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Comentário de 1 Coríntios

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SÉRIE COMENTÁRIOS BÍBLICOS<br />

JOÃO CALVINO<br />

1Coríntios


1Coríntios - Série Comentários Bíblicos<br />

João Calvino<br />

Título do Original: Calvin’s Commentaries:<br />

The First Epistle of Paul the Apostle to the<br />

Corinthians<br />

Edição baseada na tradução inglesa <strong>de</strong> T. A.<br />

Smail, publicada por Wm. B. Eerdmans Publishing<br />

Company, Grand Rapids, MI, USA, 1964, e<br />

confrontada com a tradução <strong>de</strong> John Pringle,<br />

Baker Book House, Grand Rapids, MI, USA, 1998.<br />

•<br />

Copyright © Editora Fiel 2013<br />

Primeira Edição em Português 2013<br />

•<br />

Todos os direitos em língua portuguesa<br />

reservados por Editora Fiel da Missão<br />

Evangélica Literária<br />

Proibida a reprodução <strong>de</strong>ste livro por quaisquer meios,<br />

sem a permissão escrita dos editores,<br />

salvo em breves citações, com indicação da fonte.<br />

A versão bíblica utilizada nesta obra é a Revista e<br />

Atualizada da Socieda<strong>de</strong> Bíblica do Brasil (SBB)<br />

•<br />

Caixa Postal 1601<br />

CEP: 12230-971<br />

São José dos Campos, SP<br />

PABX: (12) 3919-9999<br />

www.editorafiel.com.br<br />

Diretor: James Richard Denham III<br />

Editor: Tiago Santos<br />

Tradução: Rev. Valter Graciano Martins<br />

Revisão: Editora Fiel<br />

Capa: Edvânio Silva<br />

Diagramação: Rubner Durais<br />

ISBN: 978-85-8132-169-1


Sumário<br />

Prefácio à edição em português..............................................9<br />

Dedicatória...............................................................................13<br />

Segunda Dedicatória...............................................................17<br />

Análise da Primeira Epístola <strong>de</strong> Paulo aos Coríntios .........21<br />

Capítulo 1<br />

Versículos 1 a 3..............................................................33<br />

Versículos 4 a 9..............................................................41<br />

Versículos 10 a 13..........................................................48<br />

Versículos 14 a 20..........................................................58<br />

Versículos 21 a 25..........................................................72<br />

Versículos 26 a 31..........................................................78<br />

Capítulo 2<br />

Versículos 1 a 2..............................................................87<br />

Versículos 3 a 5..............................................................89<br />

Versículos 6 a 9..............................................................93<br />

Versículos 10 a 13........................................................102<br />

Versículos 14 a 16........................................................107<br />

Capítulo 3<br />

Versículos 1 a 4............................................................115<br />

Versículos 5 a 9............................................................120<br />

Versículos 10 a 15........................................................128<br />

Versículos 16 a 23........................................................137


Capítulo 4<br />

Versículos 1 a 5............................................................147<br />

Versículos 6 a 8............................................................156<br />

Versículos 9 a 15..........................................................161<br />

Versículos 16 a 21........................................................172<br />

Capítulo 5<br />

Versículos 1 a 5............................................................181<br />

Versículos 6 a 8............................................................189<br />

Versículos 9 a 13..........................................................192<br />

Capítulo 6<br />

Versículos 1 a 8............................................................201<br />

Versículos 9 a 11..........................................................212<br />

Versículos 12 a 20........................................................218<br />

Capítulo 7<br />

Versículos 1 a 2............................................................229<br />

Versículos 3 a 5............................................................233<br />

Versículos 6 a 9............................................................238<br />

Versículos 10 a 17........................................................247<br />

Versículos 18 a 24........................................................256<br />

Versículos 25 a 28........................................................262<br />

Versículos 29 a 35........................................................267<br />

Versículos 36 a 38........................................................276<br />

Versículos 39 a 40........................................................282<br />

Capítulo 8<br />

Versículos 1 a 7............................................................285<br />

Versículos 8 a 13..........................................................296<br />

Capítulo 9<br />

Versículos 1 a 12..........................................................303


Versículos 13 a 22........................................................314<br />

Versículos 23 a 27........................................................326<br />

Capítulo 10<br />

Versículos 1 a 5............................................................335<br />

Versículos 6 a 12..........................................................343<br />

Versículos 13 a 18........................................................354<br />

Versículos 19 a 24........................................................362<br />

Versículos 25 a 33........................................................368<br />

Capítulo 11<br />

Versículos 1 a 16..........................................................375<br />

Versículos 17 a 22........................................................391<br />

Versículos 23 a 29........................................................401<br />

Versículos 30 a 34........................................................421<br />

Capítulo 12<br />

Versículos 1 a 7............................................................429<br />

Versículos 8 a 13..........................................................435<br />

Versículos 14 a 27........................................................442<br />

Versículos 28 a 31........................................................449<br />

Capítulo 13<br />

Versículos 1 a 3............................................................455<br />

Versículos 4 a 8............................................................459<br />

Versículos 9 a 13..........................................................466<br />

Capítulo 14<br />

Versículos 1 a 6............................................................473<br />

Versículos 7 a 17..........................................................479<br />

Versículos 18 a 25........................................................489<br />

Versículos 26 a 33........................................................499<br />

Versículos 34 a 40........................................................508


Capítulo 15<br />

Versículos 1 a 10..........................................................517<br />

Versículos 11 a 19........................................................529<br />

Versículos 20 a 28........................................................537<br />

Versículos 29 a 34........................................................548<br />

Versículos 35 a 50........................................................559<br />

Versículos 51 a 58........................................................571<br />

Capítulo 16<br />

Versículos 1 a 7............................................................583<br />

Versículos 8 a 12..........................................................588<br />

Versículos 13 a 22........................................................592


Prefácio à Edição em Português<br />

As cartas <strong>de</strong> Paulo à igreja <strong>de</strong> Corinto formam uma importante<br />

parte do cânon no Novo Testamento. Os problemas que surgiram naquela<br />

igreja, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m doutrinária, prática e litúrgica, <strong>de</strong>ram ensejo<br />

ao apóstolo <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r com orientações cujo valor, relevância e<br />

aplicação transcen<strong>de</strong>m, em muito, os limites daquela época e lugar,<br />

chegando aos nossos dias como a inspirada Palavra <strong>de</strong> Deus.<br />

A semelhança entre a situação da igreja <strong>de</strong> Corinto e as igrejas<br />

evangélicas no Brasil na primeira meta<strong>de</strong> do século XXI é surpreen<strong>de</strong>nte.<br />

Junto com a vitalida<strong>de</strong> e o crescimento numérico, ambas<br />

compartilham <strong>de</strong>safios similares: divisões internas, li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong>spreparada,<br />

falta <strong>de</strong> disciplina, questões relacionadas com o papel das<br />

mulheres na igreja e do uso dos dons espirituais nos cultos, além da<br />

infiltração <strong>de</strong> heresias perniciosas, como a negação da ressurreição<br />

dos mortos.<br />

Por estes motivos, entre outros, 1 e 2 Coríntios estão entre as<br />

cartas paulinas mais relevantes para os nossos dias. E, naturalmente,<br />

bons comentários que nos aju<strong>de</strong>m a entendê-las mais e melhor são<br />

muito bem vindos.


10 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

É o caso do comentário que o leitor tem em mãos.<br />

João Calvino publicou este comentário em 1546, quando era pastor<br />

da igreja reformada <strong>de</strong> Genebra. O comentário fazia parte <strong>de</strong> uma<br />

série <strong>de</strong> outros cuja base era suas pregações expositivas nos livros do<br />

Novo Testamento. Quando nos lembramos <strong>de</strong> que este ano em particular<br />

foi <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s preocupações e aflições para o Reformador – as<br />

ameaças <strong>de</strong> Carlos V contra a Reforma e uma acusação <strong>de</strong> heresia<br />

contra Calvino por dois pastores (alcoólatras) <strong>de</strong> Genebra – ficamos<br />

admirados <strong>de</strong> como, apesar <strong>de</strong> tudo isto, Calvino encontrou tempo e<br />

paz <strong>de</strong> espírito para preparar e publicar um comentário <strong>de</strong>ste porte.<br />

Os comentários <strong>de</strong> Calvino, apesar <strong>de</strong> terem sido escritos a cerca<br />

<strong>de</strong> 450 anos atrás continuam entre os mais vendidos, lidos e consultados<br />

pelos estudiosos da Bíblia. Isto se <strong>de</strong>ve a vários fatores que<br />

fizeram <strong>de</strong> Calvino um dos melhores exegetas das Escrituras na longa<br />

história da Igreja Cristã.<br />

Primeiro, sua confiança inabalável nas Escrituras como a Palavra<br />

autoritativa e infalível <strong>de</strong> Deus, o que o conduzia a sondar <strong>de</strong> maneira<br />

respeitosa os seus mistérios.<br />

Segundo, sua preparação pessoal. Calvino conhecia as línguas<br />

originais da Bíblia, era versado nos Pais da Igreja, estava familiarizado<br />

com os teólogos e intérpretes que vieram antes <strong>de</strong>le, além <strong>de</strong> uma<br />

vasta educação literária e filosófica <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> sua formação humanista.<br />

Terceiro, Calvino amava a brevida<strong>de</strong> e a clareza, duas características<br />

indispensáveis <strong>de</strong> qualquer autor que queira realmente ser lido e<br />

compreendido. É impressionante como ele consegue com poucas palavras<br />

nos transmitir <strong>de</strong> maneira profunda e clara o significado da mente<br />

do apóstolo Paulo ao escrever esta carta aos coríntios.<br />

Quarto, Calvino não se per<strong>de</strong> em discussões fúteis e inúteis. Mesmo<br />

quando ele trata <strong>de</strong> aplicações contemporâneas dos princípios<br />

que <strong>de</strong>scobre nas palavras do apóstolo Paulo, ele o faz <strong>de</strong> tal forma<br />

que o leitor mo<strong>de</strong>rno consegue encontrar aplicações para seus próprios<br />

dias.


Prefácio à Edição em Português • 11<br />

Quinto, o sistema teológico <strong>de</strong> Calvino – que mais tar<strong>de</strong> veio a ser<br />

chamado <strong>de</strong> calvinismo por seus discípulos – funcionava como fator<br />

<strong>de</strong> coerência e integração em seu pensamento, orientando seu pensamento<br />

e organizando suas i<strong>de</strong>ias, <strong>de</strong> maneira que seus comentários<br />

refletem uma unida<strong>de</strong> e coesão interna surpreen<strong>de</strong>ntes. É muito fácil<br />

para quem escreve comentários se contradizer num ponto ou noutro<br />

ao analisar diferentes passagens. A coesão do pensamento <strong>de</strong> Calvino<br />

livrou-o <strong>de</strong>ste perigo a maior parte do tempo.<br />

Por último, Calvino escreveu comentários não com o objetivo<br />

<strong>de</strong> contribuir, <strong>de</strong> maneira acadêmica, para que os estudiosos <strong>de</strong> sua<br />

época satisfizessem sua curiosida<strong>de</strong> sobre passagens difíceis <strong>de</strong> 1Coríntios.<br />

Não, ele escreveu com coração pastoral, com o objetivo <strong>de</strong><br />

aplicar as verda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sta carta às consciências <strong>de</strong> seus leitores. Por<br />

este motivo, suas explicações com frequência são entremeadas com<br />

conceitos teológicos que <strong>de</strong>saguam em consi<strong>de</strong>rações práticas. O comentário<br />

<strong>de</strong> Calvino em 1Coríntios satisfaz mente e coração.<br />

Por estes motivos, além da minha dívida teológica a João Calvino,<br />

é que me sinto profundamente honrado em escrever este prefácio.<br />

Augustus Nico<strong>de</strong>mus Lopes, Ph.D.<br />

São Paulo, Novembro <strong>de</strong> 2013.


Dedicatória<br />

Ao mui ilustre varão, Tiago, senhor da Borgúndia,<br />

<strong>de</strong> Falais e <strong>de</strong> Breda etc. 1<br />

Neste meu comentário, esforcei-me por fazer uma exposição <strong>de</strong>sta<br />

epístola <strong>de</strong> Paulo, a qual não é menos difícil do que [em extremo] valiosa.<br />

Muitos me têm solicitado este comentário; na verda<strong>de</strong>, há muito<br />

tempo que fazem insistente apelo por sua publicação. Agora que está<br />

publicado, tão-somente <strong>de</strong>sejo que o mesmo venha igualmente satisfazer<br />

suas esperanças e anseios. Não digo isto com o fim <strong>de</strong> granjear<br />

alguma recompensa para meu trabalho na forma <strong>de</strong> louvor, porquanto<br />

tal ambição <strong>de</strong>ve ficar longe dos servos <strong>de</strong> Cristo; mas o que <strong>de</strong>sejo<br />

é gerar benefício para todos, e não posso alcançar tal objetivo se ele<br />

não for aceitável. Tenho <strong>de</strong>veras labutado com a máxima fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e<br />

diligência para que, sem qualquer importunida<strong>de</strong>, a obra seja do mais<br />

elevado valor para a Igreja <strong>de</strong> Deus. Quanto mais êxito tiver, mais meus<br />

leitores julgarão <strong>de</strong> acordo com a real praticida<strong>de</strong> da obra.<br />

De qualquer forma, creio que consegui fazer com que este comentário<br />

seja <strong>de</strong> inusitada ajuda na conquista <strong>de</strong> uma completa<br />

1 Após 1551, esta <strong>de</strong>dicatória foi suprimida das edições do comentário, em <strong>de</strong>corrência da<br />

disputa que suscitou-se entre Calvino e o senhor <strong>de</strong> Falais sobre Balsec. Mantemo-la aqui<br />

porque a segunda <strong>de</strong>dicatória faz alusão ao inci<strong>de</strong>nte.


14 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

compreensão do pensamento <strong>de</strong> Paulo. Certamente, meu honorável<br />

senhor, estou certo <strong>de</strong> que vós achareis plenamente compreensível,<br />

e até mesmo indispensável, que vos aconselhe a não permitir-vos que<br />

fiqueis excessivamente afeiçoado a mim. Mesmo que tal aconteça, não<br />

obstante terei vosso veredito na mais elevada conta, a fim <strong>de</strong> que eu<br />

possa consi<strong>de</strong>rar meu trabalho como tendo atingido seu mais elevado<br />

sucesso, se porventura tiver alcançado vossa inestimável aprovação.<br />

Além do mais, ainda que vo-lo <strong>de</strong>diquei, não foi só na esperança<br />

<strong>de</strong> ele vos agradar, mas por muitas outras razões, das quais a mais<br />

importante é que vossa vida pessoal confirme perfeitamente um dos<br />

temas da carta <strong>de</strong> Paulo. Pois enquanto no presente tempo há tantos<br />

que convertem o evangelho numa filosofia fria e acadêmica, acreditando<br />

que têm feito tudo quanto <strong>de</strong>les é requerido, e feito <strong>de</strong>vidamente,<br />

embora acenem suas cabeças em assentimento ao que têm dito, vós,<br />

por outro lado, para nós sois um conspícuo exemplo <strong>de</strong>sse po<strong>de</strong>r vivo<br />

sobre o qual Paulo insiste tanto. O que pretendo dizer é que quando<br />

olhamos para vós, compreen<strong>de</strong>mos o que significa esse vigor espiritual<br />

que, afirma Paulo, jorra do evangelho. Naturalmente, não faço menção<br />

<strong>de</strong>ssas coisas para vossa satisfação pessoal, senão que acredito ser <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> importância do ponto <strong>de</strong> vista do exemplo [cristão].<br />

Vós pertenceis à primeira classe da nobreza, obtivestes e usufruístes<br />

<strong>de</strong> elevada e ilustre posição na vida, e sois prendado com<br />

qualida<strong>de</strong>s e riquezas (posições que se acham atualmente todas enxameadas<br />

<strong>de</strong> corrupções!). Ora, certamente seria algo por si mesmo<br />

importante se vós, em tais circunstâncias, não só levásseis uma vida<br />

disciplinada e temperada, mas também conservásseis vossa família<br />

sob controle mediante uma a<strong>de</strong>quada e saudável disciplina. De fato<br />

ten<strong>de</strong>s levado ambos estes [<strong>de</strong>veres] ao pleno cumprimento. Pois<br />

vosso comportamento tem sido tal, que a todos tem sido uma clara<br />

evidência <strong>de</strong> que não há em vós o menor traço <strong>de</strong> egoísmo.<br />

Sempre que foi necessário que mantivésseis vosso esplendor,<br />

o fizestes <strong>de</strong> tal forma que estabeleceu-se um mo<strong>de</strong>rado padrão <strong>de</strong><br />

vida, e jamais houve qualquer rasgo <strong>de</strong> mesquinhez ou <strong>de</strong> avareza;


Dedicatória • 15<br />

e, todavia, sempre bem a <strong>de</strong>scoberto, evitastes mais do que buscastes<br />

um magnificente estilo <strong>de</strong> vida. Ten<strong>de</strong>-vos mostrado tão cortês e<br />

consi<strong>de</strong>rado, que todos foram forçados a louvar vosso <strong>de</strong>spretencioso<br />

comportamento. De fato não há a mais leve evidência <strong>de</strong> orgulho ou<br />

<strong>de</strong> arrogância que viesse a gerar ofensa em alguém. No que tange a<br />

vossa família, é-nos suficiente dizer, numa palavra, que tem sido ela<br />

conduzida <strong>de</strong> tal maneira como para refletir a mente <strong>de</strong> seu senhor e<br />

<strong>de</strong> seu modo <strong>de</strong> vida, precisamente como um espelho reflete a imagem<br />

<strong>de</strong> alguém. Tal coisa por si só teria dado ao povo um claro e notável<br />

exemplo <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong> a ser imitada.<br />

Mas há algo que consi<strong>de</strong>ro ainda mais importante. Ten<strong>de</strong>s sido<br />

erroneamente acusado diante do Imperador pelos embustes <strong>de</strong> homens<br />

ímpios, e que, por nenhuma outra razão senão o fato <strong>de</strong> que<br />

imediatamente o reino <strong>de</strong> Cristo começa a fazer progresso em alguns<br />

lugares, os leva à <strong>de</strong>mência e frenesi. Mas (e eis o que é mui importante)<br />

ten<strong>de</strong>s mantido uma coragem que nada tem a ver com <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>,<br />

e agora estais vivendo como num exílio <strong>de</strong> vossa terra natal, com uma<br />

gran<strong>de</strong> porção <strong>de</strong> estima como tivestes anteriormente, quando a honráveis<br />

com vossa presença. Não pretendo mencionar outros fatores,<br />

visto que seria tedioso adicionar algo mais. Na verda<strong>de</strong>, os cristãos<br />

<strong>de</strong>vem sempre consi<strong>de</strong>rar como algo mais que comum e costumeiro,<br />

não só <strong>de</strong>ixar estados, castelos e <strong>de</strong>sprezar, em comparação a ele<br />

[Cristo], tudo quanto é tido como mui precioso na terra. Entretanto,<br />

quase todos nós somos negligentes e indiferentes a pactos, <strong>de</strong> modo<br />

que a virtu<strong>de</strong> particular é especialmente merecedora <strong>de</strong> nossa admiração.<br />

Portanto, no tempo em que po<strong>de</strong>mos vê-lo tão nitidamente em<br />

vós, só <strong>de</strong>sejo que tal fato possa <strong>de</strong>spertar muitas pessoas, <strong>de</strong> modo<br />

que queiram imitar tal atitu<strong>de</strong>, e, em vez <strong>de</strong> continuarem para sempre<br />

escon<strong>de</strong>ndo-se em seu confortável aconchego, possam um dia sair em<br />

público trazendo toda a centelha do espírito cristão que porventura<br />

tenham.<br />

Ora, quando os homens vos atacam trazendo freqüentemente novas<br />

acusações contra vós, fazem notório que são violentos inimigos da


16 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

religião, e nada ganharão disto senão fazer-se mais e mais <strong>de</strong>testáveis,<br />

favorecendo mui contun<strong>de</strong>ntemente a mentira. Com certeza alguns,<br />

em seu são juízo, acreditam que os tais são cães raivosos, visto que<br />

procuram estraçalhar-vos, e então, ao perceberem que não po<strong>de</strong>m<br />

abocanhar-vos, vingam-se ladrando contra vós. É bom que assim façam<br />

a certa distância, pois então não conseguirão causar-vos nenhum<br />

dano. Mas, ainda que os maus feitos dos ímpios resultem na perda <strong>de</strong><br />

muitas <strong>de</strong> vossas possessões, em nada diminuem da glória real com<br />

que os crentes vos consi<strong>de</strong>ram. Mas, como cristão que sois, <strong>de</strong>veis ter<br />

uma visão mais ampla que esta. Pois não estais satisfeito com nada<br />

mais senão com a glória celestial, a qual vos é guardada com Deus, e<br />

que será trazida à luz assim que nossa natureza externa perecer.<br />

Mui ilustre senhor, e nobre família, a<strong>de</strong>us. Que o Senhor Jesus vos<br />

guar<strong>de</strong> a salvo perenemente, para a expansão <strong>de</strong> seu Reino; e que ele<br />

mesmo vos conserve sempre vitorioso sobre Satanás e sobre toda a<br />

hoste <strong>de</strong> seus inimigos.<br />

Genebra, 24 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1546


Segunda Dedicatória<br />

Saudação a um fidalgo, mais excelente por suas virtu<strong>de</strong>s do que por<br />

seu nobre nascimento, senhor Galliazo Carracciolo, filho único e legítimo<br />

her<strong>de</strong>iro do Marquês <strong>de</strong> Vico.<br />

Quando este comentário foi pela primeira vez publicado, eu não<br />

tinha conhecimento ou não estava totalmente familiarizado com o<br />

homem cujo nome anteriormente apareceu nesta página, e agora sou<br />

obrigado a suprimi-lo. Certamente, não me sinto temeroso <strong>de</strong> que venha<br />

ele a acusar-me <strong>de</strong> levianda<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> queixar-se <strong>de</strong> mim por ter<br />

subtraído <strong>de</strong>le o que outrora lhe <strong>de</strong>ra; pois, tendo ele <strong>de</strong>liberadamente<br />

procurado não só manter-se tão longe quanto possível <strong>de</strong> mim, pessoalmente,<br />

e também por <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r-se com nossa igreja, ficou<br />

sem qualquer justificativa para protestar. Entretanto, é com relutância<br />

que renuncio minha costumeira prática e elimino <strong>de</strong> meus escritos o<br />

nome <strong>de</strong> alguém; e lamento muito que tal pessoa tenha caído da elevada<br />

posição que eu lhe tenha dado, o que significa que ela <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> dar<br />

bom exemplo a outrem, precisamente como eu esperava <strong>de</strong>le. Porém,<br />

visto que a cura <strong>de</strong>ste mal não se acha em minhas mãos, então que tal<br />

pessoa, no que me diz respeito, fique em total olvido, pois ainda agora


18 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

sinto-me ansioso por calar-me sobre ela, e portanto sem mais trazer<br />

qualquer prejuízo a sua reputação.<br />

Mas, no que concerne a vós, mui honrado senhor, eu teria que encontrar<br />

algum pretexto para então substituir o outro nome pelo vosso,<br />

embora não me aventurei a tomar tal liberda<strong>de</strong>, confiando em vossa<br />

insuspeitável bonda<strong>de</strong> e amor para comigo, o que é notoriamente<br />

conhecido <strong>de</strong> todos os nossos amigos. Voltando a mencionar meus <strong>de</strong>sejos,<br />

gostaria <strong>de</strong>veras <strong>de</strong> ter-vos conhecido há <strong>de</strong>z anos atrás, porque<br />

não teria tido motivo algum para fazer agora tal mudança. E esta se<br />

presta agora tanto para o bem quanto para servir <strong>de</strong> exemplo à Igreja<br />

como um todo, não só pelo fato <strong>de</strong> que não vamos sentir que sofremos<br />

alguma perda ao esquecermo-nos daquele que se afastou <strong>de</strong> nós, mas<br />

porque seremos compensados, em vós, por um exemplo ainda mais<br />

rico, e <strong>de</strong>veras preferível, em todos os sentidos. Porque, ainda que não<br />

estais correndo após os aplausos do povo, vivendo satisfeito em ter<br />

Deus como vossa única testemunha; e ainda que não tenho nenhuma<br />

intenção <strong>de</strong> cantar-vos louvores, todavia meus leitores não <strong>de</strong>vem ser<br />

<strong>de</strong>ixados completamente em trevas acerca do que lhes é proveitoso<br />

e benéfico saber. Sois um homem nascido numa família nobre; gozais<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> prestígio e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s riquezas; fostes abençoado com uma<br />

esposa da mais nobre origem e da mais elevada virtu<strong>de</strong>, com muitos<br />

filhos, com paz e harmonia em vosso lar; na verda<strong>de</strong> ten<strong>de</strong>s sido<br />

abençoado em todas as circunstâncias <strong>de</strong> vossa vida. Mas para que<br />

passásseis para o campo <strong>de</strong> Cristo, <strong>de</strong>ixastes espontaneamente vossa<br />

terra natal, abandonastes proprieda<strong>de</strong>s férteis e aprazíveis, esplêndida<br />

herança e uma casa tanto <strong>de</strong>leitosa quanto espaçosa; privastes-vos<br />

<strong>de</strong> um habitual e magnificente estilo <strong>de</strong> vida; separastes-vos <strong>de</strong> pai,<br />

esposa, filhos, parentela e congêneres; e após dizer a<strong>de</strong>us a tantas<br />

atrações mundanas, e sentindo-vos feliz com nossas <strong>de</strong>pauperadas<br />

circunstâncias, adotastes nosso frugal modo <strong>de</strong> vida, o padrão <strong>de</strong> gente<br />

simples, assim vos tornastes um <strong>de</strong> nós.<br />

Enquanto relato todas estas coisas a outros, não posso <strong>de</strong> modo<br />

algum esquecer-me dos benefícios que pessoalmente recebo. Pois em-


Segunda Dedicatória • 19<br />

bora eu exponha vossas virtu<strong>de</strong>s ante os olhos <strong>de</strong> meus leitores, aqui,<br />

como num espelho, para que possam imitá-las, ser-me-ia <strong>de</strong>primente,<br />

tendo-as diante <strong>de</strong> meus próprios olhos, não para ser mais profundamente<br />

influenciado, à luz do fato <strong>de</strong> que as vejo mui claramente todos<br />

os dias. Mas, visto que realmente sei <strong>de</strong> experiência própria o quanto<br />

vosso exemplo significa para o fortalecimento <strong>de</strong> minha própria fé e<br />

<strong>de</strong>voção, e visto que todos os filhos <strong>de</strong> Deus que estão aqui reconhecem,<br />

juntamente comigo,que têm extraído extraordinário benefício<br />

<strong>de</strong>sse vosso exemplo, consi<strong>de</strong>rei, quanto a mim, fazê-lo notório, para<br />

que um círculo cada vez mais amplo <strong>de</strong> pessoas pu<strong>de</strong>sse usufruir da<br />

mesma bênção. Outrossim, seria estultície falar <strong>de</strong>talhadamente em<br />

louvor <strong>de</strong> um homem, cuja natureza e temperamento são tão <strong>de</strong>spidos<br />

<strong>de</strong> ostensivida<strong>de</strong> quanto se po<strong>de</strong> imaginar, e, ainda mais, proce<strong>de</strong>r<br />

assim na presença <strong>de</strong> estranhos e em lugares longínquos. Portanto,<br />

se tantas pessoas, que nada sabem <strong>de</strong> vossa vida pregressa, por viverem<br />

distantes <strong>de</strong> vós, têm este admirável exemplo diante <strong>de</strong> si e se<br />

prepararam para <strong>de</strong>ixar seu comodismo, ao qual são tão inclinadas, e<br />

imitar vosso exemplo, serei amplamente recompensado pelas coisas<br />

que tenho escrito.<br />

Os cristãos, realmente, <strong>de</strong>vem sempre consi<strong>de</strong>rar como algo mais<br />

do que meramente comum e costumeiro, não só <strong>de</strong>ixar estados, castelos<br />

e posições nobres, sem pesares, se porventura é impossível seguir<br />

a Cristo <strong>de</strong> outra forma; mas também estar sempre prontos e dispostos<br />

a <strong>de</strong>sprezar, em comparação a ele [Cristo], tudo quanto é reputado<br />

como por <strong>de</strong>mais precioso sobre a terra. Todos nós, porém, somos por<br />

<strong>de</strong>mais negligentes, ou, antes, tão indiferentes que, enquanto muitos<br />

acenam suas cabeças em formal assentimento ao ensino do evangelho,<br />

raramente um em cem, talvez possuidor <strong>de</strong> um insignificante sítio,<br />

permitirá ser arrancado <strong>de</strong>le por causa do evangelho. A não ser em<br />

meio à mais profunda relutância, dificilmente alguém se persuadiria a<br />

renunciar a menor vantagem que seja, o que revela quão longe estão<br />

os homens <strong>de</strong> sentir-se preparados a renunciar a própria vida, como<br />

<strong>de</strong>vem fazê-lo. Acima <strong>de</strong> tudo, meu <strong>de</strong>sejo é que todos se espelhem em


20 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

vosso espírito <strong>de</strong> renúncia, a primeira <strong>de</strong> todas as virtu<strong>de</strong>s. Pois sois a<br />

pessoa mais bem indicada a testificar <strong>de</strong> mim, e eu <strong>de</strong> vós, quão pouco<br />

<strong>de</strong>leite encontramos no companheirismo daqueles que, ao <strong>de</strong>ixarem<br />

sua terra natal, acabam revelando nitidamente que trouxeram consigo<br />

as mesmas perspectivas que alimentavam lá. Porém, visto que é melhor<br />

para meus leitores refletirem sobre estas coisas em sua própria<br />

mente, em vez <strong>de</strong> verbalizá-las, eu agora me ponho em oração ao Deus<br />

que até aqui vos tem encorajado através do portentoso po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seu<br />

Espírito, visando a que vos muna ele perenemente <strong>de</strong> invencível disposição.<br />

Pois estou bem cônscio do modo como Deus vos disciplinou<br />

com muitas e duras lutas, porém, com notável percepção, percebestes<br />

que severas e renhidas hostilida<strong>de</strong>s ainda permanecem diante <strong>de</strong><br />

vós. E visto que muitas experiências vos têm ensinado quão realmente<br />

necessário é que do céu se vos estenda uma [benfazeja] mão, <strong>de</strong>veis<br />

prontificar-vos a juntar-vos a mim em fervente oração a Deus pelo dom<br />

da perseverança. Quanto a mim, particularmente, orarei a Cristo, nosso<br />

Rei, a quem o Pai conferiu suprema autorida<strong>de</strong>, e em cujas mãos<br />

foram colocados todos os tesouros das bênçãos espirituais, rogando-<br />

-lhe que vos guar<strong>de</strong> em segurança, a fim <strong>de</strong> que venhais a permanecer<br />

longo tempo conosco para a expansão <strong>de</strong> seu Reino; e para que ele<br />

prossiga a usar-vos na obtenção da vitória sobre Satanás e seus seguidores.<br />

24 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1556<br />

(<strong>de</strong>z anos após a primeira publicação <strong>de</strong>ste comentário)


Análise da Primeira Epístola<br />

<strong>de</strong> Paulo aos Coríntios<br />

Esta carta é <strong>de</strong> diversas formas valiosa; pois ela contém tópicos 1<br />

especiais e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância. Em proporção que forem sendo<br />

<strong>de</strong>senvolvidos, sucessivamente em sua or<strong>de</strong>m, a discussão por si só<br />

os esclarecerá à medida da necessida<strong>de</strong> para sua compreensão. E <strong>de</strong><br />

fato isso se dará <strong>de</strong> forma muito clara nesta mesma avaliação. Tentarei<br />

apresentar este tema <strong>de</strong> forma breve, porém, ao mesmo tempo,<br />

pretendo fornecer um sumário completo do mesmo, sem, contudo,<br />

per<strong>de</strong>r algum <strong>de</strong> seus pontos principais.<br />

É bem notório o fato <strong>de</strong> que Corinto era uma rica e famosa cida<strong>de</strong><br />

da Acaia. Quando L. Mummius a <strong>de</strong>struiu (em 146 a.C.), ele o fez simplesmente<br />

porque sua vantajosa situação o levou a suspeitar do lugar.<br />

Mas um povo <strong>de</strong> tempos posteriores a reconstruiu pela mesma razão<br />

que ele (L. Mummius) a <strong>de</strong>struiu, 2 quando as mesmas vantagens topográficas<br />

a levaram a ser restaurada num curto espaço <strong>de</strong> tempo. Visto<br />

estar ela situada nas proximida<strong>de</strong>s do Mar Egeu, <strong>de</strong> um lado, e do Mar<br />

1 “Bonnes matieres, et points <strong>de</strong> doctrine” – “Bons temas e pontos <strong>de</strong> doutrina.”<br />

2<br />

2<br />

Estrabo <strong>de</strong>screve Mummius como “μεγαλαφρων μαλλον ἠ φιλοτεχνος” – “um<br />

homem mais magnânimo do que amante das artes.”


