que anteriormente foram<br />

gerados da carne do sangue.<br />

9 “rien de tout ce qu’il veut estre sauvé”.


444 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Mas é possível que alguém pergunte: Como os gentios foram levados<br />

a associar-se aos judeus? Porque os judeus não estavam sob a<br />

necessidade de rejeitar o pacto que Deus fizera com seus pais a fim<br />

de tornar-se discípulos de Cristo, e os gentios, em contrapartida, não<br />

estavam sob a necessidade de se submeter ao jugo da lei, para que,<br />

sendo enxertados em Cristo, pudessem associar-se aos judeus. Aqui<br />

devemos atentar para a distinção existente entre a substância do pacto<br />

e os anexos externos. Pois os gentios não podiam dar assentimento<br />

à fé em Cristo de qualquer outra maneira senão abraçando aquele pacto<br />

eterno sobre o qual a salvação do mundo se fundava. Dessa forma<br />

se cumpriram as predições: Estranhos falarão a língua de Canaã [Is<br />

19.18]. Novamente: “Naquele dia sucederá que pegarão dez homens,<br />

de todas as línguas das nações... dizendo: Iremos convosco, porque<br />

temos ouvido que Deus está convosco” [Zc 8.23]. Novamente: “Muitas<br />

nações virão e dirão: Vinde e subi ao mundo do Senhor” [Is 2.4, Mq<br />

4.2]. Abraão foi também chamado pai de muitas nações [Gn 17.5, Rm<br />

4.17], porque virão do oriente e do ocidente e se assentarão com ele<br />

no reino de Deus [Mt 8.11]. Quanto às cerimônias, elas são a parede de<br />

separação, a qual, nos informa Paulo, estava no meio [Ef 2.14]. E assim<br />

já nos associamos aos judeus na unidade da fé, quanto à substância, e<br />

as cerimônias foram abolidas para que não houvesse que impedisse os<br />

judeus de estender-nos suas mãos.<br />

E haverá um só redil 10 e um só pastor. Isto é, para que todos os<br />

filhos de Deus sejam congregados e unidos 11 em um só corpo, como reconhecemos<br />

que uma só Igreja universal, 12 e haveria um só corpo com<br />

uma só cabeça. Há um só Deus, diz Paulo, uma só fé, um só batismo.<br />

Portanto, devemos ser um só, como fomos chamados em uma só esperança<br />

[Ef 4.4, 5]. Ora, ainda que esse rebanho pareça subsistir dividido<br />

10 Assim está na versão francesa: “Et il y aura une bergerie et un Pasteur”. Mas no original<br />

em latim, nosso autor, ou intencionalmente ou inadvertência, alterou a tradução,<br />

substituindo grex (rebanho) por ovile (aprisco). “Et fiet unus grex” – “e haverá um só<br />

rebanho”.<br />

11 “Assemblez et unis”.<br />

12 “Une saincte Eglise universelle”.


Capítulo 10 • 445<br />

em diferentes apriscos, contudo são mantidos dentro de fronteiras que<br />

são comuns a todos os crentes que se encontram dispersos por todo<br />

o mundo, porque a mesma Palavra é proclamada a todos, todos usam<br />

os mesmos sacramentos, têm a mesma ordem de oração e tudo o que<br />

pertence à profissão de fé.<br />

E ouvirão minha voz. Devemos observar a forma como o rebanho<br />

de Deus é congregado. É quando todos têm um só pastor e quando<br />

somente 13 sua voz é ouvida. Estas palavras significam que, quando a<br />

Igreja se submete tão-somente a Cristo, e obedece a seus mandamentos,<br />

e ouve a sua voz e a sua doutrina, 14 então ela subsiste em um<br />

estado de boa ordem. Se os papistas nos pudessem mostrar que existe<br />

algo desse gênero entre eles, lhes seria permitido desfrutar do título<br />

A Igreja, do qual tanto vangloriam. Mas se Cristo está em silêncio ali,<br />

se sua majestade é tripudiada, suas sacras ordenanças são tidas em<br />

escárnio, que unidade é a sua senão uma diabólica conspiração, que<br />

é pior e muito mais repugnante do que qualquer dispersão? Portanto,<br />

lembremo-nos de que devemos sempre começar com a Cabeça. Daí<br />

também os profetas, quando descrevem a restauração da Igreja, sempre<br />

associam o rei Davi com Deus, como se quisessem dizer que não<br />

existe Igreja onde Cristo não reina, e que não existe nenhum reino de<br />

Deus, senão onde a honra de pastor é outorgada a Cristo.<br />

17. Por essa razão o Pai me ama. Na verdade há outra e mais<br />

excelente razão por que o Pai ama o Filho, pois não foi em vão que<br />

se ouviu uma voz procedente do céu: Este é o meu Filho amado, em<br />

quem habita o beneplácito de Deus [Mt 3.17, 17.5]. Mas como ele se<br />

fez homem por nossa causa, e como o Pai se deleita nele a fim de que<br />

pudesse nos reconciliar consigo mesmo, não surpreende que ele tenha<br />

declarado ser esta a razão por que o Pai o ama: que nossa salvação lhe<br />

é mais preciosa que sua própria vida. Esta é uma maravilhosa exaltação<br />

da benevolência divina em nosso favor, e deve com justiça elevar<br />

nossas almas em rapto de admiração: que Deus não só nos estende o<br />

13 “Sa voiz seule”.<br />

14 “Sa voix et sa doctrine”.


446 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

amor que é devido a seu Unigênito Filho, mas o imputa a nós como a<br />

causa final. E não havia necessidade de que Cristo tomasse para si nossa<br />

carne, na qual ele era o bem-amado, mas para que fosse o penhor da<br />

mercê de seu Pai em redimir-nos.<br />

Para a reassumir. Como os discípulos poderiam estar profundamente<br />

entristecidos por causa do que ouviram sobre a morte de<br />

Cristo, e como sua fé poderia ainda estar profundamente abalada, ele<br />

os conforta com a esperança de sua ressurreição, a qual logo se concretizaria.<br />

Como se quisesse dizer que não morreria sob a condição de<br />

ser tragado pela morte, mas a fim de poder logo depois ressurgir como<br />

Vencedor. E mesmo em nossos dias devemos contemplar a morte de<br />

Cristo a fim de nos lembrarmos, ao mesmo tempo, da glória de sua ressurreição.<br />

E assim sabemos que ele é a vida, porque, em sua luta com<br />

a morte, obteve uma esplêndida vitória e alcançou um nobre triunfo.<br />

18. Ninguém a toma de mim. Esta é outra consolação, por meio<br />

da qual os discípulos tomaram alento quanto à morte de Cristo, ou<br />

seja: que ele não morreria por constrangimento, mas se ofereceria<br />

voluntariamente para a salvação de seu rebanho. Ele não só afirma<br />

que os homens não têm nenhum poder de levá-lo à morte, exceto até<br />

onde lhes é permitido, porém declara que ele é livre de toda violência<br />

da necessidade. O contrário se dá conosco, pois vivemos sob a necessidade<br />

de morrer em decorrência de nossos pecados. Aliás, Cristo<br />

mesmo nasceu como um homem mortal, mas essa foi uma submissão<br />

voluntária, e não uma servidão a ele imposta por outro. Portanto,<br />

Cristo tencionava fortificar seus discípulos, para que, quando o vissem<br />

logo depois arrastado à morte, não desmaiassem, como se ele<br />

fosse oprimido por inimigos, mas pudessem reconhecer que isso era<br />

feito pela maravilhosa Providência de Deus, ou seja, que ele morreria<br />

pela redenção de seu rebanho. E esta doutrina contém um benefício<br />

perpétuo, a saber, que a morte de Cristo é uma expiação de nossos<br />

pecados, porque ela foi um sacrifício voluntário, em consonância<br />

com o dito de Paulo: “Pela obediência de um muitos foram feitos<br />

justos” [Rm 5.19].


Capítulo 10 • 447<br />

Mas espontaneamente a dou. Estas palavras podem ser explicadas<br />

de duas formas: ou que Cristo se despe da vida, porém ainda<br />

permanece sendo o que era antes, justamente como uma pessoa<br />

que deixa à parte as roupas de seu corpo, ou que ele morre por sua<br />

própria iniciativa.<br />

Este mandamento recebi de meu Pai. Ele chama nossa atenção<br />

para o propósito eterno do Pai, a fim de informar-nos que ele se preocupava<br />

de tal forma com nossa salvação que nos ofereceu seu Filho<br />

unigênito, grandioso e excelente como ele é, 15 e Cristo mesmo, que<br />

veio ao mundo para ser em todos os aspectos obediente ao Pai, confirma<br />

a afirmação de que não tem nenhum outro objetivo em vista senão<br />

promover nosso benefício.<br />

[10.19-30]<br />

Tornou, pois, a haver divisão entre os judeus por causas dessas<br />

palavras. E muitos deles diziam: Ele tem demônio, e está<br />

fora de si, por que o ouvis? Outros diziam: Estas não são palavras<br />

de um endemoninhado. Porventura pode um demônio<br />

abrir os olhos a um cego? E em Jerusalém havia a festa da<br />

dedicação, e era inverno. E Jesus caminhava pelo templo no<br />

pórtico de Salomão. Os judeus, pois, o cercaram, e lhe disseram:<br />

Até quando manterás nossas almas em suspenso? Se tu<br />

és o Cristo, diz-nos claramente. Jesus lhes respondeu: Eu já<br />

vos disse, porém não credes. As obras que eu faço em nome<br />

do Pai testificam de mim. Vós, porém, não credes, porque não<br />

sois de minhas ovelhas, como já vos disse. Minhas ovelhas<br />

ouvem minha voz, e eu as conheço, e elas me seguem. E lhes<br />

dou a vida eterna, e jamais perecerão, e ninguém as arrebatará<br />

de minha mão. Meu Pai, que mas deu, é maior do que<br />

todos, e ninguém poderá arrebatá-las da mão do Pai. Eu e o<br />

Pai somos um.<br />

15 “Aussi grand et excellent qu’il peut estre”.


448 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

19. Tornou, pois, a haver divisão. A vantagem conquistada pelo<br />

discurso de Cristo foi que ele granjeou-lhe alguns discípulos, mas como<br />

sua doutrina conta também com muitos adversários, daí surgir uma divisão,<br />

de modo que romperam-se em partidos, os quais anteriormente<br />

aparentavam ser um só corpo da Igreja. Pois todos, de comum acordo,<br />

professavam ser adoradores do Deus de Abraão e haviam se comprometido<br />

com a lei de Moisés. Agora, porém, quando Cristo surgem<br />

em cena, começam a dissentir-se. Se tal profissão de fé fosse sincera,<br />

Cristo, que é o mais forte laço da caridade e cujo ofício é o de reunir<br />

aquelas coisas que se acham dispersas, não teria rompido seu acordo.<br />

Cristo, porém, pela luz de seu evangelho, expõe a hipocrisia de muitos<br />

que, enquanto nada possuíam senão falsa e hipócrita pretensão, se<br />

vangloriavam de ser o povo de Deus.<br />

E assim a perversidade de muitos é também a razão por que a<br />

Igreja é afligida com divisões e por que em seu seio acendem-se as<br />

contendas. No entanto os que perturbam a paz nos lançam a culpa<br />

nos chamando de cismáticos, porque a principal culpa que os<br />

papistas suscitam contra nós é que nossa doutrina abalou a tranquilidade<br />

da Igreja. Não obstante, a verdade é que, se se rendessem<br />

submissamente a Cristo e estendessem seu apoio à verdade, todas<br />

as comoções seriam imediatamente aplacadas. Mas quando murmuram<br />

e se queixam contra Cristo, e não nos permitem descansar em<br />

qualquer outra condição senão que a verdade de Deus seja extinta e<br />

que Cristo seja banido de seu reino, não têm o direito de acusar-nos<br />

do crime de provocarmos cisma, porque é neles mesmos, como cada<br />

pessoa vê, que esse crime deve ser buscado. Que nos entristeçamos<br />

profundamente ante o fato de que a Igreja se acha dilacerada por<br />

divisões que têm surgido entre os que professam a mesma religião,<br />

mas é melhor que haja alguns que se separam dos perversos para se<br />

unirem a Cristo seu Cabeça, do que serem todos de uma só mente<br />

e desprezarem a Deus. Consequentemente, quando surge cisma, devemos<br />

inquirir sobre quem aqueles que se revoltam contra Deus e<br />

contra sua doutrina pura.


Capítulo 10 • 449<br />

20. Ele tem demônio. Empregam a mais ofensiva acusação que<br />

podem engendrar, caluniando a Cristo, para que todos tremam ante<br />

a ideia de ouvi-lo. Pois os perversos que não podem ser forçados a<br />

render-se a Deus, de uma maneira furiosa e com olhos fechados, se<br />

prorrompem em soberbo desdém contra ele e incitam outros à mesma<br />

fúria, de modo que nem sequer uma palavra de Cristo se ouve em silêncio.<br />

Mas a doutrina de Cristo contém em si mesma poder suficiente<br />

para defender-se contra os caluniadores. E isso é o que os crentes querem<br />

dizer com sua resposta:<br />

21. Estas não são obras de um endemoninhado. É como se exigissem<br />

que os homens julgassem os próprios fatos, pois a verdade,<br />

como já dissemos, é bastante forte para manter-se a si mesma. E esta<br />

é a única proteção de nossa fé: que os ímpios jamais poderão obstruir<br />

o poder e a sabedoria de Deus, bem como sua benevolência, 16 de resplandecer<br />

no evangelho.<br />

22. E em Jerusalém havia a festa da dedicação. A palavra grega<br />

(ἐγκαίνια), a qual traduzimos por dedicação, 17 propriamente significa<br />

renovações, porque o templo, que havia sido contaminado, foi novamente<br />

consagrado pela ordem de Judas Macabeus, e naquele tempo se<br />

ordenou que o dia da nova dedicação ou consagração fosse celebrado<br />

a cada ano como uma festa, para que o povo recordasse da graça de<br />

Deus, a qual pôs termo final à tirania de Antíoco. Cristo, naquele tempo,<br />

compareceu no templo, segundo o costume, para que sua pregação<br />

produzisse frutos mais abundantes no meio de uma grande assembleia<br />

de homens.<br />

23. E Jesus caminhava pelo templo, no pórtico de Salomão. O<br />

evangelista dá ao pórtico de Salomão a designação o templo, não que<br />

ele fosse o santuário, mas simplesmente um anexo ao templo. Tampouco<br />

ele pretende indicar o antigo pórtico que foi construído por<br />

Salomão, o qual fora totalmente destruído pelos caldeus, mas aquele<br />

que os judeus – talvez imediatamente após seu regresso do cativeiro<br />

16 “Et aussi sa bonté”.<br />

17 “Le mot Grec pour lequel nous avons mis Dedicace”.