22 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Jônio, do outro, e visto que ela ficava no istmo que liga a Ática e o Peloponésio,<br />

então i<strong>de</strong>almente se a<strong>de</strong>quava à importação e exportação<br />

<strong>de</strong> mercadorias.<br />

Em Atos, Lucas nos conta que, após ter Paulo ensinado ali durante<br />

um ano e meio, ele foi obrigado, em virtu<strong>de</strong> do comportamento<br />

ultrajante dos ju<strong>de</strong>us, a viajar dali para a Síria. Durante a ausência <strong>de</strong><br />

Paulo, falsos apóstolos se infiltraram na região. Não vieram (em minha<br />

opinião) com o fim <strong>de</strong> perturbar a Igreja obviamente com um ensinamento<br />

heterodoxo, ou intencionalmente, por assim dizer, causar dano<br />

ao ensinamento. Há três razões para seu surgimento. Primeiramente,<br />

se orgulhavam <strong>de</strong> sua oratória brilhante e ostensiva, ou, diria alguém,<br />

convencidos por sua linguagem vazia e bombástica, passaram a tratar<br />

com <strong>de</strong>sprezo a simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paulo e inclusive do próprio evangelho.<br />

Em segundo lugar, movidos por sua ambição, almejavam dividir<br />

a Igreja em várias facções. Finalmente, indiferentes a tudo, exceto em<br />

<strong>de</strong>sfrutar das boas graças que almejavam que o povo tivesse <strong>de</strong>les,<br />

entraram em cena com o fim <strong>de</strong> fazer seu jogo em prol do aumento <strong>de</strong><br />

sua própria reputação, antes que promover o reino <strong>de</strong> Cristo e o bem-<br />

-estar do povo.<br />

Por outro lado, visto que Corinto se achava dominada pelos vícios<br />

com os quais as cida<strong>de</strong>s comerciais geralmente são infestadas, ou, seja,<br />

a luxúria, a arrogância, a vaida<strong>de</strong>, os prazeres, a cobiça insaciável, o<br />

egoísmo <strong>de</strong>senfreado – tais vícios tinham penetrado também a própria<br />

Igreja <strong>de</strong> tal modo que a disciplina se tornou gran<strong>de</strong>mente <strong>de</strong>teriorada.<br />

Mais seriamente ainda, já se achava presente a apostasia da sã doutrina,<br />

<strong>de</strong> modo tal que um dos fundamentos da fé, a ressurreição dos mortos,<br />

estava sendo posta em cheque. E ainda que se achasse em meio a tanta<br />

corrupção <strong>de</strong> toda espécie, estavam contentes consigo mesmos, como<br />

se tudo quanto em relação a eles estivesse em perfeita or<strong>de</strong>m. Tais são<br />

os subterfúgios que Satanás geralmente emprega. Se ele não consegue<br />

impedir a expansão do ensino, ele se chega solerte e secretamente com<br />

o fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>sferir seu golpe mortal sobre ele [o ensino]. Se ele não consegue<br />

suprimi-lo por meio <strong>de</strong> mentiras que o contradigam, e impedi-lo


Análise da Primeira Epístola <strong>de</strong> Paulo aos Coríntios • 23<br />

<strong>de</strong> vir a público, então lhe prepara covas ocultas para sua <strong>de</strong>struição.<br />

Finalmente, se ele não po<strong>de</strong> alienar <strong>de</strong>le as mentes humanas, num golpe<br />

incisivo, ele as leva a abandoná-lo gradativamente.<br />

Ora, tenho boas razões para crer que aqueles indignos correligionários,<br />

que trouxeram sofrimento à igreja corintiana, não eram<br />

inimigos <strong>de</strong>clarados da verda<strong>de</strong>. Sabemos que Paulo não ignora as<br />

falsas doutrinas em outras cartas. As cartas aos Gálatas, aos Colossenses,<br />

aos Filipenses e a Timóteo são todas breves; porém, em todas<br />

elas não só ataca violentamente os falsos apóstolos, mas, ao mesmo<br />

tempo, ele igualmente realça as formas em que prejudicavam a Igreja.<br />

E ele estava perfeitamente certo, pois os crentes não só <strong>de</strong>vem ser<br />

admoestados acerca daqueles <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>vem se precaver, mas <strong>de</strong>vem<br />

também perceber o mal contra o qual precisam sempre estar em<br />

guarda. Portanto, não posso acreditar que numa carta longa como esta<br />

ele preten<strong>de</strong>sse manter em silêncio o que executa tão assiduamente<br />

em outras cartas muito mais breves. Além disso, ele trata com muitas<br />

faltas dos coríntios, algumas das quais, sem dúvida, totalmente<br />

triviais, então parece que ele não pretendia omitir algo sobre aqueles<br />

que ele chamou para reprovar. E se esse não era o caso, então ele estava<br />

<strong>de</strong>sperdiçando um amontoado <strong>de</strong> palavras ao juntar-se em <strong>de</strong>bate<br />

com aqueles prepostos mestres ou chilreantes oradores. Ele con<strong>de</strong>na<br />

sua ambição; ele os responsabiliza em transformar o evangelho numa<br />

filosofia artificial; ele nega que tenham eles o po<strong>de</strong>r do Espírito para<br />

produzir resultados, porque, em sua preocupação com linguagem<br />

vazia e bombástica, só estavam indo no encalço <strong>de</strong> “letra morta”; todavia,<br />

não há uma só palavra sobre ensino corrupto. Portanto, estou<br />

plenamente certo <strong>de</strong> que não faziam nenhuma <strong>de</strong>preciação pública<br />

das substância do evangelho, em qualquer aspecto; porém, visto que<br />

um <strong>de</strong>sorientado e apaixonado <strong>de</strong>sejo por proeminência os abrasava,<br />

acredito que tinham engendrado um novo método <strong>de</strong> ensino, o qual<br />

não se compatibilizava com a simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo; e assim esperavam<br />

que isso os fizesse objetos da admiração do povo. Isto é o que<br />

inevitavelmente acontece com todos aqueles que não <strong>de</strong>sistem <strong>de</strong>


24 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

preocupar-se consigo mesmos e se engajem na obra do Senhor sem<br />

absolutamente quaisquer entraves. O primeiro passo, para servirmos<br />

a Cristo, é esquecer-nos <strong>de</strong> nós mesmos e pensar tão-só na glória do<br />

Senhor e na salvação dos homens. Além do mais, ninguém jamais estará<br />

aparelhado para o ensino se antes não for absorvido pelo po<strong>de</strong>r<br />

do evangelho, <strong>de</strong> modo a falar não tanto com seus lábios, mas com seu<br />

próprio coração. Portanto, o que suce<strong>de</strong> no caso daqueles que nunca<br />

nasceram <strong>de</strong> novo, pelo Espírito <strong>de</strong> Deus, nunca experimentaram o<br />

po<strong>de</strong>r do evangelho em seus próprios corações, e não têm qualquer<br />

idéia do que significa ser nova criação! (cf. 2Co 5.17). Sua pregação é<br />

morta, quando <strong>de</strong>veria ser viva e produtora <strong>de</strong> resultados; e para que<br />

se sobressaíssem aos olhos públicos, eles mesmos dissimulavam o<br />

evangelho, vestindo-o <strong>de</strong> diferentes indumentárias, <strong>de</strong> modo que viesse<br />

ele a assemelhar-se às filosofias do mundo.<br />

Fazer isso em Corinto era algo fácil para o tipo <strong>de</strong> pessoas que estamos<br />

consi<strong>de</strong>rando aqui. Pois os mercadores são facilmente levados<br />

pela aparência externa; e não só se permitiam trapacear pelas mesmas<br />

trapaças que aplicavam a outrem, mas, <strong>de</strong> certa forma, também<br />

gostavam disso. Além disso, possuíam ouvidos sensíveis, <strong>de</strong> modo<br />

que não suportavam censura por <strong>de</strong>mais severa, resultando que, se<br />

se <strong>de</strong>parassem com os mestres tão maleáveis e prontos a <strong>de</strong>ixá-los<br />

alegremente impunes, se valiam <strong>de</strong> recompensas e bajulação. Concordo<br />

que isso se dá em toda parte, mas é mais comum em cida<strong>de</strong>s<br />

comerciais e ricas. Ao contrário, Paulo, que em outros aspectos era<br />

um homem sublime e se sobressaía em razão das admiráveis qualida<strong>de</strong>s<br />

que possuía, não obstante fez-se insignificante exteriormente, no<br />

tocante às graças exteriores estava sempre contente, jamais se irrompendo<br />

com ostentação nem procurando tocar sua própria conduta. De<br />

fato, em razão <strong>de</strong> seu coração estar sempre e verda<strong>de</strong>iramente sob a<br />

influência do Espírito, não havia nele a menor sombra <strong>de</strong> ostentação,<br />

sendo incapaz <strong>de</strong> proferir bajulação nem se preocupava em agradar a<br />

homens. Ele só tinha um propósito diante <strong>de</strong> si, a saber, que ele e todos<br />

os <strong>de</strong>mais, estando à disposição, Cristo pu<strong>de</strong>sse reinar. Já que os


Análise da Primeira Epístola <strong>de</strong> Paulo aos Coríntios • 25<br />

coríntios se inclinavam mais pelo ensino engenhoso do que benéfico,<br />

então não po<strong>de</strong>riam saborear o evangelho. Já que viviam tão ansiosos<br />

por novida<strong>de</strong>s, então Cristo, para eles, se achava fora <strong>de</strong> moda.<br />

Em todo caso, se não tivessem ainda, realmente, caído em tais erros,<br />

pelo menos já estavam naturalmente inclinados para as coisas sedutoras<br />

<strong>de</strong>sta espécie. Portanto, era fácil para os falsos apóstolos atrair<br />

a atenção entre eles e adulterar o ensino <strong>de</strong> Cristo. Pois certamente é<br />

ele adulterado quando sua natural pureza é corrompida e, por assim<br />

dizer, pintada com diferentes cores, sendo ele posto no mesmo nível<br />

<strong>de</strong> qualquer filosofia mundana. Portanto, a fim <strong>de</strong> agradar o paladar<br />

dos coríntios, adicionavam condimentos a seu ensino, resultando disso<br />

que o genuíno sabor do evangelho era <strong>de</strong>struído. Agora estamos em<br />

posição <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r por que Paulo foi induzido a escrever esta carta.<br />

Agora po<strong>de</strong>mos sumariar o argumento, apresentando breves notas<br />

sobre cada um dos capítulos em or<strong>de</strong>m cronológica.<br />

Paulo inicia o primeiro capítulo congratulando-se com eles (coríntios),<br />

e com isso os encoraja a prosseguirem como começaram. Desta<br />

forma ele os apazigua <strong>de</strong> antemão antes <strong>de</strong> prosseguir, <strong>de</strong> modo a estarem<br />

mais dispostos a receber seu ensino. Mas imediatamente ele fere<br />

uma nota mais severa, fazer a transição para reprovar, quando se refere<br />

aos <strong>de</strong>sacordos que ora afligiam sua igreja. Desejando curar este<br />

mal, ele insta com eles que voltassem do orgulho para a humilda<strong>de</strong>.<br />

Pois ele dispensa toda a sabedoria do mundo, estabelecendo em seu<br />

lugar unicamente a pregação da Cruz. Ao mesmo tempo também os<br />

humilha individualmente, ao dizer-lhes que observassem bem a classe<br />

<strong>de</strong> pessoas a quem o Senhor, geralmente, tem adotado e conduzido a<br />

seu rebanho.<br />

No segundo capítulo, ele cita o exemplo <strong>de</strong> sua própria pregação,<br />

a qual, humanamente falando, era pobre e insignificante, porém era<br />

notável em razão <strong>de</strong> possuir o po<strong>de</strong>r do Espírito. E ele prossegue <strong>de</strong>senvolvendo<br />

a idéia <strong>de</strong> que o evangelho contém sabedoria celestial<br />

e secreta. É algo que nem a habilida<strong>de</strong> natural do homem, ainda que<br />

perspicaz e penetrante, nem seus sentidos físicos po<strong>de</strong>m compreen-


26 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

<strong>de</strong>r; algo sobre o qual o argumento humano não po<strong>de</strong> gerar convicção;<br />

algo que não carece <strong>de</strong> linguagem floreada nem <strong>de</strong> ilustrações. É<br />

tão-somente por meio da revelação do Espírito que ele chega a ser<br />

compreendido pela mente humana, e vem a ser selado em seus corações.<br />

Finalmente, conclui que não é só a pregação do evangelho que<br />

é extremo oposto da sabedoria humana, visto que ela consiste na humilhação<br />

da Cruz, mas também que o mero juízo humano não po<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>terminar qual é seu real valor. Paulo proce<strong>de</strong> assim a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviá-<br />

-los da confiança mal colocada em seu próprio entendimento, o qual<br />

gera errônea valorização <strong>de</strong> tudo.<br />

No início do terceiro capítulo ele faz aplicação do que lhes afirmou<br />

anteriormente. Pois Paulo lamenta que, sendo eles carnais, dificilmente<br />

se sujeitariam a apren<strong>de</strong>r ainda mesmo os princípios rudimentares<br />

do evangelho. Desta forma ele realça que o <strong>de</strong>sprazer pela Palavra, o<br />

que era tão forte neles, não era oriundo <strong>de</strong> algum <strong>de</strong>feito inerente à Palavra<br />

mesma, e, sim, da ignorância <strong>de</strong>les; e, ao mesmo tempo, ele lhes<br />

dirige uma admoestação implícita, ou, seja, que os coríntios necessitam<br />

<strong>de</strong> ter suas mentes renovadas, e assim possam começar a avaliar<br />

as coisas com proprieda<strong>de</strong>.<br />

E então ele mostra o lugar que <strong>de</strong>ve ser dado ao ministro do<br />

evangelho. A honra <strong>de</strong>vida a eles não <strong>de</strong>ve subtrair em nada da glória<br />

que é <strong>de</strong>vida a Deus; pois há um só Senhor, e todos eles são seus servos;<br />

somente Deus tem o po<strong>de</strong>r em suas mãos, e é ele quem confere<br />

os resultados; e todos os coríntios não passam <strong>de</strong> simples instrumentos<br />

<strong>de</strong> Deus.<br />

Ao mesmo tempo mostra que ele <strong>de</strong>ve ter como alvo a edificação<br />

da igreja. Aproveita a oportunida<strong>de</strong> para explicar o correto e a<strong>de</strong>quado<br />

método para realizar um bom trabalho <strong>de</strong> edificação, a saber, tomar<br />

Cristo como o único fundamento, e a<strong>de</strong>quar a estrutura toda a esse<br />

fundamento. E aqui, tendo afirmado <strong>de</strong> passagem que ele era um hábil<br />

mestre-<strong>de</strong>-obra, exorta aos que são <strong>de</strong>ixados para a continuação da<br />

obra a que conservem o edifício <strong>de</strong> conformida<strong>de</strong> com o fundamento<br />

em todos os meandros <strong>de</strong> sua conclusão.


Análise da Primeira Epístola <strong>de</strong> Paulo aos Coríntios • 27<br />

Ele ainda insiste com os coríntios a não permitirem que sejam<br />

maculados pelos ensinos corruptos, visto que são templos <strong>de</strong> Deus.<br />

E nessa parte conclusiva do capítulo, ele novamente reduz a nada o<br />

orgulho da sabedoria humana, <strong>de</strong> modo que somente o conhecimento<br />

<strong>de</strong> Cristo seja mantido em evidência entre os crentes.<br />

No início do quarto capítulo, ele explica qual é o ofício <strong>de</strong> um genuíno<br />

apóstolo, e, rejeitando seus juízos corruptos que os impe<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong> reconhecê-lo como genuíno apóstolo, apela para o dia do Senhor.<br />

Então, percebendo que o <strong>de</strong>sprezavam em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua humil<strong>de</strong><br />

aparência, ele mostra que <strong>de</strong> fato tal coisa se constitui mais em<br />

honra para ele do que em <strong>de</strong>sonra. Ele prossegue citando instâncias<br />

<strong>de</strong> sua própria experiência, a qual revela que ele não se preocupava<br />

com sua própria glória, ou com seu próprio sustento material, mas<br />

que fizera fielmente o trabalho <strong>de</strong> Cristo e nada mais. No <strong>de</strong>vido<br />

curso ele enfatiza a maneira como os coríntios <strong>de</strong>vem honrá-lo (isto<br />

é, vv. 14-16). Na parte conclusiva do capítulo, ele lhes recomenda<br />

Timóteo, até que ele mesmo vá. E ao mesmo tempo anuncia que<br />

em sua chegada ele <strong>de</strong>ixará plenamente claro que não dá o menor<br />

valor a toda a bazófia com que os falsos apóstolos cantavam seus<br />

próprios louvores.<br />

No quinto capítulo Paulo os chama à razão pelo fato <strong>de</strong> terem<br />

tolerado em silêncio uma união incestuosa entre um homem e sua madrasta.<br />

E francamente lhes diz que, em vez <strong>de</strong> serem tão vangloriosos,<br />

uma enormida<strong>de</strong> tal como esta <strong>de</strong>veria fazê-los pen<strong>de</strong>r suas frontes,<br />

envergonhados. Ele muda daquela instrução geral para o efeito, ou,<br />

seja, que ofensas como essas seriam punidas com excomunhão, para<br />

que a tolerância em relação ao pecado seja rechaçada, e que as impurezas<br />

sejam limitadas a uma só pessoa e não venham a propagar-se<br />

ainda mais afetando o restante.<br />

O sexto capítulo contém duas partes principais. Na primeira, ele<br />

con<strong>de</strong>na a prática <strong>de</strong>les (coríntios) em provocar aborrecimento uns<br />

aos outros, trazendo com isso gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>scrédito ao evangelho, ao levarem<br />

suas disputas aos tribunais que eram presididos pelos incrédulos.


28 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Na segunda parte, ele con<strong>de</strong>na a tolerância com a promiscuida<strong>de</strong> sexual,<br />

a qual alcançara um nível tal que era consi<strong>de</strong>rada quase como<br />

uma coisa normal <strong>de</strong> se fazer. De fato, ele começa com uma grave nota<br />

<strong>de</strong> ameaça e então prossegue produzindo argumentos em apoio da<br />

admoestação que ele apresenta.<br />

O sétimo capítulo contém uma discussão sobre a virginda<strong>de</strong>, o matrimônio<br />

e o celibato. Tanto quanto po<strong>de</strong>mos agrupar do que Paulo<br />

diz, os coríntios se tornaram fortemente influenciados pelas noções<br />

supersticiosas <strong>de</strong> que a virginda<strong>de</strong> era uma projeção, quase uma virtu<strong>de</strong><br />

angelical, <strong>de</strong> tal forma que <strong>de</strong>sprezavam o matrimônio como se<br />

este fosse algo impuro. Para corrigir este conceito equivocado, Paulo<br />

ensina que cada pessoa <strong>de</strong>ve saber qual é seu dom particular; e neste<br />

sentido não <strong>de</strong>ve fazer algo que não se sinta capacitada para fazer; pois<br />

nem todos são chamados para o mesmo estado. Conseqüentemente,<br />

ele realça quem po<strong>de</strong> abster-se do matrimônio, e que seu objetivo era<br />

abster-se <strong>de</strong>le. Em contrapartida, ele aconselha aos que vão se casar e<br />

qual é a genuína base do matrimônio.<br />

No oitavo capítulo, ele os proíbe <strong>de</strong> se envolverem com os adoradores<br />

<strong>de</strong> ídolos e seus sacrifícios impuros, ou <strong>de</strong> praticarem alguma<br />

coisa que <strong>de</strong> alguma forma pu<strong>de</strong>sse causar injúria a alguém com<br />

consciência fraca. Eles se escusavam sob o pretexto <strong>de</strong> que quando<br />

se associavam aos adoradores idólatras, jamais o faziam com idéias<br />

errôneas em suas mentes, visto que em seus próprios corações reconheciam<br />

um só Deus, o qual, naturalmente, os fazia olhar para os<br />

ídolos como coisas indignas <strong>de</strong> fabricação humana. Paulo <strong>de</strong>sfaz tal<br />

escusa com base no fato <strong>de</strong> que cada um <strong>de</strong> nós <strong>de</strong>ve preocupar-se<br />

com seus irmãos, e, por outro lado, havia muitas pessoas fracas, cuja<br />

fé seria <strong>de</strong>struída por tal insincerida<strong>de</strong>.<br />

No nono capítulo, ele torna patente que não está exigindo <strong>de</strong>les<br />

nada mais do que exige <strong>de</strong> si mesmo, <strong>de</strong> modo a não dar a impressão<br />

<strong>de</strong> estar sendo injusto em impor-lhes um princípio que ele mesmo não<br />

pu<strong>de</strong>sse praticar. Então lembra-os <strong>de</strong> como voluntariamente se refreou<br />

<strong>de</strong> usar da liberda<strong>de</strong> que o Senhor lhe conce<strong>de</strong>ra, para não causar


Análise da Primeira Epístola <strong>de</strong> Paulo aos Coríntios • 29<br />

ofensa a alguém; e como, no tocante a coisas neutras, adotara ele diferentes<br />

atitu<strong>de</strong>s, por assim dizer, a fim <strong>de</strong> acomodar-se a todos os tipos<br />

<strong>de</strong> pessoas. Lembra-os <strong>de</strong>sses dois fatos para que apren<strong>de</strong>ssem por<br />

intermédio <strong>de</strong> seu exemplo, ou, seja, que ninguém <strong>de</strong>ve concentrar-se<br />

<strong>de</strong>masiadamente em si mesmo, <strong>de</strong> modo tal que não se empenhasse<br />

em adaptar-se a seus irmãos para a promoção <strong>de</strong> sua edificação.<br />

Em razão <strong>de</strong> os coríntios estarem muitíssimos satisfeitos consigo<br />

mesmos, como disse no começo, Paulo inicia o décimo capítulo usando<br />

os ju<strong>de</strong>us como exemplo para adverti-los a não enganar-se a si mesmos<br />

com um falso senso <strong>de</strong> segurança. Pois ele mostra que, se estão<br />

envai<strong>de</strong>cidos em razão <strong>de</strong> coisas externas e dos dons <strong>de</strong> Deus, os ju<strong>de</strong>us,<br />

igualmente, possuíam razões semelhantes para ostentar-se. No<br />

entanto, tais coisas provaram ser <strong>de</strong> nenhum préstimo, notadamente<br />

em seu caso, porquanto fizeram mau uso das bênçãos que receberam.<br />

Após <strong>de</strong>spertá-los com tais advertências, Paulo volta rapidamente ao<br />

tema que vinha tratando inicialmente (ou, seja, o culto idólatra, v. 14),<br />

e mostra quão inconsistente é para aqueles que participam da Ceia do<br />

Senhor tomar parte na mesa <strong>de</strong> <strong>de</strong>mônios; pois esta é uma infeliz e intolerável<br />

forma <strong>de</strong> corromper-se. Finalmente, ele conclui que <strong>de</strong>vemos<br />

a<strong>de</strong>quar-nos com outros em todas as nossas ações, <strong>de</strong> modo a não<br />

causar ofensa a ninguém.<br />

No capítulo onze, ele procura expurgar as reuniões <strong>de</strong> culto <strong>de</strong>les<br />

<strong>de</strong> certas práticas nocivas, as quais dificilmente era possível observar<br />

com <strong>de</strong>cência e or<strong>de</strong>m, e ele afirma-lhes que nessas reuniões <strong>de</strong>ve-se<br />

observar gran<strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> e discrição, pois ali nos achamos diante<br />

<strong>de</strong> Deus e dos anjos. Porém, sua crítica principal é dirigida contra a<br />

administração corrupta da Ceia pelos coríntios. Mas, além disso, ele<br />

apresenta o método para corrigir os abusos que solertemente haviam<br />

entrado; a saber, chamá-los <strong>de</strong> volta para nossa instituição original<br />

feita pelo próprio Senhor, como o único padrão seguro e permanente<br />

para a sua correta administração.<br />

Porém, visto que muitos <strong>de</strong>les estavam fazendo mau uso dos dons<br />

espirituais visando a seus próprios objetivos, no capítulo doze ele trata


30 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

do propósito para o qual Deus no-los conce<strong>de</strong>u, e trata igualmente da<br />

forma correta e a<strong>de</strong>quada <strong>de</strong> seu uso, a saber, que para servirmos uns<br />

aos outros, <strong>de</strong>vemos crescer juntos no único corpo <strong>de</strong> Cristo. Ele ilustra<br />

seu ensino esboçando uma analogia com o corpo humano. Embora<br />

o corpo possua membros distintos, todos eles com funções distintas,<br />

todavia existe neles um arranjo tão bem equilibrado e uma inter<strong>de</strong>pendência<br />

[communio] tal que o que tem sido atribuído aos membros<br />

individuais é empregado em benefício <strong>de</strong> todo o corpo. Portanto, ele<br />

conclui que o amor é nosso melhor guia nesta conexão.<br />

E assim ele persiste neste tema, mais extensamente no capítulo treze,<br />

fazendo uma explanação mais ampla <strong>de</strong> seu significado. Porém, ele<br />

se resume nisto: o amor [caritas] <strong>de</strong>ve ser o fator controlador <strong>de</strong>/em<br />

tudo. Ele aproveita a presente oportunida<strong>de</strong> para fazer uma digressão<br />

e cantar os louvores do amor, <strong>de</strong> modo a torná-lo ainda mais persuasivo<br />

e levar as pessoas a <strong>de</strong>sejar possuí-lo, e também a estimular os<br />

coríntios a pô-lo em prática.<br />

No capítulo quatorze, ele começa apresentando <strong>de</strong>talhes mais<br />

precisos sobre como os coríntios tinham fracassado no uso dos dons<br />

espirituais. E já que estavam pondo uma ênfase tão gran<strong>de</strong> na ostentação,<br />

ele os ensina que sua preocupação <strong>de</strong>via ser que em tudo<br />

houvesse edificação. Esta é a razão por que ele prefere a profecia a<br />

todos os <strong>de</strong>mais dons, visto ser ele mais benéfico; enquanto que, para<br />

os coríntios, as línguas eram mais valiosas, simplesmente com base<br />

em sua pompa vazia. Ele ainda estabelece a or<strong>de</strong>m apropriada para se<br />

fazerem as coisas. Ao mesmo tempo, ele con<strong>de</strong>na o erro na exibição<br />

ruidosa <strong>de</strong> línguas estranhas para o benefício <strong>de</strong> ninguém; pois significava<br />

que, enquanto havia progresso no ensino e nas exortações, aos<br />

quais sempre se <strong>de</strong>ve dar priorida<strong>de</strong>, eles estavam sendo prejudicados.<br />

Em seguida, ele proíbe que as mulheres ensinem publicamente,<br />

como sendo algo inconveniente.<br />

No capítulo quinze, ele ataca um dos mais perniciosos erros. Ainda<br />

que dificilmente seja crível que este assalto fosse sobre todos os<br />

coríntios, todavia tal ação granjeou um ponto-chave nas mentes <strong>de</strong>


Análise da Primeira Epístola <strong>de</strong> Paulo aos Coríntios • 31<br />

alguns <strong>de</strong>les, na medida precisa em que o remédio era claramente<br />

necessário. Mas tudo indica que Paulo, propositadamente, retarda a<br />

menção <strong>de</strong>ste assunto para o final da carta; pois se ele tivesse iniciado<br />

com ele, ou se tivesse voltado a ele imediatamente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> começado,<br />

a conclusão <strong>de</strong>les seria que estavam sendo todos con<strong>de</strong>nados. Ele,<br />

pois, mostra que a esperança da ressurreição é tão necessária que,<br />

se ela for extinta, então todo o evangelho cairá em completa ruína.<br />

Tendo estabelecido a esperança pelo uso <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rosos argumentos,<br />

ele prossegue mostrando as bases sobre as quais ela <strong>de</strong>scansa, e como<br />

[a ressurreição] se dará (cf. vv. 35-58). numa palavra, ele realiza uma<br />

plena e cuidadosa discussão <strong>de</strong>ste assunto.<br />

O capítulo <strong>de</strong>zesseis constitui-se <strong>de</strong> duas partes. Na primeira, ele<br />

encoraja os coríntios a prestarem socorro aos irmãos <strong>de</strong> Jerusalém<br />

em suas necessida<strong>de</strong>s. Eles estavam, naquela época, sendo duramente<br />

premidos pela fome e cruelmente tratados nas mãos dos incrédulos.<br />

Os apóstolos haviam dado a Paulo a tarefa <strong>de</strong> animar as igrejas gentílicas<br />

a prover recursos para eles [<strong>de</strong> Jerusalém]. Paulo, pois, os instrui<br />

a pôr <strong>de</strong> lado o que gostariam <strong>de</strong> dar, e assim pu<strong>de</strong>ssem enviar a Jerusalém<br />

imediatamente [porém, veja-se 16.3].<br />

Ele traz a carta à sua conclusão com uma exortação cordial e com<br />

saudações <strong>de</strong> alegria.<br />

Po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>duzir daqui, como disse no início, que esta carta está<br />

saturada do mais prestimoso ensino, pois ela contém várias discussões<br />

<strong>de</strong> um bom número <strong>de</strong> temas gloriosos.


Capítulo 1<br />

1. Paulo, chamado para ser apóstolo <strong>de</strong><br />

Jesus Cristo pela vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, e<br />

Sóstenes, nosso irmão,<br />

2. à igreja <strong>de</strong> Deus que está em Corinto,<br />

aos que são santificados em Cristo<br />

Jesus, chamados para serem santos,<br />

com todos os que em todos os lugares<br />

invocam o nome <strong>de</strong> nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, Senhor <strong>de</strong>les e nosso:<br />

3. graça seja a vós, e paz da parte <strong>de</strong><br />

Deus e do Senhor Jesus Cristo.<br />

1. Paulus, vocatus apostolus Jesu<br />

Christ per voluntatem Dei, et Sosthenes<br />

frater,<br />

2. Ecclesiæ Dei quæ est Corinthi, sanctificatis<br />

in Christo Jesu, vocatis<br />

sanctis, una cum omnibus qui invocant<br />

nomen Domini nostri Jesu<br />

Christi in quovis loco tam sui quam<br />

nostri: 1<br />

3. Gratia vobis et pax a Deo Patre nostro,<br />

et Domino Jesu Christi.<br />

1. Paulo, chamado para ser apóstolo. Dessa forma Paulo proce<strong>de</strong><br />

em quase todas as introduções a suas Epístolas com vistas a garantir<br />

autorida<strong>de</strong> e aceitação para sua doutrina. Em primeiro lugar ele se<br />

assegura da condição que lhe fora <strong>de</strong>signada por Deus, <strong>de</strong> ser apóstolo<br />

<strong>de</strong> Cristo e enviado por Deus; em segundo lugar ele testifica <strong>de</strong><br />

sua afeição para com todos aqueles a quem escreve. Cremos muito<br />

mais prontamente em alguém que consi<strong>de</strong>ramos estar genuinamente<br />

afeiçoado para conosco e que fielmente promove nosso bem-estar.<br />

Portanto, nesta saudação ele reivindica autorida<strong>de</strong> para si ao falar <strong>de</strong><br />

si mesmo como apóstolo <strong>de</strong> Cristo, e <strong>de</strong>veras chamado por Deus, ou,<br />

seja, separado pela vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus.<br />

Ora, duas coisas são requeridas daquele que <strong>de</strong>ve ser ouvido na<br />

Igreja, e que vai ocupar a ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> mestre; pois o mesmo <strong>de</strong>ve ser<br />

1 “Le leur et le nostre”, ou “le Seigneur (di-ie) et <strong>de</strong> eux et <strong>de</strong> nous.” – “Tanto<br />

<strong>de</strong>les, quanto nosso”, ou, “o Senhor (digo) tanto <strong>de</strong>les, quanto nosso.”


34 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

chamado por Deus para esse ofício e <strong>de</strong>ve ser fiel no cumprimento <strong>de</strong><br />

seus <strong>de</strong>veres. Paulo aqui alega que ambas se aplicam a ele. Pois o título<br />

apóstolo implica que os atos conscientemente individuais por parte<br />

<strong>de</strong> um embaixador <strong>de</strong> Cristo [2Co 5.19], e que proclama a pura doutrina<br />

do evangelho. Mas para que ninguém assuma para si esta honra<br />

sem ser chamado para a mesma, ele acrescenta que não se precipitou<br />

temerariamente para ela, mas que fora <strong>de</strong>signado 2 por Deus para tal<br />

incumbência.<br />

Aprendamos, pois, a levar em conta ambos esses fatores quando<br />

quisermos saber a quem <strong>de</strong>vamos consi<strong>de</strong>rar como ministro <strong>de</strong><br />

Cristo: que o mesmo seja chamado e seja fiel ao cumprimento <strong>de</strong> seus<br />

<strong>de</strong>veres. Visto que ninguém po<strong>de</strong>, por direito, assumir para si a <strong>de</strong>signação<br />

e condição <strong>de</strong> ministro, a não ser que o mesmo seja chamado,<br />

assim não é suficiente que uma pessoa seja chamada, se também não<br />

cumprir os <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> seu ofício. Pois o Senhor não escolhe ministros<br />

para que sejam ídolos mudos, nem para que exerçam tirania sob o pretexto<br />

<strong>de</strong> sua vocação, nem para que tomem seus próprios caprichos<br />

por sua lei. Ao contrário, Deus ao mesmo tempo estabelece que tipo<br />

<strong>de</strong> homens <strong>de</strong>vam ser eles, e os põe sob suas leis; em suma, ele os escolhe<br />

para o ministério; ou, em outros termos, para que, em primeiro<br />

lugar, não sejam ociosos; e, em segundo lugar, para que se mantenham<br />

<strong>de</strong>ntro dos limites <strong>de</strong> seu ofício. Portanto, visto que o apostolado <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />

da vocação [divina], se alguém <strong>de</strong>seja ser reconhecido como um<br />

apóstolo, então que prove que o é <strong>de</strong> fato e <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>; não só isso,<br />

mas que tudo faça para que os homens confiem nele e dêem atenção a<br />

sua doutrina. Pois já que Paulo conta com essas base para estabelecer<br />

sua autorida<strong>de</strong>, pior que a insolência seria a conduta do homem que<br />

quisesse assumir tal posição sem comprovação!<br />

Entretanto, é preciso observar que não basta que alguém reivindique<br />

a posse <strong>de</strong> um título <strong>de</strong> alguma vocação para o ofício, mas<br />

que também seja fiel no cumprimento <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>veres, a menos que<br />

2 “Constitué, ordonné, et establi.” – “Designado, or<strong>de</strong>nado e estabelecido.”


Capítulo 1 • 35<br />

realmente comprove ambas [as alegações]. Pois amiú<strong>de</strong> suce<strong>de</strong> que<br />

aqueles que mais se vangloriam <strong>de</strong> seus títulos são precisamente pessoas<br />

que na verda<strong>de</strong> nada possuem; como, por exemplo, os falsos<br />

profetas da antigüida<strong>de</strong> que reivindicavam com gran<strong>de</strong> arrogância que<br />

haviam sido enviados pelo Senhor. E hoje, que outra coisa fazem os<br />

romanistas senão gran<strong>de</strong> bulha sobre a “or<strong>de</strong>nação divina, a sucessão<br />

inviolavelmente sacra provinda dos próprios apóstolos”, 3 enquanto<br />

que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tudo, parece serem eles completamente <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong><br />

todas as coisas sobre as quais tanto se exaltam? Aqui, pois, o que se<br />

requer não é tanto <strong>de</strong> vanglória, mas <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>. Ora, visto ser comum,<br />

para o bom e para o mau, assumir o título, <strong>de</strong>vemos fazer um<br />

teste para que se <strong>de</strong>scubra quem <strong>de</strong> fato po<strong>de</strong> e quem não po<strong>de</strong> ter o<br />

direito ao título apóstolo. Quanto a Paulo, Deus atestou sua vocação<br />

por meio <strong>de</strong> muitas revelações e então a confirmou por meio <strong>de</strong> milagres.<br />

A fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> tinha <strong>de</strong> ser avaliada da seguinte forma: se ele estava<br />

ou não proclamando a pura doutrina <strong>de</strong> Cristo. Quanto à dupla vocação,<br />

a <strong>de</strong> Deus e a da Igreja, vejam-se minhas Institutas (4.3.II).<br />

Apóstolo. Ainda que este título, <strong>de</strong> acordo com sua etimologia,<br />

tenha um sentido geral, e às vezes seja empregado para <strong>de</strong>notar todos<br />

os ministros 4 indistintamente, não obstante pertence, como uma<br />

<strong>de</strong>signação particular, aos que eram separados pela <strong>de</strong>signação do<br />

senhor com o fim <strong>de</strong> publicar o evangelho ao mundo inteiro. Mas era<br />

3 “Et aujour d’huy, qu’est ce qu’entonnent à plene bouche les Romanisques,<br />

sinon ces grous mots, Ordination <strong>de</strong> Dieu, La saint et sacrée sucession <strong>de</strong>puis<br />

le temps mesme <strong>de</strong>s Apostres.” – “E, em nossos dias, o que os romanistas<br />

gritam com bocas escancaradas senão aqueles gran<strong>de</strong>s temas: Or<strong>de</strong>nação <strong>de</strong><br />

Deus – A santa e sacra sucessão dos apóstolos até nossos dias?”<br />

4 Αποστολος (um apóstolo), <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong> αποστελλειν (enviar), significa literalmente<br />

mensageiro. O termo é empregado pelos escritores clássicos para<br />

<strong>de</strong>notar o comandante <strong>de</strong> uma expedição, ou um <strong>de</strong>legado ou embaixador.<br />

(Veja-se Heródoto, v.38.) No Novo Testamento, ele é em vários casos empregado<br />

em um sentido geral para <strong>de</strong>notar um mensageiro. [Veja Lc 11.49;<br />

Jo 13.16; Fp 5.38.] Em um caso é aplicado a Cristo mesmo (Hb 3.1). Mais<br />

freqüentemente, contudo, é aplicado aos mensageiros extraordinários que<br />

eram (para usar as palavras <strong>de</strong> Leigh em seu Critica Sacra) “os legados (a<br />

latere)” <strong>de</strong> Cristo, <strong>de</strong> sua parte.”


36 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

importante que Paulo fosse incluído naquele número, e isso por duas<br />

razões: primeiro, porque muito mais <strong>de</strong>ferência era atribuída a eles do<br />

que aos <strong>de</strong>mais ministros do evangelho; e, segundo, porque unicamente<br />

eles, estritamente falando, possuíam a autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> instruir todas<br />

as igrejas.<br />

Pela vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Enquanto o apóstolo costumava reconhecer<br />

<strong>de</strong> bom grado sua dívida irresgatável a Deus pelas muitas coisas<br />

boas que <strong>de</strong>le recebera, ele agia assim particularmente com referência<br />

a seu apostolado, para que pu<strong>de</strong>sse remover <strong>de</strong> si qualquer aparência<br />

<strong>de</strong> presunção. E não há dúvida <strong>de</strong> que, como a salvação provém<br />

da graça, assim também a vocação para o ofício <strong>de</strong> apóstolo provém<br />

da graça, como preceitua Cristo nestas palavras: “Não fostes vós que<br />

me escolhestes a mim; pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros”<br />

[Jo 15.16]. Entretanto, Paulo ao mesmo tempo indiretamente dá a enten<strong>de</strong>r<br />

que todos quantos tentaram subverter seu apostolado, ou <strong>de</strong><br />

alguma forma fizeram-lhe oposição, estavam conten<strong>de</strong>ndo contra uma<br />

or<strong>de</strong>nação divina. Porquanto Paulo, aqui, não se vangloria futilmente<br />

<strong>de</strong> títulos honoríficos, senão que intencionalmente <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> seu apostolado<br />

<strong>de</strong> suspeitas maliciosas. Porque, visto que sua autorida<strong>de</strong> tinha<br />

<strong>de</strong> ser suficientemente bem estabelecida em relação aos coríntios, não<br />

havia necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se fazer menção da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus especificamente,<br />

caso os homens injustos não estivessem tentando, por meios<br />

indiretos, minar aquela honrosa posição divinamente outorgada por<br />

Deus.<br />

E Sóstenes, nosso irmão. Este é o mesmo Sóstenes que era lí<strong>de</strong>r<br />

judaico da sinagoga em Corinto, e <strong>de</strong> quem Lucas faz menção em Atos<br />

18.17. A razão <strong>de</strong> seu nome ser incluído aqui é para que os coríntios<br />

tivessem uma merecida consi<strong>de</strong>ração por aquele <strong>de</strong> quem conheciam<br />

o ardor e firmeza no evangelho. Portanto, há uma honra ainda maior<br />

para ele, ou, seja, <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>nominado irmão <strong>de</strong> Paulo, do que, como<br />

antes, ser presi<strong>de</strong>nte da sinagoga.<br />

2. À igreja <strong>de</strong> Deus que está em Corinto. Talvez pareça algo estranho<br />

dar Paulo aqui o título Igreja <strong>de</strong> Deus a esse grupo <strong>de</strong> pessoas que


Capítulo 1 • 37<br />

se achava infestado <strong>de</strong> tantas falhas, sobre o qual Satanás exercia uma<br />

influência mais po<strong>de</strong>rosa que a <strong>de</strong> Deus. Certamente seu intuito não<br />

era bajular os coríntios, pois ele fala sob a diretriz do Espírito <strong>de</strong> Deus,<br />

o qual não costuma bajular. Mas, 5 no meio <strong>de</strong> tanta vileza, que aparência<br />

<strong>de</strong> igreja é mais apresentada? Minha resposta é como segue: Visto<br />

que o Senhor dissera: “Não temas, eu tenho muitas pessoas nesta cida<strong>de</strong>”<br />

[At 18.9], mantendo esta promessa em sua mente, ele conferiu<br />

a poucas pessoas piedosas a gran<strong>de</strong> honra <strong>de</strong> reconhecê-las como<br />

igreja no meio <strong>de</strong> uma vasta multidão <strong>de</strong> pessoas ímpias. Demais, a<br />

<strong>de</strong>speito <strong>de</strong> que muitos vícios tinham solertemente se introduzido,<br />

bem como várias corrupções tanto na doutrina quanto na conduta,<br />

alguns emblemas da genuína Igreja permaneciam em evidência. Entretanto,<br />

<strong>de</strong>vemos prestar muita atenção a esta passagem, para que neste<br />

mundo não esperemos existir uma igreja sem uma mancha ou mácula,<br />

nem precipitadamente neguemos este título a alguma socieda<strong>de</strong> na<br />

qual nem tudo satisfaça nossos padrões ou aspirações. Porquanto é<br />

uma perigosa tentação imaginar alguém que não existe igreja on<strong>de</strong> a<br />

perfeita pureza se acha ausente. Pois a pessoa que se sente dominada<br />

por tal noção, necessariamente <strong>de</strong>ve separar-se <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>mais e<br />

olhar para si como o único santo no mundo, ou <strong>de</strong>ve fundar sua própria<br />

seita em socieda<strong>de</strong> com uns poucos hipócritas.<br />

Sobre que base, pois, tinha Paulo reconhecido uma igreja em<br />

Corinto? Sem dúvida foi porque viu em seu seio a doutrina do evangelho,<br />

o batismo e a Ceia do Senhor, marcas pelas quais uma igreja<br />

<strong>de</strong>ve ser julgada. Pois, embora alguns começassem a nutrir dúvidas<br />

acerca da ressurreição, contudo tal erro não permeou todo o corpo,<br />

e assim o nome e a realida<strong>de</strong> da Igreja não são por isso afetados. Ainda<br />

que alguns <strong>de</strong>feitos já tivessem surgido na administração da Ceia,<br />

a disciplina e a conduta já tivessem <strong>de</strong>clinado tanto, a simplicida<strong>de</strong><br />

do evangelho já estivesse <strong>de</strong>negrida e já tivessem se entregado à ostentação<br />

e à pompa, e em <strong>de</strong>corrência da ambição <strong>de</strong> seus ministros<br />

5 “Mais (dira quelqu’un).” – “Mas (alguém diria).”


38 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

já estivessem fragmentados em vários partidos, não obstante, em virtu<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> haverem retido a doutrina fundamental – o Deus único era<br />

adorado por eles e invocado no nome <strong>de</strong> Cristo –, <strong>de</strong>positavam em<br />

Cristo sua <strong>de</strong>pendência para a salvação e sustentavam um ministério<br />

que não estava <strong>de</strong> todo corrompido. Por essas razões a Igreja continuava<br />

ainda em existência entre eles. Conseqüentemente, on<strong>de</strong> quer que<br />

o culto divino tenha sido preservado incorrupto, e aquela doutrina<br />

fundamental <strong>de</strong> que já falei ainda persiste ali, po<strong>de</strong>mos sem hesitação<br />

concluir que nesse caso a Igreja existe.<br />

Santificados em Cristo Jesus, chamados para serem santos.<br />

Ele faz menção das bênçãos com as quais Deus os adornara, como à<br />

guisa <strong>de</strong> reprimenda, porque, na prática, nem sempre se mostravam<br />

agra<strong>de</strong>cidos. Pois o que po<strong>de</strong> ser mais <strong>de</strong>primente do que rejeitar um<br />

apóstolo, por cujo ministério haviam sido separados como porção peculiar<br />

<strong>de</strong> Deus?<br />

Entrementes, aqui ele mostra, por estes dois qualificativos, que<br />

estão incluídos entre os verda<strong>de</strong>iros membros da Igreja, e que por<br />

direito pertencem a sua comunhão. Pois se o leitor não se revelar<br />

como cristão pela santida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, então certamente não estará<br />

capacitado a escon<strong>de</strong>r-se na Igreja e ainda não po<strong>de</strong> pertencer-lhe. 6<br />

Portanto, todos quantos <strong>de</strong>sejam ser reconhecidos entre o povo <strong>de</strong><br />

Deus <strong>de</strong>vem ser santificados em Cristo. Demais, a palavra santificação<br />

<strong>de</strong>nota separação. Isso se dá conosco quando somos regenerados pelo<br />

Espírito para novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, para servirmos, não ao mundo, mas a<br />

Deus. Porque, enquanto por natureza somos impuros, o Espírito nos<br />

consagra a Deus. Porque isso realmente se concretiza quando somos<br />

enxertados no corpo <strong>de</strong> Cristo, fora do qual nada mais há senão corrupção,<br />

e visto que o Espírito nos diz que só somos santificados em<br />

Cristo, quando, através <strong>de</strong>le, a<strong>de</strong>rimos a Deus, e nele somos feitos “novas<br />

criações” (2Co 5.17).<br />

6 “Tu te pourras bien entretenir en l’Eglise tellement quellement, estant meslé<br />

parmi les autres.” – “Po<strong>de</strong>is muito bem ter uma permanência na Igreja, <strong>de</strong><br />

algum modo, estando entremeados entre outros.”


Capítulo 1 • 39<br />

O que segue – chamados para serem santos – o entendo no seguinte<br />

sentido: “Assim fostes chamados em santida<strong>de</strong>.” Mas isso<br />

po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado <strong>de</strong> duas formas. Primeiro, po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r<br />

Paulo como que dizendo que a causa da santificação é a vocação<br />

divina, porque Deus mesmo os escolheu; em outras palavras, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sua graça, e não da excelência do homem. O significado<br />

alternativo é o seguinte: é consistente com nossa profissão [<strong>de</strong> fé]<br />

que sejamos santos, porque esse é o <strong>de</strong>sígnio da doutrina do evangelho.<br />

Ainda que o primeiro significado pareça a<strong>de</strong>quar-se melhor<br />

ao contexto, faz pouca diferença <strong>de</strong> que forma o leitor o consi<strong>de</strong>re,<br />

quando os dois significados estão em estreita harmonia entre si, pois<br />

nossa santida<strong>de</strong> emana da fonte da eleição divina, e é também a meta<br />

<strong>de</strong> nossa vocação.<br />

Portanto, <strong>de</strong>vemos sustentar criteriosamente que <strong>de</strong> modo algum<br />

é por nossos próprios esforços que somos santos, mas é pela<br />

vocação divina; porque é tão-somente Deus que santifica aos que por<br />

natureza eram impuros. E certamente creio que, mui provavelmente,<br />

quando Paulo aponta, como se o fizesse com seu <strong>de</strong>do, para a fonte da<br />

santida<strong>de</strong>, amplamente aberta, é para subir ainda mais, ou, seja, para<br />

o gracioso beneplácito <strong>de</strong> Deus mesmo, pelo qual também a missão<br />

<strong>de</strong> Cristo quanto a nós se originou. Além disso, assim como somos<br />

chamados por meio do evangelho para a vida irrepreensível [Fp 2.15],<br />

é necessário que isso se torne uma realida<strong>de</strong> em nós, a fim <strong>de</strong> que<br />

nossa vocação venha a ser eficaz. Mas alguém objetará dizendo que<br />

tal coisa não era comum entre os coríntios. Minha resposta é que os<br />

pusilânimes não se acham inclusos neste número, porque aqui Deus<br />

simplesmente começa sua obra em nós, e paulatinamente a leva à consumação.<br />

Respondo ainda que Paulo <strong>de</strong>liberadamente olha antes para<br />

a graça <strong>de</strong> Deus em ação neles, e não para os próprios <strong>de</strong>feitos <strong>de</strong>les,<br />

<strong>de</strong> modo a fazê-los sentir-se envergonhados <strong>de</strong> sua negligência em não<br />

fazerem o que lhes foi requerido.<br />

Com todos os que o invocam. Este é outro qualificativo também<br />

comum a todos os crentes. Porque, visto que invocar o nome <strong>de</strong> Deus


40 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

é um dos principais exercícios da fé, portanto é por este <strong>de</strong>ver que os<br />

fiéis <strong>de</strong>vem ser principalmente julgados. Note-se também que ele diz<br />

que Cristo é invocado pelos fiéis; e é assim que sua divinda<strong>de</strong> é reconhecida,<br />

porquanto a invocação é uma das primeiras evidências do<br />

culto divino. Daí, a invocação, neste contexto, à guisa <strong>de</strong> sinédoque 7<br />

(κατὰ συνεκδοχήν), significa uma plena profissão <strong>de</strong> fé em Cristo, assim<br />

como em muitas passagens da Escritura ela é geralmente tomada para<br />

abranger todo o culto divino.<br />

Alguns o explicam como sendo só a profissão [<strong>de</strong> fé], mas isso<br />

parece pobre <strong>de</strong>mais e está em <strong>de</strong>sacordo com sua aceitação usual na<br />

Escritura. Ora, tenho posto estas pequenas palavras nostri (nosso) e<br />

sui (<strong>de</strong>les) no genitivo, enten<strong>de</strong>ndo-as como uma referência a Cristo.<br />

Enquanto outros, tomando-as como uma referência a lugar, traduzem-<br />

-nas no ablativo. Ao agir assim, tenho seguido a Crisóstomo. Esta<br />

tradução, provavelmente, parecerá abrupta, porque as palavras em<br />

todo lugar aparecem no centro, porém não há nada <strong>de</strong> abrupto nesta<br />

construção no grego paulino. Minha razão para preferir esta tradução<br />

à da Vulgata é que se o leitor a explicar com uma referência a lugar,<br />

a frase adicional não só será <strong>de</strong>snecessária, mas também irrelevante.<br />

Pois a que lugar Paulo chamaria seu? Eles o consi<strong>de</strong>ram como a indicar<br />

a Judéia; porém, em que áreas? Então, a que lugar Paulo estaria<br />

se referindo como sendo habitado por outros? Afirmam que significa<br />

todos os outros lugares do mundo; mas isso também não é bem<br />

apropriado. Em contrapartida, o significado que tenho atribuído é bem<br />

mais apropriado; porque, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> fazer menção a “os que em todo<br />

lugar invocam o nome <strong>de</strong> Cristo, nosso Senhor”, ele adiciona: “<strong>de</strong>les<br />

e nosso”, a fim <strong>de</strong> tornar plenamente claro que Cristo é sem a menor<br />

sombra <strong>de</strong> dúvida o Senhor comum <strong>de</strong> todos os que o invocam, sejam<br />

eles ju<strong>de</strong>us ou gentios.<br />

Em todo lugar. Paulo adicionou isso contrariando sua prática<br />

usual, pois em suas outras cartas ele menciona, na saudação, somente<br />

7 Sinédoque, figura <strong>de</strong> linguagem por meio da qual a parte é tomada pelo todo.


Capítulo 1 • 41<br />

aqueles a quem ele en<strong>de</strong>reça as cartas. Entretanto, tudo indica que ele<br />

<strong>de</strong>sejava antecipar as calúnias <strong>de</strong> certos ímpios, como a impedi-los<br />

<strong>de</strong> alegar que ele estava adotando uma atitu<strong>de</strong> extremada e forte em<br />

relação aos coríntios, reivindicando para si uma autorida<strong>de</strong> que não<br />

ousaria assumir em relação a outras igrejas. Logo se fará evi<strong>de</strong>nte que<br />

ele tinha sido também injustamente cumulado com censura <strong>de</strong> que estava<br />

a construir ‘ninhos’ 8 para si mesmo, como se quisesse fugir da luz,<br />

ou clan<strong>de</strong>stinamente se excluísse do restante dos apóstolos. Portanto,<br />

a fim <strong>de</strong> expressamente rebater tal mentira, ele intencionalmente se<br />

põe num posto <strong>de</strong> comando, don<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse tornar sua voz ouvida<br />

forte e difusamente.<br />

3. Graça seja a vós e paz. Os leitores po<strong>de</strong>rão encontrar uma<br />

exposição <strong>de</strong>sta oração no início <strong>de</strong> meu comentário à Epístola aos<br />

Romanos [Rm 1.7]. Porquanto não gostaria <strong>de</strong> sobrecarregá-los com<br />

repetições.<br />

4. Dou sempre graças a meu Deus a respeito<br />

<strong>de</strong> vós, pela graça <strong>de</strong> Deus que<br />

vos foi concedida em Cristo Jesus;<br />

5. que em todas as coisas fostes enriquecidos<br />

por ele, em toda palavra e<br />

em todo conhecimento;<br />

6. assim como o testemunho <strong>de</strong> Cristo<br />

foi confirmado em vós;<br />

7. <strong>de</strong> maneira que não vos venha faltar<br />

nenhum dom; esperando pela vinda<br />

<strong>de</strong> nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

8. que também vos confirmará até o<br />

fim, para ser<strong>de</strong>s irrepreensíveis no<br />

dia <strong>de</strong> nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

9. Deus é fiel, através <strong>de</strong> quem fostes<br />

chamados à comunhão <strong>de</strong> seu Filho<br />

Jesus Cristo, nosso Senhor.<br />

4. Gratias ago Deo meo semper <strong>de</strong> vobis<br />

propter gratiam Dei, quæ data<br />

vobis est in Christo Jesu.<br />

5. Quia in omnibus ditati estis in ipso,<br />

in omni sermone, 9 et in omni cognitione.<br />

6. Quemadmodum testimonium Christi<br />

confirmatum fuit in vobis.<br />

7. Ut nullo in dono <strong>de</strong>stituamini, exspectantes<br />

revelationem Domini<br />

nostri Jesu Christi.<br />

8. Qui etiam confirmabit vos usque in<br />

finem inculpatos, in diem Domini<br />

nostri Jesu Christi.<br />

9. Fi<strong>de</strong>lis Deus, per quem vocati estis<br />

in communionem Filii ipsius Jesu<br />

Christi Domini nostri.<br />

8 “Nids et cachettes.” – “Ninhos e escon<strong>de</strong>rijos.”<br />

9 Parole’, ou ‘éloquence’. – ‘Enunciação’ ou ‘eloqüência’.


42 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

4. Dou sempre graças a meu Deus. Após mostrar, na saudação,<br />

que sua autorida<strong>de</strong> repousa sobre a função que lhe fora <strong>de</strong>signada, Paulo<br />

agora busca granjear a aceitação para sua doutrina, expressando seu<br />

afeto por eles. Agindo assim, <strong>de</strong> antemão abranda suas mentes, para<br />

que pu<strong>de</strong>ssem ouvir pacientemente sua reprovação. 10 Ele <strong>de</strong>veras os<br />

persua<strong>de</strong> a confiar em seu amor: primeiro, regozijando-se com as bênçãos<br />

com que foram contemplados, como se ele mesmo as recebesse;<br />

e, em segundo lugar, ao <strong>de</strong>clarar que seu coração lhes era favorável e<br />

que nutria por eles boa esperança quanto ao futuro. Além disso, ele caracteriza<br />

suas congratulações, <strong>de</strong> modo que os coríntios não tivessem<br />

nenhuma ocasião para vangloriar-se, visto que ele aponta para Deus<br />

como a fonte don<strong>de</strong> emana todas as bênçãos que haviam recebido, todo<br />

o louvor <strong>de</strong>ve ser-lhe dirigido, já que tudo era fruto <strong>de</strong> sua graça. Em<br />

outros termos, Paulo está dizendo: “Congratulo-me convosco com toda<br />

sincerida<strong>de</strong>, porém <strong>de</strong> modo a atribuir louvor somente a Deus.”<br />

Já expliquei, em meu comentário à Epístola aos Romanos [Rm<br />

1.8], o que Paulo quis dizer quando <strong>de</strong>nomina Deus <strong>de</strong> meu Deus. Além<br />

do mais, como Paulo não pretendia lisonjear os coríntios, por isso<br />

não os enaltece por motivos falsos. Porque, embora nem todos merecessem<br />

tal louvor, e embora tivessem corrompido muitos dos dons<br />

excelentes <strong>de</strong> Deus por meio <strong>de</strong> ambição, contudo não podia ignorar<br />

os próprios dons <strong>de</strong>les, como se fossem <strong>de</strong> pouco valor, os quais, em<br />

si mesmos, mereciam o mais elevado apreço. Finalmente, porque os<br />

dons do Espírito são concedidos para a edificação <strong>de</strong> todos, ele tinha<br />

boas razões para consi<strong>de</strong>rá-los como dons comuns a toda a Igreja. 11<br />

Vejamos, porém, o que Paulo recomenda neles.<br />

Por conta da graça etc. Graça é um termo geral, porque ela abrange<br />

toda espécie <strong>de</strong> bênçãos, as quais eles tinham obtido por meio do<br />

evangelho. Pois a palavra graça significa, aqui, não o favor <strong>de</strong> Deus,<br />

10 O mesmo ponto <strong>de</strong> vista do <strong>de</strong>sígnio <strong>de</strong> Paulo aqui é apresentado por Teodoreto: “Visto<br />

que ele está para censurá-los, suaviza <strong>de</strong> antemão o órgão <strong>de</strong> audição para que o remédio<br />

a ser aplicado seja recebido o mais favoravelmente possível.”<br />

11 “Que chacun ha en son endroit.” – “Que cada um tem severamente.”