450 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

babilônico – construíram segundo o modelo do antigo pórtico, e lhe<br />

deram o mesmo nome, para que ele fosse mais solenemente honrado,<br />

e Herodes, mais tarde, construiu um novo templo.<br />

24. Portanto, os judeus o cercaram. Este, indubitavelmente, foi<br />

um astucioso ataque contra Cristo, pelo menos por parte daqueles em<br />

quem se originou a trama. Pois o populacho poderia, sem qualquer<br />

fraude, desejar que Cristo declarasse publicamente que Deus o enviara<br />

para ser um libertador, umas poucas pessoas, porém, de forma<br />

astuta e estratégica, quiseram arrancar dele esta palavra, no meio da<br />

multidão, para que ele fosse morto pela plebe, ou para que os romanos<br />

lhe deitassem as mãos.<br />

Até quando manterás nossa alma em suspenso? Queixando-se<br />

de serem mantidos em suspenso, pretendem que estejam tão ardentemente<br />

desejos da prometida redenção, que suas mentes estão ávida e<br />

incessantemente ocupados pela expectativa do Cristo. E este é o genuíno<br />

espírito de piedade: não encontrar, em parte alguma, outro além<br />

de Cristo só, o qual satisfará nossas mentes, ou lhes dará o genuíno<br />

equilíbrio, como ele mesmo disse: “Vinde a mim todos os que estais<br />

cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei, e achareis descanso<br />

para vossas almas” [Mt 11.28, 29]. Portanto, os que vão a Cristo devem<br />

estar preparados da mesma forma como esses homens pretendiam<br />

estar. Mas estão errados em acusar a Cristo, como se ele até então<br />

não tivesse confirmado a fé deles. Pois a culpa era inteiramente deles<br />

se não tinham ainda um perfeito conhecimento dele. Mas esse é sempre<br />

o caso dos incrédulos, que decidem antes permanecer em dúvida<br />

do que consolidar-se com a certeza da palavra de Deus. E assim, em<br />

nossos dias, vemos muitos que voluntariamente fecham seus olhos e<br />

espalham as nuvens de suas dúvidas a fim de eclipsar a radiante luz do<br />

evangelho. Vemos também muitos espíritos levianos que mergulham<br />

em fúteis especulações e jamais encontram, ao longo de toda sua vida,<br />

uma posição permanente.<br />

Diz-nos claramente. Quando exigem que Cristo se declare<br />

livremente, ou franca e ousadamente, significam que não mais lhes co-


Capítulo 10 • 451<br />

municasse sua intenção indiretamente e com rodeios. E assim acusam<br />

sua doutrina de ser obscura, a qual, ao contrário, era sobejamente<br />

clara e distinta, caso a quisessem ouvir sem ouvidos moucos. Ora, esta<br />

história nos adverte que não poderemos evitar os artifícios e calúnias<br />

dos homens maus, se formos chamados a proclamar o evangelho. Por<br />

essa razão, devemos pôr-nos em vigilância e não sermos surpreendidos<br />

com essas coisas como se fossem novidades, quando o mesmo<br />

nos suceder tal como se deu com nosso Mestre.<br />

25. Eu já vos disse. Nosso Senhor Jesus 18 nunca ocultara ser ele o<br />

Cristo, e no entanto não os instrui como se quisessem de bom grado<br />

aprender, mas, ao contrário, os censura de obstinada malícia, porque,<br />

embora tivessem aprendido por meio da palavra e das obras de Deus,<br />

contudo não faziam qualquer progresso. Por conseguinte, ele os culpa<br />

pelo erro de não o haver conhecido, como se quisesse dizer: “Minha<br />

doutrina é sobejamente fácil de ser assimilada, porém a culpa está em<br />

vós mesmos, porque maliciosamente resistis a Deus”.<br />

As obras que eu faço. Ele fala de suas obras com o fim de convencê-los<br />

de serem duplamente obstinados. Porque, além da doutrina,<br />

eles tinham um notável testemunho em seus milagres, se não fossem<br />

tão ingratos para com Deus. Ele reitera duas vezes as palavras: Vós não<br />

credes, a fim de provar que, de comum acordo, eram surdos em relação<br />

à doutrina e cegos em relação às obras, o que era prova de extrema<br />

e desatinada malícia. Ele afirma que realizou as obras no nome de seu<br />

Pai, porque seu objetivo era testificar do poder de Deus nelas, por<br />

meio das quais fosse publicamente declarado que ele viera de Deus.<br />

26. Porque não sois de minhas ovelhas. Ele assinala uma razão<br />

suprema por que não criam em seus milagres e nem em sua doutrina.<br />

É porque são réprobos. Devemos aqui observar o propósito de Cristo.<br />

Pois uma vez que se vangloriavam de ser a Igreja de Deus, para que<br />

sua incredulidade nada detraísse da autoridade do evangelho, ele afirma<br />

que o dom de crer é uma dádiva especial. E de fato, antes que os<br />

18 “Nostre Seigneur Jesus”.


452 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

homens conheçam a Deus, devem antes conhecer a si próprios, no dizer<br />

de Paulo [Gl 4.9]. Em contrapartida, aqueles para quem Deus não olha<br />

continuarão sempre a fugir dele. Se alguém murmurar contra isso, argumentando<br />

que a causa da incredulidade está em Deus, visto ser ele<br />

o único que tem poder de criar ovelhas, minha resposta é que ele é<br />

isento de toda culpa, porque é tão-só por sua malícia que os homens<br />

rejeitam a graça divina. Deus tudo faz para induzi-los a crer, mas quem<br />

domaria bestas selvagens? 19 Isso jamais acontecerá, até que o Espírito<br />

de Deus os converta em ovelhas. Os que são selvagens inutilmente tentam<br />

lançar sobre Deus a culpa de sua selvageria, porque ela faz parte<br />

de sua própria natureza. Em suma, Cristo quer dizer que não é de se<br />

admirar se há poucos que obedecem a seu evangelho, porque todos<br />

aqueles a quem o Espírito de Deus não subjuga à obediência da fé são<br />

bestas selvagens e ferozes. Tanto mais irracional e absurdo é que a autoridade<br />

do evangelho dependa da convicção dos homens, os crentes,<br />

porém, devem antes considerar que são dominados por Deus de uma<br />

forma tão poderosa, visto que, enquanto outros permanecem em um<br />

estado de cegueira, foram atraídos a Cristo pela iluminação do Espírito.<br />

Aqui também os ministros do evangelho têm motivo de consolação,<br />

caso seu labor não seja absolutamente proveitoso.<br />

27. Minhas ovelhas ouvem minha voz. Ele prova pelo uso de<br />

um argumento extraído dos contrários que não são ovelhas, porque<br />

não obedecem ao evangelho. Porque Deus eficazmente chama a todos<br />

quantos elegeu, de modo que as ovelhas de Cristo se revelam por sua<br />

fé. E de fato a razão pela qual o título ovelha é aplicado aos crentes é<br />

que eles se rendem a Deus para que sejam governados pela mão do<br />

Supremo Pastor e, renunciando a ferocidade de sua natureza, se tornem<br />

dóceis e educáveis. Não é pequena consolação para os mestres<br />

fiéis que, ainda que a maior parte do mundo não dê ouvidos a Cristo,<br />

contudo ele tem suas ovelhas a quem ele conhece e por quem é também<br />

conhecido. Que tudo façam para conduzir o mundo inteiro ao redil de<br />

19 “Mais qui apprivoisera des bestes sauvages?”


Capítulo 10 • 453<br />

Cristo, mas quando seu desejo não se concretiza, que fiquem satisfeitos<br />

com esta única consideração: que todos quantos são ovelhas serão<br />

congregados por meio de sua agência. O restante já ficou explicado.<br />

28. E jamais perecerão. É um inestimável fruto da fé o fato de<br />

Cristo nos convidar a nos convencermos de segurança quando somos<br />

conduzidos pela fé para seu redil. Mas também devemos observar<br />

sobre que fundamento repousa essa certeza. É porque ele será o fiel<br />

guardião de nossa salvação, pois testifica que nossa salvação está em<br />

suas mãos. E se isso não fosse suficiente, ele diz que serão seguramente<br />

guardados pelo poder de seu Pai. Esta é uma passagem notável, por<br />

meio da qual somos ensinados que a salvação de todos os eleitos não<br />

é menos infalível do que é o poder de Deus invencível. Além disso,<br />

Cristo não pretendia lançar esta palavra ao ar sem qualquer objetivo,<br />

mas tencionava formular uma promessa que permaneceria profundamente<br />

radicada em suas mentes, e por isso inferimos que a afirmação<br />

de Cristo visa a mostrar que os eleitos são absolutamente convictos<br />

de sua salvação. É verdade que vivemos cercados por adversários poderosos,<br />

e tão profunda é nossa fraqueza, que a todo instante estamos<br />

na iminência da morte, mas como aquele que guarda aquilo que depositamos<br />

em suas mãos [2Tm 1.12] é maior ou mais poderoso que tudo,<br />

não temos razão para tremer como se nossa vida corresse perigo.<br />

Daí também inferirmos quão demente é a confiança dos papistas,<br />

que confiam no livre-arbítrio, em sua própria virtude e nos méritos de<br />

suas obras. Amplamente diferente é a maneira com que Cristo instrui<br />

seus seguidores, lembrando-os de que, neste mundo, podem se sentir<br />

como que no meio de uma floresta, cercados por inumeráveis salteadores,<br />

e que estão não só desarmados e expostos como presas, mas<br />

estão cientes de que a causa da morte está contida neles mesmos, de<br />

modo que, confiando somente na proteção divina, podem andar sem<br />

qualquer susto. Em suma, nossa salvação é infalível, porque ela está<br />

nas mãos de Deus, pois nossa fé é fraca e somos por demais inclinados<br />

a vacilar. Deus, porém, que nos tomou sob sua proteção, é suficientemente<br />

poderoso para dissipar, como apenas seu sopro, todas as forças


454 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

de nossos adversários. É de grande importância que volvamos nossos<br />

olhos para este fato: que o medo das tentações não nos leve ao total<br />

desvanecimento, pois Cristo ainda pretendia realçar a forma na qual<br />

as ovelhas podem viver vida tranquila no meio dos lobos.<br />

E ninguém as arrebatará das mãos de meu Pai. A palavra e, nesta<br />

passagem, tem o valor de portanto. Porque, visto o poder de Deus ser<br />

invencível, Cristo infere que a salvação dos crentes não é exposta às<br />

paixões ingovernáveis de seus inimigos, porque, antes que pereçam,<br />

Deus vem como vencedor e as toma sob a proteção de suas mãos.<br />

30. Eu e meu Pai somos um. Sua intenção é rebater os escárnios<br />

dos ímpios, pois poderiam alegar que o poder de Deus não lhe pertencia<br />

absolutamente, de modo que ele não poderia prometer a seus<br />

discípulos que tal poder com certeza os protegeria. Ele, pois, testifica<br />

que suas atividades estão tão intimamente unidas às do Pai, que a assistência<br />

do Pai jamais faltará a si e às ovelhas. Os antigos fizeram um<br />

uso equivocado desta passagem para provar que Cristo é (ὁμοούσιος)<br />

de uma mesma essência com o Pai. Porquanto Cristo não argumenta<br />

sobre a unidade de substância, mas sobre a harmonia que ele desfruta<br />

com o Pai, de modo que tudo quanto é feito por Cristo será confirmado<br />

pelo poder de seu Pai.<br />

[10.31-36]<br />

Então os judeus outra vez pegaram em pedras para o apedrejar.<br />

Respondeu-lhes Jesus: Tenho vos mostrado muitas obras<br />

boas procedentes de meu Pai. Por quais dessas obras vós me<br />

apedrejais? Responderam-lhe os judeus: Não te apedrejamos<br />

por alguma obra boa, mas pela blasfêmia, e porque tu, sendo<br />

homem, a ti mesmo te fazes Deus. Respondeu-lhes Jesus:<br />

Não está escrito em vossa lei: Eu disse: Sois deuses? Se ela<br />

chamou deuses a quem a palavra de Deus foi dirigida, e a<br />

Escritura não pode ser anulada, dizeis que eu, a quem o Pai<br />

santificou e enviou ao mundo, blasfemo, porque eu disse: Sou<br />

o Filho de Deus?


Capítulo 10 • 455<br />

31. Então os judeus outra vez pegaram em pedras. Visto que<br />

a verdadeira religião, ao manter a glória de Deus, arde com seu próprio<br />

zelo, o qual o Espírito de Deus orienta, assim a incredulidade<br />

é a mãe da fúria, e o diabo agita os ímpios de tal maneira que nada<br />

mais aspiram senão matança. Este resultado mostra com que intenção<br />

encaravam a pergunta de Cristo, pois a confissão franca, da qual<br />

professavam ser zelosos, instantaneamente os leva à demência. E,<br />

no entanto, embora se precipitassem, com extrema violência, para<br />

agarrar a Cristo, não pode haver dúvida de que assinalassem alguma<br />

razão plausível para tal critério, como se estivessem agindo impulsionados<br />

pela injunção da lei, pela qual Deus ordena que os falsos<br />

profetas sejam apedrejados [Dt 13.5].<br />

32. Tenho vos mostrado muitas obras boas. Aqui Cristo não só diz<br />

que não tinham razão alguma para sua crueldade, mas os acusa de ingratidão<br />

por retribuírem de uma forma tão injusta os favores de Deus.<br />

Tampouco diz apenas que lhes prestara um serviço através de uma ou<br />

duas obras, mas que de muitas maneiras lhes fora bondoso. Também<br />

os censura por serem ingratos, não só a ele, mas acima de tudo a Deus,<br />

quando diz ser o ministro do Pai que publicamente manifestou seu<br />

poder para que lhes fosse conhecido e atestado. Pois quando diz que<br />

as boas obras eram provenientes do Pai, sua intenção é dizer que Deus<br />

era o Autor delas. O significado pode ser assim sumariado: “A intenção<br />

de Deus era vos fazer conhecidos, por meu intermédio, gloriosos benefícios,<br />

ele vo-los conferiu por minhas mãos. Bani-me como bem vos<br />

aprouver, eu nada fiz que não merecesse louvor e boa vontade. Portanto,<br />

ao me perseguirdes, vós revelais vossa fúria contra os dons de<br />

Deus”. A pergunta, porém, tem mais força para espicaçar a consciência<br />

deles do que se ele fizesse uma asseveração direta.<br />

33. Não te apedrejamos por uma obra boa. Embora os ímpios<br />

declarem guerra franca contra Deus, contudo jamais querem pecar<br />

sem algum pretexto plausível. A consequência é que, quando se enfurecem<br />

contra o Filho de Deus, não se contentam com mera crueldade,<br />

mas apresentam uma infundada acusação contra ele e se constituem


456 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

advogados e defensores da glória de Deus. A boa consciência deve,<br />

portanto, ser-nos como um muro de bronze, por meio do qual ousadamente<br />

repelimos as censuras e calúnias com que somos assaltados.<br />

Pois seja qual for a plausibilidade com que adornam sua malícia, e<br />

seja qual for a censura que por algum tempo arremessem contra nós,<br />

se lutarmos pela causa de Deus, ele não se recusará a defender sua<br />

verdade. Mas como aos ímpios jamais faltam pretextos para oprimir<br />

os servos de Deus, e como nutrem também uma empedernida impudência,<br />

ainda quando sejam vencidos não cessarão de caluniar-nos, e<br />

por isso temos a necessidade de exercer paciência e mansidão para<br />

suportarmos até o fim.<br />

Mas pela blasfêmia. A palavra blasfêmia, que entre os autores<br />

profanos geralmente denota certo gênero de censura, a Escritura imputa<br />

a Deus quando sua majestade é ofendida e insultada.<br />

Porque tu, sendo homem, a ti mesmo te fazes Deus. Há dois<br />

gêneros de blasfêmia: ou quando Deus é privado da honra que lhe<br />

pertence, ou quando se lhe atribui algo inadequado ou contrário a<br />

sua natureza. Por isso argumentam dizendo que Cristo é uma pessoa<br />

blasfema e sacrílega, porque, sendo um mero mortal, reivindica honra<br />

divina. E esta seria uma definição justa de blasfêmia, caso Cristo nada<br />

mais fosse do que mero homem. Apenas erram nisto: que não se dignam<br />

em contemplar sua Deidade, a qual é conspícua em seus milagres.<br />

34. Não está escrito em vossa lei? Ele se isenta do delito de que<br />

era acusado, não negando ser o Filho de Deus, mas sustentando que<br />

sua declaração era justa. Contudo adapta sua resposta às pessoas,<br />

em vez de dar uma explicação completa do fato, pois julga ser suficiente<br />

para o momento exibir a malícia deles. Ele não explica em que<br />

sentido se autodenomina o Filho de Deus, porém o declara indiretamente.<br />

O argumento que emprega não é extraído dos iguais, mas do<br />

menor para o maior.<br />

Eu disse: Sois deuses. A Escritura dá o título de deuses àqueles a<br />

quem Deus conferiu um ofício honroso. Aquele a quem Deus separou<br />

para ser distinguido acima de todos os demais é muito mais digno des-


Capítulo 10 • 457<br />

te honroso título. Daí se segue que são maliciosos e falsos expositores<br />

da Escritura os que admitem aqueles, porém se sentem ofendidos com<br />

este. A passagem que Cristo cita está no Salmo 82.6: Eu disse: Sois deuses,<br />

e todos vós sois filhos do Altíssimo, onde Deus polemiza com os<br />

reis e juízes da terra, que tiranicamente abusavam de sua autoridade e<br />

poder em prol de suas próprias paixões pecaminosas, por oprimirem<br />

os pobres e por todo gênero de ações execráveis. Ele os repreende<br />

porque, sem o consentimento daquele de quem haviam recebido tão<br />

grande dignidade, profanam o Nome de Deus. Cristo aplica isto ao presente<br />

caso, ou, seja, que são intitulados deuses, porque são ministros<br />

de Deus para governarem o mundo. Pela mesma razão, a Escritura intitula<br />

os anjos de deuses, porque por meio deles a glória de Deus refulge<br />

no mundo. Devemos atentar para a forma de expressão:<br />

35. A quem a palavra de Deus foi dirigida. Pois Cristo quer dizer<br />

que foram autorizados por um mandamento expresso de Deus.<br />

Daí inferirmos que os impérios não vêm à existência ao acaso, nem<br />

pelos mal-entendidos humanos, senão que foram designados pela<br />

vontade de Deus, porque ele quer que a ordem política exista entre<br />

os homens e que sejamos governados costumes e leis. Por essa razão<br />

Paulo diz que todos os que resistem a potestade são rebeldes<br />

contra Deus, porque não existe potestade, senão a que é ordenada<br />

por Deus [Rm 13.1]. É possível que surja a objeção de que outras<br />

vocações também provêm de Deus, são aprovadas por ele e, contudo,<br />

não dizemos que por isso os fazendeiros, os vaqueiros ou os<br />

operários não são deuses. Respondo que esta não é uma declaração<br />

geral de que todos os que foram chamados por Deus para algum<br />

modo particular de vida sejam denominados deuses, Cristo, porém,<br />

fala de reis, a quem Deus ergueu a uma posição muito mais elevada<br />

para que pudessem administrar e governar. Em suma, saibamos que<br />

os magistrados são intitulados deuses porque Deus lhes conferiu<br />

autoridade. Sob o termo lei, Cristo inclui toda a doutrina pela qual<br />

Deus outrora governa sua Igreja, porque, visto que os profetas eram<br />

apenas expositores da lei, os salmistas são, com justiça, considera-


458 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

dos como um apêndice à lei. Que a Escritura não pode ser anulada<br />

significa que a doutrina da Escritura é inviolável.<br />

36. A quem o Pai santificou. Há uma santificação que é comum<br />

a todos os crentes. Aqui, porém, Cristo reivindica para si algo muito<br />

mais excelente, isto é, que unicamente ele foi separado de todos os demais,<br />

para que o poder do Espírito e a majestade de Deus fossem nele<br />

exibidos. Como disse previamente que Deus o Pai o selou [Jo 6.27].<br />

Mas isso se refere estritamente à pessoa de Cristo, no que tange em<br />

haver ele se manifestado na carne. Consequentemente, estas duas coisas<br />

estão entrelaçadas: que ele foi santificado e enviado ao mundo. Mas<br />

devemos também entender por que razão e em que condição ele foi<br />

enviado. Foi para trazer a salvação de Deus e se comprovar e se exibir,<br />

de todas as formas possíveis, ser o Filho de Deus.<br />

Vós dizeis que eu blasfemo? Antigamente os arianos deturparam<br />

esta passagem para provar que Cristo não é inerentemente Deus, senão<br />

que possuía um gênero de divindade emprestada. Mas tal erro é facilmente<br />

refutado, pois Cristo não argumenta agora acerca do que ele é<br />

inerentemente, senão que devemos reconhecer o que ele é à luz de seus<br />

milagres na carne humana. Porque jamais poderemos compreender sua<br />

Deidade eterna, a menos que o abracemos no caráter de Redentor, até<br />

onde o Pai no-lo exibiu. Além disso, devemos lembrar o que sugerimos<br />

previamente: que Cristo, nesta passagem, não explica plena e distintamente<br />

o que ele é, como ele teria feito entre seus discípulos, mas que<br />

ele, antes de tudo, continua refutando a calúnia de seus inimigos.<br />

[10.37-42]<br />

Se não faço as obras de meu Pai, não me credes. Mas se faço, 20<br />

embora não me credes, crede nas obras, para que sabeis e<br />

creiais que o Pai está em mim, e eu nele. Por isso buscavam<br />

uma vez mais prendê-lo, porém ele escapou 21 de suas mãos.<br />

E ele uma vez mais foi para além do Jordão, para o lugar onde<br />

20 “Et si je les fay” – “e se eu as faço”.<br />

21 “Mais il eschappa”.


Capítulo 10 • 459<br />

<strong>João</strong> primeiro batizava, e permaneceu ali. E muitos vieram a<br />

ele e diziam: <strong>João</strong> na verdade não fez milagres, mas tudo quanto<br />

<strong>João</strong> falou sobre este homem era verdadeiro. E muitos ali<br />

creram nele.<br />

37. Se não faço as obras. Para que os judeus não replicassem<br />

que lhe era inútil gloriar-se na santificação e em tudo o que depende<br />

dela, ele novamente chama sua atenção para seus milagres, nos quais<br />

havia uma prova suficientemente evidente de sua Deidade. Isso está<br />

na forma de concessão, como se quisesse dizer: “Não pretendo que<br />

sejais obrigados a dar-me crédito em qualquer outra condição além<br />

do fato que vedes bem nitidamente ante vossos olhos. 22 Podeis seguramente<br />

rejeitar-me, se Deus não vos der francamente testemunho a<br />

meu respeito”.<br />

As obras de meu Pai. Ele lhes confere este título, porque essas<br />

obras eram realmente divinas, e porque um poder tão incomensurável<br />

resplandeceu nelas para que não fossem atribuídas a um mero homem.<br />

38. Eu, porém, faço. Ele mostra que são mantidos plenamente<br />

convictos de incredulidade e sacrílego desdém, porque não prestam<br />

nenhuma reverência ou honra ao que indubitavelmente constitui as<br />

obras de Deus. Esta é a segunda concessão, ao dizer: “Ainda que eu<br />

vos admita pôr em dúvida minha doutrina, vós não podemos negar,<br />

pelo menos, que os milagres que eu tenho realizado sejam de Deus.<br />

Portanto publicamente rejeitais a Deus, e não ao homem”.<br />

Para que saibais e creiais. Ainda que ponha conhecimento antes<br />

de fé, como se a fé fosse inferior ao conhecimento, ele age assim porque<br />

ele tem a ver com a incredulidade e obstinação dos homens, os<br />

quais nunca se rendem a Deus até que sejam vencidos e constrangidos<br />

pela experiência, pois os rebeldes desejam saber antes de crer. E contudo<br />

nosso gracioso Deus nos tolera a tal ponto que nos prepara para<br />

a fé por meio do conhecimento de suas obras. Mas o conhecimento de<br />

22 “Sinon que vous voyez le faict evident devant vos yeux”.


460 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Deus e de sua secreta sabedoria vem depois da fé, porque a obediência<br />

da fé nos abre a porta do reino do céu.<br />

Que o Pai está em mim, e eu nele. Ele reitera a mesma coisa que<br />

dissera previamente em outros termos: Eu e meu Pai somos um. Tudo<br />

tende para este ponto: que em seu ministério nada contraria seu Pai. “O<br />

Pai, diz ele, está em mim, isto é, o poder divino se manifesta em mim”.<br />

E eu estou em meu Pai. Isto é, “Nada faço senão pela ordem de<br />

Deus, de modo que há mútua conexão entre mim e meu Pai”. Pois este<br />

discurso não se relaciona com a unidade de essência, mas com a manifestação<br />

do poder divino na pessoa de Cristo, à luz do quê se fazia<br />

evidente que ele fora enviado por Deus.<br />

39. Por isso buscavam outra vez prendê-lo. Sem dúvida isso se<br />

deu para que o pudessem expulsar do templo e imediatamente apedrejá-lo.<br />

Pois sua fúria de forma alguma foi aplacada pelas palavras<br />

de Cristo. Quanto ao que o evangelista diz, que ele escapou de suas<br />

mãos, isso de forma alguma se poderia realizar senão pelo poderoso<br />

exercício do poder divino. Isso nos lembra que não estamos expostos<br />

às paixões ilícitas dos ímpios, os quais Deus restringe com seu freio,<br />

sempre que acha conveniente.<br />

40. Ele foi para as bandas do Jordão. Cristo passou para além do<br />

Jordão para que não precisasse fugir sem nenhuma vantagem. Portanto,<br />

ele nos ensina com exemplo que devemos aproveitar as oportunidades<br />

quando elas surgem. Quanto ao lugar de seu retiro, o leitor pode consultar<br />

as observações que fiz no capítulo 1, versículo 28. 23<br />

41. E muitos vinham a ele. Essa grande assembleia mostra que<br />

Cristo não buscava a solidão com o fim de desobrigar-se de seus deveres,<br />

mas para erigir um santuário para Deus no deserto, quando<br />

Jerusalém, que era sua morada e domicílio, 24 obstinadamente o expulsara.<br />

E de fato essa foi a terrível vingança de Deus, a saber, enquanto o<br />

templo escolhido por Deus não passava de um covil de ladrões [Jr 7.11,<br />

Mt 21.13], a Igreja de Deus era congregada em lugares desprezíveis.<br />

23 Veja-se p. ...... deste volume.<br />

24 “Qui estoit le propre siege et habitation de celuy”.


Capítulo 10 • 461<br />

Na verdade <strong>João</strong> não fez nenhum milagre. Inferem que Cristo é<br />

mais excelente que <strong>João</strong>, porque se distinguiu por numerosos milagres,<br />

enquanto que <strong>João</strong> não realizou um único milagre. Não que devamos<br />

sempre julgar com base em milagres, mas que os milagres, quando unidos<br />

à doutrina, sua importância não é pequena, como reiteradamente<br />

tenho mencionado. Seu argumento é defectivo, pois comparam Cristo<br />

com <strong>João</strong>, e expressam apenas uma parte da comparação. Além disso,<br />

tomam como conclusivo que <strong>João</strong> era um eminente profeta de Deus, e<br />

que fora dotado com extraordinária graça do Espírito Santo. Portanto,<br />

com razão argumentam dizendo que Cristo deve ser preferido a <strong>João</strong>,<br />

porque só foi pela Providência divina que <strong>João</strong>, ainda que, em outros<br />

aspectos, foi um grande profeta, contudo não foi honrado com a realização<br />

de algum milagre. Daí concluem que isso se deu por causa de<br />

Cristo, para que ele fosse tido em maior estima.<br />

Mas tudo o que <strong>João</strong> disse. Parece que isso não foi expresso por<br />

ele mesmo, mas foi adicionado pelo evangelista a fim de mostrar que<br />

houve duas razões que os induziram a crer em Cristo. De um lado, 25 viram<br />

que o testemunho de <strong>João</strong> sobre ele era verdadeiro, e, do outro, 26<br />

os milagres de Cristo lhe granjearam maior autoridade.<br />

25 “D’un costé”.<br />

26 “D’autrepart”.


Capítulo 11<br />

[11.1-10]<br />

Ora, estava enfermo um certo Lázaro, de Betânia, vila de Maria<br />

e sua irmã Marta. E Maria era aquele que ungira o Senhor com<br />

unguento e enxugara seus pés com seus cabelos, cujo irmão,<br />

Lázaro, estava enfermo. Por isso as irmãs mandaram dizer-lhe:<br />

Senhor, eis que está enfermo aquele a quem amas. E Jesus, tendo<br />

ouvido isso, disse: Essa enfermidade não é para morte, mas<br />

para a glória de Deus, para que o Filho de Deus seja por ela<br />

glorificado. Ora, Jesus amava a Marta, a sua irmã e a Lázaro.<br />

Tendo, pois, ouvido que ele estava enfermo, então permaneceu<br />

duas dias no lugar onde estava. E depois disso, ele disse a seus<br />

discípulos: Vamos para outra vez para a Judeia. Disseram-lhe<br />

os discípulos: Os judeus recentemente buscavam apedrejar-<br />

-te, e novamente voltas para lá? Respondeu Jesus: Não há doze<br />

horas no dia? Se alguém andar de dia, não tropeça, porque ele<br />

vê a luz deste mundo, mas, se alguém andar de noite, tropeça,<br />

porque nele não luz.<br />

1. Ora, estava enfermo um certo Lázaro. O evangelista passa<br />

para outra narrativa, a qual contém um milagre eminentemente digno<br />

de ser registrado. Pois Cristo não só dá uma notável prova de seu poder<br />

divino ressuscitando Lázaro, mas igualmente pôs diante de nossos<br />

olhos uma vívida imagem de nossa ressurreição futura. Aliás, pode-<br />

-se dizer que este foi o último e conclusivo ato de sua vida, pois o


464 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

tempo de sua morte já estava se avizinhando. Portanto, não carece<br />

que admiremos por haver ilustrado sua própria glória, de uma maneira<br />

extraordinária, nessa obra, com a qual ele queria imprimir profundamente<br />

em nossas mentes para que fosse selado, em alguns aspectos,<br />

tudo o que fizera antes. Houve outros a quem Cristo ressuscitou dentre<br />

os mortos, mas agora exibe seu poder em um corpo putrefato. Mas<br />

as circunstâncias que tendem a exaltar a glória de Deus nesse milagre<br />

serão realçadas em seu lugar e ordens próprios.<br />

Betânia, vila de Maria e sua irmã Marta. A provável razão por<br />

que esta circunstância é mencionada é que Lázaro não havia adquirido<br />

tão grande celebridade entre os crentes como suas irmãs o tinham,<br />

pois essas santas mulheres costumavam agradar a Cristo com sua<br />

hospitalidade, como se faz evidente à luz do que é relatado pelo evangelista<br />