Capítulo 1 • 43<br />

mas, à guisa <strong>de</strong> metonímia 12 (μετωνυμικω̑ς), os dons que graciosamente<br />

Deus <strong>de</strong>rramou sobre os homens. Portanto, Paulo prossegue<br />

especificando os casos particulares quando diz: “em tudo fostes enriquecidos”,<br />

e explica tudo como sendo a doutrina e Palavra <strong>de</strong> Deus.<br />

Pois os cristãos <strong>de</strong>vem ser plenificados com essas riquezas, as quais<br />

<strong>de</strong>vem também receber <strong>de</strong> nós as mais elevadas honras e o mais elevado<br />

apreço, à medida que forem sendo <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>radas pelo povo<br />

como um todo.<br />

Preferi conservar o termo in ipso (nele) em vez <strong>de</strong> mudá-lo para<br />

per ipsum (por ele), porque, em minha opinião, é mais expressivo e vigoroso.<br />

Pois somos enriquecidos em Cristo porque somos membros <strong>de</strong><br />

seu corpo e fomos enxertados nele; e ainda mais, visto que fomos feitos<br />

um com ele, ele compartilha conosco tudo quanto recebeu do Pai.<br />

6. Assim como o testemunho <strong>de</strong> Cristo foi confirmado em vós. A<br />

tradução <strong>de</strong> Erasmo é diferente: “por meio <strong>de</strong>ssas coisas, o testemunho<br />

<strong>de</strong> Cristo foi confirmado entre vós”, significando: pelo conhecimento<br />

e pela Palavra. As palavras têm em si uma ressonância distinta, e<br />

se não forem torcidas, o significado é simplesmente este: Deus selou<br />

a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu evangelho entre os coríntios, com o propósito <strong>de</strong><br />

confirmá-la. Ora, isso po<strong>de</strong> ser feito <strong>de</strong> duas maneiras – ou por meio<br />

dos milagres, ou por meio do testemunho interno do Espírito Santo.<br />

Crisóstomo parece tê-lo entendido como uma referência aos milagres,<br />

porém consi<strong>de</strong>ro-o em um sentido mais amplo. Antes <strong>de</strong> tudo, é certo<br />

que o evangelho <strong>de</strong>ve ser propriamente confirmado, em nossa experiência<br />

pessoal, por meio da fé, porque, tão logo é ele recebido por nós,<br />

pela fé, então realmente “por sua vez certifica que Deus é verda<strong>de</strong>iro”<br />

[Jo 3.33]. E embora eu admita que os milagres <strong>de</strong>vam ser <strong>de</strong> valor<br />

para sua confirmação, não obstante uma origem mais elevada <strong>de</strong>ve<br />

ser buscada, a saber: que o Espírito <strong>de</strong> Deus é o penhor [arrha] e selo.<br />

Por isso, explico estas palavras da seguinte maneira: que os coríntios<br />

exceliam em conhecimento, porquanto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio Deus fez seu<br />

12 Figura <strong>de</strong> linguagem por meio da qual um termo é expresso por outro – a causa pelo<br />

efeito, o efeito pela causa etc.


44 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

evangelho produzir frutos neles. Demais, ele não fez isso <strong>de</strong> uma única<br />

forma, mas o fez pela operação interna do Espírito e pela excelência<br />

e varieda<strong>de</strong> dos dons, pelos milagres e por todas as <strong>de</strong>mais coisas<br />

que cooperam. Ele chama o evangelho <strong>de</strong> o testemunho <strong>de</strong> Cristo ou<br />

concernente a Cristo, porque toda a soma <strong>de</strong>le é <strong>de</strong>svendar Cristo a<br />

nós, “em quem estão ocultos todos os tesouros do conhecimento” [Cl<br />

2.3]. Se alguém prefere consi<strong>de</strong>rá-lo num sentido ativo, em razão <strong>de</strong><br />

o autor primário do evangelho ser Cristo, <strong>de</strong> modo que os apóstolos<br />

nada mais são senão testemunhas secundárias, ou menos importantes,<br />

não discordarei <strong>de</strong>le. Contudo, para mim a primeira explicação é<br />

mais satisfatória. Admito que, logo <strong>de</strong>pois [cf. 2.1], “o testemunho <strong>de</strong><br />

Deus” <strong>de</strong>ve, além <strong>de</strong> toda controvérsia, ser consi<strong>de</strong>rado num sentido<br />

ativo, porquanto o sentido passivo seria ina<strong>de</strong>quado. Entretanto, aqui<br />

o caso é diferente; outrossim, esta passagem corrobora minha opinião,<br />

porque imediatamente ele adiciona seu significado: nada saber<br />

senão Cristo [cf. 2.2].<br />

7. De maneira que não vos venha faltar nenhum dom<br />

Ὑστερεισθαι significa estar em falta <strong>de</strong> algo que você realmente necessita.<br />

Portanto, Paulo quer dizer que os coríntios eram ricos em<br />

todos os dons <strong>de</strong> Deus, e <strong>de</strong>veras não careciam <strong>de</strong> nada. É como se<br />

dissesse: “O Senhor não só vos consi<strong>de</strong>rou dignos da luz do evangelho,<br />

mas também vos proveu ricamente <strong>de</strong> todas as graças que<br />

auxiliam os crentes a fazerem progresso no caminho da salvação.”<br />

Pois ele intitula dons [charismata] aquelas graças espirituais que<br />

são, por assim dizer, os meios <strong>de</strong> salvação para os santos. Em contrapartida,<br />

po<strong>de</strong>-se objetar que os crentes nunca são tão ricos que<br />

não se sintam carentes, em certa extensão, <strong>de</strong> graças, <strong>de</strong> modo que<br />

sempre se vêem forçados a ter “fome e se<strong>de</strong>” [Mt 5.6]. Pois, quem<br />

não está longe da perfeição? Minha resposta é a seguinte: visto que<br />

são suficientemente providos dos dons necessários, e sempre que<br />

estão necessitados, o Senhor vem oportunamente satisfazê-los,<br />

Paulo, pois, atribui-lhes tais riquezas. Pela mesma razão, ele acrescenta:<br />

“aguardando a manifestação”, significando que ele não está


Capítulo 1 • 45<br />

pensando neles como quem possui tais riquezas, nada restando<br />

para <strong>de</strong>sejar-se, senão que possuem somente o que lhes bastará<br />

até que tenham alcançado a perfeição. Entendo o gerúndio, aguardando,<br />

neste sentido: “durante o tempo em que estais esperando.”<br />

Assim, temos o seguinte significado: “Portanto, neste ínterim não<br />

ten<strong>de</strong>s carência <strong>de</strong> nenhum dom, enquanto estiver<strong>de</strong>s aguardando<br />

o dia da perfeita revelação, mediante a qual Cristo, nossa sabedoria,<br />

se fará plenamente manifesto.”<br />

8. Que também vos confirmará. O relativo [que], aqui, não se<br />

aplica a Cristo, e, sim, a Deus, mesmo quando o nome <strong>de</strong> Deus seja o<br />

antece<strong>de</strong>nte mais remoto. Porque o apóstolo prossegue expressando<br />

sua alegria, e como lhes disse previamente o que sentia sobre<br />

eles, portanto agora mostra que nutre esperança quanto ao futuro<br />

<strong>de</strong>les; e isso em parte para fazê-los sentir-se ainda mais certos<br />

<strong>de</strong> sua afeição por eles, e em parte também para exortá-los, por<br />

seu próprio exemplo, a nutrirem a mesma esperança. É como se<br />

dissesse: “Ainda que estejais num estado <strong>de</strong> alarma por estar<strong>de</strong>s<br />

esperando a salvação que ainda está por vir, não obstante <strong>de</strong>veis<br />

estar certos <strong>de</strong> que o Senhor jamais vos abandonará, mas que, ao<br />

contrário, completará o que começou em vós, <strong>de</strong> modo que, quando<br />

esse dia chegar, quando todos nós compareceremos diante do<br />

tribunal <strong>de</strong> Cristo [2Co 5.10], possamos, pois, ser encontrados irrepreensíveis.”<br />

Irrepreensíveis. Paulo ensina, em suas Epístolas aos Efésios e aos<br />

Colossenses, que o fim <strong>de</strong> nossa vocação é para vivermos <strong>de</strong> maneira<br />

pura e livres <strong>de</strong> mancha na presença <strong>de</strong> Deus [Ef 1.4; Cl 1.22]. Entretanto,<br />

<strong>de</strong>vemos observar que tal pureza não se completará em nós<br />

imediatamente; ao contrário, para nosso próprio bem, <strong>de</strong>vemos continuar<br />

exercitando a prática diária da penitência, e prosseguir sendo<br />

purificados dos pecados [2Pe 1.9], os quais nos fazem passíveis do<br />

castigo divino, até que, finalmente, sejamos <strong>de</strong>spidos, juntamente com<br />

“o corpo <strong>de</strong> morte” [Rm 7.14], <strong>de</strong> toda a impureza do pecado. Acerca<br />

do dia do Senhor falaremos no capítulo 4.


46 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

9. Deus é fiel. Quando a Escritura fala <strong>de</strong> Deus como sendo fiel,<br />

com freqüência significa sua perseverança e sua constante uniformida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> caráter [perpetuum temorem], <strong>de</strong> modo que tudo o que Deus<br />

começa, ele sempre leva a sua consumação. 13 Paulo mesmo diz que “a<br />

vocação <strong>de</strong> Deus é irrevogável” [Rm 11.29]. Portanto, em minha opinião,<br />

o que esta passagem significa é que Deus é inabalável em seu<br />

propósito. Sendo este o caso, ele não zomba <strong>de</strong> nós quando nos chama,<br />

mas que cuidará <strong>de</strong> nós para sempre. 14 Conseqüentemente, visto<br />

experimentarmos as bênçãos <strong>de</strong> Deus no passado, tenhamos bom ânimo<br />

e esperemos que ele aja sempre assim no futuro. Paulo, porém,<br />

volve sua atenção para um ponto mais elevado, pois seu argumento é<br />

que os coríntios não po<strong>de</strong>m ser lançados fora, porque uma vez foram<br />

chamados pelo Senhor “à comunhão com Cristo”. Entretanto, a fim<br />

<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>rmos que valor tem este argumento, notemos antes <strong>de</strong><br />

tudo que cada um <strong>de</strong>ve ver em sua própria vocação a evidência <strong>de</strong><br />

sua eleição. Portanto, embora nem sempre alguém possa julgar com a<br />

mesma certeza acerca da eleição <strong>de</strong> uma outra pessoa, todavia po<strong>de</strong>mos<br />

sempre <strong>de</strong>cidir, julgando com base no amor, que tantos quantos<br />

são chamados, é para a salvação que são chamados; eu quero dizer<br />

tanto eficaz quanto frutiferamente. Paulo estava dirigindo estas palavras<br />

a pessoas em quem a Palavra <strong>de</strong> Deus havia formado raízes, e em<br />

quem alguns frutos se <strong>de</strong>spontavam como resultado.<br />

Alguém po<strong>de</strong>ria objetar, dizendo que muitos dos que uma vez receberam<br />

a Palavra, mais tar<strong>de</strong> apostatam. Minha resposta é que só<br />

o Espírito é a fiel e infalível testemunha da eleição <strong>de</strong> cada pessoa, e<br />

que sua perseverança <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse fato. Respon<strong>de</strong>ria ainda que, não<br />

obstante, esse fato não impedia Paulo <strong>de</strong> estar persuadido, no tribunal<br />

do amor, <strong>de</strong> que a vocação dos coríntios seria uma firme e inabalável<br />

13 Calvino provavelmente se refere às seguintes passagens (entre outras): 1 Tessalonicenses<br />

5.24; 2 Tessalonicenses 3.3; Hebreus 10.23.<br />

14 “La vocation donc qu’il fait d’un chacun <strong>de</strong>s siens, n’est point un jeu, et en les appellant il<br />

ne se mocque point, ainsi il entretiendra et pour suyura son œuvre perpetuellement.” – “A<br />

vocação, portanto, que ele faz <strong>de</strong> cada um dos seus não é mera diversão; e ao chamá-los<br />

ele não está a brincar, mas incessantemente manterá e dará curso a sua obra.”


Capítulo 1 • 47<br />

prova, já que ele via entre eles os emblemas do beneplácito paternal <strong>de</strong><br />

Deus. Além disso, tais emblemas <strong>de</strong> forma alguma visavam a produzir<br />

um mero senso <strong>de</strong> segurança carnal; pois as Escrituras com freqüência<br />

nos advertem quanto a nossa real fraqueza, mas simplesmente visa a<br />

confirmar nossa confiança no Senhor. Ora, isso era necessário a fim <strong>de</strong><br />

que suas mentes não se vissem <strong>de</strong>snorteadas ao <strong>de</strong>scobrirem tantas<br />

falhas, como mais adiante ele as poria diante <strong>de</strong> seus olhos. Tudo isto<br />

po<strong>de</strong> ser sumariado da seguinte forma: “Os cristãos sinceros <strong>de</strong>vem<br />

nutrir boas esperanças acerca <strong>de</strong> todos quantos têm tido acesso ao<br />

caminho inconfundível da salvação, e perseveram em seu curso, ainda<br />

que ao mesmo tempo sejam assediados por muitas enfermida<strong>de</strong>s.<br />

Des<strong>de</strong> o tempo em que é iluminado [Hb 10.32] pelo Espírito <strong>de</strong> Deus,<br />

no conhecimento <strong>de</strong> Cristo, cada um <strong>de</strong> nós, na verda<strong>de</strong>, é plenamente<br />

convencido <strong>de</strong> que foi adotado pelo Senhor na herança da vida eterna.<br />

Pois a vocação eficaz <strong>de</strong>ve ser para os crentes a evidência da adoção<br />

divina. Não obstante, nesse ínterim <strong>de</strong>vemos todos nós andar “em temor<br />

e tremor” (Fp 2.12). Farei posterior referência a este assunto no<br />

capítulo 10.<br />

À comunhão. Em vez disso, Erasmo traduziu à participação [consortium].<br />

A Vulgata traz socieda<strong>de</strong> [societatem]. Eu, contudo, preferi<br />

comunhão (communionem), porque expressa melhor a força da palavra<br />

grega κοινωνιας. 15 Porque todo o propósito do evangelho consiste<br />

em que Cristo se fez nosso e somos enxertados em seu corpo. Mas<br />

quando o Pai nos dá Cristo como nossa possessão, também se nos<br />

comunica em Cristo, e por causa disso realmente alcançamos a participação<br />

<strong>de</strong> cada bênção. O argumento <strong>de</strong> Paulo, portanto, é como<br />

segue: Visto que fomos trazidos à comunhão com Cristo através do<br />

evangelho, o qual recebemos pela fé, não há razão para temermos o<br />

15 Calvino, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> falar <strong>de</strong> ser Cristo apresentado por Paulo como “a nós oferecido no<br />

evangelho com toda abundância <strong>de</strong> bênçãos celestiais, com todos seus méritos, toda sua<br />

justiça, sabedoria e graça, sem exceção”, observa: “E o que está implícito pela comunhão<br />

(κοινωνια) <strong>de</strong> Cristo o qual, segundo o mesmo apóstolo [1Co 1.9], nos é oferecido no<br />

evangelho – todos os crentes sabem.”


48 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

risco <strong>de</strong> morte, 16 já que fomos feitos participantes daquele [Hb 3.14]<br />

que ressuscitou dos mortos, o Vitorioso sobre a morte. Em suma,<br />

quando o cristão olha para si mesmo, ele só vê motivo para tremor,<br />

ou, melhor, só vê <strong>de</strong>sespero. Mas pelo fato <strong>de</strong> ter sido chamado à comunhão<br />

com Cristo, ele não <strong>de</strong>ve pensar <strong>de</strong> si mesmo, no tocante à<br />

certeza da salvação, <strong>de</strong> nenhuma outra forma senão como membro <strong>de</strong><br />

Cristo, tornando assim suas todas as bênçãos <strong>de</strong> Cristo. Dessa forma,<br />

ele se assegurará da esperança da perseverança final (como é chamada)<br />

como algo certo, caso ele se consi<strong>de</strong>re membro <strong>de</strong> Cristo, aquele<br />

que não po<strong>de</strong> jamais fracassar.<br />

10. Ora, rogo-vos, irmãos, pelo nome<br />

<strong>de</strong> nosso Senhor Jesus Cristo, que<br />

falem todos a mesma coisa, e que<br />

não haja divisões entre vós, senão<br />

que sejais perfeitamente unidos na<br />

mesma mente e no mesmo parecer.<br />

11. Meus irmãos, me foi anunciado<br />

acerca <strong>de</strong> vós, pelos que são da<br />

casa <strong>de</strong> Cloe, <strong>de</strong> que há contendas<br />

entre vós.<br />

12. Ora, quero dizer com isso que cada<br />

um <strong>de</strong> vós afirma: Eu sou <strong>de</strong> Paulo;<br />

e eu <strong>de</strong> Apolo; e eu <strong>de</strong> Cefas; e eu<br />

<strong>de</strong> Cristo.<br />

13. Cristo está dividido? Foi Paulo crucificado<br />

em favor <strong>de</strong> vós? Ou fostes<br />

batizados em nome <strong>de</strong> Paulo?<br />

10. Observo autem vos, fratres, per<br />

nomen Domini nostri Jesu Christi,<br />

ut i<strong>de</strong>m loquamini omnes, et non<br />

sint inter vos dissidia: sed apte<br />

cohæreatis in una mente et in una<br />

sententia. 17<br />

11. Significatum enim mihi <strong>de</strong> vobis<br />

fuit, fratres mei, ab iis qui sunt<br />

Chloes, quod contentiones sint inter<br />

vos.<br />

12. Dico autem illud, 18 quod unusquisque<br />

vestrum dicat, Ego qui<strong>de</strong>m sum<br />

Pauli, ego autem Apollo, ego autem<br />

Cephæ, ego autem Christi.<br />

13. Divisusne est Christus? numquid<br />

pro vobis crucifixus est Paulus? aut<br />

vos in nomen Pauli baptizati estis?<br />

10. Ora, rogo-vos, irmãos. Até aqui Paulo esteve tratando os coríntios<br />

com mansidão, porquanto sabia o quanto eles eram sensíveis.<br />

16 “La mort et perdition.” – “Morte e perdição.”<br />

17 “Et en une mesme volonte”, ou “et mesme avis”. – “E na mesma disposição”, ou “e no<br />

mesmo critério.”<br />

18 “Et ie di ceci”, ou “Or ce que ie di c’est qu’un chacun.” – “E isto eu digo”, ou “Ora, o que<br />

digo é isto: que cada um.”


Capítulo 1 • 49<br />

Contudo agora, após preparar suas mentes para receberem correção,<br />

agindo como um bom e experiente cirurgião que toca a ferida gentilmente<br />

quando um doloroso medicamento precisa ser aplicado, então<br />

Paulo passa a tratá-los com mais severida<strong>de</strong>. Não obstante, mesmo<br />

aqui ele usa uma boa dose <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>ração, como veremos mais adiante.<br />

Eis a substância do que ele está para dizer: “Minha ar<strong>de</strong>nte esperança<br />

é que o Senhor não vos tenha concedido em vão tantos dons, sem<br />

antes querer conduzir-vos à salvação. Por outro lado, <strong>de</strong>veis também<br />

sofrer aflições para impedir-vos que graças tão excelentes sejam poluídas<br />

por vossos vícios. Portanto, esforçai-vos para que vos concor<strong>de</strong>is<br />

uns com os outros, pois eu tenho boas razões <strong>de</strong> pedir-vos que haja<br />

concordância entre vós, porquanto tenho sido informado <strong>de</strong> que a<br />

<strong>de</strong>sarmonia que há entre vós equivale mesmo a hostilida<strong>de</strong>; que as<br />

facções e o partidarismo são fomentados entre vós <strong>de</strong> tal forma que<br />

estão <strong>de</strong>stroçando a genuína unida<strong>de</strong> da fé. “Visto, porém, que, neste<br />

caso, uma simples exortação po<strong>de</strong> às vezes não ser tão persuasiva,<br />

Paulo volta a rogos enérgicos, pois ele os conjura, em nome <strong>de</strong> Cristo,<br />

a quem amam, a que promovam a harmonia.<br />

Que todos faleis a mesma coisa. Ao estimulá-los à harmonia,<br />

Paulo emprega três formas distintas <strong>de</strong> expressão. Primeiramente,<br />

ele solicita que a concordância entre eles fossem em termos tais, que<br />

tivessem todos uma só voz. Em segundo lugar, ele exige a remoção do<br />

mal pelo qual a unida<strong>de</strong> é espicaçada e <strong>de</strong>struída. Em terceiro lugar,<br />

ele <strong>de</strong>svenda a natureza da genuína harmonia, a saber, que a harmonia<br />

recíproca fosse na mente e na vonta<strong>de</strong>. O que Paulo põe como<br />

segundo é <strong>de</strong> fato o primeiro em or<strong>de</strong>m, a saber, que nos guar<strong>de</strong>mos<br />

das divisões, porque, quando somos [precavidos], então alguma outra<br />

coisa virá, ou, seja, a harmonia. Então, finalmente uma terceira<br />

coisa certamente resultará, a qual é mencionada em primeiro lugar<br />

aqui, a saber: que todos falemos como se tivéssemos uma só voz; e<br />

isso <strong>de</strong>veras é muitíssimo <strong>de</strong>sejável, como fruto da harmonia cristã.<br />

Portanto, observemos bem: nada é mais inconsistente por parte dos<br />

cristãos do que o cultivo do antagonismo entre si. Pois o princípio


50 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

mais importante <strong>de</strong> nossa religião é este: que vivamos em harmonia<br />

uns com os outros. Demais, a segurança da Igreja repousa sobre esta<br />

concordância e <strong>de</strong>la <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>.<br />

Vejamos, porém, o que Paulo requer da unida<strong>de</strong> cristã. Se alguém<br />

almeja distinções mais refinadas, ele <strong>de</strong>seja que, antes <strong>de</strong><br />

tudo, sejam eles unidos numa só mente [pensamento]; em seguida,<br />

num só parecer [juízo]; em terceiro lugar, ele <strong>de</strong>seja que os coríntios<br />

<strong>de</strong>clarem verbalmente sua concordância. Entretanto, visto que<br />

minha tradução difere um pouco da <strong>de</strong> Erasmo, <strong>de</strong>vo, <strong>de</strong> passagem,<br />

chamar a atenção <strong>de</strong> meus leitores para o uso que Paulo faz<br />

<strong>de</strong> um particípio aqui, o qual significa coisas que são a<strong>de</strong>quada e<br />

apropriadamente enfeixadas. 19 Pois o verbo καταρτιζεσθαι, do qual<br />

o particípio κατηρτισμένος se origina, significa, propriamente, ‘estar<br />

amarrado’ e ‘estar unido’, da mesma forma que os membros do<br />

corpo humano se acham jungidos uns aos outros numa simetria<br />

admiravelmente perfeita. 20<br />

Para parecer [sententia], Paulo tem γνώμην. Consi<strong>de</strong>ro-o, porém,<br />

aqui como uma referência à vonta<strong>de</strong>, <strong>de</strong> modo que há uma<br />

completa divisão da alma, sendo a primeira sentença (numa só<br />

mente) uma referência à fé, e a segunda (num só parecer), ao amor.<br />

Portanto, a unida<strong>de</strong> cristã será estabelecida em nosso meio, não<br />

só quando estamos em estreita harmonia quanto à doutrina, mas<br />

também quando estamos em harmonia em nossos esforços e dis-<br />

19 “Et assemblés l’une à l’autre.” – “E associadas umas às outras.”<br />

20 O verbo καταρτιζω propriamente significa: reparar, readaptar ou restaurar a sua condição<br />

original o que fora <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado ou quebrado; e nesse sentido se aplica à reparação <strong>de</strong><br />

re<strong>de</strong>s, navios, muros etc. [veja-se Mt 4.21; Mc 1.19]. Po<strong>de</strong>mos com plena proprieda<strong>de</strong><br />

enten<strong>de</strong>r o apóstolo fazendo aqui alusão à reparação <strong>de</strong> um navio que fora quebrado<br />

ou danificado, e como a informar que uma igreja, quando dispersa por divisões, não<br />

é, por assim dizer, um mar confiável, e <strong>de</strong>ve ser cuidadosamente reparada, antes que<br />

possa estar preparada para os propósitos <strong>de</strong> comércio, comunicando às nações da terra<br />

as “genuínas riquezas”. Entretanto, a alusão, mais provavelmente, é como se Calvino<br />

estivesse pensando nos membros do corpo humano, os quais são tão admiravelmente<br />

ajustados uns aos outros. Merece nota o fato <strong>de</strong> que Paulo faz uso <strong>de</strong> um <strong>de</strong>rivativo do<br />

mesmo verbo (κατάρτισις) em 2 Coríntios 13.9, sobre o qual Beza observa “que a intenção<br />

do apóstolo é que, enquanto os membros da Igreja estavam todos, por assim dizer, <strong>de</strong>slocados<br />

e <strong>de</strong>sconjuntados, agora uma vez mais seriam enfeixados em amor, e tudo fariam<br />

para fazer perfeito o que estava <strong>de</strong>feituoso entre eles, quer na fé, quer na conduta.”


Capítulo 1 • 51<br />

posições, e assim nos tornamos <strong>de</strong> uma só mente em todos os<br />

aspectos. Neste mesmo sentido, Lucas testifica da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> da<br />

Igreja Primitiva, dizendo que todos tinham “um só coração e uma<br />

só alma” [At 4.32]. Certamente que isso será sempre encontrado<br />

on<strong>de</strong> o Espírito <strong>de</strong> Cristo reina. Ao dizer-lhes que falassem a mesma<br />

coisa, ele notifica ainda mais plenamente o fruto da unida<strong>de</strong>, quão<br />

completa <strong>de</strong>ve ser a concordância, a saber, que não haja qualquer<br />

divergência nem mesmo em palavras. Certamente que isso é algo<br />

muito difícil, porém mesmo assim é indispensável entre os cristãos,<br />

<strong>de</strong> quem se tem requerido que tenham não só uma única fé, mas<br />

também uma única confissão.<br />

11. Me foi anunciado acerca <strong>de</strong> vós. Visto que as observações<br />

gerais às vezes surtem pouco efeito, Paulo então notifica que o que ele<br />

está dizendo <strong>de</strong> fato também se aplica particularmente a eles. Portanto,<br />

ele faz esta aplicação a fim <strong>de</strong> que os coríntios soubessem que não<br />

foi sem motivo que ele fez menção da harmonia. Pois ele mostra que<br />

não só se afastaram da santa unida<strong>de</strong>, 21 mas que também entraram em<br />

controvérsias, as quais se tornaram mais sérias 22 do que diferenças<br />

<strong>de</strong> opinião. Em caso <strong>de</strong> ser ele acusado <strong>de</strong> ser por <strong>de</strong>mais crédulo em<br />

dar ouvidos tão prontamente a informações inverídicas, 23 ele fala bem<br />

dos que lhe passaram tais informações. Provavelmente fossem tidos<br />

na mais elevada consi<strong>de</strong>ração, visto que Paulo não hesitou em citá-los<br />

como testemunhas competentes contra a Igreja toda. Ainda que não<br />

seja <strong>de</strong> todo certo se Cloe é o nome <strong>de</strong> lugar ou <strong>de</strong> mulher, parece-me<br />

21 “La sancte union qui doit estre les Chrestiens.” – “Aquela santa unida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve haver<br />

entre os cristãos.”<br />

22 “Bien plus dangereuses.” – “Muito mais perigosas.”<br />

23 Beza observa que o verbo aqui empregado, δηλοω (<strong>de</strong>clarar) contém uma significação<br />

mais forte do que σημαινω (insinuar), assim como há uma diferença <strong>de</strong> sentido entre as<br />

palavras latinas <strong>de</strong>clarare (<strong>de</strong>clarar) e significare (insinuar), exemplo esse que é fornecido<br />

em uma carta <strong>de</strong> Cícero a Lucrécio: “tibi non significandum solum, sed etiam <strong>de</strong>clarandum<br />

arbitror, nihil mihi esse potuisse tuis literis gratius.” – “Creio que não se <strong>de</strong>ve simplesmente<br />

insinuar-lhe, mas <strong>de</strong>clarar que nada po<strong>de</strong>ria ser-me mais agradável do que suas<br />

cartas.” A palavra enfática, εδηλωθη (foi <strong>de</strong>clarado), parece ter sido usada pelo apóstolo<br />

para comunicar mais plenamente à mente dos coríntios que ele não lhes transmitira uma<br />

mera notícia.


52 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

mais provável, porém, que fosse o nome <strong>de</strong> uma mulher. 24 Portanto,<br />

em minha opinião é que foi uma família bem familiarizada com Paulo<br />

que lhe falou <strong>de</strong>ste distúrbio na Igreja <strong>de</strong> Corinto, com o propósito <strong>de</strong><br />

que <strong>de</strong>le proviesse a cura. Mas concluir, como fazem muitos, seguindo<br />

a opinião <strong>de</strong> Crisóstomo, que Paulo evitou o uso <strong>de</strong> nomes reais com<br />

o intuito <strong>de</strong> evitar que fossem molestados, parece-me absurdo. Pois<br />

ele não diz que alguns membros particulares da família o informaram;<br />

ao contrário, faz menção <strong>de</strong> todos eles, o que não <strong>de</strong>ixa lugar a dúvida<br />

<strong>de</strong> que estavam bem dispostos a ser citados nominalmente. Além<br />

do mais, para que suas mentes não se exasperassem por in<strong>de</strong>vida severida<strong>de</strong>,<br />

ele mitigou a reprovação falando <strong>de</strong> uma maneira como se<br />

quisesse angariar o respeito; e ele proce<strong>de</strong>u assim não para amenizar<br />

seu problema, mas para fazê-los ainda mais dóceis e enten<strong>de</strong>r melhor<br />

a gravida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu mal.<br />

12. Ora, o que eu quero dizer é que cada um <strong>de</strong> vós. Alguns<br />

acreditam que haja aqui um caso <strong>de</strong> imitação (μιμησις), como se Paulo<br />

estivesse aqui repetindo as palavras reais dos coríntios. Ora, ainda que<br />

os manuscritos variem na avaliação da partícula ὅτι, sou <strong>de</strong> opinião que<br />

ela é a conjunção porque, em vez do pronome relativo que, <strong>de</strong> modo que<br />

temos aqui simplesmente uma explicação da sentença anterior, como<br />

segue: “A razão por que digo que há controvérsias entre vós, é porque<br />

cada um <strong>de</strong> vós se põe a gloriar-se no nome <strong>de</strong> um homem. Mas alguém<br />

po<strong>de</strong>rá objetar que essas afirmações não fornecem em si mesmas qualquer<br />

indicação <strong>de</strong> controvérsias. Minha resposta é que on<strong>de</strong> as divisões<br />

predominam na religião, outra coisa não suce<strong>de</strong> senão que o que se<br />

acha na mente dos homens logo se irrompe em franco conflito. Pois<br />

enquanto nada é mais eficaz para manter-nos unidos, e não há nada que<br />

mais une nossas mentes, conservando-as em paz, do que a harmonia na<br />

24 Alguns chegaram à conclusão que por τω̑ν Χλόης (os <strong>de</strong> Cloe) o apóstolo quer dizer pessoas<br />

que estavam em florescente condição na religião; <strong>de</strong> χλόη, erva ver<strong>de</strong> (Heródoto,<br />

iv.34, Eurípe<strong>de</strong>s, Hipp. 1124). Certo escritor supõe Paulo querendo dizer seniores (anciãos),<br />

<strong>de</strong>rivando a palavra χλόη <strong>de</strong> jlb, idoso. Entretanto, tais conjeturas são claramente<br />

mais engenhosas que sólidas. É verda<strong>de</strong> que o nome Χλόη (Cloe) era freqüente entre os<br />

gregos como um nome feminino. É mais natural enten<strong>de</strong>r por τω̑ν Χλόης, os <strong>de</strong> Cloe, como<br />

equivalente a των Χλοης σικειων – os da casa <strong>de</strong> Cloe.


Capítulo 1 • 53<br />

religião, todavia, se por alguma razão suscita-se <strong>de</strong>sarmonia em conexão<br />

com ela, o resultado inevitável é que os homens são imediatamente<br />

instigados a digladiar-se <strong>de</strong> forma ferrenha, e não existe outro campo<br />

on<strong>de</strong> as controvérsias sejam mais ferozes. 25 Portanto, Paulo é justificado<br />

em apresentar como evidência suficiente <strong>de</strong> controvérsias o fato <strong>de</strong><br />

que os coríntios estavam criando seitas e facções.<br />

Eu sou <strong>de</strong> Paulo etc. Ele agora menciona nominalmente os servos<br />

fiéis <strong>de</strong> Cristo – Apolo, que fora seu sucessor em Corinto, e também o<br />

próprio Pedro. Então adiciona seu próprio nome ao <strong>de</strong>les, com receio<br />

<strong>de</strong> que pu<strong>de</strong>sse, <strong>de</strong> alguma forma, parecer estar fazendo mais por sua<br />

própria causa do que pela causa <strong>de</strong> Cristo. Todavia, é improvável que<br />

houvesse alguns partidos que estivessem atacando um <strong>de</strong>sses três<br />

ministros em particular, em <strong>de</strong>trimento dos outros dois, visto que se<br />

achavam limitados, em seu ministério, por um acordo sagrado. 26 Mas,<br />

como sugere mais tar<strong>de</strong> (1Co 3.4ss), ele transferiu para si e para Apolo<br />

o que era aplicável aos <strong>de</strong>mais. Ele proce<strong>de</strong>u assim a fim <strong>de</strong> que pu<strong>de</strong>ssem<br />

ter mais facilida<strong>de</strong> em avaliar o próprio problema, dissociado da<br />

avaliação dos personagens envolvidos.<br />

Mas alguém po<strong>de</strong>ria apontar para o fato <strong>de</strong> que Paulo também<br />

menciona, aqui, aqueles que publicamente confessavam que “eram <strong>de</strong><br />

Cristo”. Isto também reclamava censura? Respondo que nesta forma a<br />

expressão mais clara é dada para a situação realmente negativa que se<br />

<strong>de</strong>senvolve <strong>de</strong> nosso erro em prestarmos nossa <strong>de</strong>voção aos homens.<br />

Se tal acontece, então Cristo <strong>de</strong>ve necessariamente governar só uma<br />

parte da igreja, e os crentes não têm outra alternativa senão separar-<br />

-se dos <strong>de</strong>mais, isso se não <strong>de</strong>sejam negar a Cristo.<br />

Entretanto, como este versículo é torcido <strong>de</strong> várias maneiras, o<br />

único caminho certo é <strong>de</strong>cidirmos mais exatamente o que Paulo quer<br />

25 “Et n’y a en chose quelconque <strong>de</strong>bats si grans ni tant à craindre que sont ceux-là.” – “E em<br />

nenhum <strong>de</strong>partamento há disputas tão fortes, ou tão terríveis como aquelas.”<br />

26 “Autrement veu que ces trois estoyent d’un sainct accord ensemble en leur ministere, il<br />

n’est point vray-semblable, qu’il y eust aucunes partialitéz entre les Corinthiens pour se<br />

glorifier en l’un plustost qu’en l’autre.” – “De outra forma, visto que aqueles três estavam<br />

unidos em seu ministério por um laço sacro, não é provável que houvesse alguns partidos<br />

entre os coríntios que estivessem preparados a gloriar-se neles mais que em outros.”


54 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

dizer aqui. Seu objetivo é dizer que na Igreja a autorida<strong>de</strong> pertence unicamente<br />

a Cristo, <strong>de</strong> modo que todos nós somos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>le; que<br />

unicamente ele é chamado Senhor e Mestre entre nós, <strong>de</strong> modo que o<br />

nome <strong>de</strong> quem quer que seja se exibe como rival <strong>de</strong> Cristo. Portanto,<br />

Paulo con<strong>de</strong>na aqueles que atraem seguidores após eles [At 20.30], a<br />

ponto <strong>de</strong> dividir a Igreja em seitas, porque ele os con<strong>de</strong>na como inimigos<br />

que <strong>de</strong>stroem nossa fé. Conseqüentemente, Paulo não permite que<br />

os homens exerçam tal preeminência na Igreja, que usurpem a supremacia<br />

<strong>de</strong> Cristo. Os homens, pois, não <strong>de</strong>vem ser honrados <strong>de</strong> tal maneira<br />

que venham a prejudicar, mesmo que seja um ínfimo grau, a dignida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Cristo. É verda<strong>de</strong> que existe certo grau <strong>de</strong> honra que é <strong>de</strong>vida aos<br />

ministros <strong>de</strong> Cristo, e que eles são igualmente mestres em seu <strong>de</strong>vido<br />

lugar; mas é preciso ter sempre em mente que a qualificação que pertence<br />

a Cristo <strong>de</strong>ve ser mantida intocável, ou, seja, que ele continuará<br />

sendo, não obstante, o único e verda<strong>de</strong>iro Mestre, e <strong>de</strong>ve ser contemplado<br />

como tal. Por essa razão, o alvo dos bons ministros é este: servir a<br />

Cristo, todos eles <strong>de</strong> forma idêntica, reivindicando para ele o domínio, a<br />

autorida<strong>de</strong> e a glória exclusivos; lutar sob sua ban<strong>de</strong>ira; obe<strong>de</strong>cê-lo acima<br />

<strong>de</strong> tudo e <strong>de</strong> todos e submeter os outros a seu domínio. Se alguém se<br />

<strong>de</strong>ixa influenciar pela ambição, ele conquista seguidores, sim, não para<br />

Cristo, mas para si próprio. Portanto, eis aqui a fonte <strong>de</strong> todos os males,<br />

eis aqui a mais danosa <strong>de</strong> todas as enfermida<strong>de</strong>s, eis aqui a peçonha<br />

mais letal em todas as igrejas: quando os ministros se <strong>de</strong>votam mais a<br />

seus próprios interesses do que aos interesses <strong>de</strong> Cristo. Em suma, a<br />

unida<strong>de</strong> da Igreja consiste primordialmente nesta única coisa: que todos<br />

nós <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>mos unicamente <strong>de</strong> Cristo, e que, portanto, os homens<br />

sejam tidos e permaneçam em posição inferior, para que nada venha a<br />

prejudicar Cristo, um mínimo sequer, em sua posição <strong>de</strong> preeminência.<br />

13. Cristo está dividido? Este mal intolerável provinha das diversas<br />

divisões prevalecentes entre os coríntios. Porquanto Cristo é o<br />

único que reina na Igreja. E já que o propósito do evangelho é que sejamos<br />

reconciliados com Deus por intermédio <strong>de</strong> Cristo, é necessário,<br />

antes <strong>de</strong> tudo, que estejamos todos seguros e unidos nele. Somente


Capítulo 1 • 55<br />

uma pequena parte dos coríntios, mais sábios que os outros, 27 continuava<br />

a reconhecer Cristo como seu Mestre, enquanto todos os<br />

<strong>de</strong>mais se orgulhavam <strong>de</strong> ser cristãos. E assim Cristo estava sendo feito<br />

em pedaços. Pois é mister que todos sejamos mantidos juntos <strong>de</strong>le<br />

e sob ele como nossa Cabeça. Pois se vivermos divididos em diversos<br />

corpos, também dissolveremos o [corpo] <strong>de</strong>le. Gloriarmo-nos em seu<br />

nome em meio a <strong>de</strong>savenças e partidos é rasgá-lo em pedaços. Na verda<strong>de</strong>,<br />

tal coisa não po<strong>de</strong> ser feita, pois ele jamais per<strong>de</strong>rá a unida<strong>de</strong> e a<br />

harmonia, porque “ele não po<strong>de</strong> negar a si mesmo” [2Tm 2.13]. Paulo,<br />

pois, colocando esta situação absurda diante dos coríntios, se propõe<br />

a levá-los a enten<strong>de</strong>r que estavam alienados <strong>de</strong> Cristo em razão <strong>de</strong><br />

suas divisões. Pois Cristo só reina em nosso meio quando ele constitui<br />

os elos que nos ligam a ele numa unida<strong>de</strong> sacra e inviolável.<br />

Foi Paulo crucificado por vós? Mediante duas po<strong>de</strong>rosas consi<strong>de</strong>rações,<br />

Paulo mostra quão vil 28 é arrebatar a Cristo <strong>de</strong> seu lugar <strong>de</strong> honra<br />

como única Cabeça da Igreja, único Mestre, único Senhor; ou extrair alguma<br />

parte da honra que lhe pertence e transferi-la para os homens. A<br />

primeira razão é que fomos redimidos por Cristo com base no princípio<br />

<strong>de</strong> que não estamos sob nossa própria jurisdição. Paulo usa este mesmo<br />

argumento em sua Epístola aos Romanos [14.9], quando diz: “Pois<br />

para este fim foi que Cristo morreu e ressuscitou, para que pu<strong>de</strong>sse ser<br />

Senhor tanto dos vivos quanto dos mortos.” Portanto, vivamos para ele<br />

e morramos para ele, porque lhe pertencemos para sempre. Novamente<br />

nesta mesma Epístola [7.23], ele escreve: “Fostes comprados por preço;<br />

não vos torneis escravos <strong>de</strong> homens.” Portanto, visto que os coríntios<br />

haviam sido adquiridos pelo sangue <strong>de</strong> Cristo, eles estavam, em certo<br />

sentido, renunciando as bênçãos da re<strong>de</strong>nção, já que estavam transformando<br />

outras pessoas em seus lí<strong>de</strong>res. Eis aqui uma notável doutrina<br />

que merece especial atenção: “que não temos a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pôr-nos<br />

sob a sujeição <strong>de</strong> seres humanos, 29 já que somos herança do Senhor.”<br />

27 “Mieux avisez que les autres.” – “Melhor avisados do que outros.”<br />

28 “Combien c’est vne chose insupportable.” – “Quão insuportável coisa é.”<br />

29 “Addicere nos hominibus in servitutem” – “<strong>de</strong> nous assuiettir aux hommes en seruitu<strong>de</strong>.”<br />

– “Entregar-nos a homens, ao ponto <strong>de</strong> nos tornarmos seus escravos.” Calvino mui pro-


56 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Portanto, Paulo aqui acusa os coríntios da mais grave ingratidão, visto<br />

que estavam alienando-se <strong>de</strong>sta Cabeça por cujo sangue haviam sido<br />

redimidos; contudo, talvez agissem assim inadvertidamente.<br />

Além do mais, esta passagem milita contra a ímpia invenção dos<br />

papistas, a qual usam em apoio <strong>de</strong> seu sistema <strong>de</strong> indulgências. Pois<br />

do sangue <strong>de</strong> Cristo e dos mártires eles engendraram o falso tesouro<br />

da Igreja, o qual, ensinam eles, é distribuído pelas indulgências. Assim<br />

preten<strong>de</strong>m que, por sua morte, os mártires 30 meritoriamente ganharam<br />

algo para nós aos olhos <strong>de</strong> Deus, para que pudéssemos recorrer a<br />

essa fonte e obter a remissão <strong>de</strong> nossos pecados. Certamente negarão<br />

que os mártires nos redimem. Todavia, nada é mais claro do que um<br />

fato proce<strong>de</strong>r do outro. É uma questão <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rem os pecadores reconciliar-se<br />

com Deus; é uma questão <strong>de</strong> obterem eles o perdão; é uma<br />

questão <strong>de</strong> fazerem eles expiação pelas ofensas. Gloriam-se <strong>de</strong> que<br />

tudo isso é feito em parte pelo sangue <strong>de</strong> Cristo e em parte pelo sangue<br />

dos mártires. Portanto, fazem dos mártires os participantes <strong>de</strong> Cristo<br />

na conquista <strong>de</strong> nossa salvação. Paulo, porém, aqui está negando energicamente<br />

que alguém mais, além <strong>de</strong> Cristo, tenha sido crucificado em<br />

nosso favor. De fato, os mártires morreram para nosso benefício, mas<br />

(no dizer <strong>de</strong> Leo) 31 foi para dar-nos o exemplo <strong>de</strong> firmeza, e não para<br />

adquirir-nos o dom da justiça.<br />

vavelmente tinha em mente o celebrado sentimento <strong>de</strong> Horácio (Epist. i.1.14): “Nullius<br />

addictus jurare in verba magistri.” – “Obrigado a jurar fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a nenhum senhor”, enquanto<br />

impõe o sentimento por uma po<strong>de</strong>rosa consi<strong>de</strong>ração, à qual o poeta pagão era<br />

totalmente estranho.<br />

30 “Du sang <strong>de</strong> Christ, et <strong>de</strong>s martyrs tous ensemble.’ – “Do sangue <strong>de</strong> Cristo e <strong>de</strong> todos os<br />

mártires juntos.”<br />

31 Leo, ad Palæstinos, Ep. 81. A passagem supramencionada é citada livremente nas Institutas.<br />

“Ainda que a morte <strong>de</strong> muitos santos fosse preciosa aos olhos do Senhor [Sl 116.15],<br />

contudo nenhum inocente assassinado era a propiciação do mundo. Os justos recebiam<br />

coroas, porém não as davam; e a fortaleza dos crentes produzia exemplos <strong>de</strong> paciência,<br />

não dons <strong>de</strong> justiça. Pois suas mortes eram para si mesmos; e nenhum <strong>de</strong>les, ao morrer,<br />

pagava a dívida <strong>de</strong> outro, com a exceção <strong>de</strong> Cristo nosso Senhor, em quem unicamente todos<br />

somos crucificados, todos mortos, sepultados e ressurretos.” Leo, <strong>de</strong> cujos escritos<br />

foi extraída esta admirável passagem, foi um bispo romano que viveu no quinto século,<br />

e foi um dos mais eminentes homens <strong>de</strong> sua época. Ele foi o mais zeloso <strong>de</strong>fensor das<br />

doutrinas da graça, em oposição ao pelagianismo e outras heresias.


Capítulo 1 • 57<br />

Ou fostes batizados em nome Paulo? Seu segundo argumento<br />

é extraído da profissão do batismo. Pois nos alistamos sob sua ban<strong>de</strong>ira,<br />

em cujo nome somos batizados. Desta forma somos unidos 32<br />

a Cristo, em cujo nome nosso batismo é celebrado. Daqui se segue<br />

que os coríntios po<strong>de</strong>m ser acusados <strong>de</strong> perfídia e apostasia, caso se<br />

rendam em sujeição aos homens.<br />

Note-se aqui que a natureza do batismo é como um bônus <strong>de</strong><br />

contrato 33 <strong>de</strong> mútua obrigação, pois como o Senhor, por meio <strong>de</strong>ste<br />

símbolo, nos recebe em sua família, e nos introduz no seio <strong>de</strong> seu<br />

povo, e assim penhoramos nossa fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a ele <strong>de</strong> que jamais teremos<br />

qualquer outro senhor espiritual. Conseqüentemente, como<br />

Deus, <strong>de</strong> sua parte, faz um pacto <strong>de</strong> graça conosco, no qual promete<br />

a remissão <strong>de</strong> pecados e uma nova vida, assim também, <strong>de</strong> nossa<br />

parte, fazemos um voto <strong>de</strong> empreen<strong>de</strong>rmos guerra espiritual, por<br />

meio da qual lhe prometemos ser seus perenes vassalos. Paulo aqui<br />

não trata da primeira parte, visto que o contexto não o requer; ao<br />

tratar do batismo, porém, a segunda parte não po<strong>de</strong>ria ficar omitida.<br />

De fato, Paulo não está propriamente acusando os coríntios <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>serção, por terem abandonado a Cristo e se voltado para os homens;<br />

está, porém, realçando o próprio fato <strong>de</strong> que, não se mantendo<br />

firmes em Cristo, e tão-somente em Cristo, se constituíram em transgressores<br />

do pacto.<br />

Suscita-se uma pergunta: o que significa ser batizado em nome<br />

<strong>de</strong> Cristo? Minha resposta é que essa maneira <strong>de</strong> se expressar significa<br />

não só que o batismo se acha fundamentado na autorida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Cristo, mas também que ele repousa em seu po<strong>de</strong>r, e em certo<br />

sentido consiste nisso; e finalmente que todo o efeito <strong>de</strong>le <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />

do fato <strong>de</strong> o nome <strong>de</strong> Cristo ser invocado nele. Po<strong>de</strong>-se suscitar,<br />

porém, outra pergunta: por que Paulo diz que os coríntios haviam<br />

32 “Obligez par serment.” – “Atados por juramento.”<br />

33 “Syngrapha (o termo empregado por Calvino) era um contrato ou vínculo, formalmente<br />

endossado entre duas partes, assinado e selado por ambas, e uma cópia dada a cada<br />

uma.” Cic. Verr. i.36. Dio. xlviii.37. Deriva-se <strong>de</strong> um termo grego, συγγραφὴ (um instrumento<br />

ou obrigação legal). Heródoto, i.48; e Demóstenes, cclxviii.13.


58 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

sido batizados em nome <strong>de</strong> Cristo, quando o próprio Cristo or<strong>de</strong>nara<br />

[Mt 28.19] que os apóstolos batizassem em nome do Pai, do Filho e<br />

do Espírito Santo? Minha resposta é que, ao tratarmos do batismo,<br />

nossa primeira consi<strong>de</strong>ração consiste em que Deus o Pai, tendo-nos<br />

introduzido, por sua imerecida mercê, em sua Igreja, recebe-nos, por<br />

meio da adoção, à comunhão <strong>de</strong> seus filhos. Em segundo lugar, visto<br />

que nenhuma união com ele nos é possível a não ser por meio da<br />

reconciliação, é indispensável que Cristo nos restaure ao favor do<br />

Pai, por meio <strong>de</strong> seu sangue. Em terceiro lugar, visto que somos consagrados<br />

a Deus pelo batismo, precisamos também da intervenção<br />

do Espírito Santo, cuja função é transformar-nos em novas criaturas.<br />

Realmente, sua obra especial é lavar-nos no sangue <strong>de</strong> Cristo; mas,<br />

visto que só obtemos a misericórdia do Pai, ou a graça do Espírito,<br />

tão-somente por meio <strong>de</strong> Cristo, temos boas razões para <strong>de</strong>nominá-lo<br />

o próprio objeto [scopum] do batismo, e associamos o batismo com<br />

seu nome em particular. Todavia, isso <strong>de</strong> forma alguma suprime os<br />

nomes do Pai e do Espírito. Pois quando <strong>de</strong>sejamos falar brevemente<br />

da eficácia do batismo, mencionamos só o nome <strong>de</strong> Cristo. Quando,<br />

porém, <strong>de</strong>sejamos ser mais precisos, então <strong>de</strong>vemos também incluir<br />

os nomes do Pai e do Espírito.<br />

14. Dou graças a Deus porque não batizei<br />

a nenhum <strong>de</strong> vós, salvo Crispo<br />

e Gaio;<br />

15. para que ninguém diga que fostes<br />

batizados em meu próprio nome.<br />

16. E batizei também a casa <strong>de</strong> Estéfanas;<br />

além <strong>de</strong>stes, não me lembro se<br />

batizei algum outro.<br />

17. Porque Cristo não me enviou a batizar,<br />

mas a pregar o evangelho; não<br />

em sabedoria <strong>de</strong> palavras, para que a<br />

cruz <strong>de</strong> Cristo não ficasse sem efeito.<br />

18. Porque a pregação da cruz, para os<br />

que perecem, é loucura; mas para<br />

nós, que somos salvos, é o po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> Deus.<br />

14. Gratias ago Deo meo, quod neminem<br />

baptizaverim vestrûm, nisi<br />

Crispum et Gaium:<br />

15. Ne quis dicat, quod in meum nomen<br />

baptizaverim.<br />

16. Baptizavi autem et Stephanæ familiam;<br />

præterea nescio, num quem<br />

alium baptizaverim.<br />

17. Non enim misit me Christus ut batizarem,<br />

sed ut evangelizarem: non<br />

in sapientia sermonis, ne inanis reddatur<br />

crux Christi.<br />

18. Nam sermo crucis iis, qui pereunt,<br />

stultitia est; at nobis qui<br />

salutem consequimur, potentia<br />

Dei est.


Capítulo 1 • 59<br />

19. Pois está escrito: Destruirei a sabedoria<br />

dos sábios; E reduzirei a nada<br />

a prudência dos pru<strong>de</strong>ntes.<br />

20. On<strong>de</strong> está o sábio? on<strong>de</strong> está o escriba?<br />

on<strong>de</strong> está o inquiridor <strong>de</strong>ste<br />

mundo? Não tornou Deus em loucura<br />

a sabedoria do mundo?<br />

19. Scriptum est enim; (Ies. xxix.14);<br />

perdam sapientiam sapientum, et<br />

intelligentiam intelligentum auferam<br />

e medio.<br />

20. Ubis sapiens? ubi scriba? ubi<br />

disputator hujus saeculi? nonne<br />

infatuavit Deus sapentiam mundi<br />

hujus?<br />

14. Dou graças a Deus. Nestas palavras, ele censura acremente a<br />

perversida<strong>de</strong> dos coríntios, o que o levou a abster-se, até certo ponto,<br />

<strong>de</strong> algo tão santo e honroso, que é a administração do batismo. Realmente<br />

Paulo teria agido <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seus direitos, e em consonância com<br />

a natureza <strong>de</strong> seu ofício, caso tivesse ele batizado um gran<strong>de</strong> número<br />

<strong>de</strong> pessoas. Ele, porém, se alegra <strong>de</strong> haver acontecido o contrário e<br />

<strong>de</strong> estar consciente <strong>de</strong> que assim se <strong>de</strong>u pela providência divina, para<br />

que não houvesse nele ocasião <strong>de</strong> orgulho, ou para que não se assemelhasse<br />

aos homens ambiciosos que estavam à espreita <strong>de</strong> seguidores.<br />

Mas, o que aconteceria se Paulo tivesse batizado muitos? Não teria<br />

havido nenhum erro nisso; mas (como eu já disse) há envolvido nisso<br />

uma severa censura contra os coríntios e seus apóstolos, visto que<br />

um servo do Senhor se alegrava em abster-se <strong>de</strong> uma obra, igualmente<br />

boa e valiosa, com o fim <strong>de</strong> evitar que viesse a converter-se na causa<br />

<strong>de</strong> prejuízo para os coríntios.<br />

17. Porque Cristo não me enviou etc. Paulo levanta uma possível<br />

objeção contra si mesmo, a saber, que ele não cumprira o que<br />

<strong>de</strong>veria ter feito à luz do fato <strong>de</strong> que Cristo or<strong>de</strong>nara a seus apóstolos<br />

que batizassem e ensinassem. Portanto, ele replica que esse não<br />

era o principal <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> seu ofício, pois a tarefa <strong>de</strong> ensinar<br />

lhe fora imposta como sendo primordial, à qual ele <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>votar-<br />

-se. Pois quando Cristo diz aos apóstolos: “I<strong>de</strong>, pregai e batizai” [Mt<br />

28.19; Mc 16.15], ele anexa o batismo ao ensino simplesmente como<br />

adição ou apêndice. De modo que o ensino é mantido sempre em<br />

primeiro lugar.


60 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Entretanto, duas coisas se <strong>de</strong>vem notar aqui. A primeira é que o<br />

apóstolo, aqui, não nega que tivesse uma or<strong>de</strong>m para batizar. Pois as<br />

palavras, I<strong>de</strong>, batizai, aplicam-se a todos os apóstolos, e ele teria sido<br />

presunçoso se batizasse alguém sem ter autorida<strong>de</strong> para fazê-lo. O que<br />

ele faz aqui é simplesmente realçar a tarefa para a qual fora chamado.<br />

A segunda questão é esta: ele aqui <strong>de</strong> forma alguma <strong>de</strong>precia a dignida<strong>de</strong><br />

e o efeito do batismo, como pensam alguns. Porquanto Paulo aqui<br />

não está tratando da eficácia do batismo, e nem faz tal comparação<br />

com o fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>negrir sua eficácia. Visto, porém, que o dom <strong>de</strong> ensinar<br />

pertencia a uns poucos, enquanto que a muitos se permitia batizar,<br />

e também visto que muitos podiam ser ensinados <strong>de</strong> uma só vez, enquanto<br />

que o batismo podia ser administrado a um só indivíduo <strong>de</strong><br />

cada vez, Paulo, que excedia na habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ensinar, persistiu na<br />

obra que lhe pareceu mais necessária, enquanto que <strong>de</strong>ixara a outros<br />

o que podiam melhor fazer. Além disso, se os leitores consi<strong>de</strong>rarem<br />

todas as circunstâncias, mais atentamente, verão que subjaz aqui uma<br />

ironia 34 implícita, pois tacitamente ferroa os que buscavam um pouco<br />

<strong>de</strong> glória à expensa do labor <strong>de</strong> outros, sob o pretexto <strong>de</strong> administrar<br />

uma cerimônia religiosa. Pois o labor <strong>de</strong> Paulo na edificação daquela<br />

igreja tinha sido incrível. Certamente que mestres <strong>de</strong>spreocupados<br />

vieram <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le, os quais atraíram discípulos para seu partido por<br />

meio da aspersão <strong>de</strong> água. 35 Portanto, Paulo lhes confere o título <strong>de</strong><br />

honra (honoris), e assevera que está contente em ficar com o trabalho<br />

oneroso [onere]. 36<br />

Não em sabedoria <strong>de</strong> palavras. Há aqui um exemplo <strong>de</strong> antecipação,<br />

por meio do qual ele refuta uma dupla objeção. Pois esses pretensos<br />

mestres po<strong>de</strong>riam respon<strong>de</strong>r que Paulo, que não possuía o dom da eloqüência,<br />

se ostentava <strong>de</strong> forma ridícula ao alegar que o <strong>de</strong>partamento<br />

docente lhe fora confiado. Por essa razão ele diz, à guisa <strong>de</strong> concessão,<br />

34 Ironie, c’est à dire, mocquerie.” – “Ironia, isto é, zombaria.”<br />

35 “Seulement en les arrousant d’euau: c’est à dire, baptizant.” – “Simplesmente por aspergi-<br />

-los com água, ou, seja, batizando-os.”<br />

36 “Toute la charge et la pesanteur du far<strong>de</strong>au.” – “Toda a carga e peso do fardo.”


Capítulo 1 • 61<br />

que não fora formado para ser orador, 37 que pu<strong>de</strong>sse ostentar elegância<br />

<strong>de</strong> palavras, mas que era ministro do Espírito, um servo que, com<br />

fala ordinária e sem polimento, nada possuía da sabedoria do mundo.<br />

Ora, para que ninguém objetasse, dizendo que ele corria atrás <strong>de</strong> glória<br />

através <strong>de</strong> sua pregação, assim como tantos outros faziam quando batizavam,<br />

ele respon<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma breve dizendo que, visto que o método<br />

<strong>de</strong> ensinar, que ele seguia, era <strong>de</strong>spido <strong>de</strong> todo brilhantismo, e não revelava<br />

qualquer laivo <strong>de</strong> ambição, então não podia ser suspeito a esse<br />

respeito. Portanto, se não estou equivocado, po<strong>de</strong>mos prontamente <strong>de</strong>duzir<br />

qual era o principal aspecto da controvérsia que Paulo manteve<br />

com os maus e infiéis ministros <strong>de</strong> Corinto, a saber, uma vez que se<br />

achavam dominados pela ambição, procuravam angariar a admiração<br />

do povo para si, insinuando-se ante o povo por meio da exibição <strong>de</strong><br />

palavras e simulação [larva] <strong>de</strong> sabedoria humana.<br />

Deste mal principal surgem outros dois. (1) Que por meio do que<br />

po<strong>de</strong>mos chamar dissimulação (por assim dizer), a simplicida<strong>de</strong> do<br />

evangelho era <strong>de</strong>formada e Cristo era vestido, por assim dizer, <strong>de</strong> uma<br />

nova e estranha vestimenta, <strong>de</strong> modo que o puro e genuíno conhecimento<br />

<strong>de</strong>le estava oculto dos olhos. Além do mais, (2) visto que a<br />

mente dos homens 38 estava voltada para o brilhantismo e excelência<br />

<strong>de</strong> palavras, para as especulações engenhosas, para a fútil exibição<br />

<strong>de</strong> sublimida<strong>de</strong> superior da doutrina, a eficácia do Espírito <strong>de</strong>svanecia<br />

e nada era <strong>de</strong>ixado senão a letra morta. A majesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, que<br />

resplan<strong>de</strong>ce no evangelho, era apagada, e no lugar só era visível a púrpura<br />

e a pompa infrutífera.<br />

Conseqüentemente, com o fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>snudar tais corrupções do evangelho,<br />

Paulo faz aqui uma transição para o método <strong>de</strong> sua pregação. Ele<br />

assevera que sua forma <strong>de</strong> pregar é correta e legítima, ainda que seja, ao<br />

mesmo tempo, diametralmente aposta à ostentação daqueles indivíduos<br />

interesseiros. 39 É como se ele dissesse: “Eu sei como muitos daqueles<br />

37 “Vn Rhetoricien ou harangueur.” – “Um retórico ou <strong>de</strong>clamador.”<br />

38 “Ces vaillans docteurs.” – “Aqueles mestres valentes.”<br />

39 Vn Rhetoricien ou harangueur.” – “Um retórico ou <strong>de</strong>clamador.”


62 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

mestres ‘boa-vida’ gostam <strong>de</strong> vos lisonjear com sua linguagem pomposa.<br />

Quanto a mim, confesso que minha pregação é feita num estilo <strong>de</strong>stituído<br />

<strong>de</strong> polimento, <strong>de</strong>selegante e sem qualquer erudição, mas também me glorio<br />

<strong>de</strong>la. Pois era preciso ser assim, esse foi o método prescrito por Deus.”<br />

Por sabedoria <strong>de</strong> palavras ele não quer dizer prestidigitação<br />

verbal (λογοδαιδαλία), 40 o que não passa <strong>de</strong> mera fala vazia, mas<br />

verda<strong>de</strong>ira eloqüência, que consiste em habilidosa escolha <strong>de</strong> assuntos,<br />

em arranjo pomposo e excelência <strong>de</strong> estilo. Ele <strong>de</strong>clara que não<br />

possuía nada disso; na verda<strong>de</strong>, em sua pregação não havia nada <strong>de</strong><br />

conveniente nem vantajoso.<br />

Para que a cruz <strong>de</strong> Cristo não fique sem efeito. Como Paulo<br />

costumava pôr com freqüência o nome <strong>de</strong> Cristo em contraste com a<br />

orgulhosa sabedoria carnal, assim ele agora planta a cruz <strong>de</strong> Cristo bem<br />

no centro, a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>stronar toda a arrogância e superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa<br />

sabedoria. Pois toda a sabedoria dos crentes está concentrada na<br />

luz <strong>de</strong> Cristo. E existe algo mais <strong>de</strong>sprezível que uma cruz? Portanto,<br />

aquele que é verda<strong>de</strong>iramente sábio nas coisas <strong>de</strong> Deus precisa necessariamente<br />

inclinar-se para a ignomínia da cruz. Isso só se fará, antes<br />

<strong>de</strong> tudo, renunciando seu próprio entendimento das coisas, bem como<br />

toda a sabedoria do mundo. Aliás, Paulo está ensinando aqui não só que<br />

espécie <strong>de</strong> homens <strong>de</strong>vem ser os discípulos <strong>de</strong> Cristo, e qual a vereda do<br />

aprendizado <strong>de</strong>vem trilhar, mas também qual o método <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong>ve<br />

ser usado na escola <strong>de</strong> Cristo. “A cruz <strong>de</strong> Cristo se tornaria sem efeito”,<br />

diz ele, “se minha pregação fosse adornada com eloqüência e brilhantismo.”<br />

Ele usou aqui a cruz <strong>de</strong> Cristo para o benefício da re<strong>de</strong>nção, a qual<br />

<strong>de</strong>ve ser buscada no Cristo crucificado. Ora, a doutrina do evangelho,<br />

que nos chama para o <strong>de</strong>sfruto <strong>de</strong>sse benefício, <strong>de</strong>ve lembrar a natureza<br />

da cruz, <strong>de</strong> modo que, em vez <strong>de</strong> ser gloriosa, seja, ao contrário,<br />

<strong>de</strong>sprezível e indigna aos olhos do mundo. O significado, pois, consiste<br />

em que, se Paulo tivesse lançado mão <strong>de</strong> sutileza e <strong>de</strong> linguagem pom-<br />

40 O termo λογοδαιδαλία propriamente <strong>de</strong>nota linguagem engenhosamente inventada. É<br />

composto <strong>de</strong> λογος (fala) e Δαιδαλος (Dædalus), um artista engenhoso <strong>de</strong> Atenas, celebrado<br />

por sua habilida<strong>de</strong> em estatuário e arquitetura. Daí tudo quanto era habilidosamente<br />

inventado passou a chamar <strong>de</strong>daliano.