Lucas [10.38]. Realmente é um disparate tão ridículo suporem<br />

os monges e crias tais como têm os papistas, fazer desta pequena cidade<br />

ou vila um castelo.<br />

2. Aquela Maria que ungira o Senhor. É uma similar exibição de<br />

ignorância imaginar que esta Maria, irmã de Lázaro, seja aquela mulher<br />

de vida impura e infame mencionada em Lucas [7.37]. Tal equívoco<br />

foi ocasionado pela unção, como se não fosse bastante evidente que<br />

Cristo foi ungido em diversas ocasiões e ainda em diferentes lugares.<br />

A mulher que era pecadora, de quem Lucas faz um relato, ungiu Cristo<br />

em Jerusalém, onde ele morava. Maria, porém, mais tarde o ungiu em<br />

Betânia, que era sua própria vila. O pretérito empregado pelo evangelista,<br />

que ungiu, deve referir-se não ao tempo da ocorrência que ele<br />

ora relata, mas ao tempo em que escreveu, como se quisesse dizer:<br />

“Foi esta Maria que depois derramou unguento na cabeça de Cristo,<br />

fato esse que despertou murmuração entre os discípulos” [Mt 26.7].<br />

3. Eis que está enfermo aquele a quem amas. A passagem é breve,<br />

porém Cristo poderia facilmente depreender dela o que as duas<br />

irmãs desejavam, pois nesta queixa declaram humildemente que se ele<br />

quisesse poderia atender sua solicitação. Aliás, aqui aprendemos que<br />

não somos proibidos de usar uma forma mais longa de oração, mas


Capítulo 11 • 465<br />

que nosso principal objetivo deve ser derramar no seio de Deus todas<br />

nossas preocupações e tudo aquilo que nos aflige, para que ele nos<br />

atenda e nos livre. Esta é a forma em que as mulheres agem em relação<br />

a Cristo: apresentam-lhe claramente sua angústia, em cuja resposta<br />

esperam algum alívio. Devemos também observar que, à luz do amor<br />

de Cristo, são levadas a nutrir confiança esperança de obter assistência:<br />

a quem tu amas. E esta é a regra invariável da oração correta, pois<br />

onde o amor de Deus está ali também está o livramento infalível, porque<br />

Deus não pode abandonar aquele a quem ama.<br />

4. Ora, tendo Jesus ouvido isso, disse: Essa enfermidade não é<br />

para morte. Sua intenção com esta resposta era isentar os discípulos<br />

de ansiedade, para que não o tomassem em sentido errôneo quando o<br />

vissem preocupar-se tão pouco com o perigo que rondava seu amigo.<br />

Portanto, para que não se alarmassem acerca de seu amigo Lázaro, ele<br />

declara que a enfermidade não era mortal, e ainda promete que ela<br />

será uma ocasião adicional de promover sua própria glória. Embora<br />

Lázaro morresse, ele então declara, olhando para o resultado, que a<br />

enfermidade não é para morte.<br />

Mas para a glória de Deus. Esta sentença não é contrastada com<br />

morte, como se fosse um argumento que deve ser sempre mantido,<br />

pois sabemos que, ainda quando os réprobos morram, a glória de<br />

Deus não é menos gloriosamente exibida em sua destruição do que<br />

na salvação dos crentes. Cristo, porém, estritamente tenciona dizer,<br />

nesta passagem, que a glória de Deus estava conectada com seu ofício.<br />

O poder de Deus, que era exibido nos milagres de Cristo, não se adequavam<br />

a infundir terror, mas eram bondosos e suaves. Ao dizer que<br />

não havia nenhum perigo de morte, porquanto tenciona exibir nele sua<br />

própria glória e a glória de seu Pai, devemos inquirir com que propósito<br />

e com que intenção ele fora enviado pelo Pai, que foi para salvar,<br />

e não para destruir.<br />

Para a glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado.<br />

Esta expressão é sumamente enfática, pois dela aprendemos que Deus<br />

deseja ser reconhecido na pessoa de seu Filho, de tal maneira, que


466 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

toda a reverência que ele requer seja dada a sua própria majestade, 1<br />

seja atribuída ao Filho. Daí sermos informados previamente: Aquele<br />

que não honra o Filho, não honra o Pai [Jo 5.23]. Portanto, é sem razão<br />

que maometanos e judeus pretendam adorar a Deus, pois continuam<br />

blasfemando contra Cristo, e ainda usam todas as formas para roubar<br />

a Deus de si próprio.<br />

5. E Jesus amava a Marta e a sua irmã e a Lázaro. Estas duas<br />

coisas parecem ser inconsistentes entre si: que Cristo permaneça dois<br />

dias para as bandas do Jordão, como se não se preocupasse com a vida<br />

de Lázaro, e, contudo, o evangelista diz que Cristo o amava, a ele e a<br />

suas irmãs, pois já que o amor produz ansiedade, ele deve apressar-se<br />

imediatamente. Visto que Cristo é o único espelho da graça de Deus,<br />

somos ensinados por essa delonga de sua parte, que não devemos<br />

julgar o amor de Deus à luz da condição que vemos diante de nossos<br />

olhos. Ao orarmos a ele, às vezes delonga sua assistência, ou para que<br />

aumente ainda mais nosso ardor em oração, ou para que exercite nossa<br />

paciência e, ao mesmo tempo, nos habitue à obediência. Que os<br />

crentes, pois, implorem a assistência divina, mas que também aprendam<br />

a sustar seus desejos se ele não estender-lhes suas mãos em seu<br />

socorro tão prontamente como concluem que a necessidade requeira,<br />

pois por mais que pareça delongar em sua resposta, ele nunca dormita<br />

e jamais esquece seu povo. Mas que estejamos também plenamente<br />

certos de que deseja que sejam salvos a tantos quantos ama.<br />

7. E depois disto ele disse a seus discípulos. Até que enfim ele<br />

mostra que se preocupava com Lázaro, embora os discípulos imaginassem<br />

que o havia esquecido, ou pelo menos, havia outros problemas<br />

que considerava de mais importância que a vida de Lázaro. Ele, pois,<br />

ordena-lhes que cruzassem o Jordão e fossem para a Judeia.<br />

8. Rabi, recentemente os judeus procuravam apedrejar-te.<br />

Quando os discípulos o dissuadem de ir, ele aquiesce, não tanto, provavelmente,<br />

em virtude de si próprio, mas por causa deles, para que<br />

1 “A sa majesté”.


Capítulo 11 • 467<br />

não se preocupassem com ele mesmo, visto que o perigo era comum a<br />

todos. Evitando a cruz e envergonhando-se dela, alegam – o que é mais<br />

plausível – que enfrentam ansiedade por seu Mestre. O mesmo sucede<br />

todos os dias com muitas outras pessoas. Pois aqueles que, movidos<br />

pelo medo da cruz, se esquivam de cumprir seu dever, ansiosamente<br />

buscam justificativas para disfarçar sua indolência, para que se conclua<br />

que roubam a Deus da obediência a ele devida, quando não têm<br />

bons motivos para agirem assim.<br />

9. Não são doze as horas do dia? Esta passagem tem sido explicada<br />

de várias formas. Alguns creem que o significado dessas palavras<br />

seja que os homens às vezes adotam uma nova e diferente resolução<br />

a cada momento. Isso está bem longe da intenção de Cristo, e de fato<br />

não o considero digno de menção, não fosse o fato de ter se transformado<br />

em provérbio popular. Portanto, fiquemos satisfeitos com o<br />

significado simples e natural.<br />

Primeiro, Cristo tomou por empréstimo uma comparação do dia<br />

e da noite. Pois se alguém realiza uma viagem no escuro, nem precisamos<br />

maravilhar-nos se tropeçar a cada instante ou se desviar da rota<br />

ou cair, ao contrário, a luz do sol, durante o dia, clareia a estrada, de tal<br />

modo que o perigo é afastado. Ora, a vocação divina é como a luz do<br />

dia, que não nos permite equivocar a rota nem tropeçar. Todo aquele,<br />

pois, que obedece a Palavra de Deus e nada empreende senão o que<br />

está em harmonia com seu mandamento, sempre terá Deus, de sua<br />

morada, a guiá-lo e a dirigi-lo, e com essa confiança ele pode com segurança<br />

e ousadamente seguir sua jornada. Porque, somos informados,<br />

“a seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos<br />

teus caminhos”. “Eles te sustentarão em suas mãos, para que não resvales<br />

teu pé em alguma pedra” [Sl 91.11]. Confiando nessa proteção,<br />

pois, Cristo ousadamente avança rumo à Judeia, sem qualquer temor<br />

de ser apedrejado, pois não há perigo de se desviar quando Deus, fazendo<br />

a parte do sol, brilha sobre nós e dirige nossa trajetória.<br />

Com essas palavras somos ensinados que, sempre que alguém<br />

permite ser guiado por suas próprias sugestões, sem a vocação divina,


468 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

toda sua vida nada mais é senão uma trajetória de oscilações e equívocos.<br />

E que aqueles que acreditam ser excessivamente sábios, quando<br />

não inquirem dos lábios de Deus e não tem seu Espírito governando<br />

suas ações, são como cegos que cambaleiam no escuro, que a única<br />

via certa é estarmos plenamente convictos de nossa vocação divina e<br />

de termos sempre Deus diante de nossos olhos como nosso Guia. 2 Esta<br />

regra de regular bem nossa vida é seguida por uma confiante expectativa<br />

de um resultado bem sucedido, porque é impossível que Deus<br />

não governe com pleno êxito. E tal conhecimento nos é sumamente<br />

necessário, porque os crentes raramente podem mover um pé para<br />

segui-lo sem que Satanás imediatamente interponha mil obstruções,<br />

surgindo uma variedade de perigos de todos os lados e obstáculos, de<br />

todas as formas possíveis, para impedir seu progresso. Mas quando o<br />

Senhor nos convida a seguir em frente, empunhando, por assim dizer,<br />

sua lâmpada diante de nós, devemos seguir em frente corajosamente,<br />

ainda que centenas de mortes cerquem nossa vereda, pois ele jamais<br />

nos ordena avançar sem ao mesmo tempo adicionar uma promessa<br />

para nos animar, de modo que podemos convencer-nos plenamente<br />

de que tudo quanto empreendermos fazer em consonância com sua<br />

ordem teremos um bom e próspero resultado. Esta é nossa carruagem,<br />

e quem quiser valer-se dela jamais desfalecerá de exaustão, e ainda<br />

quando os obstáculos sejam tão formidáveis que não pudéssemos nos<br />

comunicar com eles por meio de uma carruagem, contudo, munidos<br />

com essas asas, seremos sempre bem sucedidos até alcançarmos o<br />

alvo. Não que os crentes nunca se deparem com alguma adversidade,<br />

mas porque ocorrências adversas são auxílios para sua salvação.<br />

Equivale a isso que os olhos de Deus estarão sempre atentos<br />

para guardar os que estarão atentos a sua instrução. Daí aprendermos<br />

também que, sempre que os homens ignorarem e desconsiderarem<br />

a Palavra de Deus, e consequentemente se entregarem nesciamente,<br />

e empreenderem tudo quanto acreditam ser certo, todo o curso de<br />

2 “Quand nous avons tousjours Dieu devant nos yeux pour nostre guide”.


Capítulo 11 • 469<br />

sua vida é amaldiçoado por Deus e a vingança estará sempre pronta a<br />

punir sua presunção e suas cegas paixões. Ainda, Cristo aqui divide o<br />

dia em doze horas, sendo o costume antigo, pois embora os dias sejam<br />

mais longos no verão e mais curtos no inverno, 3 todavia o dia sempre<br />

teve doze horas e a noite, doze horas.<br />

[11.11-17]<br />

Ele falou essas coisas, e depois lhes disse: Nosso amigo Lázaro<br />

dorme, porém vou para despertá-lo. Então disseram seus discípulos:<br />

Senhor, se ele dorme, se recuperará. Ora, Jesus falava<br />

de sua morte, mas pensavam que ele falasse do repouso do<br />

sono. Então Jesus disse-lhes claramente: Lázaro está morto. E<br />

por isso eu me regozijo de não estar lá, para que creiais. mas<br />

vamos ter com ele. Então Tomé, que é chamado Dídimo, disse<br />

a seus condiscípulos: Vamos nós também para morrermos com<br />

ele. Jesus, portanto, chegou e descobriu que já havia quatro<br />

dias que ele estava na sepultura.<br />

11. Nosso amigo Lázaro dorme. Havendo previamente asseverado<br />

que a enfermidade não era mortal, para que seus discípulos não se<br />

sentissem por demais angustiados em ver o que não esperavam, ele<br />

agora lhes informa também que Lázaro está morto, e desperta a esperança<br />

de sua ressurreição. É uma prova de espantosa ignorância que<br />

acreditassem que Cristo falava do sono, pois embora seja uma forma<br />

metafórica de expressão, tão frequente e comum na Escritura, deveria<br />

a mesma ser bem familiarmente conhecida de todos os judeus.<br />

12. Se ele dorme, se recuperará. 4 Respondendo que o sono<br />

terá um efeito salutar sobre Lázaro, indiretamente tentavam dissuadir<br />

a Cristo de ir para lá. E contudo não se desvencilhavam astuta<br />

e enganosamente das palavras de Cristo, adaptando-as a seu pró-<br />

3 “Combien que les jours soyent plus grands en esté, et plus petits en hyver”.<br />

4 “Il sera guairi”.


470 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

prio propósito, sob o pretexto de não entender o que ele dizia, 5<br />

mas, crendo estar ele falando sobre o sono, de bom grado agarram<br />

essa oportunidade de evitar o perigo. Agostinho, e muitos outros<br />

escritores desde seu tempo, especulam sobre a palavra dormir, alegando<br />

que a razão para aplicá-la à morte se deve ao fato de que<br />

é tão fácil para Deus ressuscitar o morto à vida como é para nós<br />

atender ao ato costumeiro de acordar os que estão dormindo. Mas<br />

que nada desse gênero estava na mente de Cristo, pode-se inferir do<br />

constante uso do termo na Escritura, e visto que mesmo escritores<br />

profanos geralmente aplicam esta palavra sono à morte, 6 inquestionavelmente<br />

não havia nenhuma outra razão pela qual recorresse<br />

a seu uso, senão porque um cadáver sem vida jazia sem sentimento,<br />

justamente como o corpo de um homem que jaz em um sono<br />

profundo. Daí também o sono não é impropriamente chamado a<br />

imagem da morte, e Homero o chama irmão da morte (κασίγνητος<br />

θανάτουυ). Visto que esta palavra denota apenas o sono do corpo,<br />

é um absurdo prodigioso aplicá-la – como alguns fanáticos têm feito<br />

– às almas, como se, ao se verem privadas de entendimento, estivessem<br />

sujeitas à morte.<br />

Mas vou despertá-lo. Cristo declara seu próprio poder, ao dizer<br />

que iria para despertar a Lázaro, porque, como costumamos dizer, embora<br />

a palavra sono não expresse a facilidade da ressurreição, contudo<br />

Cristo mostra que ele é o Senhor da morte, ao dizer que ele desperta<br />

àqueles a quem ele restaura à vida.<br />

14. Então Jesus lhes disse claramente: Lázaro está morto. A<br />

bondade de Cristo era algo surpreendente, tendo toda condição de<br />

suportar tão grosseira ignorância nos discípulos. E de fato a razão pela<br />

qual ele tardou em ir, por algum tempo, outorgando-lhes a graça do<br />

Espírito em maior medida, era para que o milagre de renová-los em um<br />

instante fosse ainda maior.<br />

5 “Comme faisans semblant de n’entendre point ce que Christ dit”.<br />

6 “Et mesmes veu que les autheurs profanes transferent coustumierement ce mot de<br />

Dormir a la Mort”.


Capítulo 11 • 471<br />

15. E por vossa causa eu me regozijo de não estar lá. Sua intenção<br />

é dizer que sua ausência lhes era mui proveitosa, porque seu<br />

poder teria sido menos eminentemente exibido se instantaneamente<br />

desse a Lázaro toda a assistência. Pois quanto mais associadas as<br />

obras de Deus estão do curso ordinário da natureza, menos sublimemente<br />

são valorizadas e menos eminentemente é sua glória exibida.<br />

Isso é o que experimentamos diariamente, pois se Deus imediatamente<br />

estende sua mão, não percebemos sua assistência. Portanto, para<br />

que a ressurreição de Lázaro fosse reconhecida pelos discípulos de<br />

que verdadeiramente era uma obra divina, tinha de ser demorada para<br />

que fosse mais amplamente distanciada dos recursos humanos.<br />

Não obstante, devemos recordar o que observei previamente, a<br />

saber, que a bondade paternal de Deus para conosco é aqui representada<br />

na pessoa de Cristo. Quando Deus nos permitir ser esmagados<br />

pelas angústias e debilitados por elas, saibamos que dessa forma ele<br />

promove nossa salvação. Sem dúvida, em tais ocasiões gememos e nos<br />

sentimos perplexos e dolorosamente aflitos, mas o Senhor se regozija<br />

por causa de nosso benefício, e nos fornece uma dupla exibição de sua<br />

bondade neste aspecto: ele não perdoa nossos pecados, mas de bom<br />

grado acha ocasião de corrigi-los.<br />

Para que creiais. Ele não quer dizer que este era o primeiro débil<br />

começo da fé neles, mas que era uma confirmação da fé já iniciada,<br />

ainda que ela fosse excessivamente pequena e frágil. Não obstante, ele<br />

indiretamente sugere que, se a mão de Deus não fosse publicamente<br />

exibida, não teriam crido.<br />

16. Então Tomé. Até aqui os discípulos tentaram impedir a Cristo<br />

de ir. Tomé agora se sente preparado para seguir em frente, porém sem<br />

confiança, ou pelo menos, ele não se sente fortificado pela promessa<br />

de Cristo ao ponto de segui-lo com alacridade e compostura.<br />

Vamos para morrermos com ele. Esta é a linguagem do desespero,<br />

porque não deveriam nutrir nenhum temor por suas próprias<br />

vidas. A frase, com ele, pode ser explicada como sendo uma referência<br />

ou a Lázaro ou a Cristo. Se a atribuirmos a Lázaro, passa a ser


472 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

irônica, como se Tomé quisesse dizer: “De que vantagem nos será<br />

ir lá, a não ser podermos cumprir o dever de amigos de qualquer<br />

outra maneira senão buscar a morte juntamente com ele?” Não obstante,<br />

prefiro em grande medida o outro sentido: que Tomé não se<br />

recusa morrer com Cristo. Isso, porém, como eu já disse, procede<br />

de um zelo inconsiderado, pois ele deveria, ao contrário, tomar o<br />

alento da fé na promessa.<br />

[11.18-27]<br />

Ora, Betânia ficava próximo a Jerusalém, cerca de quinze estádios.<br />

E muitos dos judeus tinham ido consolar Marta e Maria<br />

acerca de seu irmão. Quando Marta, pois, ouviu que Jesus<br />

tinha vindo, saiu-lhe ao encontro, Maria, porém, ficou sentada<br />

em casa. Então Marta disse a Jesus: Senhor, se estivesses<br />

aqui, meu irmão não teria morrido. Mas sei que mesmo agora,<br />

o que pedires a Deus, Deus to dará. Disse-lhe Jesus: Teu<br />

irmão ressuscitará. Disse-lhe Marta: Eu sei que ele ressuscitará<br />

na ressurreição do último dia. Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição<br />