Capítulo 1 • 63<br />

posa <strong>de</strong> um filósofo, em seu trato com os coríntios, o po<strong>de</strong>r da cruz <strong>de</strong><br />

Cristo, na qual <strong>de</strong>scansa a salvação dos homens, teria sido sepultado,<br />

porque ele [o po<strong>de</strong>r da cruz] não po<strong>de</strong> nos atingir <strong>de</strong>sta maneira.<br />

Aqui se propõem duas perguntas: Primeiramente, se Paulo aqui<br />

con<strong>de</strong>na, em todos os aspectos, a sabedoria <strong>de</strong> palavras, como algo<br />

que se opõe a Cristo; e, segundo, se ele tem em mente o fato <strong>de</strong> que<br />

a eloqüência e a doutrina do evangelho são invariavelmente opostas,<br />

então ambas não po<strong>de</strong>m conviver em harmonia, e que a pregação do<br />

evangelho é contaminada, caso o mais leve matiz <strong>de</strong> eloqüência 41 for<br />

usado para adorná-la.<br />

À primeira questão respondo que é totalmente irracional presumir<br />

que Paulo con<strong>de</strong>nasse peremptoriamente aquelas artes que,<br />

evi<strong>de</strong>ntemente, são esplêndidos dons <strong>de</strong> Deus, dons esses que servem<br />

como instrumentos, por assim dizer, a auxiliarem os homens na concretização<br />

<strong>de</strong> seus importantes propósitos. Portanto, visto que nessas<br />

artes nada existe <strong>de</strong> superstição, mas que são <strong>de</strong>tentoras <strong>de</strong> sólida<br />

erudição, 42 e se acham fundamentadas em princípios justos; e visto<br />

que são úteis e a<strong>de</strong>quados às transações comuns da vida humana, assim<br />

não po<strong>de</strong> haver dúvida <strong>de</strong> que sua origem se radica no Espírito<br />

Santo. Além disso, a utilida<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>riva e se experimenta <strong>de</strong>las<br />

<strong>de</strong>ve ser atribuída exclusivamente a Deus. Portanto, o que Paulo diz<br />

aqui não <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado como um <strong>de</strong>sdouro <strong>de</strong>ssas artes, como<br />

se fossem <strong>de</strong>sfavorável à pieda<strong>de</strong> [cristã].<br />

A segunda questão é um pouco mais difícil, pois ele diz que a cruz<br />

<strong>de</strong> Cristo será sem efeito se houver nela qualquer mescla da sabedoria<br />

<strong>de</strong> palavras. Minha resposta é que nossa atenção <strong>de</strong>ve estar focalizada<br />

naqueles a quem Paulo se dirige. Pois os ouvidos dos coríntios sofriam<br />

comichões, com tola avi<strong>de</strong>z, ao som <strong>de</strong> discursos rebuscados. 43 Por-<br />

41 “Eloquence et rhetorique.” – “Eloqüência e retórica.”<br />

42 “Vne bonne erudition, et sçauoir soli<strong>de</strong>.” – “Bom aprendizado e sólida sabedoria.”<br />

43 “Les Corinthiens auoyent les oreilles chatouilleuses, et estoyent transportez d’vn fol<br />

appetit d’auoir <strong>de</strong>s gens qui eussent vn beau parler.” – “Os coríntios tinham coceira nos<br />

ouvidos [2Tm 4.3], e se <strong>de</strong>ixavam levar por tola ansieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver pessoas que tinham<br />

bom gosto em vestir-se.”


64 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

tanto, careciam <strong>de</strong> ser chamados <strong>de</strong> volta à ignomínia da cruz mais do<br />

que outras pessoas, para que apren<strong>de</strong>ssem a abraçar a Cristo como<br />

ele é, sem qualquer adorno, e ao evangelho em sua simplicida<strong>de</strong>, livre<br />

<strong>de</strong> todo e qualquer adorno falso. Ao mesmo tempo reconheço que, em<br />

alguma medida, este conceito tem uma valida<strong>de</strong> permanente, a saber,<br />

que a cruz <strong>de</strong> Cristo per<strong>de</strong> seu efeito não meramente em virtu<strong>de</strong> da<br />

sabedoria do mundo, mas também da elegância lingüística. Pois a proclamação<br />

<strong>de</strong> Cristo crucificado é simples e sem adorno; e por isso não<br />

<strong>de</strong>ve ser obscurecida por falsos ornamentos <strong>de</strong> linguagem. A prerrogativa<br />

do evangelho é humilhar a sabedoria do mundo <strong>de</strong> tal maneira<br />

que, <strong>de</strong>spojados <strong>de</strong> nosso próprio entendimento, nos tornemos plenamente<br />

dóceis, e não pretendamos saber, ou mesmo <strong>de</strong>sejar conhecer<br />

algo que não seja aquilo que o próprio Senhor ensina. No que respeita<br />

à sabedoria humana, teremos ocasião <strong>de</strong> avaliar mais <strong>de</strong>tidamente,<br />

mais adiante, em que aspectos ela é oposta a Cristo. Quanto à eloqüência,<br />

chamarei a atenção para ela <strong>de</strong> forma abreviada, até on<strong>de</strong> a<br />

passagem o permite.<br />

Percebemos que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início Deus or<strong>de</strong>nou questões como<br />

esta: que o evangelho fosse administrado com simplicida<strong>de</strong>, sem qualquer<br />

auxílio da eloqüência. Não po<strong>de</strong>ria aquele que mo<strong>de</strong>lou a língua<br />

dos homens para que fosse eloqüente, ser ele mesmo eloqüente caso<br />

assim o quisesse? Embora ele pu<strong>de</strong>sse agir assim, contudo não quis<br />

que assim fosse. Por que ele não quis agir <strong>de</strong>ssa forma, <strong>de</strong>scubro duas<br />

razões mais específicas. A primeira é esta: para que a majesta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

sua verda<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse resplan<strong>de</strong>cer com a máxima niti<strong>de</strong>z, e a simples<br />

eficácia <strong>de</strong> seu Espírito, sem auxílios externos, pu<strong>de</strong>sse penetrar as<br />

mentes humanas. A segunda razão é esta: para que ele pu<strong>de</strong>sse treinar<br />

mais eficazmente nossa obediência e docilida<strong>de</strong>, e ao mesmo tempo<br />

nos instruir no caminho da genuína humilda<strong>de</strong>. Pois o Senhor a ninguém<br />

mais admite em sua escola senão os pequeninos. 44 Portanto, as<br />

únicas pessoas capacitadas com sabedoria celestial são aquelas que<br />

44 “Les humbles.” – “Os humil<strong>de</strong>s.”


Capítulo 1 • 65<br />

vivem contentes com a pregação da cruz, por mais indignas possam<br />

aparentar, e que não nutrem nenhum <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ver Cristo por trás<br />

<strong>de</strong> uma máscara [larratum]. Por isso a doutrina do evangelho tem <strong>de</strong><br />

ser ministrada para servir ao propósito <strong>de</strong> <strong>de</strong>spir os crentes <strong>de</strong> toda<br />

arrogância e orgulho.<br />

O que fazer, porém, se alguém em nossos dias, discursando com<br />

algum grau <strong>de</strong> elegância, adornar a doutrina do evangelho com faiscante<br />

eloqüência? Ele mereceria, por essa conta, ser rejeitado como<br />

se estivesse poluindo ou obscurecendo a glória <strong>de</strong> Cristo? Minha resposta,<br />

antes <strong>de</strong> tudo, é que a eloqüência não se acha <strong>de</strong> forma alguma<br />

em conflito com a simplicida<strong>de</strong> do evangelho quando, isento <strong>de</strong> menosprezo<br />

pelo evangelho, não só lhe dá o lugar <strong>de</strong> honra e se põe em<br />

sujeição a ele, mas também lhe presta um serviço como uma empregada<br />

faz a sua patroa. Pois, como diz Agostinho, “Aquele que <strong>de</strong>u Pedro,<br />

o pescador, também <strong>de</strong>u Cipriano, o orador”. Ele quis dizer com isso<br />

que ambos os homens provêm <strong>de</strong> Deus, ainda que um <strong>de</strong>les, sendo<br />

muito superior ao outro em dignida<strong>de</strong>, seja totalmente <strong>de</strong>spido <strong>de</strong> atavismo<br />

verbal; enquanto que o outro, se assenta aos pés do primeiro, se<br />

distingue pela fama <strong>de</strong> sua eloqüência. Não <strong>de</strong>vemos con<strong>de</strong>nar nem rejeitar<br />

o gênero <strong>de</strong> eloqüência que não almeja cativar cristãos com um<br />

requinte exterior <strong>de</strong> palavras, nem intoxicar os ouvintes com <strong>de</strong>leites<br />

fúteis, 45 nem fazer cócegas em seus ouvidos com sua suave melodia,<br />

nem envolver a cruz <strong>de</strong> Cristo com sua fútil exibição, à semelhança <strong>de</strong><br />

um véu. Senão que, ao contrário, seu alvo é trazer-nos <strong>de</strong> volta à original<br />

simplicida<strong>de</strong> do evangelho e pôr em relevo a pregação da cruz e<br />

nada mais, humilhando-se voluntariamente, e finalmente cumprindo,<br />

por assim dizer, seus <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> arauto, 46 para obter a atenção daquelas<br />

pessoas simples, comuns e sem cultura, que não <strong>de</strong>sfrutam <strong>de</strong><br />

nenhum atrativo senão do po<strong>de</strong>r do Espírito.<br />

45 “Ni à offusquer <strong>de</strong> sa pompe la croix <strong>de</strong> Christ, comme qui mettroit vne nuée au <strong>de</strong>uant.”<br />

– “Nem turvar a cruz <strong>de</strong> Cristo com sua fútil exibição, como se fosse atrair uma nuvem<br />

sobre ela.”<br />

46 “Brief, à seruir comme <strong>de</strong> trompette.” – “Em suma, para servir <strong>de</strong> trombeta.”


66 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Em segundo lugar, respondo que o Espírito <strong>de</strong> Deus também<br />

possui uma eloqüência peculiarmente sua. Ela brilha com aquele esplendor<br />

que lhe é natural, fazendo uso <strong>de</strong> uma palavra mais excelente,<br />

intrínseca (como dizem), superior aos pretensos ornamentos retóricos.<br />

Os profetas possuíam esta eloqüência, particularmente Isaías,<br />

Davi e Salomão. Moisés também possuía uma pitada <strong>de</strong>la. Ainda mais:<br />

mesmo nos escritos dos apóstolos, ainda que não tão polidos, não<br />

obstante há tênues centelhas <strong>de</strong>la se exibindo ocasionalmente ali. Daí,<br />

a eloqüência que está em conformida<strong>de</strong> com o Espírito <strong>de</strong> Deus é <strong>de</strong><br />

tal forma natural que nem é bombástica nem ostentosa, nem ainda<br />

produz um forte volume <strong>de</strong> ruídos que equivalem a nada. Antes é sólida<br />

e eficaz, e possui mais substância do que elegância.<br />

18. Porque a palavra da Cruz. Nesta primeira sentença, ele faz uma<br />

concessão. Porque, visto ser fácil objetar que o evangelho comumente<br />

é consi<strong>de</strong>rado com <strong>de</strong>sdém, se ele vem a ser conhecido numa forma<br />

<strong>de</strong>spida e insignificante, Paulo espontaneamente o admite. Mas quando<br />

ele acrescenta que esse é o ponto <strong>de</strong> vista daqueles que estão a perecer,<br />

significa que pouquíssimo valor se <strong>de</strong>ve pôr em sua opinião. Pois quem<br />

iria querer con<strong>de</strong>nar o evangelho às custas <strong>de</strong> sua perdição? Portanto,<br />

esta expressão <strong>de</strong>ve ser entendida nestes termos: “A pregação da cruz é<br />

consi<strong>de</strong>rada loucura por aqueles que estão a perecer, justamente porque<br />

ela não possui qualquer atavio <strong>de</strong> sabedoria humana que o recomen<strong>de</strong>.<br />

Seja como for, em nossa opinião, não obstante, a sabedoria <strong>de</strong> Deus está<br />

vividamente irradiando-se <strong>de</strong>la.” Paulo, contudo, indiretamente está<br />

censurando o juízo pervertido dos coríntios, os quais se <strong>de</strong>ixavam facilmente<br />

fascinar-se por palavras sedutoras <strong>de</strong> mestres megalomaníacos,<br />

e ainda olhavam com <strong>de</strong>sdém para o apóstolo que era dotado com o<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus para a salvação <strong>de</strong>les, e procediam assim simplesmente<br />

porque ele se <strong>de</strong>votava à proclamação <strong>de</strong> Cristo. Em meu comentário<br />

aos Romanos [1.16] expliquei <strong>de</strong> que maneira a proclamação da cruz é<br />

o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus para a salvação.<br />

19. Pois está escrito. Ao usar o testemunho <strong>de</strong> Isaías, Paulo prova<br />

ainda mais quão errônea é a idéia <strong>de</strong> que a veracida<strong>de</strong> do evangelho


Capítulo 1 • 67<br />

seria tomada com preconceito com base no fato <strong>de</strong> que os sábios <strong>de</strong>ste<br />

mundo o vêem com <strong>de</strong>scaso, para não dizer com zombaria. Pois é evi<strong>de</strong>nte,<br />

à luz das palavras dos profetas, que a opinião <strong>de</strong>les é reputada<br />

como nada sendo aos olhos <strong>de</strong> Deus. As palavras acima são tomadas<br />

<strong>de</strong> Isaías 29.14, on<strong>de</strong> o Senhor ameaça que se vingará da hipocrisia do<br />

povo com esse gênero peculiar <strong>de</strong> castigo, ou, seja: que “a sabedoria<br />

dos sábios perecerá” etc. Ora, isso se aplica à situação com que Paulo<br />

está lidando, da seguinte forma: “Não é novo nem fora do comum que<br />

homens, que parecem em outros aspectos ser eminentes pela sabedoria,<br />

formem juízos totalmente absurdos. Pois o Senhor tem por hábito<br />

<strong>de</strong> punir <strong>de</strong>sta maneira a arrogância daqueles que confiam em sua própria<br />

habilida<strong>de</strong> natural e preten<strong>de</strong>m ser seus próprios guias e os <strong>de</strong><br />

outras pessoas. Foi assim que ele, certa vez, <strong>de</strong>struiu a sabedoria dos<br />

lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong> Israel. Se tal suce<strong>de</strong>u àquele povo, cuja sabedoria as <strong>de</strong>mais<br />

nações tiveram ocasião <strong>de</strong> admirar, o que virão a ser as <strong>de</strong>mais?<br />

Entretanto, <strong>de</strong>vemos comparar as palavras do profeta com as <strong>de</strong><br />

Paulo, e examinar toda a questão ainda mais estreitamente. Deveras<br />

o profeta usa verbos neutros quando diz que “a sabedoria perecerá e<br />

a prudência se <strong>de</strong>svanecerá”, quando Paulo os transpõe para a forma<br />

ativa, fazendo Deus o sujeito, contudo concordam perfeitamente em<br />

significado. Pois Deus <strong>de</strong>monstra que ele executará esta gran<strong>de</strong> maravilha,<br />

para que todos sejam postos em espanto. Assim, “a sabedoria<br />

perece”, mas é através do ato <strong>de</strong>struidor do Senhor; “a sabedoria se<br />

<strong>de</strong>svanece”, mas é pelo ato do Senhor em cobri-la e extingui-la. Ora, o<br />

segundo verbo, αθετει̑ν, o qual Erasmo traduz por reiicere [rejeitar], é<br />

ambíguo e às vezes é tomado no sentido <strong>de</strong> extinguir (<strong>de</strong>lere), ou riscar<br />

(expungere), ou obliterar [obliterare]. Este é o sentido em que prefiro<br />

tomá-lo, para fazê-lo correspon<strong>de</strong>r à palavra do profeta: <strong>de</strong>svanecer ou<br />

estar oculto [<strong>de</strong>saparecer]. Ao mesmo tempo, há outra razão que teve<br />

uma influência mais forte em mim, 47 a saber, a idéia <strong>de</strong> rejeição não se<br />

47 “Combien que j’aye vne raixon encore plus valable, qui m’a induit à changer ceste translation.”<br />

– “Ao mesmo tempo, tenho uma razão ainda mais forte que me tem induzido a<br />

alterar esta tradução.”


68 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

harmonizava com o tema, como logo se fará evi<strong>de</strong>nte. Consi<strong>de</strong>remos,<br />

pois, o significado. O profeta quer provar mui claramente que eles [os<br />

ju<strong>de</strong>us] não mais teriam governadores com qualificações legítimas<br />

para governar bem, porque o Senhor os privará <strong>de</strong> perfeito juízo e <strong>de</strong><br />

inteligência. Pois assim como em outras passagens [Is 6.10] ele ameaça<br />

a todas as pessoas com cegueira, também aqui com relação aos<br />

lí<strong>de</strong>res; é precisamente como se ele fosse arrancar os olhos físicos.<br />

Seja como for, uma gran<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong> surge da circunstância <strong>de</strong><br />

que os termos sabedoria e prudência são consi<strong>de</strong>rados por Isaías em<br />

bom sentido, enquanto Paulo os cita com um propósito completamente<br />

diferente, como se a sabedoria dos homens fosse con<strong>de</strong>nada<br />

por Deus como sendo perversa, e sua prudência rejeitada como sendo<br />

mera vaida<strong>de</strong>. Concordo que ela é explicada <strong>de</strong>ssa forma, visto,<br />

porém, ser indubitável que os oráculos do Espírito Santo não são<br />

pervertidos pelos apóstolos para assumirem outros significados estranhos<br />

a seu real <strong>de</strong>sígnio, prefiro afastar-me da opinião comum dos<br />

intérpretes, do que acusar Paulo <strong>de</strong> distorcer a verda<strong>de</strong>. E também<br />

em outros aspectos o significado natural das palavras do profeta não<br />

se a<strong>de</strong>qua mal com a intenção <strong>de</strong> Paulo. Pois se mesmo os sábios<br />

se tornam insensatos quando o Senhor retira um espírito justo, que<br />

confiança <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>positada na sabedoria humana? Além disso,<br />

visto que a maneira usual <strong>de</strong> Deus vingar-se é golpeando com cegueira<br />

aos que se acham presos a seu próprio entendimento e são<br />

excessivamente sábios a seus próprios olhos, e não surpreen<strong>de</strong> que<br />

homens carnais se levantem contra Deus na tentativa <strong>de</strong> fazer sua<br />

eterna verda<strong>de</strong> ser substituída por suas temerida<strong>de</strong>s, tornam-se insensatos<br />

e vêm a ser fúteis em suas imaginações. Agora percebemos<br />

com que pertinência Paulo faz uso <strong>de</strong>ste testemunho. Isaías <strong>de</strong>clara<br />

que a vingança <strong>de</strong> Deus que recai sobre todos quantos serviram a<br />

Deus com suas próprias invenções seria que “a sabedoria <strong>de</strong>sapareceria<br />

<strong>de</strong> seus sábios”. Paulo faz uso <strong>de</strong>ste testemunho <strong>de</strong> Isaías com<br />

vistas a provar que a sabedoria <strong>de</strong>ste mundo é inútil e sem valor<br />

quando se exalta contra Deus.


Capítulo 1 • 69<br />

20. On<strong>de</strong> está o sábio? On<strong>de</strong> está o escriba? Esta nota <strong>de</strong> sarcasmo<br />

é adicionada com o propósito <strong>de</strong> ilustrar o testemunho do<br />

profeta. Paulo por certo não tomou esta expressão <strong>de</strong> Isaías, como<br />

comumente se imagina, mas é uma expressão <strong>de</strong> seu próprio pensamento.<br />

Pois a passagem <strong>de</strong> Isaías [33.18], a que as pessoas se<br />

referem, não tem absolutamente nenhuma similitu<strong>de</strong> ou relação<br />

com a presente abordagem. Porque, visto que Isaías está ali prometendo<br />

aos ju<strong>de</strong>us o livramento do juízo <strong>de</strong> Senaqueribe a fim <strong>de</strong><br />

mostrar-lhes muito mais claramente quão gran<strong>de</strong> é essa bênção<br />

divina, ele então prossegue lembrando-lhes a condição ignóbil daqueles<br />

que são oprimidos pela tirania <strong>de</strong> estrangeiros. Diz que eles<br />

viviam num constante estado <strong>de</strong> agitada incerteza, quando pensam<br />

em si mesmos como sendo ameaçados por escribas e tesoureiros,<br />

pelos que pesavam os tributo e por contadores <strong>de</strong> torres. Mais que<br />

isso, ele diz que os ju<strong>de</strong>us tinham vivido em situações tão críticas,<br />

que eram movidos à gratidão pela simples lembrança <strong>de</strong>las. Portanto,<br />

é um equívoco imaginar que esta expressão foi tomada do<br />

profeta. 48 O termo mundo não <strong>de</strong>ve ser tomado em conexão meramente<br />

com o último termo, mas também com os outros dois. Ora,<br />

pela expressão, sábios <strong>de</strong>ste mundo, ele quer dizer os que não <strong>de</strong>rivam<br />

sua sabedoria da iluminação do Espírito por meio da Palavra<br />

<strong>de</strong> Deus, mas, revestida com mera e profana sagacida<strong>de</strong>, repousa na<br />

segurança que ela propicia.<br />

Geralmente se concorda que o termo escribas significa mestres.<br />

Porque, visto que rps, saphar, entre os hebreus, significa narrar ou contar,<br />

e o substantivo <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong>la, rps, sepher, significa livro ou volume,<br />

empregam o termo myrp]ws, sopherim, para <strong>de</strong>notar os homens eruditos<br />

e os que são amigos dos livros. Por essa razão também sopher regis às<br />

vezes é usado para <strong>de</strong>notar um chanceler ou secretário. Então os gre-<br />

48 “As palavras <strong>de</strong> Paulo em 1 Coríntios 1.20 não constituem, como alguns imaginavam, uma<br />

citação das palavras <strong>de</strong>ste versículo” [Is 33.18]. “Os únicos pontos <strong>de</strong> concordância entre<br />

elas são meramente a ocorrência <strong>de</strong> γραμματεὺς, e a repetição da interrogativa που̑. Não é<br />

impossível, contudo, que a estrutura <strong>de</strong> uma passagem esteja sugerida na outra.” – Hen<strong>de</strong>rson<br />

sobre Isaías.


70 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

gos, seguindo a etimologia da palavra hebraica, traduziam γραμματεις<br />

para escribas. 49<br />

Paulo, apropriadamente, chama investigadores 50 aos que revelam<br />

perspicácia em lidar com problemas difíceis e questões intrincadas.<br />

Portanto, falando em termos gerais, ele <strong>de</strong>stroça todas as habilida<strong>de</strong>s<br />

naturais dos homens, ao ponto <strong>de</strong> não valerem nada no reino <strong>de</strong> Deus.<br />

E não é sem boas razões que ele fala tão veementemente contra a sabedoria<br />

humana. Pois nenhuma palavra po<strong>de</strong> <strong>de</strong>screver quão difícil é<br />

eliminar das mentes humanas sua mal direcionada confiança na carne,<br />

para que não arroguem para si mais do que lhes é <strong>de</strong>vido. Entretanto,<br />

seria ir além dos limites se, confiando, mesmo em mínimo grau, em sua<br />

própria sabedoria, se aventurarem a formar opiniões a seu próprio<br />

respeito.<br />

Não tornou Deus louca a sabedoria do mundo? Por sabedoria,<br />

Paulo quer dizer, aqui, tudo quanto o homem po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r, não<br />

só por sua própria habilida<strong>de</strong> mental e natural, mas também pelo auxílio<br />

da experiência, escolarida<strong>de</strong> e conhecimento das artes. Porquanto,<br />

ele contrasta a sabedoria do mundo com a sabedoria do Espírito. Segue-<br />

-se que qualquer conhecimento que uma pessoa venha a possuir, sem<br />

a iluminação do Espírito Santo, está incluído na sabedoria <strong>de</strong>ste mundo.<br />

Ele afirma que Deus tornou ridículo tudo isso, ou con<strong>de</strong>nou como<br />

loucura. Deve-se enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> duas maneiras como isso é feito. Pois<br />

qualquer conhecimento e entendimento que uma pessoa porventura<br />

possua não tem o menor valor se não repousar na verda<strong>de</strong>ira sabedoria;<br />

e não é <strong>de</strong> mais valor para apreen<strong>de</strong>r o ensino do que os olhos <strong>de</strong><br />

um cego para distinguir as cores. Deve-se prestar cuidadosa atenção<br />

49 A frase hebraica mencionada ocorre em 2 Reis 12.10, ilmh rps, o escriba do rei. É traduzida<br />

pela Septuaginta ὁ γραμματεύς του̑ βασιλέως. O termo grego correspon<strong>de</strong>nte, γραμματεύς,<br />

é empregado pelos escritores clássicos para <strong>de</strong>notar um clérigo ou secretário (Demosth.<br />

269.19). Os notários (γραμματεις) “tinham a custódia da lei e dos registros públicos que<br />

tinham por <strong>de</strong>ver escrever e repetir para o povo e senado quando assim requerido.” –<br />

Potter’s Grecian Antiquities, Vol. I, p. 103.<br />

50 Calvino aqui evi<strong>de</strong>ntemente tem diante dos olhos o significado original <strong>de</strong> συζητητης, que<br />

se <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> συν e ζητεω (inquirir juntos) e chegou naturalmente a significar alguém que<br />

se entrega a argumentos ou disputas. O termo era aplicado aos sofistas sutis, ou os que<br />

disputavam nas aca<strong>de</strong>mias gregas.


Capítulo 1 • 71<br />

a ambas as questões, ou, seja: Primeiramente, que o conhecimento<br />

<strong>de</strong> todas as ciências não passa <strong>de</strong> fumaça à parte da ciência celestial<br />

<strong>de</strong> Cristo; e, segundo, que o homem com toda sua astúcia é <strong>de</strong>mais<br />

estúpido para enten<strong>de</strong>r, por si só, os mistérios <strong>de</strong> Deus. Precisamente<br />

como um asno é incapaz <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a harmonia musical. Paulo<br />

mostra a disposição para o orgulho <strong>de</strong>vorador existente naqueles que<br />

se vangloriam na sabedoria <strong>de</strong>ste mundo, ao ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezarem a<br />

Cristo e a toda a doutrina da salvação, imaginando que serão felizes<br />

meramente por a<strong>de</strong>rirem às coisas <strong>de</strong>ste mundo. Também golpeia a<br />

arrogância daqueles que, confiando em sua própria capacida<strong>de</strong>, tentam<br />

escalar o próprio céu.<br />

Há também uma solução fornecida, ao mesmo tempo, para a pergunta:<br />

Como é possível que Paulo lance por terra, <strong>de</strong>sta forma, todo<br />

gênero <strong>de</strong> conhecimento que existe fora <strong>de</strong> Cristo, e calcar aos pés,<br />

por assim dizer, o que bem se sabe ser o principal dom <strong>de</strong> Deus neste<br />

mundo? Pois o que há <strong>de</strong> mais nobre do que a razão humana, por<br />

meio da qual excelemos aos <strong>de</strong>mais animais? Quão sumamente merecedoras<br />

<strong>de</strong> honra são as ciências liberais, as quais refinam o homem<br />

<strong>de</strong> tal forma que o fazem verda<strong>de</strong>iramente humano! Além disso, que<br />

extraordinários e seletos frutos eles produzem! Quem não atribuiria<br />

o mais sublime louvor a fim <strong>de</strong> exaltar a prudência 51 estadista (sem<br />

falar em outras coisas), por meio da qual estados, impérios e reinos<br />

são mantidos?<br />

Creio que uma solução para esta pergunta é a seguinte: é evi<strong>de</strong>nte<br />

que Paulo não con<strong>de</strong>na peremptoriamente, seja o discernimento dos<br />

homens, seja a sabedoria granjeada pela prática e a experiência, seja<br />

o aprimoramento da mente através da cultura; mas o que ele diz é que<br />

todas essas coisas são inúteis para a obtenção da sabedoria espiritual.<br />

E certamente é loucura para todos quantos presumem que po<strong>de</strong>m escalar<br />

o céu, confiando em sua própria perspicácia ou com o auxílio da<br />

cultura; em outros termos, é loucura preten<strong>de</strong>r investigar os mistérios<br />

51 “La pru<strong>de</strong>nce civile, c’est à dire la science <strong>de</strong>s lois.” – “Prudência civil, isto é, a ciência das<br />

leis.”


72 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

secretos do reino <strong>de</strong> Deus 52 [ x 19.21], ou forçar caminho para o conhecimento<br />

<strong>de</strong>les, pois eles se acham ocultos à percepção humana. Portanto,<br />

tomemos nota do fato <strong>de</strong> que <strong>de</strong>vemos limitar-nos às circunstâncias do<br />

presente caso, ou, seja, que Paulo aqui ensina acerca da futilida<strong>de</strong> da sabedoria<br />

<strong>de</strong>ste mundo, a saber: que ela permanece no nível <strong>de</strong>ste mundo,<br />

e que <strong>de</strong> forma alguma alcança o céu. É também verda<strong>de</strong>, em outro sentido,<br />

que fora <strong>de</strong> Cristo cada ramo do conhecimento humano é fútil, e o<br />

homem que se acha bem estabelecido em cada aspecto da cultura, mas<br />

que prossegue igualmente ignorante <strong>de</strong> Deus, não possui nada. Além do<br />

mais, <strong>de</strong>ve-se também dizer, com todas as letras, que estes excelentes<br />

dons divinos – perspicácia mental, agu<strong>de</strong>za da razão, ciências liberais,<br />

conhecimento idiomático – tudo isso, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra, se corrompe,<br />

sempre que cai nas mãos dos ímpios.<br />

21. Visto que, na sabedoria <strong>de</strong> Deus,<br />

o mundo não o conheceu por sua<br />

sabedoria, foi do agrado <strong>de</strong> Deus<br />

salvar os que crêem pela loucura da<br />

pregação.<br />

22. Visto que os ju<strong>de</strong>us pe<strong>de</strong>m sinais, e<br />

os gregos buscam sabedoria,<br />

23. para os que são chamados, porém,<br />

tanto ju<strong>de</strong>us como grego,<br />

24. [pregamos] Cristo, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

Deus, e a sabedoria <strong>de</strong> Deus.<br />

25. Porque a loucura <strong>de</strong> Deus é mais sábia<br />

que os homens; e a fraqueza <strong>de</strong><br />

Deus é mais forte que os homens.<br />

21. Quoniam enim in sapientia Dei non<br />

cognovit mundus per sapientiam<br />

Deum, placuit Deo per stultitiam<br />

prædicationis salvos facere cre<strong>de</strong>ntes.<br />

22. Siqui<strong>de</strong>m et Judaæ signum petunt<br />

et Græci sapientiam quærunt.<br />

23. Nos autem prædicamus Christtum<br />

crucifixum, Judæis qui<strong>de</strong>m scandalum,<br />

Græcis autem stultitiam:<br />

24. Ipsis autem vocatis, tam Judæis,<br />

quam Græcis, Christum Dei potentiam,<br />

et Dei sapientiam.<br />

25. Nam stultitia Dei sapientior est hominibus,<br />

et infirmitas Dei robustior<br />

est hominibus.<br />

21. Visto que o mundo não conheceu. A or<strong>de</strong>m correta das coisas<br />

era precisamente esta: que o homem, contemplando a sabedoria<br />

<strong>de</strong> Deus em suas obras, pelo auxílio da luz do entendimento que lhe<br />

52 Veja-se Institutas, vol. i, pp. 323, 324.


Capítulo 1 • 73<br />

fora fornecida pela natureza (ingenita sibis injenii luce), pu<strong>de</strong>sse chegar<br />

a uma familiarida<strong>de</strong> com ele. Mas em razão <strong>de</strong>sta or<strong>de</strong>m ter-se<br />

invertido pela perversida<strong>de</strong> do homem, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, antes <strong>de</strong><br />

tudo, é tornar-nos loucos a nossos próprios olhos, antes <strong>de</strong> começar<br />

a instruir-nos no conhecimento da salvação [2Tm 3.15]. Daí em diante,<br />

como evidência <strong>de</strong> sua sabedoria, ele põe diante <strong>de</strong> nossos olhos<br />

aquilo que tem certa aparência <strong>de</strong> loucura. A ingratidão dos homens<br />

mereceu esta inversão das coisas. Paulo <strong>de</strong>screve como sabedoria <strong>de</strong><br />

Deus as belezas do mundo todo, as quais são esplêndida evidência <strong>de</strong><br />

sua sabedoria, pois elas se nos afiguram <strong>de</strong> maneira <strong>de</strong>masiadamente<br />

clara. Portanto, nas coisas que ele criou, Deus mantém diante <strong>de</strong> nós<br />

nítido espelho <strong>de</strong> sua esplendorosa sabedoria. Em resultado, qualquer<br />

indivíduo que <strong>de</strong>sfrute <strong>de</strong> pelo menos uma leve fagulha <strong>de</strong> bom senso,<br />

e atenta para o mundo e para outras obras divinas, se vê dominado<br />

por ar<strong>de</strong>nte admiração por Deus. Se os homens chegassem a um genuíno<br />

conhecimento <strong>de</strong> Deus pela observação <strong>de</strong> suas obras, certamente<br />

viriam a conhecer Deus <strong>de</strong> uma forma sábia, ou daquela forma <strong>de</strong> adquirir<br />

sabedoria que lhes é natural e a<strong>de</strong>quada. Mas porque o mundo<br />

todo não apren<strong>de</strong>u absolutamente nada do que Deus revelou <strong>de</strong> sua<br />

sabedoria nas coisas criadas, ele, pois, passou a instruir os homens<br />

<strong>de</strong> outra maneira. Deve-se atribuir a nossa própria culpa o fato <strong>de</strong> não<br />

alcançarmos um conhecimento salvífico <strong>de</strong> Deus antes <strong>de</strong> sermos esvaziados<br />

<strong>de</strong> nosso próprio entendimento.<br />

Paulo faz uma concessão ao chamar o evangelho <strong>de</strong> loucura da<br />

pregação, pois esta é precisamente a luz na qual ele é consi<strong>de</strong>rado por<br />

aqueles “sábios insensatos” (μωροσόφοις) que, intoxicados por falsa<br />

confiança, 53 não temem subjugar a inviolável verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus a sua<br />

própria e medíocre censura. E, além do mais, não há dúvida <strong>de</strong> que<br />

a razão humana não acha nada mais absurdo do que a notícia <strong>de</strong> que<br />

Deus se tornou um homem mortal; que a vida está sujeita à morte; que<br />

a justiça foi velada sob a aparência <strong>de</strong> pecado; que a fonte <strong>de</strong> bênção<br />

53 “Et outrecuidance.” – “E presunção.”


74 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

ficou sujeita à maldição; que por esses meios os homens po<strong>de</strong>m ser<br />

redimidos da morte e tornar-se participantes da bendita imortalida<strong>de</strong>;<br />

que po<strong>de</strong>m obter a vida; que, sendo o pecado <strong>de</strong>struído, a justiça volta<br />

a reinar; e que a morte e a maldição po<strong>de</strong>m ser tragadas. Não obstante,<br />

sabemos que o evangelho é, nesse ínterim, a sabedoria oculta [1Co 2.7]<br />

que exce<strong>de</strong> os céus e suas alturas, e diante do qual até mesmo os anjos<br />

ficam pasmos. Esta é uma passagem muito excelente, e <strong>de</strong>la po<strong>de</strong>mos<br />

ver nitidamente quão profunda é a obtusida<strong>de</strong> da mente humana que,<br />

em meio à luz, nada percebe. Pois é uma gran<strong>de</strong> verda<strong>de</strong> que este mundo<br />

se assemelha a um teatro no qual o Senhor exibe diante <strong>de</strong> nós um<br />

surpreen<strong>de</strong>nte espetáculo <strong>de</strong> sua glória. Entretanto, quando tais cenas<br />

se <strong>de</strong>scerram diante <strong>de</strong> nossos olhos, nos revelamos cegos como<br />

pedras, não porque a revelação seja obscura, mas porque somos “alienados<br />

no entendimento” (mente alienati, Cl 1.21), significando que<br />

não só a inclinação, mas também a habilida<strong>de</strong> nos são falhas. Porque,<br />

a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> Deus se nos revelar publicamente, todavia é só pelos<br />

olhos da fé que po<strong>de</strong>mos contemplá-lo, tendo em mente que recebemos<br />

só uma leve noção <strong>de</strong> sua natureza divina, mas o bastante para<br />

pôr-nos na posição <strong>de</strong> seres sem justificativa [Rm 1.20].<br />

Conseqüentemente, visto que Paulo aqui diz que Deus não po<strong>de</strong><br />

ser conhecido pelo prisma das coisas que ele criou, <strong>de</strong>vemos enten<strong>de</strong>r<br />

com isso que não se po<strong>de</strong> obter o conhecimento absoluto <strong>de</strong> Deus.<br />

Para que ninguém apresente pretexto em prol <strong>de</strong> sua ignorância, os<br />

homens fazem progresso na escola universal da natureza ao ponto<br />

<strong>de</strong> serem afetados com alguma consciência da <strong>de</strong>ida<strong>de</strong>, porém não<br />

têm idéia do que seja a natureza <strong>de</strong> Deus. Ao contrário, seu pensamento<br />

se dissolve em nada [Rm 1.21]. Dessa forma a luz brilha nas<br />

trevas [Jo 1.5]. Portanto, segue-se que os homens não vivem no erro<br />

por mera ignorância, a fim <strong>de</strong> ficarem isentos da acusação <strong>de</strong> menosprezo,<br />

negligência e ingratidão. Portanto proce<strong>de</strong> que “todos têm<br />

conhecimento <strong>de</strong> Deus” [Deum novisse], porém “não lhe dão glória”<br />

[Rm 1.21]; e que, em contrapartida, ninguém, à luz da mera natureza,<br />

jamais fez tanto progresso que chegasse a conhecer a Deus [Deum


Capítulo 1 • 75<br />

cognosceret]. Alguém po<strong>de</strong>ria apresentar os filósofos como exceção a<br />

essa regra; replico, porém, que é especialmente em seu caso que há<br />

um conspícuo exemplo <strong>de</strong> nossa fraqueza. Pois não se po<strong>de</strong> encontrar<br />

sequer um que constantemente não tenha se afastado daquele princípio<br />

<strong>de</strong> conhecimento que já mencionei, vagueando 54 pelos meandros<br />

<strong>de</strong> especulações ilusórias. São na maioria das vezes mais tolos do que<br />

espertos! Quando Paulo diz que “os que crêem são salvos”, isso correspon<strong>de</strong><br />

ao versículo 18, ou, seja, que “o evangelho é o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus<br />

para a salvação” [Rm 1.16]. Além disso, ao contrastar os crentes, cujo<br />

número é diminuto, com um mundo cego e louco, Paulo está nos lembrando<br />

<strong>de</strong> que nos equivocamos quando nos sentimos perturbados<br />

ante o pequeno número dos salvos, visto que, pela ação <strong>de</strong> Deus, eles<br />

foram divinamente separados “para a salvação”.<br />

22, 23. Visto que os ju<strong>de</strong>us pe<strong>de</strong>m sinais. Isso explica as sentenças<br />

anteriores, ou, seja, Paulo está mostrando <strong>de</strong> que maneira a pregação<br />

do evangelho é consi<strong>de</strong>rada uma loucura. Ao mesmo tempo ele não só<br />

explica, mas também expan<strong>de</strong>, dizendo que os ju<strong>de</strong>us fazem mais que<br />

reputar o evangelho como sendo <strong>de</strong> pouco valor, eles, além disso, o<br />

<strong>de</strong>testam. “Os ju<strong>de</strong>us”, diz Paulo, “querem, através dos milagres, ter a<br />

evidência do po<strong>de</strong>r divino ante seus olhos. Os gregos amam aquilo que<br />

possui o encanto da sutileza e se <strong>de</strong>leitam na engenhosida<strong>de</strong> humana.<br />

Nós, na verda<strong>de</strong>, pregamos o Cristo crucificado, e, à primeira vista, não<br />

há nada <strong>de</strong> extraordinário nisso senão fraqueza e loucura. Portanto,<br />

ele não passa <strong>de</strong> pedra <strong>de</strong> tropeço para os ju<strong>de</strong>us quando o vêem aparentemente<br />

esquecido por Deus. Quando os gregos ouvem qual foi o<br />

método da re<strong>de</strong>nção, acreditam ouvir uma fábula.” Em minha opinião,<br />

Paulo quer dizer pelo termo gregos não simplesmente os pagãos ou<br />

gentios, mas todos aqueles que eram educados nas ciências liberais,<br />

ou que eram <strong>de</strong> projeção em razão <strong>de</strong> sua inteligência supe rior. Ao<br />

mesmo tempo, à guisa <strong>de</strong> sinédoque, todos os outros estão igualmente<br />

incluídos aqui. Entre ju<strong>de</strong>us e gregos, contudo, ele traça uma distin-<br />

54 “Extreuagantes.” – “Extravagantes.”


76 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

ção, dizendo que os primeiros, furiosos contra Cristo movidos por um<br />

zelo irracional pela lei, trovejavam em tormenta <strong>de</strong> fúria contra o evangelho,<br />

como os hipócritas costumam fazer quando estão lutando por<br />

suas próprias crenças equivocadas [superstitionibus]. Os gregos, em<br />

contrapartida, intumescidos <strong>de</strong> orgulho, <strong>de</strong>sprezavam-no como sendo<br />

algo insípido.<br />

O fato <strong>de</strong> Paulo <strong>de</strong>scobrir culpa nos ju<strong>de</strong>us por serem eles tão ansiosos<br />

em querer sinais, não significa que, em si mesmo, seja errôneo<br />

<strong>de</strong>sejá-los. Mas ele mostra on<strong>de</strong> estavam errados, à luz dos seguintes<br />

pontos: (1) em sua repetida insistência em exigir milagres, estavam,<br />

em certo sentido, prensando Deus sob suas leis; (2) através do embotamento<br />

<strong>de</strong> seu entendimento, queriam manter contato palpável 55 com<br />

Deus por meio <strong>de</strong> milagres públicos; (3) sendo hipnotizados pelos próprios<br />

milagres, olhavam para eles com estupor; (4) em suma, nenhum<br />

milagre po<strong>de</strong>ria satisfazê-los, mas a cada dia aguardavam, ansiosos,<br />

ver um novo. Ezequias não é censurado só porque prontamente consentiu<br />

ser confirmado por meio <strong>de</strong> um sinal [2Rs 19.29; 20.8]. Inclusive<br />

Gi<strong>de</strong>ão não foi reprovado, embora solicitasse um duplo sinal [Jz 6.37,<br />

39]. No entanto, em contrapartida, Acaz é con<strong>de</strong>nado por recusar o<br />

sinal que o profeta lhe ofereceu [Is 7.12]. Em que os ju<strong>de</strong>us, pois, estavam<br />

errados quando pe<strong>de</strong>m milagres? Estava nisto: não os buscavam<br />

para um bom propósito; não punham nenhum limite a suas exigências;<br />

não faziam bom uso <strong>de</strong>les. Pois enquanto a fé <strong>de</strong>ve ser auxiliada<br />

pelos milagres, sua única preocupação era permanecer o máximo<br />

possível em sua <strong>de</strong>scrença. Embora seja ilícito prescrever leis para<br />

Deus, expandiam sua monstruosa e irrefreada libertinagem. Enquanto<br />

os milagres <strong>de</strong>vem nos conduzir a uma maior familiarida<strong>de</strong> com<br />

Cristo e com a graça espiritual <strong>de</strong> Deus, para os ju<strong>de</strong>us não passava<br />

<strong>de</strong> obstáculos. Por essa razão também Cristo os repreen<strong>de</strong>, dizendo:<br />

“Uma geração perversa busca sinais” [Mc 8.12]. Porquanto não havia<br />

55 Não po<strong>de</strong> haver dúvida <strong>de</strong> que Calvino se refere aqui a uma expressão usada por Paulo em<br />

seu discurso aos atenienses [At 17.27]: “se porventura, tateando, o pu<strong>de</strong>ssem achar.” A<br />

alusão é a um cego que anda tateando em seu caminho. A mesma palavra é empregada por<br />

Platão: “Neste aspecto, muitos me parecem estar tateando como se estivessem no escuro.”


Capítulo 1 • 77<br />

limites para sua curiosida<strong>de</strong> e suas persistentes exigências; e tão logo<br />

obtinham milagres, nenhum benefício viam neles.<br />

24. Tanto gregos como ju<strong>de</strong>us. Paulo mostra, através <strong>de</strong>sta antítese,<br />

quão pessimamente é Cristo recebido, e que isso não era <strong>de</strong>vido<br />

a alguma falha <strong>de</strong>le, nem pela natural inclinação do gênero humano,<br />

mas que sua causa consiste na <strong>de</strong>pravação daqueles que não foram<br />

iluminados por Deus. Pois nenhuma pedra <strong>de</strong> tropeço impe<strong>de</strong> os eleitos<br />

<strong>de</strong> Deus <strong>de</strong> irem a Cristo com o fim <strong>de</strong> encontrarem nele a certeza<br />

da salvação. Paulo contrasta po<strong>de</strong>r com pedra <strong>de</strong> tropeço que advém<br />

da humilda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo, e confronta sabedoria com loucura. A essência<br />

disso, pois, é a seguinte: “Eu sei que nenhuma coisa, a não ser<br />

sinais, po<strong>de</strong> exercer algum efeito na obstinação dos ju<strong>de</strong>us, e que na<br />

realida<strong>de</strong> só um fútil gênero <strong>de</strong> sabedoria po<strong>de</strong> aplacar o <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhoso<br />

menosprezo dos gregos. Não <strong>de</strong>vemos, contudo, dar <strong>de</strong>masiada importância<br />

a este fato, visto que não importa o quanto nosso Cristo<br />

ofen<strong>de</strong> os ju<strong>de</strong>us com a humilda<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua cruz e é tratado com o máximo<br />

<strong>de</strong>sprezo pelos gregos; não obstante, ele é para todos os eleitos, <strong>de</strong><br />

todas as nações, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus para a salvação, para remover essas<br />

pedras <strong>de</strong> tropeço, e a sabedoria <strong>de</strong> Deus para afastar toda e qualquer<br />

dissimulação [larvam] no campo da sabedoria.” 56<br />

25. Porque a loucura <strong>de</strong> Deus. Quando Deus trata conosco, <strong>de</strong><br />

certa forma parece agir <strong>de</strong> maneira absurda só pelo fato <strong>de</strong> não exibir<br />

sua sabedoria; não obstante, o que aparenta ser absurdo exce<strong>de</strong><br />

em sabedoria a toda a engenhosida<strong>de</strong> humana. Além do mais, quando<br />

Deus oculta seu po<strong>de</strong>r e parece agir como se fosse frágil, o que<br />

se imagina ser fragilida<strong>de</strong> é, não obstante, mais forte do que todo o<br />

po<strong>de</strong>r humano. Devemos, contudo, observar sempre, ao lermos estas<br />

palavras, que existe aqui uma concessão, como já fiz notar um pouco<br />

antes. 57 Pois alguém po<strong>de</strong> notar mui claramente quão impróprio<br />

é atribuir a Deus, seja loucura, seja fraqueza; mas era indispensável,<br />

56 “Pour oster et faire esvanoir ceste vaine apparence, et masque <strong>de</strong> sagesse.” – “Para remover<br />

e fazer <strong>de</strong>saparecer aquela fútil exibição e máscara <strong>de</strong> sabedoria.”<br />

57 Veja-se página XXX.


78 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

por meio <strong>de</strong>ssas expressões irônicas, rebater a insone arrogância da<br />

carne, a qual não hesita espoliar a Deus <strong>de</strong> toda sua glória.<br />

26. Irmãos, ve<strong>de</strong> que vossa vocação<br />

não inclui muitos sábios segundo a<br />

carne, nem muitos po<strong>de</strong>rosos, nem<br />

muitos nobres são chamados.<br />

27. Deus, porém, escolheu as coisas<br />

loucas do mundo para confundir as<br />

sábias; e Deus escolheu as coisas<br />

fracas do mundo para confundir as<br />

que são po<strong>de</strong>rosas;<br />

28. e as coisas insignificantes do<br />

mundo, e as coisas que são <strong>de</strong>sprezadas,<br />

sim, Deus escolheu as coisas<br />

que não são para reduzir a nada as<br />

coisas que são;<br />

29. para que nenhuma carne se glorie<br />

em sua presença.<br />

30. Vós, porém, sois <strong>de</strong>le em Cristo<br />

Jesus, o qual foi feito para nós sabedoria,<br />

e justiça, e santificação, e<br />

re<strong>de</strong>nção.<br />

31. Para que, como está escrito, aquele<br />

que se gloria, glorie-se no Senhor.<br />

26. Vi<strong>de</strong>te (vel, vi<strong>de</strong>tis) vocationem<br />

vestram, fratres, quod non multi 58<br />

sapientes secundum carnem, non<br />

multi potentes, non multi nobiles:<br />

27. Sed stulta mundi elegit Deus, ut<br />

sapientes pu<strong>de</strong>faciat: et infirma<br />

mundi elegit Deus, ut patefaciat<br />

fortia:<br />

28. Et ignobilia mundi et contempta<br />

elegit Deus, et ea quæ non erant, ut<br />

quæ erant aboleret;<br />

29. Ne glorietur ulla caro coram Deo.<br />

30. Ex ipso vos estis 59 in Christo Jesu,<br />

qui factus est nobis sapientia a<br />

Deo, et justitia, et sanctificatio, et<br />

re<strong>de</strong>mptio. 60<br />

31. Ut (quemadmodum scriptum est)<br />

Qui gloriatur, in Domino glorietur<br />

(Jer. ix.24).<br />

26, 27. Olhai para vossa própria vocação. Em razão <strong>de</strong> haver dúvida<br />

sobre o modo do verbo grego βλέπετε, o indicativo a<strong>de</strong>quar-se ao<br />

contexto tão bem quanto o imperativo, <strong>de</strong>ixo ao leitor a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>cidir segundo sua preferência. Entretanto, o significado é obviamente<br />

o mesmo em ambos os modos, pois ao usar o indicativo – “vós ve<strong>de</strong>s”–,<br />

Paulo estaria chamando-os a testemunharem, por assim dizer, algo óbvio,<br />

e estaria confrontando-os, por assim dizer, com algo imediato. Em<br />

58 “Que vous n’estes point beaucoup.” – “Que não sois muitos.”<br />

59 “Or c’est <strong>de</strong> luy que vous estes.” – “Agora é <strong>de</strong>le que sois.”<br />

60 “Re<strong>de</strong>mption, ou rançon.” – “Re<strong>de</strong>nção ou resgate.”


Capítulo 1 • 79<br />

contrapartida, porém, ao usar o imperativo, ele estaria incitando-os,<br />

como se estivessem <strong>de</strong>satentos, a consi<strong>de</strong>rarem este mesmo fato.<br />

Chamados po<strong>de</strong> ser tomado coletivamente como a companhia dos<br />

chamados, mais ou menos assim: “Ve<strong>de</strong> o tipo <strong>de</strong> pessoas, em vossa<br />

assembléia, a quem o Senhor tem chamado.” Sou, porém, mais inclinado<br />

a <strong>de</strong>duzir que a forma <strong>de</strong> sua vocação é por indicação. E este é<br />

um argumento mais forte, porque segue-se daí que, se menosprezam a<br />

humilda<strong>de</strong> da cruz, então, em certo sentido, estão anulando sua própria<br />

vocação; pois em seu chamado Deus tinha mantido seu método <strong>de</strong> excluir<br />

toda honra, po<strong>de</strong>r e glória humanos. Portanto, Paulo tacitamente<br />

acusa-os <strong>de</strong> ingratidão, porque, olvidando tanto a graça <strong>de</strong> Deus, como<br />

a si próprios, tratavam o evangelho <strong>de</strong> Cristo com escárnio.<br />

Entretanto, duas coisas <strong>de</strong>vem ser observadas aqui. Primeiro, ele<br />

<strong>de</strong>sejava usar o exemplo dos coríntios para confirmar a verda<strong>de</strong> do<br />

que dissera. Segundo, ele <strong>de</strong>sejava adverti-los <strong>de</strong> que <strong>de</strong>viam estar<br />

completamente <strong>de</strong>spidos <strong>de</strong> todo orgulho, caso estivessem prestando<br />

a<strong>de</strong>quada atenção ao gênero <strong>de</strong> procedimento que o Senhor seguira<br />

ao chamá-los. Paulo diz que Deus “expôs a sabedoria e a nobreza <strong>de</strong><br />

nascimento à humilhação”, e “<strong>de</strong>struiu as coisas que são”. Ambas as<br />

expressões são mui a<strong>de</strong>quadas, pois a força e a sabedoria se <strong>de</strong>svanecem<br />

quando expostas ao <strong>de</strong>scrédito, e o que possui existência <strong>de</strong>ve<br />

ser <strong>de</strong>struído. Ele quer dizer que Deus preferiu chamar o pobre e o<br />

tolo, o <strong>de</strong> nascimento obscuro, diante do gran<strong>de</strong>, do sábio e <strong>de</strong> nobre<br />

nascimento. Se Deus não tivesse posto a todos no mesmo nível, nada<br />

teria sido suficiente para abater a arrogância humana. Daí, aqueles que<br />

pareciam eminentes, ele lançou por terra, a fim que o mesmo fosse<br />

realmente reduzi-lo a nulida<strong>de</strong>.<br />

Entretanto, alguém seria insensato se <strong>de</strong>duzisse <strong>de</strong>sse fato que<br />

Deus <strong>de</strong>ssa maneira estava aviltando a glória da carne, a fim <strong>de</strong> que<br />

o gran<strong>de</strong> e o sábio fossem excluídos da esperança da salvação. É por<br />

isso que alguns irresponsáveis não só transformaram isso em pretexto<br />

para triun farem sobre os gran<strong>de</strong>s, como se Deus os houvera abandonado,<br />

mas inclusive os <strong>de</strong>sprezaram como se estivessem muito abaixo


80 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

<strong>de</strong>les. Lembremo-nos, contudo, <strong>de</strong> que isso foi dito aos coríntios, ou,<br />

seja, que eles, embora não <strong>de</strong>sfrutassem <strong>de</strong> nenhuma posição importante<br />

no mundo, no entanto eram soberbos, ainda quando não<br />

tivessem razão <strong>de</strong> o ser. Portanto, ao expor os fortes, os sábios e os<br />

gran<strong>de</strong> ao ridículo, Deus não exalta os fracos, os indoutos e os indignos,<br />

senão que reduz a todos eles a um nível comum. Portanto, que<br />

todos quantos são <strong>de</strong>sprezíveis aos olhos do mundo pensem bem nisto:<br />

“Quão mo<strong>de</strong>stos <strong>de</strong>veríamos ser diante do fato <strong>de</strong> que os que são<br />

tidos em alta estima pelo mundo são reduzidos a nada! 61 Se a radiância<br />

do sol é eclipsada, qual é a sorte das estrelas? Se a luz das estrelas é<br />

extinta, o que se espera dos objetos opacos? O <strong>de</strong>sígnio <strong>de</strong>ssas observações<br />

consiste nisto: que aqueles que foram chamados pelo Senhor,<br />

ainda que <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> qualquer valor aos olhos do mundo, não<br />

podiam abusar <strong>de</strong>ssas palavras <strong>de</strong> Paulo enfunando suas cristas! Ao<br />

contrário, tendo em mente a exortação <strong>de</strong> Paulo em Romanos 11.20 –<br />

“por sua incredulida<strong>de</strong> foram quebrados, e mediante a fé tu estás em<br />

pé” – podiam andar pru<strong>de</strong>ntemente na presença <strong>de</strong> Deus com temor<br />

e humilda<strong>de</strong>.<br />

Em contrapartida, Paulo não diz aqui que nenhum nascido em<br />

“berço <strong>de</strong> ouro” ou po<strong>de</strong>roso seria chamado por Deus, e, sim, que haveria<br />

poucos <strong>de</strong>les. E nos fornece o motivo disso: que o Senhor, ao<br />

preferir os <strong>de</strong>sprezíveis aos gran<strong>de</strong>s, estaria <strong>de</strong>stroçando o orgulho<br />

humano. O mesmo Deus, pelos lábios <strong>de</strong> Davi, exorta os reis a beijarem<br />

a Cristo 62 [Sl 2.12]; e igualmente anuncia pelos lábios <strong>de</strong> Paulo<br />

[1Tm 2.1-4] que ele <strong>de</strong>seja que todos os homens sejam salvos, e que<br />

seu Cristo é exibido a todos os homens, tanto ao insignificante quanto<br />

ao gran<strong>de</strong>, tanto ao rei quanto ao cidadão comum. Ele mesmo nos <strong>de</strong>u<br />

prova real disso: os pastores são os primeiros a ser chamados a Cristo;<br />

em seguida vêm os filósofos; pescadores incultos e menosprezados<br />

<strong>de</strong>sfrutam <strong>de</strong> um espaço mais honroso; porém, mais tar<strong>de</strong>, seguem os<br />

61 “Dieu ne permet <strong>de</strong> presumer d’eux mesmes.” – “Deus não lhes permite confiança em si<br />

mesmos.”<br />

62 “A faire hommage à Christ.” – “A fazer homenagem a Cristo.”