e a vida, quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E<br />

todo aquele que vive e crê em mim jamais morrerá. Crês nisto?<br />

Disse-lhe ela: Sim, Senhor, eu creio que tu és o Cristo, o Filho de<br />

Deus, que estava para vir ao mundo.<br />

18. Ora, Betânia ficava próximo a Jerusalém. O evangelista<br />

diligentemente leva a cabo tudo o que contribui para a exatidão da<br />

narrativa. Relata quão próxima Jerusalém ficava da vila de Betânia,<br />

para que ninguém admirasse que, com o propósito de confortar as<br />

irmãs, muitos amigos foram de Jerusalém, os quais a intenção de<br />

Deus é que fossem testemunhas do milagre. Pois ainda que o desejo<br />

de cumprir um ofício de benevolência os induzisse a ir ali, contudo<br />

foi por um decreto secreto de Deus se congregaram, e com outro<br />

propósito, para que a ressurreição de Lázaro não permanecesse no<br />

anonimato, ou para que as testemunhas fossem não só as que per-


Capítulo 11 • 473<br />

tenciam à família. Ora, é uma prova convincente da vil ingratidão<br />

da nação que esta extraordinária demonstração do poder divinos,<br />

num lugar bem conhecido, no meio de vasta multidão de homens e<br />

próximo aos portões da cidade, e que quase se poderia dizer apresentado<br />

num palco, instantaneamente se desvanece de diante dos<br />

olhos dos homens. Antes poderíamos dizer que os judeus, ao maliciosamente<br />

fecharem seus olhos, intencionalmente não enxergam<br />

o que jaz diante de seus olhos. Tampouco é uma ocorrência nova e<br />

inusitada que os homens que, com excessiva solicitude, continuamente<br />

ávidos por milagres, sejam totalmente obtusos e estúpidos<br />

em analisá-lo.<br />

Cerca de quinze estádios. Essa distância entre os dois lugares<br />

era um pouco menos de dois mil passos, ou duas milhas, pois o Stadium,<br />

ou estádio, é a somatória de seiscentos pés, isto é, cento e vinte<br />

e cinco passos. 7<br />

19. Para confortá-las acerca de seu irmão. Este era, sem dúvida,<br />

o objetivo que tinham em vista, Deus, porém, tinha outro objetivo a<br />

concretizar, como já afirmamos. É evidente à luz do que aqui se menciona<br />

que a casa de Lázaro e suas irmãs era mui respeitada e honrada.<br />

Além disso, como é natural que a morte de amigos ocasione tristeza e<br />

pranto ao ser humano, este dever, da qual o evangelista faz menção,<br />

não deve ser motivo de vergonha, a não ser que conduza a excessos<br />

pecaminosos, e que prevalece nesta e em outras esferas da vida, corrompa<br />

o que não é em si mesmo pecaminoso.<br />

20. Tendo Marta ouvido que Jesus estava vindo. Marta caminha<br />

para fora da vila, como veremos mais tarde, não só, talvez, por uma<br />

questão de reverência que nutria por Cristo, mas para que pudesse encontrá-lo<br />

mais discretamente, pois o perigo que ele corria era algo que<br />

ainda estava em sua lembrança, bem como a fúria ainda não estava<br />

7 O Passus, ou passo, romano – medido do ponto em que o mesmo pé estava posto ao<br />

ponto em que o mesmo pé estava depois de dois pés comuns – era composto de cinco<br />

pés, de modo que a milha, ou mil passos, continha cinco mil pés, menos de uma milha<br />

inglesa, e o Stadium, ou estádio, que continha, segundo Calvino, “cento e vinte e cinco<br />

passos”, era igual a seiscentos e vinte e cinco pés.


474 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

aplacada, embora com sua partida para Galileia estava mais arrefecida,<br />

mas que poderiam, ouvindo que acabava de chegar, novamente se<br />

prorromper com maior violência.<br />

21. Senhor, se estiveras aqui. Ela começa com uma queixa, embora,<br />

ao agir assim, expresse modestamente seu desejo. Sua intenção<br />

pode ser assim expressa: “Tua presença poderia ter livrado meu irmão<br />

da morte, e mesmo agora podes fazer isso, pois Deus não te<br />

recusará nada”. A expressar-se nesses termos, ela dá vazão a suas<br />

emoções, em vez de restringi-las com o domínio que a fé deve exercer.<br />

Reconheço que suas palavras em parte procedem da fé, mas sei<br />

que houve um misto de sentimentos desordenados, os quais a impeliram<br />

para além dos devidos limites. Pois quando se assegura de que<br />

seu irmão não teria morrido se Cristo estivesse presente, que motivo<br />

tinha para tal confiança? Com certeza ela não era oriunda de alguma<br />

promessa de Cristo.<br />

Portanto, a única conclusão é que ela inconsideradamente se rende<br />

a seus próprios desejos, em vez de sujeitar-se a Cristo. Ao atribuir<br />

a Cristo poder e suprema bondade, isso procede da fé, mas ao persuadir-se<br />

de algo mais além do que Cristo tinha declarado, isso nada tinha<br />

a ver com a fé. 8 Pois devemos sempre manter a mútua concordância<br />

entre a palavra e a fé, para que ninguém venha a forjar precipitadamente<br />

algo para si sem a autoridade da Palavra de Deus. Além disso,<br />

Marta dá demasiada importância à presença corporal de Cristo. A consequência<br />

é que a fé de Marta, ainda que mesclada e entretecida com<br />

desejos mal regulados, e ainda não completamente isenta de superstição,<br />

não podia fulgir com pleno esplendor, e assim mal percebemos<br />

umas poucas chispas dela nessas palavras.<br />

23. Teu irmão ressuscitará. A bondade de Cristo é algo espantoso,<br />

perdoando as falhas de Marta que já mencionamos e lhe prometendo,<br />

espontaneamente, mais do que ela se aventuraria pedir de forma franca<br />

e direta.<br />

8 “Cela n’a rien de commun avec la foy”.


Capítulo 11 • 475<br />

24. Eu sei que ele ressuscitará. Agora percebemos a excessiva<br />

timidez de Marta em atenuar o significado das palavras de Cristo. Já<br />

dissemos que ela foi mais longe do que tinha o direito de fazer, quando<br />

forjou para si uma esperança dos sentimentos de sua própria<br />

mente. Ela agora entra em contradição, pois quando Cristo estende<br />

sua mão, ela o interrompe como se ficasse apavorada. Portanto,<br />

devemos guardar-nos contra ambos esses extremos. Por um lado,<br />

não devemos, sem a autoridade da Palavra de Deus, nutrir-nos de<br />

esperanças vazias, as quais provarão nada ser senão vento, e, por<br />

outro lado, quando Deus abre sua boca, não é conveniente que ele<br />

encontre nossos corações ou bloqueados, ou solidamente fechados.<br />

Além disso, com esta resposta, Marta pretendia asseverar mais do<br />

que se aventurava esperar das palavras de Cristo, como se quisesse<br />

dizer: “Se queres dizer a ressurreição final, não tenho dúvida de que<br />

meu irmão ressuscitará no último dia, e me consolo com esta confiante<br />

expectativa, porém não sei se estás dirigindo minha atenção para<br />

algo maior”.<br />

25. Eu sou a ressurreição e a vida. Cristo primeiramente<br />

declara ser a ressurreição e a vida, e então explica, separada e distintamente,<br />

cada parte da sentença. Sua primeira afirmação é: eu<br />

sou a ressurreição, porque a restauração do morto à vida naturalmente<br />

vem antes do estado de vida. Ora, toda a raça humana está<br />

mergulhada na morte, e, portanto, ninguém será participante da<br />

vida até que o mesmo ressuscite dentre os mortos. E assim Cristo<br />

mostra que ele é o princípio da vida, e em seguida adiciona que o<br />

seguimento da vida é também obra de sua graça. Que ele está falando<br />

acerca da vida espiritual, claramente se prova pela exposição<br />

que segue imediatamente:<br />

Aquele que crê em mim, ainda que morra viverá. Por que,<br />

pois, Cristo é a ressurreição? Porque mediante seu Espírito ele<br />

regenera os filhos de Adão, que estiveram alienados de Deus em decorrência<br />

do pecado, de modo que passaram a viver uma nova vida.<br />

Já falei sobre este tema mais plenamente no capítulo 5.21, 24, e


476 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Paulo é um excelente intérprete desta passagem [Ef 2.5, 5.8]. Ora,<br />

longe com aqueles que ociosamente falam que os homens estão<br />

preparados para receber a graça de Deus pelo impulso da natureza.<br />

Bem que poderiam dizer que os mortos andam. Pois para que os<br />

homens vivam e respirem, e sejam dotados com sentimento, entendimento<br />

e vontade, tudo isso tende para sua destruição, porque<br />

não há parte ou faculdade da alma que não seja corrompida e desviada<br />

do caminho reto. É assim que a morte por toda parte mantém<br />

domínio, pois a morte da alma nada mais é do que ser ela alienada e<br />

afastada de Deus. 9 Consequentemente, aqueles que creem em Cristo,<br />

ainda que estivessem anteriormente mortos, começam a viver,<br />

porque a fé é a ressurreição espiritual da alma, e, por assim dizer,<br />

anima a própria alma para que viva para Deus, em conformidade<br />

com aquela passagem: “Os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e<br />

os que a ouvem viverão” [Jo 5.25]. Eis verdadeiramente um extraordinário<br />

enaltecimento da fé, isto é: que ela nos comunica a vida de<br />

Cristo, e assim nos livra da morte.<br />

26. E quem vive e crê em mim. Esta é a exposição da segunda<br />

parte da sentença: Cristo é a vida, e ele é a vida porque jamais permite<br />

que a vida que uma vez outorgou se perca, mas que a preserva até o<br />

fim. Porque, visto que a carne é tão frágil, o que seria do ser humano<br />

se, depois de haver obtido a vida, em seguida fosse entregue a si próprio?<br />

A perpetuidade da vida deve, pois, fundamentar-se no poder de<br />

Cristo mesmo, para que ele complete o que havia começado.<br />

Jamais morrerá. A razão por que se declara que os crentes jamais<br />

morrem é que suas almas, nascendo de semente incorruptível<br />

[1Pe 1.23], tem Cristo habitando nelas, de quem elas derivam perpétuo<br />

vigor, pois, ainda que o corpo se sujeite à morte em decorrência do<br />

pecado, todavia o espírito é vida por causa da justiça [Rm 8.10]. Que<br />

o homem exterior diariamente se deteriora está tão longe de tirar algo<br />

de sua verdadeiramente, que ela ajuda no progresso dele, porque o ho-<br />

9 “N’est autre chose qu’estre estrangé et detourné de Dieu”.


Capítulo 11 • 477<br />

mem interior é diariamente renovado [2Co 4.16]. O que é ainda mais: a<br />

própria morte é uma sorte de antecipação da servidão da morte.<br />

Crês nisto? É como se Cristo, à primeira vista, discursasse acerca<br />

da vida espiritual, como o propósito de desviar a mente de Marta de<br />

seu presente desejo. Marta desejava que seu irmão fosse restaurado à<br />

vida. Cristo responde que ele é o Autor de uma vida muito mais excelente,<br />

e isso porque ele vivifica as almas dos crentes pelo poder divino.<br />

Não obstante, não tenho dúvida de que ele tencionava incluir ambos<br />

os favores, e por isso descreve, em termos gerais, aquela vida espiritual<br />

que ele outorga a todos os seus seguidores, porém deseja dar-lhes<br />

alguma oportunidade de conhecer seu poder, o que logo em seguida<br />

manifestará ressuscitando Lázaro.<br />

27. Sim, Senhor. Para provar que ela crê no que ouvira Cristo dizer<br />

sobre si mesmo, que ele é a ressurreição e a vida, Marta responde<br />

que crê ser ele o Cristo e o Filho de Deus, e de fato este conhecimento<br />

inclui a soma de todas as bênçãos, pois devemos ter sempre em mente<br />

com propósito o Messias fora prometido e dever o profeta lhe atribui.<br />

Ora, quando Marta confessa que ele era aquele que deveria vir ao mundo,<br />

ela corrobora sua fé pelas predições dos profetas. Daí se segue que<br />

devemos esperar dele a plena restauração de todas as coisas e a perfeita<br />

felicidade, e, em suma, que ele foi enviado para erigir e preparar<br />

o verdadeiro e perfeito estado do reino de Deus.<br />

[11.28-38]<br />

Tendo dito essas coisas, ela partiu e chamou secretamente<br />

Maria sua irmã, dizendo: O Mestre está aqui e chama por ti. E<br />

ela, ouvindo isso, levantou-se imediatamente e foi ter com ele.<br />

Ora, Jesus ainda não havia entrado na vida, mas permanecera<br />

no lugar onde Marta o encontrara. Então os judeus, que estavam<br />

com ela na casa e a confortavam, percebendo que Maria<br />

se levantara e saíra de repente, seguiram-na, dizendo: Ela vai<br />

ao túmulo para chorar ali. Maria, pois, chegando onde Jesus<br />

estava, e tendo-o visto, caiu a seus pés, dizendo-lhe: Senhor,


478 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

se estivesses aqui meu irmão não teria morrido. Jesus, pois,<br />

vendo seu pranto e os judeus que chegavam com ela também 10<br />

choravam, gemeu em seu espírito, ficou perturbado e disse:<br />

Onde o pusestes? Disseram-lhe: Senhor, vem e vê. Jesus chorou.<br />

Disseram, pois, os judeus: Vede como o amava! 11 E alguns<br />

dentre eles disseram: Não podia este homem, que abriu os<br />

olhos ao cego, fazer também com que esse homem não morresse?<br />

Então Jesus, novamente gemendo em seu íntimo, veio<br />

ao túmulo. Ora, era uma caverna, e tinha uma pedra posta nela.<br />

28. E chamou Maria, sua irmã. Provavelmente foi a pedido de<br />

Marta que Cristo permaneceu na periferia da vila, para que ele não<br />

se ingressasse em tão grande assembleia do povo, pois ela temia o<br />

perigo, visto que Cristo não fazia muito escapara com dificuldade de<br />

morte instantânea. Por conseguinte, para que o rumor de sua chegada<br />

não espalhasse ainda mais, ela leva particularmente ao conhecimento<br />

de sua irmã.<br />

O Mestre está aqui. O termo Mestre mostra com que apreço Cristo<br />

era considerado entre as mulheres piedosas. Ainda que até então<br />

não houvessem tirado tanto proveito como o poderiam, contudo já era<br />

uma grande vantagem ter-se devotado inteiramente a ele como suas<br />

discípulas, e de repente Maria parte ao encontro dele, dando assim<br />

prova de que ela o tinha na máxima reverência.<br />

31. Então os judeus que estavam com ela. Ainda que a Marta<br />

Cristo permitisse regressar ao lar com o propósito de evitar que sua<br />

irmã se visse envolvida pela numerosa multidão, contudo Cristo tinha<br />

outro desígnio em vista, a saber, para que os judeus testemunhassem<br />

o milagre. Aliás, nem sequer o concebiam, porém não é uma novidade<br />

que homens sejam conduzidos, como se estivessem no escuro e pela<br />

providência secreta de Deus, para onde não pretendiam ir. Creem que<br />

Maria se dirige ao túmulo segundo o costume dos que buscam os es-<br />

10 “Aussi”.<br />

11 “Voyez comme il l’aimoit!”


Capítulo 11 • 479<br />

tímulos de sua tristeza. Pois é um mal-estar prevalecente que esposos<br />

se privem de suas esposas, pais se privem de seus filhos e, em contrapartida,<br />

esposas se privem de seus esposos, filhos se privem de<br />

seus pais ou outros parentes e amigos, e se vejam molestados por sua<br />

tristeza que aumenta gradativamente. É também costume recorrer a<br />

vários artifícios com o mesmo propósito. As afeições humanas já são<br />

suficientemente desordenadas, porém pioram 12 ainda mais quando os<br />

inflamam com novos estímulos para que se lancem contra Deus com<br />

maior ardor e violência. Era seu dever dissuadir Maria de ir, para que<br />

a visão do túmulo não propiciasse nova ocasião de renovar sua tristeza,<br />

contudo não se aventuravam a aplicar um remédio tão abrupto,<br />

porém contribuem ainda mais para agravar o excesso de sua tristeza<br />

ao acompanharem-na ao túmulo. E assim frequentemente sucede que<br />

aqueles que lidam tão gentilmente com os excessos de seus amigos<br />

lhes propiciam pouco bem com suas consolações.<br />

32. Ela caiu a seus pés. De ela cair a seus pés aprendemos que Cristo<br />

era naquela casa honrado de uma forma que excedia os costumes<br />

humanos. Porque, ainda que fosse costume cair de joelhos ao chão na<br />

presença de reis e grandes personagens, contudo, visto que Cristo nenhuma<br />

aparência física possuía, nenhuma aparência régia ou honroso, o<br />

propósito de Maria em cair a seus pés era bem outro. Aliás, ela não teria<br />

feito isso não estivesse convicta de que ele era o Filho de Deus.<br />

Senhor, se estivesses aqui. Ainda que ela aparente falar com Cristo<br />

de uma forma respeitosa, contudo há pouco realçamos que gênero<br />

de falha há nessas palavras, pois não se deve limitar a sua presença<br />

física o poder de Cristo que enche o céu e a terra.<br />

33. Ele gemeu em seu espírito. Se Cristo não se houvera excitado<br />

à compaixão ante as lágrimas deles, teria antes conservado seu<br />

semblante impassível, mas quando, espontaneamente, se faz solidário<br />

aos que choravam, ao ponto de chorar com eles, 13 ele dá prova de<br />

que era compassivo (συμπάθεια). Pois a causa dessa emoção é, em<br />

12 “Mais voyci le pis”.<br />

13 “Quand de son bom gré il se conforme à ces pleurans, jusques pleurer avec eux”.


480 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

minha opinião, expressa pelo evangelista quando diz que Cristo viu<br />

chorando Maria e os demais. Contudo não tenho dúvida de que Cristo<br />

contemplava algo mais elevado, a saber, a miséria geral de toda a raça<br />

humana, pois bem sabia o que lhe fora imposta pelo Pai e por que fora<br />

enviado ao mundo, a saber, livrar-nos de todos os males. Visto que<br />

realmente já havia feito tudo isso, assim ele tencionava mostrar que<br />

o cumprira com amor e solicitude. Consequentemente, quando está<br />

para ressuscitar a Lázaro, antes de outorgar livramento ou auxílio, gemendo<br />

em seu espírito com um forte sentimento de tristeza e lágrimas,<br />

ele mostra que se acha tanto afetado por nossas angústias quanto está<br />

disposto a suportá-las em sua própria pessoa.<br />

Mas, como é possível que gemidos e uma mente atribulada possam<br />

fazer parte da pessoa do Filho de Deus? Como alguns ponderam ser<br />

um absurdo dizer que Cristo, como parte do número dos seres humanos,<br />

estivesse sujeito às paixões humanas, acreditam que a única<br />

maneira de ele experimentar tristeza e alegria era que ele recebia em<br />

seu íntimo tais sentimentos sempre que achasse conveniente por alguma<br />

dispensação secreta. Agostinho pensa que é neste sentido que o<br />

evangelista diz que ele sentia atribulado, porquanto os demais homens<br />

se sentem opressos por suas emoções, as quais exercem domínio ou<br />

melhor, tirania atormentando suas mentes. Portanto, ele considera ser<br />

este o significado: Cristo, ainda que sob outros aspectos tranquilo e<br />

isento de toda e qualquer paixão, permitiu-se gemer e entristecer-se<br />

em seu íntimo intencionalmente. Mas esta simplicidade, em minha<br />

opinião estará em mais harmonia com a Escritura se dissermos que o<br />

Filho de Deus, tendo se vestido com nossa carne, de bom grado vestiu-<br />

-se também com emoções humanas, de modo que não diferia em nada<br />

de seus irmãos, exceto unicamente quanto ao pecado. Dessa forma<br />

nada detraímos da glória de Cristo quando dizemos que essa era uma<br />

submissão voluntária, pela qual ele veio a ser semelhante a nós nas<br />

emoções da alma. Além disso, visto ele tornar-se submisso desde o início,<br />

não devemos imaginar que ele era livre e isento de tais emoções,<br />

e nesse aspecto ele provou ser nosso irmão, a fim de assegurar-nos


Capítulo 11 • 481<br />

que temos um Mediador que de bom grado perdoa nossas debilidades<br />

e que está pronto a assistir aquelas debilidades que experimentou em<br />

seu próprio ser.<br />

Talvez alguém objete dizendo que as paixões humanas são pecaminosas,<br />

e por isso não é possível admitir que as temos em comum<br />

com o Filho de Deus. Eis minha resposta: há uma ampla diferença entre<br />

Cristo e nós. Porque a razão pela qual nossas emoções são pecaminosas<br />

é que elas nos impelem sem restrição e não experimentamos<br />

nenhum limite, mas em Cristo as emoções eram ajustadas e reguladas<br />

em obediência a Deus, estavam totalmente isentas de pecado. Expressando-o<br />

de forma mais plena: 14 as emoções humanas são pecaminosas<br />

e perversas por duas razões: em primeiro lugar, porque são movidas<br />

por ação impetuosa, e não são reguladas pela genuína norma da modéstia,<br />

e, em segundo lugar, porque nem sempre surgem de uma causa<br />

legítima, ou pelo menos, não são conduzidas a um fim legítimo. Digo<br />

que há excesso, porque nenhuma pessoa se alegra ou se entristece,<br />

ao ponto de ser suficiente ou como Deus o permite, e há ainda alguns<br />

que se abalam ao ponto de perder todo equilíbrio. A vaidade de nosso<br />

entendimento nos produz tristeza ou estremecimento emocional por<br />

quase nada ou por nenhum motivo, porque somos demasiadamente<br />

devotados ao mundo. Nada desse gênero podia ser visto em Cristo,<br />

pois ele não tinha nenhum sentimento ou afeto propriamente seu que<br />

extrapolasse seus devidos limites, ele não tinha algo que lhe fosse<br />

apropriado e não se fundamentasse na razão e são juízo.<br />

Para tornar isso ainda mais claro, ser-nos-ia importante distinguir<br />

entre a primeira natureza humana, como foi criada por Deus, e esta<br />

natureza degenerada, a qual se acha corrompida pelo pecado. Quando<br />

Deus criou o homem, ele implantou nele afetos, porém afetos que<br />

eram obedientes e submissos à razão. Que tais afetos sejam agora desordenados<br />

e rebeldes é uma falha acidental, ou seja, ela procede de<br />

alguma outra causa fora do Criador. 15 Ora, Cristo tomou sobre si os<br />

14 “Pour mieux dire”.<br />

15 “C’est à dire, venant d’ailleurs que du Createur”.


482 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

afetos humanos, porém sem desordem (ὰταξία), pois aquele que obedece<br />

às paixões da carne não é obediente a Deus. Aliás, Cristo era aflito<br />

e veementemente agitado, mas, ao mesmo tempo, ele se mantinha em<br />

sujeição à vontade do Pai. Em suma, se suas emoções forem comparadas<br />

com as nossas, sua diferença não será menos que a água pura e<br />

límpida, fluindo em um curso sereno, da espuma suja e barrenta.<br />

O exemplo de Cristo deve ser em si mesmo suficiente para desfazer<br />

a austeridade inflexível que os estóicos demandam, pois em que<br />

outra fonte devemos buscar a norma da suprema perfeição senão em<br />

Cristo? Devemos antes tudo fazer por corrigir e subjugar aquela obstinação<br />

que permeia nossos afetos em decorrência do pecado de Adão,<br />

e, ao fazer isso, seguir a Cristo como nosso Líder, para que ele nos traga<br />

em sujeição. Assim Paulo não demanda de nós estupidez inflexível,<br />

porém nos ordena que observemos moderação em nosso pranto, para<br />

que não nos entreguemos à tristeza como fazem os incrédulos que não<br />

têm esperança [1Ts 4.13], pois inclusive Cristo assumiu em si os afetos,<br />

para que, em seu poder, pudéssemos subjugar tudo aquilo que, neles,<br />

é pecaminoso.<br />

36. Eis como ele o amava! O evangelista <strong>João</strong>, aqui, nos descreve<br />

duas opiniões distintas que se formaram acerca de Cristo. Quanto à<br />

primeira, a saber, Eis como o amava!, ainda que pensassem menos dignamente<br />

de Cristo do que deveriam fazer, visto que nada lhe atribuíam<br />

senão o que pertence a um ser humano comum, contudo falam dele<br />

com maior candura e modéstia do que os últimos, que maliciosamente<br />

o difamam por não ter impedido que Lázaro morresse. Porque, embora<br />

aplaudissem o poder de Cristo, do qual os primeiros nada disseram,<br />

todavia agem assim não sem dirigir-lhe alguma censura. É bastante<br />

evidente à luz de suas palavras que os milagres que Cristo realizava<br />

não lhes eram desconhecidos, mas tanto mais execrável era sua ingratidão,<br />

que se queixam sem qualquer escrúpulo, porque agora, em um<br />

único caso, se abstiveram de agir. Os homens sempre foram ingratos<br />

em relação a Deus da mesma forma, e continuam agindo assim. Se não<br />

veem todos seus desejos satisfeitos, imediatamente se põem a quei-


Capítulo 11 • 483<br />

xar-se: “Já que ele costumava ajudar-nos até agora, por que de repente<br />

se esquece de nós e nos frustra?” Há aqui um duplo mal: primeiro,<br />

ainda que temerariamente desejemos aquilo que não nos é conveniente,<br />

contudo nosso intuito é sujeitar a Deus aos desejos perversos da<br />

carne. <strong>Segundo</strong>, somos rudes em nossas exigências, e o ardor da impaciência<br />

nos apressa antes do tempo.<br />

38. Jesus, pois, uma vez mais em seu íntimo. Cristo não se põe<br />

diante do túmulo como um espectador ocioso, mas como um campeão<br />

que se prepara para a pugna, e por isso não deve surpreender-nos que<br />

ele gema uma vez mais, pois a violenta tirania da morte, a qual tinha<br />

que vencer, é posta diante de seus olhos. Alguns explicam dizendo que<br />

tal gemido era oriundo de indignação, porque ele se ofendera com a<br />

incredulidade com que lhe tinham falado. Mas parece-me haver outra<br />

razão bem mais apropriada, a saber, que ele contemplava a própria<br />

operação antes que aos homens. Então vêm várias circunstâncias, as<br />

quais se propõem a exibir mais plenamente o poder de Cristo em ressuscitar<br />

a Lázaro. Refiro-me ao tempo de quatro dias, durante os quais<br />

o túmulo foi protegido por uma pedra, a qual Cristo ordena que seja<br />

removida na presença de todos.<br />

[11.39-44]<br />

Disse Jesus: Removei a pedra. Marta, irmã daquele que estava<br />

morto, disse-lhe: Senhor, ele já cheira mal, porque este<br />

é o quarto dia. Disse-lhe Jesus: Não te disse que, se creres,<br />

verás a glória de Deus? Portanto removeram a pedra do lugar<br />

onde jazia aquele que morrera. E Jesus ergueu novamente<br />

seus olhos e disse: Pai, eu te agradeço porque me ouviste. E<br />

eu sabia que sempre me ouves, mas eu disse por causa da<br />

multidão que me cerca, para que creiam que me enviaste.<br />

Tendo falado essas palavras, ele clamou em alta voz: Lázaro,<br />

sai. E saiu aquele que estava morto, tendo mãos e pés ligados<br />

com faixas, e seu rosto envolto em um lenço. Disse-lhes Jesus:<br />

Desligai-o e deixai-o ir.


484 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

39. Senhor, já cheira mal. Esta é uma indicação de suspeita, pois<br />

ela se assegura menos do poder de Cristo do que deveria ter feito. A<br />

raiz do mal consiste em medir ela o poder infinito e incompreensível<br />

de Deus pelas percepções de sua carne. Não havendo nada mais inconsistente<br />

com a vida do que a putrefação e o mau cheiro, Marta infere<br />

que já não pode haver remédio algum. E assim, quando nossa mente<br />

se preocupa com pensamentos fúteis, banimos Deus de nós, caso nos<br />

seja permitido a expressão, de modo a não concretizar ele em nós sua<br />

própria obra. Certamente não se devia a Marta que seu irmão não fosse<br />

permanecer continuamente no túmulo, pois ela elimina, quanto a<br />

ele, a expectativa da vida, e, ao mesmo tempo, tenta impedir Cristo<br />

de ressuscitá-lo, e, no entanto, nada estava tão longe de sua intenção.<br />

Isso surge da debilidade da fé. Distraídos de várias maneiras, digladiamos<br />

conosco mesmos, e enquanto estendemos uma mão a rogar<br />

de Deus sua assistência, repelimos, com a outra mão, a mesma assistência<br />

que prontamente nos é oferecida. 16 Aliás, Marta não falou com<br />

falsidade quando diz: Eu sei que tudo quanto pedires a Deus ele te dará,<br />

porém uma fé confusa é de pouca valia, a menos que ela entre em ação<br />

quando chegarmos a vias de fato.<br />

Podemos perceber ainda em Marta quão variados são os efeitos<br />

da fé, mesmo nas pessoas mais excelentes. Ela foi a primeira a ir ao encontro<br />

de Cristo, essa não foi uma prova comum de sua piedade, e, no<br />

entanto, não cessa de lançar dificuldades em seu caminho. Para que a<br />

graça de Deus tenha acesso em nós, devemos aprender a atribuir-lhe<br />

muito mais poder do que nossos sentidos podem compreender, e se<br />

a primeira e singular promessa de Deus não tiver em nós aquele peso<br />

suficiente, pelo menos segamos o exemplo de Marta, dando nossa<br />

aquiescência quando ele nos confirmar segunda e terceira vez.<br />

40. Eu não te disse? Ele reprova a desconfiança de Marta, por<br />

não solidificar uma esperança suficientemente vigorosa em relação à<br />

promessa que ela ouvira. É evidente, à luz desta passagem, que algo<br />

16 “Ceste mesme aide, si tost qu’il nous la presente”.


Capítulo 11 • 485<br />

mais foi dito a Marta além do que <strong>João</strong> literalmente relatou, ainda que,<br />

como já sugeri, isso mesmo fosse insinuado por Cristo, quando se<br />

autodenominou de a ressurreição e a vida. Portanto, Marta é envergonhada<br />

por não haver esperado pela obra divina.<br />

Se creres. Isso é expresso não só porque a fé abre nossos olhos a<br />

fim de podermos contemplar o poder de Deus luzindo em suas obras,<br />

mas porque nossa fé prepara o caminho para o poder, mercê e bondade<br />

de Deus, para que se exibam ante nossos olhos, como está escrito:<br />

Abre bem tua boa, e eu a encherei [Sl 81.10]. De igual modo, a incredulidade,<br />

em contrapartida, impede Deus de aproximar-se de nós, e,<br />

por assim dizer, com isso mantém suas mãos fechadas. É por isso que<br />

lemos em outra parte que Jesus não pôde realizar ali qualquer milagre,<br />

por causa da incredulidade eles [Mt 13.58]. Não que o poder de Deus<br />

seja obstado pelo capricho humano, mas porque, quanto está no poder<br />

do homem, sua malícia se opõe ao exercício desse poder, e por<br />

isso não mereciam que ele se manifestasse a seu favor. Aliás, frequentemente<br />

Deus suplanta tais obstáculos, não obstante, sempre que ele<br />

esquiva sua mão para não dar assistência aos incrédulos, isso é feito<br />

porque, encerrados dentro dos tacanhos limites de sua incredulidade,<br />

não permitem que a mesma entre em ação.<br />

Tu verás a glória de Deus. Observe que um milagre é chamado a<br />

glória de Deus, porque este, exibindo nele o poder de sua mão, glorifica<br />

seu Nome. Marta, porém, agora satisfeita com a segunda declaração de<br />

Cristo, permite que a pedra seja removida. Visto que ainda nada vê, porém,<br />

dando ouvidos ao Filho de Deus, não sem boas razões, emite essa<br />

ordem, ela de bom grado confia exclusivamente na autoridade dele.<br />

41. E Jesus novamente ergueu seus olhos. Esse era o emblema<br />

de uma mente plenamente preparada para a oração, pois antes que<br />

alguém invoque a Deus corretamente, o mesmo deve pôr-se em comunicação<br />

com ele, e isso só pode ser feito quando, elevado acima da<br />

terra, ele ascenda ao próprio céu. Aliás, isso não se faz com os olhos,<br />

pois os hipócritas, que se encontram mergulhados no mais profundo<br />

lamaçal de sua carne, parecem atrair o céu a si com seu aspecto ex-


486 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

terno aparentando piedade, mas o que eles apenas pretendem fazer<br />

deve ser sinceramente concretizado pelos filhos de Deus. E, no entanto,<br />

aquele que eleva seus olhos ao céu não deve, em seus pensamentos,<br />

confinar Deus ao céu, porquanto ele está presente em toda parte e<br />

enche céu e terra [Jr 23.24]. Visto, porém, que os homens nunca conseguem<br />

livrar-se de grosseiras imaginações, formando em sua mente<br />

alguma vil e terrena concepção de Deus, a não ser quando se elevem<br />

acima da esfera do mundo, a Escritura os remete ao céu e declara que<br />

o céu é a habitação de Deus [Is 66.1].<br />

No que diz respeito a erguer os olhos, esse não é um costume que<br />

deva ser perpetuamente observado, como que sem ele a oração deixa<br />

de ser legítima, pois o publicano, que ora com seu rosto voltado para<br />

o chão, com isso não deixa de ingressar-se menos o próprio céu com<br />

sua fé [Lc 18.13]. Não obstante, esse exercício é proveitoso, porque os<br />

homens se sentem despertados por ele a buscar a Deus, e não apenas<br />

isso, mas o ardor da oração às vezes afeta o corpo de uma maneira<br />

tal que, sem o sentir, este acompanha a mente em obediência a um<br />

impulso natural. Certamente que não podemos nutrir dúvida de que<br />

quando Cristo elevou seus olhos ao céu ele tenha sido arrebatado por<br />

extraordinária veemência. Além disso, como todos seus pensamentos<br />

estavam com o Pai, assim ele também desejava conduzir ao Pai outros<br />

juntamente consigo.<br />

Pai, eu te agradeço. Ele começa com ações de graças. ainda<br />

que não tenha pedido nada, mas ainda que o evangelista não relate<br />

que ele orasse de uma forma verbal, não pode haver dúvida alguma<br />

de que antes disso houve uma oração, pois de outra forma ela não<br />

poderia ter sido ouvida. E há razão para se crer que ele orou por<br />

entre aqueles gemidos de que o evangelista faz menção, pois nada<br />

poderia ser mais absurdo do que supor que ele fora violentamente<br />

agitado em seu íntimo como as pessoas estúpidas costumam ser.<br />

Havendo granjeado a vida de Lázaro, ele agora agradece ao Pai. Ao<br />

dizer que recebeu do Pai tal poder, e ao não atribuí-lo a si próprio,<br />

ele nada mais faz senão reconhecer que ele é o Servo do Pai. Porque,


Capítulo 11 • 487<br />

acomodando-se à capacidade dos homens, ele uma vez proclama publicamente<br />

sua Deidade e reivindica para si tudo quanto pertence<br />

a Deus, e outra vez se contenta em manter o caráter humano, rendendo<br />

ao Pai toda a glória da Deidade. Aqui ambos os fatores são<br />

admiravelmente mantidos juntos pelo evangelista em uma palavra,<br />

quando diz que o Pai ouviu a Cristo, mas este dá graças, para que os<br />

homens saibam que ele foi enviado pelo Pai, isto é, para que reconheçam<br />

ser ele o Filho de Deus. Não sendo possível que majestade<br />

de Cristo fosse percebida em sua verdadeira sublimidade, o poder<br />

de Deus, que transparece em sua carne, gradualmente traz a lume os<br />

sentidos grosseiros e entorpecidos dos homens. Porque, visto que<br />

ele tencionava ser totalmente nosso, não devemos admirar-nos se ele<br />

se acomoda a nossa capacidade de várias maneiras, e visto que ele<br />

ainda permitir ser esvaziado [Fp 2.7] em nosso favor, não há absurdo<br />

algum em dizer-se que ele se avilta por nossa causa.<br />

42. E eu sei que tu sempre me ouves. Esta é uma antecipação<br />

para que alguém não concluísse que ele não desfrutasse de tão elevado<br />

favor com o Pai, ao ponto de ser capaz de realizar tantos milagres<br />

como bem quisesse. Portanto, sua intenção é que há tão profunda<br />

harmonia entre ele e o Pai, que este nada lhe recusa, e mesmo porque<br />

ele não tinha necessidade de orar, visto só executar o que sabia<br />

ter sido ordenado pelo Pai, mas a fim de os homens se assegurarem<br />

mais plenamente de que esta é uma obra verdadeiramente divina,<br />

por essa razão ele invocava o nome do Pai. É possível que suscite<br />

a seguinte objeção: Por que, pois, ele não ressuscitou dos mortos a<br />

todos? A resposta é fácil. Certo limite fixo foi pelo propósito de Deus<br />

designado aos milagres, até onde ele sabia ser suficiente para confirmar<br />

o evangelho.<br />

43. Ele clamou em alta voz. Ao não tocar com sua mão, mas<br />

apenas clamar com sua voz, seu divino poder é mais plenamente<br />

demonstrado. Ao mesmo tempo, ele põe em relevo diante de nós o<br />

eficácia secreta e tremenda de sua palavra. Porque, como Cristo restaurou<br />

a vida aos mortos senão por meio de sua palavra? E portanto,


488 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

ao ressuscitar Lázaro, ele exibiu um emblema visível de sua graça espiritual,<br />

o qual experimentamos a cada dia pela percepção da fé, quando<br />

ele mostra que sua voz comunica vida.<br />

44. Mãos e pés atados com faixas. O evangelista tem cuidado em<br />

mencionar o lenço e as faixas, com o fim de informar-nos que Lázaro<br />

saiu do túmulo da mesma maneira como ali jazia. Esse modo de sepultamento<br />

é mantido até hoje pelos judeus, que cobrem o corpo com um<br />

sudário e enfaixa a cabeça separadamente com um lenço.<br />

Desatai-o e deixai-o ir. A fim de exaltar a glória do milagre, só<br />

faltava que os judeus tocassem com suas mãos e vissem a obra divina<br />

com seus próprios olhos. Pois Cristo poderia ter removido as faixas<br />

com que Lázaro se encontrava enfaixado, ou levá-los a dar expressão<br />

pessoal do mesmo, Cristo, porém, tencionava empregar as mãos dos<br />

espectadores como suas testemunhas.<br />

Os papistas agem de uma forma excessivamente ridícula, quando<br />

tentam extrair desta passagem a confissão auricular. Dizem eles:<br />

“Cristo, depois de haver restaurado Lázaro à vida, ordenou que seus<br />

discípulos o liberassem, e por isso não nos basta estar reconciliados<br />

com Deus, a menos que a Igreja também perdoe nossos pecados”. Mas<br />

donde provém a conjetura de que os discípulos receberam a ordem de<br />

liberar Lázaro? Ao contrário, podemos inferir que a ordem foi dada aos<br />

judeus, a fim de eliminar deles todo e qualquer motivo para dúvida ou<br />

hesitação.<br />

[11.45-52]<br />

Muitos, pois, dentre os judeus que tinham vindo a Maria, e tinham<br />

visto as coisas que Jesus fez, creram nele. Mas alguns<br />

deles foram ter com os fariseus, e lhes contaram o que Jesus<br />

havia feito. Então os principais sacerdotes e os fariseus se reuniram<br />

em concílio, e disseram: Que faremos? porquanto esse<br />

homem faz muitos milagres. Se lhe permitirmos agir assim, todos<br />

crerão nele, e os romanos virão e tirar-nos-ão nosso lugar<br />

e nossa nação. Mas um deles, chamado Caifás, que era sumo


Capítulo 11 • 489<br />

sacerdote naquele ano, disse-lhes: Vós de nada sabeis, nem<br />

considerais que nos é conveniente que um só homem morra<br />

pelo povo, e para que toda a nação não pereça. Ora, isso não foi<br />

dito por si mesmo, mas sendo o sumo sacerdote naquele ano,<br />

profetizou que Jesus morreria pela nação, e não apenas por<br />

essa nação, mas para congregar, em um só corpo, os filhos de<br />

Deus que se encontravam dispersos.<br />

45. Muitos, pois, dentre os judeus creram nele. Cristo não permitiu<br />

que o milagre que operara ficasse sem fruto, pois por meio dele<br />

ele atraiu algumas pessoas à fé. Pois devemos entender que os milagres<br />

têm uma dupla finalidade. Destinam-se ou a preparar-nos para a<br />

fé ou a confirmar-nos na fé. A primeira se denota aqui pelo evangelista,<br />

pois sua intenção era dizer que aqueles de quem ele fala olhavam<br />

para Cristo com admiração e reverência, ao ponto de se lhe submeter<br />

como seus discípulos, de outra forma o mero milagre não poderia ter<br />

sido suficiente para produzir fé. Por conseguinte, pelo termo crer não<br />

devemos supor algo mais além daquela espontaneidade de abraçar a<br />

doutrina de Cristo.<br />

46. Mas alguns deles foram ter com os fariseus. Naqueles que<br />

acusam a Cristo visualizamos detestável ingratidão, ou melhor, horrível<br />

furor, do quê inferimos quão cega e demente é sua impiedade.<br />

A ressurreição de Lázaro deve ter, indubitavelmente, abrandado até<br />

mesmo os corações de pedra, porém não existe obra de Deus que a<br />

impiedade não infecte e corrompa com a amargura de sua peçonha.<br />

Assim, pois, antes que os homens possam tirar proveito dos milagres,<br />

seus corações devem ser purificados, pois aqueles que não têm o temor<br />

de Deus e nenhuma reverência por ele, ainda que vejam céu e<br />

terra entrelaçados, jamais cessarão de rejeitar a sã doutrina através<br />

de sua obstinada ingratidão. E assim se poderão ver em nossos dias<br />

muitos inimigos do evangelho, como fanáticos, lutando contra a mão<br />

aberta e visível de Deus. E não obstante demandam que realizemos milagres,<br />

porém com nenhum outro propósito senão mostrar que, com


490 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

sua obstinada resistência, são mais monstros que homens. Quanto ao<br />

fato de a notícia ser levada aos fariseus e não a outros, 17 é porque, em<br />

proporção a sua hipocrisia, eram os mais ferozes em sua oposição ao<br />

evangelho. Pela mesma razão, ele logo depois faz expressa menção<br />

deles, quando relata que se reuniram em concílio. Deveras constituíam<br />

uma parte dos sacerdotes, mas são especialmente nomeados pelo<br />

evangelista em virtude de servirem ao propósito de vilmente acender<br />

a fúria de todo o concílio.<br />

47. Então os principais sacerdotes e os fariseus se reuniram em<br />

concílio. Não menos monstruosa é a cegueira dos sacerdotes, que é<br />

aqui descrita. Se não fossem excessivamente estúpidos e brutais, pelo<br />

menos teriam se deixado influenciar por alguma reverência a Cristo,<br />

depois de tão extraordinária demonstração de seu divino poder. Agora<br />

deliberada e intencionalmente se congregam com o fim de sepultar a<br />

glória de Deus, diante da qual se veem constrangidos a ficar perplexos.<br />

Aliás, não proclamam publicamente que desejam fazer guerra contra<br />

Deus, mas como não podem extinguir Cristo sem subverter o poder<br />

de Deus, inquestionavelmente lutam abertamente contra esse poder<br />

com presunção e sacrilégio. De fato a infidelidade é sempre arrogante<br />

e despreza a Deus, porém de forma alguma se precipita ao ponto de<br />

erguer seus chifres contra Deus. Mas quando os homens delongam<br />

sua luta contra Deus, o resultado a que por fim chegam é que tentam<br />

ascender acima do céu, segundo os métodos dos gigantes, 18 sem qualquer<br />

reverência pela divina majestade, 19 porquanto reconhecem que<br />

Cristo realizou muitos milagres. E donde procede seu grande poder?<br />

Portanto, abertamente se preparam para esmagar o poder de Deus<br />

que resplandece nos milagres de Cristo. Contudo Deus não está inativo,<br />

mas ainda que por algum tempo pareça ignorá-los, ele ri de sua tola<br />

arrogância, até que chegue o tempo de executar sua ira, como lemos<br />

no Salmo 2.4, 5.<br />

17 “Plustost qu’à quelques autres”.<br />

18 “Veja-se p. .......,<br />

19 “De la Divine majestté”.


Capítulo 11 • 491<br />

Que faremos? Com esta expressão se acusam de indolência,<br />

como se quisessem dizer que nada viam que pudessem fazer, que Cristo<br />

continua a avançar cada vez mais, porquanto não conseguem deter<br />

seu avanço. Tal é a confiança dos ímpios, por meio da qual se põem a<br />

reivindicar tudo, como se estivesse em seu poder executar o que bem<br />

desejem, e como se ainda o resultado da obra dependesse de seus desejos.<br />

E se tudo for bem pesado, aqui empregam sua própria indústria<br />

como um escudo contra o poder divino, como se com sua perseverança<br />

pudessem vencer a Deus.<br />

48. Se o deixarmos assim. O que seria se o deixassem agir à vontade?<br />

Nesse caso, como já dissemos, estão plenamente convencidos<br />

de que está em seu poder bloquear o caminho de Cristo, para que<br />

não avançasse mais, desde que lutassem energicamente contra ele.<br />

Se Cristo fosse algum inspetor, o dever deles teria sido empregar seus<br />

exercícios para que ele não surrupiasse as ovelhas do rebanho do<br />

Senhor, mas ao confessar seus milagres, tornam suficientemente evidente<br />

que não se preocupam muito com Deus, cujo poder tão ousada<br />

e desdenhosamente desprezam.<br />

Virão os romanos. Tentam ocultar sua perversidade com um<br />

disfarce plausível: seu zelo pelo bem público. O medo que principalmente<br />

os afligia era que sua tirania fosse destruída, porém pretendem<br />

estar solícitos pelo templo e pelo culto divino, pelo nome da nação e<br />

pela condição do povo. E qual era o objetivo de tudo isso? Pois não<br />

parecem buscar pretextos desse gênero com o fim de enganar. Não<br />

estão arengando com o povo, mas estão mantendo em segredo uma<br />

consulta entre si. Estando todos eles cônscios de que são culpados da<br />

mesma perfídia, por que não apresentam publicamente seus planos<br />

e opiniões? É porque a impiedade, ainda que grosseira e manifesta,<br />

vem quase sempre acompanhada da hipocrisia, e assim se envolvem<br />

em evasões ou subterfúgios indiretos, ao ponto de se dissimularem<br />

sob a aparência de virtude. Seu principal desígnio indubitavelmente<br />

era manter alguma aparência de gravidade, moderação e prudência,<br />

com o fim de fazer imposição a outros, mas é possível prontamente


492 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

crer que quando pretendiam ter motivo justo para perseguir a Cristo,<br />

eles mesmos se enganavam por esse paupérrimo disfarce. Assim os<br />

hipócritas, ainda que sua consciência em seu íntimo os reprove, são<br />

depois intoxicados por vãs imaginações, de modo que, ao pecarem,<br />

pareçam inocentes. Não obstante, evidentemente se contradizem,<br />

pois a princípio confessavam que Cristo realizava muitos milagres,<br />

e agora temem os romanos, como se não desfrutassem da proteção<br />

sobejamente suficiente do poder de Deus, o qual se revelou presente<br />

naqueles milagres.<br />

Virão os romanos. A intenção do evangelista é dizer que o principal<br />

objetivo de sua consulta era guardar-se contra qualquer perigo<br />

iminente. “Se os romanos”, dizem eles, “soubessem que alguma inovação<br />

se produzia nos negócios públicos, há razão para temer-se que<br />

pudessem enviar um exército com o fim de destruir nossa nação, juntamente<br />

com o templo e o culto divino”. Ora, é inútil consultar sobre<br />

guardar-se contra perigos, aos quais não podemos evitar, a menos que<br />

decidamos afastar-nos do caminho certo. Nossa primeira inquirição<br />

deveria ser: O que Deus ordena e quer que se faça? Mas temos de<br />

ter isto presente, seja qual for a consequência que colhamos. Aqueles<br />

homens, em contrapartida, resolvem que Cristo seja removido de seu<br />

meio, para que nenhuma inconveniência lhes sobrevenha caso permitam<br />

que ele prossiga tal como começara. Mas, o que fazer, se ele fora<br />

enviado por Deus? Banirão um profeta de Deus de seu meio, comprando<br />

a paz dos romanos? Tais são os estratagemas dos que temem real<br />

e sinceramente a Deus. Não se preocupam com o que é certo e lícito,<br />

pois toda sua atenção se dirige para as consequências.<br />

Mas a única maneira de deliberar de uma forma própria e santa é<br />

esta: primeiro, devemos inquirir qual é a vontade de Deus. <strong>Segundo</strong>,<br />

devemos seguir ousadamente tudo quanto ele ordena, e não deixar-<br />

-nos desencorajar por algum temor, ainda que estejamos cercados por<br />

milhares de mortes, pois nossas ações não devem ser movidas ao sabor<br />

do vento, mas devem ser constantemente reguladas unicamente<br />

pela vontade de Deus. Aquele que ousadamente arrosta os perigos,


Capítulo 11 • 493<br />

ou pelo menos, se põe acima do medo deles, sinceramente obedece<br />

a Deus, por fim terá um resultado próspero, porque, contrariando a<br />

expectativa de todos, Deus abençoa aquela firmeza que se fundamenta<br />

na obediência a sua Palavra. Os incrédulos, em contrapartida, longe<br />

estão de derivar alguma vantagem de suas precauções, porque, por<br />

mais timoratos sejam eles, muito mais numerosas são as redes nas<br />

quais se enlaçam.<br />

Nesta narrativa a forma e caráter de nossa própria época são<br />

notavelmente delineados. Aqueles que vivem desejosos de ser considerados<br />

prudentes e cautelosos têm continuamente este cântico em<br />

sua boca: “Temos de levar em conta a tranquilidade pública, a reforma<br />

que intentamos não vem desacompanhada de muitos perigos”. Depois<br />

de suscitar essa infundada indisposição contra nós, não acham melhor<br />

expediente senão sepultar a Cristo com o propósito de obstar<br />

todo e qualquer aborrecimento. Como se tal ímpio desdém da graça<br />

de Deus pudesse realmente ter um resultado próspero, quando, a fim<br />

de amenizar os distúrbios, inventam esse remédio para que a doutrina<br />

da salvação seja abolida. Ao contrário, o que os perversos temem se<br />

concretizará, e embora obtenham o que esperam, todavia é uma recompensa<br />

indigna demais apaziguar o mundo ofendendo a Deus.<br />

E tirar-nos-ão nosso lugar. É incerto se têm em mente o templo ou<br />

seu país. Criam que sua salvação dependia de ambos, pois se o templo<br />

fosse destruído, não haveria mais sacrifícios, nem o culto público de<br />

Deus, nem a invocação de seu nome. Portanto, se realmente se preocupassem<br />

com sua religião, então seria justo que se preocupassem com<br />

seu templo. De um lado, era de grande importância para a boa condição<br />

da Igreja que não fossem novamente levados de sua própria terra.<br />

Ainda se lembravam do cativeiro babilônico, o qual constituiu uma<br />

vingança divina terrivelmente severa. Havia também um provérbio popular<br />

entre eles – o qual pode ser frequentemente encontrado na lei:<br />

em alguns aspectos, era como se fossem eliminados, se o Senhor os<br />

expulsassem de sua terra. Daí concluírem que, a menos que Cristo seja<br />

destruído, a Igreja não estará em segurança.


494 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

49. Então um dentre eles, chamado Caifás. Era uma breve consulta,<br />

pois Caifás não lhes permitiu mais hesitação. Ele ressalta que só<br />

há uma maneira de adquirir a segurança, a saber, matando um homem<br />

inocente. A que ponto de perversidade chegam os homens que, destituídos<br />

do temor de Deus, formam seus planos movidos antes pelo<br />

juízo da carne do que pela Palavra de Deus, e que confiadamente creem<br />

que terão vantagem daquilo que não nos é permitido pelo Autor da<br />

mesma bênção. Pois o que Caifás pretendia pode ser assim expresso:<br />

“Provocariam a ira de Deus a fim de alcançar a felicidade e prosperidade”.<br />

Aprendamos com isso a jamais separar o que é útil do que é lícito,<br />

visto que não devemos esperar prosperidade alguma ou êxito algum<br />

a não ser da bênção de Deus, a qual é prometida não às pessoas perversas<br />

e rebeldes, as quais esperam a assistência do diabo, mas aos<br />

crentes que sinceramente andam em seus caminhos [Sl 91.11]. E, no<br />

entanto, havia alguma plausibilidade nesse argumento, pois o benefício<br />

público deve ter sempre a preferência. Mas, como eu já disse, uma<br />

pessoa não é mais bem protegida pela morte injusta de um inocente<br />

do que é protegido todo o corpo de uma pessoa, quando simplesmente<br />

se lhe corta a garganta ou seu peito é traspassado por uma espada.<br />

Que era o sumo sacerdote naquele ano. Ele não o denomina<br />

sumo sacerdote naquele ano como se quisesse dizer que o ofício fosse<br />

anual e durasse apenas um ano, mas porque ele se tornara um<br />

dom que podia ser adquirido com dinheiro e era transmitido a várias<br />

pessoas em contraposição à ordenança da lei. Deus não pretendia<br />

que tal dignidade chegasse ao fim, senão pela morte do que fora<br />

designado, 20 mas, em decorrência de problema e confusão nos negócios<br />

públicos, os romanos frequentemente mudavam os sacerdotes<br />

segundo suas fantasias.<br />

51. Ora, ele falou isso não por si mesmo. Ao dizer o evangelista<br />

que Caifás – como alguém que se tornara demente ou perdera suas<br />

faculdades – pronunciou o que não entendia, pois ele expressou sua<br />

20 “Par la mort de celuy qui l’avoit”.


Capítulo 11 • 495<br />

própria opinião. O evangelista, porém, tem em mente que um impulso<br />

superior guiou sua língua, porquanto Deus pretendia que o mesmo<br />

levasse ao conhecimento, por seus lábios, algo superior ao que veio<br />

a sua mente. Caifás, portanto, por assim dizer, naquele momento<br />

possuía duas línguas, porque vomitava o perverso e cruel desígnio<br />

de entregar Cristo à morte, o que havia concebido em sua mente, no<br />

entanto Deus converteu sua língua visando a um propósito diferente,<br />

de modo que, sob palavras ambíguas, ele igualmente pronunciou<br />

uma predição. Deus pretendia que o oráculo celestial procedesse da<br />

cátedra do sumo sacerdote, para que os judeus tivessem menos justificativa.<br />

Porque, ainda que nenhuma pessoa em toda aquela assembleia<br />

tivesse despertada sua consciência, todavia depois perceberam que<br />

sua insensibilidade não tinha direito ao perdão. Tampouco a perversidade<br />

de Caifás obstou sua língua de ser o órgão do Espírito Santo,<br />

pois Deus olhava para o sacerdócio que havia instituído, e não para a<br />

pessoa do homem que o exercia. E essa era a razão à qual relanceio, a<br />

saber, que uma voz emitida de um lugar soberano fosse mais distintamente<br />

ouvida e granjeasse maior reverência e autoridade. Do mesmo<br />

modo, Deus pretendia abençoar seu povo pela boa de Balaão, a quem<br />

outorgara o espírito de profecia.<br />

Mas é sumamente ridículo nos papistas inferirem eles deste fato<br />

que devemos considerar como oráculo tudo quanto o sumo sacerdote<br />

romano crê estar apto a pronunciar. Primeiro, admitindo o que<br />

é falso, a saber, que todo homem que vem a ser sumo sacerdote é<br />

igualmente um profeta, até que tenham a condição de provar que<br />

o sumo sacerdote romano foi designado pelo mandamento de Deus,<br />

porque o sacerdócio foi abolido pela vinda de um homem, que é Cristo,<br />

e não lemos em parte alguma que ele foi posteriormente ordenado<br />

por Deus, que alguém seria o soberano de toda a Igreja. Em segundo<br />

lugar, admitindo-lhes que o poder e título de sumo sacerdote foram<br />

comunicados ao bispo de Roma, é preciso observar que proveito tiveram<br />

os sacerdotes que aceitaram a predição de Caifás. A fim de<br />

concorrerem em sua opinião, conspiraram entregar Cristo à morte.


496 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Mas longe de nós ter aquele gênero de obediência que nos leva a<br />

horrível apostasia pela negação do Filho de Deus. Com a mesma voz<br />

Caifás blasfema e também profetiza. Aqueles que seguem sua sugestão<br />

desprezam a profecia e adotam a blasfêmia. Devemos guardar-nos<br />

para que não nos suceda a mesma coisa, caso demos ouvidos ao Caifás<br />

de Roma, pois de outro modo a comparação seria defectiva. Além<br />

disso, pergunto: Devemos concluir que, só porque Caifás uma vez<br />

profetizou, cada palavra pronunciada pelo sumo sacerdote é sempre<br />

uma profecia? Mas logo depois Caifás condenou como blasfêmia [Mt<br />

26.65] o mais importante artigo de nossa fé. Daí concluirmos que, o<br />

que o evangelista ora relata era uma ocorrência extraordinária, e que<br />

seria estultícia evocá-la como um exemplo.<br />

Que Jesus morreria. Primeiramente, o evangelista mostra que a<br />

totalidade de nossa salvação consiste nisto: que Cristo nos congregaria<br />

em um, pois dessa forma ele nos reconcilia com o Pai, em quem está<br />

a fonte da vida [Sl 86.9]. Daí também inferirmos que a raça humana<br />

está dispersa e alienada de Deus até que os filhos de Deus sejam congregados<br />

sob Cristo sua Cabeça. E assim a comunhão dos santos é a<br />

preparação para a vida eterna, porque todos a quem Cristo não une<br />

ao Pai permanecem na morte, como veremos outra vez no capítulo 17.<br />

Pela mesma razão Paulo também ensina que Cristo foi enviado a fim de<br />

fazer convergir nele todas as coisas que estão no céu e na terra [Ef 1.10].<br />

Por essa razão, para podermos desfrutar da salvação produzida por<br />

Cristo, deve-se remover a discórdia e temos de ser feitos um com Deus<br />

e com os anjos, e entre nós mesmos. A causa e penhor dessa unidade<br />

estavam na morte de Cristo, por meio da qual ele fez convergir todas<br />

as coisas a si, porém estamos sendo diariamente congregados pelo<br />

evangelho no redil de Cristo.<br />

52. E não só por essa nação. A intenção do evangelista é dizer que<br />

a reconciliação efetuada por Cristo também se estende aos gentios.<br />

Mas como é possível que aqueles que, em decorrência de sua ampla<br />

dispersão e peregrinação, sejam inimigos de Deus, sejam aqui chamados<br />

filhos de Deus? Eis minha resposta: Como já dissemos, Deus tinha


Capítulo 11 • 497<br />

em seu coração filhos que em si mesmos eram ovelhas dispersas e<br />

perdidas, ou melhor, que estavam mais distantes possível de ser ovelhas,<br />

porém, ao contrário, eram lobos e bestas selvagens. Portanto, é<br />

por meio da eleição que ele considera como sendo os filhos de Deus,<br />

mesmo antes de serem chamados, os que por fim começam a manifestar-se<br />

por meio da fé, tanto a si mesmos quanto a outros.<br />

[11.53-57]<br />

Desde aquele dia, pois, consultavam entre si para o matarem.<br />

Por isso Jesus já não andava publicamente entre os judeus,<br />

mas retirou-se para uma região próxima ao deserto, numa cidade<br />

chamada Efraim, e ali morava com seus discípulos. Ora,<br />

a páscoa dos judeus estava próxima, e muitos daquela região<br />

subiram a Jerusalém antes da páscoa, a fim de se purificar. Por<br />

isso buscavam a Jesus e diziam uns aos outros, estando no<br />

templo: Que vos parece? Ele não virá à festa? Ora, os principais<br />

sacerdotes 21 e fariseus tinham emitido uma ordem para<br />

que, se alguém soubesse onde ele estava, o denunciasse, para<br />

o prenderem.<br />

53. Consultavam entre sobre como entregá-lo à morte. O evangelista<br />

relata que Cristo uma vez mais fugiu, sabendo que seus inimigos<br />

o buscavam com profundo furor. Não obstante, lembremo-nos que ele<br />

não fugia com outra intenção senão para apresentar-se e sofrer a morte<br />

voluntária no tempo que Deus designara. Tal consulta, mencionada<br />

pelo evangelista, relacionava-se não tanto com a morte de Cristo como<br />

em apontar para algum método de esmagá-lo. Já haviam determinado<br />

entregá-lo à morte, só restava encontrar um meio que pudessem lançar<br />

mão para a execução de sua resolução.<br />

54. Que é chamada Efraim. Quanto ao nome da cidade que aqui<br />

se menciona, creio que ou foi pronunciada incorretamente, ou era to-<br />

21 “Les principaux sacrificateurs”.


498 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

talmente nova. Pois sabemos quão amplamente o idioma foi mudado<br />

depois do cativeiro babilônico, e também quão diferente era a aparência<br />

da região, de modo que não nos surpreende que alguns lugares<br />

sejam mencionados os quais em tempos de outrora eram totalmente<br />

desconhecidos.<br />

E ali morava com seus discípulos. Ao denominá-los de discípulos<br />

de Cristo, sua intenção não era mencionar os que aceitaram sua doutrina,<br />

mas os que eram seus companheiros constantes e costumavam<br />

viver sob o mesmo teto.<br />

55. Muitos daquela região subiram a Jerusalém. Não lhes era<br />

absolutamente imposto que se purificassem antes de se sacrificar a páscoa,<br />

e por isso o evangelista não diz que todos foram, mas muitos. Aliás,<br />

nenhuma pessoa impura se permitia comer, porém digo que essa santificação<br />

era empreendida voluntariamente e movida por inclinação<br />

pessoal, de modo que aos demais não fosse proibido comer, ainda que<br />

não estivessem preparados por tais cerimônias antes do dia da festa.<br />

56. Portanto buscavam a Jesus. O objetivo do evangelista era<br />

mostrar quão extensamente a fama de Cristo havia se difundido por<br />

toda a Judeia, pois aqueles que se reuniam no templo, de qualquer<br />

parte que viessem, buscavam a Cristo com ansiedade e se envolviam<br />

em constante conversação entre si a seu respeito. É verdade que o buscavam<br />

movidos pela forma humana, porém, ao buscá-lo, descobriam<br />

que era a tirania dos sacerdotes que o impedia de comparecer publicamente.


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