Capítulo 1 • 81<br />

reis e seus conselheiros, os senadores e oradores são também recebidos<br />

em sua escola.<br />

28. As coisas que não são. Ele usa termos afins em Romanos 4.17,<br />

porém com um sentido distinto. Pois nessa passagem, <strong>de</strong>screvendo a<br />

vocação universal dos crentes, ele diz que não somos nada antes <strong>de</strong><br />

sermos chamados. E isso <strong>de</strong>ve ser entendido como sendo uma referência<br />

à realida<strong>de</strong> aos olhos <strong>de</strong> Deus, mesmo quando parecemos ser algo<br />

importante aos olhos dos homens. Contudo, o nada (οὐδενεια) <strong>de</strong> que<br />

Paulo fala <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado como uma referência à opinião dos<br />

homens. Isso é evi<strong>de</strong>nte à luz da sentença correspon<strong>de</strong>nte, na qual<br />

ele diz que isso é feito a fim <strong>de</strong> que as coisas que são sejam reduzidas<br />

a nada. Pois nada existe senão na aparência, porque na realida<strong>de</strong> todos<br />

nós somos nada. Portanto, <strong>de</strong>vemos enten<strong>de</strong>r “as coisas que são”<br />

no sentido <strong>de</strong> “as coisas que aparecem”; <strong>de</strong> modo que esta passagem<br />

correspon<strong>de</strong> a estas afirmações: “Ele ergue do pó o <strong>de</strong>svalido; e do<br />

monturo, o necessitado” [Sl 113.7]; “O Senhor levanta os abatidos” [Sl<br />

146.8]; e outros <strong>de</strong> natureza semelhante. Destas citações fica perfeitamente<br />

em evidência que as pessoas são <strong>de</strong>masiadamente insensatas<br />

quando presumem existir algum mérito ou dignida<strong>de</strong> nos homens anterior<br />

à eleição divina.<br />

29. Para que nenhuma carne se glorie. Mesmo que aqui, e<br />

em muitas passagens da Escritura, o termo carne signifique toda a<br />

humanida<strong>de</strong>, todavia nesta passagem ele contém uma conotação<br />

particular, porque o Espírito, ao falar do gênero humano em termos<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sdém, abate seu orgulho; como em Isaías 31.3: “Pois os egípcios<br />

são carne, não espírito.” Eis um sentimento digno <strong>de</strong> ser lembrado:<br />

que nada nos é <strong>de</strong>ixado em que po<strong>de</strong>mos com razão nos gloriar. Por<br />

esta razão Paulo adiciona a frase: “na presença <strong>de</strong> Deus.” Porque na<br />

presença do mundo muitos se <strong>de</strong>leitam, por breve momento, num falso<br />

esplendor, o qual, contudo, rapidamente se <strong>de</strong>svanece como a<br />

fumaça. Ao mesmo tempo, por meio <strong>de</strong>sta expressão todo gênero humano<br />

guarda silêncio quando tem acesso à presença <strong>de</strong> Deus; como<br />

diz Habacuque: Que toda carne esteja em silêncio diante <strong>de</strong> Deus [Hc


82 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

2.20]. Portanto, que tudo quanto mereça algum louvor, seja consi<strong>de</strong>rado<br />

como proce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Deus.<br />

30. Mas vós sois <strong>de</strong>le em Cristo Jesus. No caso <strong>de</strong> concluírem que<br />

alguns <strong>de</strong> seus ditos não se aplicam a eles, Paulo então mostra como<br />

tais ditos têm a ver com eles sim, no sentido em que não têm vida<br />

senão em Deus. Pois a expressão vós sois é enfática, como se quisesse<br />

dizer: “Vossa origem está em Deus, que chama as coisas que não são<br />

[Rm 4.17], passando por alto as coisas que parecem ser. Vossa existência<br />

[substentia] está <strong>de</strong> fato alicerçada em Cristo, <strong>de</strong> modo que não<br />

<strong>de</strong>veis ter motivo algum para ser<strong>de</strong>s soberbos.” E ele está falando não<br />

meramente <strong>de</strong> nossa criação, mas daquela existência [essentia] espiritual<br />

na qual nascemos <strong>de</strong> novo pela graça <strong>de</strong> Deus.<br />

O qual foi feito para nós sabedoria <strong>de</strong> Deus. Visto que há muitos<br />

que, quando não querem afastar-se <strong>de</strong>liberadamente <strong>de</strong> Deus, não<br />

obstante buscam algo fora <strong>de</strong> Cristo, como se ele só não abrangesse<br />

em si todas as coisas, 63 Paulo nos diz, <strong>de</strong> passagem, quão gran<strong>de</strong>s são<br />

os tesouros com que Cristo está munido; e ao agir assim ele procura<br />

<strong>de</strong>screver, ao mesmo tempo, nosso modo <strong>de</strong> existência [modus susbsistendi]<br />

em Cristo. Pois quando Paulo chama Cristo nossa justiça, uma<br />

idéia correspon<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>ve ser entendida, a saber: que em nós nada<br />

mais há do pecado; e o mesmo ocorre com os <strong>de</strong>mais termos nesta<br />

oração. Pois aqui ele atribui a Cristo quatro títulos que somam toda<br />

sua perfeição e todos os benefícios que nos advêm <strong>de</strong>le [Cristo].<br />

Primeiro. Paulo afirma que Cristo foi feito nossa sabedoria. Com<br />

isso quer dizer que alcançamos a plenitu<strong>de</strong> da sabedoria em Cristo,<br />

porque o Pai se revelou plenamente nele para nós, <strong>de</strong> modo que não<br />

po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>sejar saber coisa alguma fora <strong>de</strong>le. Existe uma expressão<br />

semelhante em Colossenses 2.3: “em quem todos os tesouros da sabedoria<br />

e do conhecimento estão ocultos.” Diremos algo mais sobre isso<br />

no próximo capítulo.<br />

Segundo. Ele afirma que Cristo foi feito nossa justiça. Com isso<br />

63 “Toute plenitu<strong>de</strong>.” – “Toda plenitu<strong>de</strong>.” [Cl 1.9]


Capítulo 1 • 83<br />

quer dizer que em seu Nome fomos aceitos por Deus, porque ele fez<br />

expiação por nossos pecados por meio <strong>de</strong> sua morte, e sua obediência<br />

nos é imputada para justiça. Porque, visto que a justiça da fé consiste<br />

na remissão <strong>de</strong> pecados e na livre aceitação, nós obtemos ambas através<br />

<strong>de</strong> Cristo.<br />

Terceiro. Ele o chama nossa santificação. Com isso quer dizer que<br />

nós, que por natureza somos imundos, nascemos <strong>de</strong> novo pela ação<br />

do Espírito, para a santida<strong>de</strong>, para que tenhamos condição <strong>de</strong> servir<br />

a Deus. Daqui <strong>de</strong>duzimos também que não po<strong>de</strong>mos ser previamente<br />

justificados pela exclusiva instrumentalida<strong>de</strong> da fé, se concomitantemente<br />

não vivermos em santida<strong>de</strong>. Porquanto esses dons da graça vão<br />

juntos como que atados por uma vínculo in<strong>de</strong>strutível, <strong>de</strong> modo que,<br />

se alguém tentar separá-los, em certo sentido estará fragmentando a<br />

Cristo. Conseqüentemente, que aqueles que almejam ser justificados<br />

pela livre bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, através <strong>de</strong> Cristo, reconheçam que tal coisa<br />

não po<strong>de</strong> absolutamente ser concretizada, a menos que, ao mesmo<br />

tempo, se apegue a ele para a santificação; em outros termos, ele <strong>de</strong>ve<br />

nascer <strong>de</strong> novo pela instrumentalida<strong>de</strong> do Espírito, para a irrepreensibilida<strong>de</strong><br />

e pureza <strong>de</strong> vida. Os homens <strong>de</strong>scobrem falhas em nós,<br />

porque, ao pregarmos a graciosa justiça da fé, evi<strong>de</strong>ntemente estamos<br />

afastando os homens das boas obras. Mas esta passagem os refuta<br />

<strong>de</strong> forma clara, mostrando que a fé está jungida à regeneração assim<br />

como o perdão <strong>de</strong> pecados está em Cristo.<br />

Por outro lado, note-se que, enquanto os dois ofícios <strong>de</strong> Cristo se<br />

acham unidos, todavia são distintos um do outro. Portanto, não temos<br />

a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> confundir o que Paulo expressamente distingue, o que<br />

seria um grave erro.<br />

Quarto. Ele ensina que Cristo nos foi dado para a re<strong>de</strong>nção. Com<br />

isto quer dizer que somos libertados, por sua graciosa bonda<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />

toda a escravidão do pecado e <strong>de</strong> toda a miséria que flui <strong>de</strong>ste. Assim,<br />

a re<strong>de</strong>nção é o primeiro dom <strong>de</strong> Cristo que teve início em nós, e o último<br />

a ser consumado ou completado. Pois a salvação começa quando<br />

somos <strong>de</strong>sembaraçados do labirinto do pecado e da morte. Nesse ínte-


84 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

rim, contudo, suspiramos pelo dia da ressurreição final, ansiando pela<br />

re<strong>de</strong>nção, como é expresso em Romanos 8.23. Mas se alguém pergunta<br />

como Cristo nos é dado para a re<strong>de</strong>nção, respondo: “Porque ele se fez<br />

um resgate.”<br />

Finalmente, <strong>de</strong> todas as bênçãos que são aqui enumeradas, <strong>de</strong>vemos<br />

buscar não a meta<strong>de</strong>, ou meramente uma parte, mas a plenitu<strong>de</strong>.<br />

Porquanto Paulo não diz que ele nos foi dado como forma <strong>de</strong> enchimento,<br />

ou para suprir a justiça, a santida<strong>de</strong>, a sabedoria e a re<strong>de</strong>nção;<br />

senão que ele atribui exclusivamente a Cristo a plena realização da totalida<strong>de</strong>.<br />

Ora, visto que o leitor raramente encontrará outra passagem<br />

na Escritura que forneça uma <strong>de</strong>scrição mais clara <strong>de</strong> todos os ofícios<br />

<strong>de</strong> Cristo, ela po<strong>de</strong> também propiciar-nos a melhor compreensão da<br />

força e natureza da fé. Portanto, visto que Cristo é o próprio objeto<br />

da fé, todos quantos sabem quais são os benefícios que Cristo nos<br />

confere, ao mesmo tempo apren<strong>de</strong>ram a enten<strong>de</strong>r o que a fé significa.<br />

31. Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor. Note-se o propósito<br />

<strong>de</strong> Deus em nos dar generosamente tudo em Cristo – para que<br />

não aleguemos qualquer mérito para nós mesmos, mas para que lhe<br />

tributemos todo o louvor. Porque Deus não nos <strong>de</strong>spoja com vistas a<br />

<strong>de</strong>ixar-nos nus, mas <strong>de</strong> antemão nos veste com sua glória, porém com<br />

esta única condição: sempre que <strong>de</strong>sejarmos gloriar-nos, que então<br />

nos <strong>de</strong>sviemos <strong>de</strong> nós mesmos. Em suma, o homem reduzido a nada<br />

em sua própria estima, sabendo que a bonda<strong>de</strong> não provém <strong>de</strong> nenhuma<br />

outra fonte senão só <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong>ve ele renunciar todo anseio<br />

por sua própria glória, e com toda sua energia aspirar e almejar exclusivamente<br />

a glória <strong>de</strong> Deus. E isso se faz ainda mais evi<strong>de</strong>nte à luz<br />

do contexto da passagem do profeta <strong>de</strong> quem Paulo emprestou este<br />

texto. Pois ali o Senhor, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>spir a todo gênero humano do<br />

direito <strong>de</strong> gloriar-se em sua força, sabedoria e riquezas, nos or<strong>de</strong>na a<br />

gloriar-nos somente no conhecimento <strong>de</strong>le [Jr 9.23, 24]. Mas ele <strong>de</strong>seja<br />

ser conhecido [cognosci] por nós <strong>de</strong> tal maneira que saibamos [sciamus]<br />

que ele é quem exerce a retidão, a justiça e a misericórdia. Pois<br />

este conhecimento produz em nós imediata confiança nele e temor


Capítulo 1 • 85<br />

a ele. Portanto, se uma pessoa realmente tem sua mente tão bem regulada,<br />

não reivindicando para si nenhum mérito, então seu <strong>de</strong>sejo é<br />

tão-somente exaltá-lo; se tal pessoa <strong>de</strong>scansa satisfeita em sua graça;<br />

e põe toda sua felicida<strong>de</strong> em seu amor paternal; e, por fim, se sente<br />

feliz tão-somente em Deus, então tal pessoa realmente “se gloria no<br />

Senhor.” Sinceramente digo isso, pois mesmo os hipócritas sobre falsas<br />

bases se glóriam nele, como <strong>de</strong>clara Paulo [Rm 2.17], quando, ensoberbecidos<br />

com seus dons, ou presumidos em sua ímpia confiança na carne,<br />

ou merca<strong>de</strong>jam sua Palavra, contudo usam seu Nome como proteção<br />

sobre si.


Capítulo 2<br />

1. E eu, irmãos, quando fui ter convosco,<br />

proclamando-vos o mistério <strong>de</strong><br />

Deus, não fui com excelência <strong>de</strong> linguagem,<br />

ou <strong>de</strong> sabedoria.<br />

2. Porque <strong>de</strong>terminei nada saber entre<br />

vós, a não ser Jesus Cristo, e este<br />

crucificado.<br />

1. Et ego, quum venissem ad vos,<br />

fratres, veni non in excellentia sermonis<br />

vel sapientiæ, annuntians<br />

vobis testimonium Dei.<br />

2. Non enim eximium duxi, (vel, duxi<br />

pro scienti,) scire quicquam inter<br />

vos, 1 nisi Iesum Christum, et hunc<br />

crucifixum.<br />

1. E eu, quando fui ter convosco. Tendo iniciado a falar <strong>de</strong> seu<br />

próprio método <strong>de</strong> ensino, Paulo continuou quase imediatamente a<br />

tratar do caráter geral da pregação evangélica. Agora ele volve outra<br />

vez para sua própria pessoa com o fim <strong>de</strong> mostrar que tudo quanto é<br />

<strong>de</strong>sprezado nele pertence à natureza do próprio evangelho, e em certo<br />

sentido é inseparável <strong>de</strong>le. Portanto, ele admite que não usufruiu do<br />

auxílio da eloqüência ou sabedoria humana, <strong>de</strong> cuja provisão po<strong>de</strong>ria<br />

capacitar-se para realizar algo. Prossegue, porém, acrescentando que,<br />

a partir do próprio fato <strong>de</strong> admitir sua carência <strong>de</strong> tais recursos, o<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus, que não carece <strong>de</strong> tais auxílios, se faz plenamente evi<strong>de</strong>nte<br />

em seu ministério. Ele introduz esta verda<strong>de</strong> um pouco <strong>de</strong>pois.<br />

Mas, nesse ínterim, tendo admitido que era carente <strong>de</strong> sabedoria humana,<br />

não obstante sustenta que proclamava o “testemunho <strong>de</strong> Deus”<br />

1 “Car je n’ay point eu en estime <strong>de</strong> sçauoir aucune chose ou rien <strong>de</strong>liberé <strong>de</strong> sçauoir<br />

entre vous.” – “Eu nada tive em estima como conhecimento; ou, Determinei nada saber<br />

entre vós.”


88 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

[testemonium Dei]. Ainda que alguns intérpretes expliquem o “testemunho<br />

<strong>de</strong> Deus” num sentido passivo, contudo não tenho dúvidas <strong>de</strong><br />

que o oposto é precisamente o que o apóstolo tem em mente: que o<br />

“testemunho <strong>de</strong> Deus” é aquele que tem sua origem em Deus, a saber,<br />

o ensino do evangelho, do qual Deus é o Autor e Testemunha. Paulo,<br />

pois, faz distinção entre linguagem e sabedoria (λύγον ἀπὸ τη̑ς σοφίας).<br />

Isso confirma o que mencionei anteriormente, 2 ou, seja, que até então<br />

ele esteve falando não sobre mera e fútil tagarelice, mas sobre toda a<br />

cultura das ciências humanas.<br />

2. Porque <strong>de</strong>terminei nada saber entre vós etc. Visto que o grego,<br />

κρίνειν, às vezes significa εκλεγειν, ou, seja, selecionar algo como<br />

valioso, 3 penso que ninguém em são juízo negará que minha tradução é<br />

mais plausível, visto ser consistente com a construção [do grego]. Todavia,<br />

se o traduzirmos “não estimei nenhum tipo <strong>de</strong> conhecimento”, não<br />

haveria qualquer discordância nisso. Mas se o leitor completa algo que<br />

está faltando, a oração ficará plenamente bem, como esta: “Nada valorizei<br />

em mim mesmo como importante para eu conhecer, ou como base<br />

<strong>de</strong> conhecimento.” Ao mesmo tempo, <strong>de</strong> forma alguma rejeito uma interpretação<br />

diversa, ou, seja, consi<strong>de</strong>rando Paulo como que afirmando que<br />

nada estimou como conhecimento, ou como merecedor <strong>de</strong> ser chamado<br />

conhecimento, a não ser exclusivamente Cristo. Se este é o caso, a preposição<br />

grega, αντι, teria <strong>de</strong> ser suprimida, como às vezes suce<strong>de</strong>. Mas,<br />

se a primeira interpretação não for reprovada, ou se a segunda for a mais<br />

satisfatória, equivale ao seguinte: “Quanto à ausência <strong>de</strong> ornamentos em<br />

minha linguagem, e também a ausência <strong>de</strong> mais elegância em meus discursos,<br />

a razão se <strong>de</strong>veu ao fato <strong>de</strong> não haver corrido após tais coisas;<br />

aliás, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhei <strong>de</strong>las, porquanto uma só coisa ocupava meu coração –<br />

que eu pu<strong>de</strong>sse proclamar Cristo com simplicida<strong>de</strong>.”<br />

2 Calvino se refere ao que ele dissera ao comentar uma expressão que ocorre em 1.17 – não<br />

em sabedoria <strong>de</strong> palavras. Veja-se página 51.<br />

3 Xenofonte usa κρινω no sentido <strong>de</strong> selecionar ou preferir – Mem. iv.4, sec. 16, ουχ ο̒πως τους<br />

αυτους χορους κρινωσιν οἱ πολιται, “não que os cidadãos prefiram as mesmas danças.” Veja-<br />

-se também Menan<strong>de</strong>r, p. 230, linha 245, edit. Cleric. No Novo Testamento encontramos<br />

κρινω usada no sentido <strong>de</strong> estimar, em Romanos 14.5.


Capítulo 2 • 89<br />

Ao adicionar o termo, crucificado, Paulo não pretendia dizer que<br />

ele nada proclamava com respeito a Cristo senão a cruz, mas que todo<br />

o vilipêndio da cruz não o impedia <strong>de</strong> proclamar a Cristo. É como se<br />

quisesse dizer: “A ignomínia da cruz não me impedirá <strong>de</strong> contemplar<br />

Aquele 4 <strong>de</strong> quem provém a salvação, ou me leve a envergonhar-me<br />

<strong>de</strong> ter toda minha sabedoria compreendida nele – Aquele a quem os<br />

soberbos tratam com <strong>de</strong>sdém e rejeitam em razão da ignomínia <strong>de</strong><br />

cruz.” Portanto, o que ele diz <strong>de</strong>ve ser explicado da seguinte maneira:<br />

“Nenhum tipo <strong>de</strong> conhecimento, a meu ver, foi tão importante para<br />

mim que me fizesse <strong>de</strong>sejar algo mais além <strong>de</strong> Cristo, ainda que continuasse<br />

crucificado.” Esta pequena frase é adicionada à gusa <strong>de</strong> adição<br />

(αὔξησιν), com o fim <strong>de</strong> causar ainda mais irritação àqueles mestres<br />

arrogantes, para quem Cristo era alvo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo, pois seu maior<br />

<strong>de</strong>sejo era ser aplaudidos pela reputação <strong>de</strong> possuírem alguma sorte<br />

<strong>de</strong> sabedoria superior. Este é um versículo muitíssimo belo, e <strong>de</strong>le po<strong>de</strong>mos<br />

apren<strong>de</strong>r o que um ministro fiel <strong>de</strong>ve ensinar, e o que <strong>de</strong>vemos<br />

cultivar ao longo <strong>de</strong> toda nossa vida; e comparado a isso tudo o mais<br />

<strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado a esterco [Fp 3.8].<br />

3. E eu estive convosco em fraqueza, e<br />

em temor, e em muito tremor.<br />

4. E minha linguagem e minha pregação<br />

não consistiram em palavras<br />

persuasivas <strong>de</strong> sabedoria, mas em<br />

<strong>de</strong>monstração do Espírito e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r;<br />

5. para que vossa fé não se apoiasse na<br />

sabedoria dos homens, mas no po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> Deus.<br />

3. Et ego in infirmitate, 5 et in timore, et<br />

in tremore multo fui apud vos:<br />

4. Et sermo meus, et prædicatio<br />

mea, non in persuasoriis humanæ<br />

sapientiæ sermonibus, sed in <strong>de</strong>monstratione<br />

Spiritus et potentiæ:<br />

5. Ut fi<strong>de</strong>s vestra non sit in sapientia<br />

hominum, sed in potentia Dei.<br />

3. E eu estive convosco em fraqueza. Paulo apresenta uma explanação<br />

completa do que simplesmente tocara <strong>de</strong> leve antes, ou, seja,<br />

4 Ne fera point que ie n’aye en reuerence et admiration.” – “Não me impedirá <strong>de</strong> o ter em<br />

reverência e admiração.”<br />

5 “En infirmité ou foiblesse.” – “Em fraqueza ou <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>.”


90 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

que não houve nada <strong>de</strong> esplêndido nem <strong>de</strong> eminente nele aos olhos<br />

humanos, para que fosse visto como uma figura notável. Entretanto,<br />

ele conce<strong>de</strong> a seus adversários o que estavam buscando, e essa era<br />

uma forma <strong>de</strong> fazer as mesmas coisas, as quais, na opinião <strong>de</strong>les, visavam<br />

a diminuir o crédito <strong>de</strong> seu ministério, redundando isso em seu<br />

mais elevado enaltecimento. Se ele aparentava ser alguém digno <strong>de</strong><br />

menos honra, só porque, segundo a carne, ele era por <strong>de</strong>mais insignificante<br />

e humil<strong>de</strong>, não obstante ele mostra que o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus era o<br />

que existia <strong>de</strong> mais evi<strong>de</strong>nte em sua habilida<strong>de</strong> para tanta realização,<br />

embora não contasse ele com o apoio <strong>de</strong> quaisquer auxílios humanos.<br />

Mas ele não está pensando somente nos jactanciosos que, a fim <strong>de</strong><br />

adquirir fama para si, se ocupavam meramente <strong>de</strong> sua própria reputação,<br />

mas também dos coríntios que olhavam com espanto para suas<br />

fúteis exibições. Portanto, esse lembrete <strong>de</strong>ve ter causado um forte<br />

efeito neles. Sabiam que Paulo não possuía qualida<strong>de</strong>s humanas que<br />

o ajudassem a fazer progresso, ou que pu<strong>de</strong>sse capacitá-lo a granjear<br />

o favor dos homens. Não obstante, tinham presenciado o maravilhoso<br />

sucesso que o Senhor outorgara à pregação <strong>de</strong> Paulo. Além disso,<br />

realmente tinham visto com seus próprios olhos, diria alguém, o Espírito<br />

<strong>de</strong> Deus presente em sua doutrina. Quando, pois, <strong>de</strong>sprezando a<br />

simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paulo, ambicionavam febrilmente algum tipo <strong>de</strong> sabedoria<br />

que fosse mais portentosa e mais polida, e visto que se <strong>de</strong>ixaram<br />

cativar por aparências externas, e, ainda mais, movidos por uma presumida<br />

dissimulação, antes que pela viva eficácia do Espírito, não<br />

põem a <strong>de</strong>scoberto, suficientemente, seu espírito ambicioso? Paulo,<br />

pois, está plenamente certo em trazer à lembrança <strong>de</strong>les seu primeiro<br />

ingresso entre eles [1Ts 2.1], a fim <strong>de</strong> não se <strong>de</strong>sviarem daquela eficácia<br />

divina que uma vez experimentaram pessoalmente.<br />

Ele emprega o termo fraqueza aqui e em vários casos subseqüentes<br />

[2Co 11.30; 12.5, 9, 10] para incluir tudo que pu<strong>de</strong>sse prejudicar<br />

o favor e a dignida<strong>de</strong> pessoais na opinião <strong>de</strong> terceiros. Temor e tremor<br />

são <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>ssa fraqueza. Contudo, existem duas maneiras<br />

pelas quais estes dois termos po<strong>de</strong>m ser-nos explicados. Uma <strong>de</strong>las


Capítulo 2 • 91<br />

consiste nisto: ou po<strong>de</strong>mos entendê-lo dizendo que, quando pon<strong>de</strong>rava<br />

na magnitu<strong>de</strong> do ofício que sustentava, se perturbava e enfrentava<br />

profunda ansieda<strong>de</strong> ao envolver-se no <strong>de</strong>sencargo <strong>de</strong>le. A outra explicação<br />

é a seguinte: vendo-se cercado por muitos perigos, ele era<br />

dominado por perene expectativa e constante ansieda<strong>de</strong>. Ambas se<br />

ajustam perfeitamente bem ao contexto, porém, em minha opinião, a<br />

segunda é a mais simples. Naturalmente que modéstia como esta é<br />

própria dos servos do Senhor, <strong>de</strong> modo que, cônscios <strong>de</strong> sua própria<br />

fraqueza e, em contrapartida, encarando respectivamente as dificulda<strong>de</strong>s<br />

e a excelência <strong>de</strong> tão árduo ofício, <strong>de</strong>vem aproximar-se <strong>de</strong>le com<br />

reverência e temor. Pois os que se apresentam imbuídos <strong>de</strong> confiança,<br />

e com ares <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong>, ou que exercem o ministério da Palavra<br />

<strong>de</strong> forma displicente, como se fossem bem talhados para tal tarefa,<br />

não conhecem nem a si mesmos nem a própria tarefa. 6<br />

Entretanto, como Paulo aqui conecta temor a fraqueza, e como o<br />

termo fraqueza significa tudo quanto contribuía para sua <strong>de</strong>preciação,<br />

segue-se que, necessariamente, esse temor <strong>de</strong>ve relacionar-se com<br />

perigos e dificulda<strong>de</strong>s. Todavia, é plenamente comprovado que esse<br />

temor era <strong>de</strong> tal natureza que não impedia Paulo <strong>de</strong> envolver-se na<br />

obra do Senhor, como os fatos o testificam. Nem são os servos do<br />

Senhor tão estúpidos que não percebam estar ameaçados <strong>de</strong> perigos,<br />

nem tão <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> sentimento que não se <strong>de</strong>ixem comover. Ainda<br />

mais: é necessário que vivam gravemente apreensivos por duas importantes<br />

razões: primeiro, que eles, combalidos a seus próprios olhos,<br />

aprendam a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r e a <strong>de</strong>scansar exclusiva e plenamente em Deus;<br />

e, segundo, que sejam exercitados na genuína renúncia. Paulo, pois,<br />

não era isento das influências do temor, mas que o controlava <strong>de</strong> tal<br />

modo que ele, apesar <strong>de</strong> tudo, continuava a ser <strong>de</strong>stemido em meio<br />

aos perigos, <strong>de</strong> modo que, com incansável perseverança e resistência,<br />

ele se furtava <strong>de</strong> todos os assaltos <strong>de</strong> Satanás e do mundo; e, em suma,<br />

<strong>de</strong>ssa forma ele seguia por todos os meandros <strong>de</strong> obstáculos.<br />

6 “Ne cognoissent ni eux ni la chose qu’ils ont entre mains.” – “Não conhecem nem a si<br />

mesmos nem aquilo que têm em mãos.”


92 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

4. E minha pregação não consistiu <strong>de</strong> palavras persuasivas. Ao<br />

dizer “<strong>de</strong> palavras persuasivas <strong>de</strong> sabedoria humana”, sua referência<br />

é à oratória seleta que se empenha e lança mão <strong>de</strong> artifícios, sem se<br />

preocupar com a verda<strong>de</strong>; e ao mesmo tempo ele aponta também para<br />

a aparência <strong>de</strong> refinamento, o que fascina as mentes dos homens. Ele<br />

está certo ao atribuir a persuasão (το πιθανον) 7 à sabedoria humana.<br />

Porque, por sua própria majesta<strong>de</strong>, a Palavra do Senhor nos concita,<br />

<strong>de</strong> forma mui veemente, a prestarmos-lhe obediência. Em contrapartida,<br />

a sabedoria humana tem seu encanto com que se insinua 8 e se<br />

apresenta em seus ornamentos pomposos, por assim dizer, por meio<br />

dos quais atrai para si as mentes <strong>de</strong> seus ouvintes. Contra isso Paulo<br />

estabelece a “<strong>de</strong>monstração do Espírito e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r”, o que a maioria<br />

dos intérpretes limita aos milagres. Quanto a mim, o entendo num<br />

sentido mais amplo, ou, seja, como sendo a mão <strong>de</strong> Deus esten<strong>de</strong>ndo-se<br />

para agir po<strong>de</strong>rosamente e <strong>de</strong> todas as maneiras através dos<br />

apóstolos. Tudo indica que Paulo pôs “Espírito e po<strong>de</strong>r” à guisa <strong>de</strong><br />

hipálage (καθ̕ υ̒παλλαυὴν), 9 equivalente a po<strong>de</strong>r espiritual; ou, seguramente,<br />

a fim <strong>de</strong> realçar, por meio <strong>de</strong> sinais e efeitos, como a presença<br />

do Espírito era evi<strong>de</strong>nte em seu ministério. É seu o uso apropriado do<br />

termo αποδείξεως (<strong>de</strong>monstração). Pois nosso embotamento, quando<br />

olhamos mais <strong>de</strong> perto as obras <strong>de</strong> Deus, é tal que, ao fazer uso <strong>de</strong><br />

instrumentos inferiores, seu po<strong>de</strong>r se oculta como se fosse por meio<br />

<strong>de</strong> muitos véus [Is 52.10], <strong>de</strong> tal maneira que seu po<strong>de</strong>r já não nos é<br />

claramente perceptível.<br />

5. Para que vossa fé não se apoiasse na sabedoria dos homens.<br />

Apoiar é usado aqui no sentido <strong>de</strong> consistir! Portanto, Paulo, pois, quer<br />

7<br />

72<br />

Esta passagem tem ampliado os horizontes dos críticos, à luz da circunstância <strong>de</strong> que<br />

o adjetivo πειθοι̑ς, não ocorrendo em nenhum outro lugar no Novo Testamento, ou em<br />

qualquer dos escritos dos autores clássicos, supõe-se que houve alguma correção da<br />

redação. Há quem presume ser ela uma contração ou corrupção <strong>de</strong> πείθανοις ou πίθανοις,<br />

e Crisóstomo, em um ou dois casos, ao citar a passagem, usa o adjetivo πίθανοις, quando<br />

em outro caso ele usa πειθοι̑ς. Talvez seja em alusão aos casos em que Crisóstomo faz uso<br />

do adjetivo πίθανοις que Calvino emprega a frase το πίθανον (persuasão).<br />

8 “Secrettement et doucement.” – “Secreta e suavemente.”<br />

9 Uma figura <strong>de</strong> linguagem por meio da qual as palavras invertem seus casos entre si.”


Capítulo 2 • 93<br />

dizer que os coríntios tinham sido beneficiados por haver ele pregado<br />

Cristo entre eles sem apoiar na sabedoria humana, mas unicamente no<br />

po<strong>de</strong>r do Espírito, para que a <strong>de</strong>les não se fundamentasse no ser humano,<br />

e, sim, somente em Deus. Se a pregação do apóstolo tivesse como apoio<br />

somente o vigor da eloqüência, ele po<strong>de</strong>ria ter sido dilapidado por uma<br />

oratória superior. Além disso, ninguém terá por genuína a verda<strong>de</strong> que se<br />

apóia na excelência da oratória. Naturalmente que a oratória po<strong>de</strong> servir<br />

<strong>de</strong> auxílio para corroborar a verda<strong>de</strong>, mas esta não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r daquela.<br />

Em contrapartida, a verda<strong>de</strong> teria sido muito mais po<strong>de</strong>rosa se se<br />

firmasse em si sem qualquer auxílio estranho. Por essa razão, a verda<strong>de</strong><br />

é a mais notável recomendação da pregação <strong>de</strong> Paulo, e o po<strong>de</strong>r celestial<br />

brilhou nela com tal intensida<strong>de</strong>, que logrou remover tantos obstáculos,<br />

sem qualquer assistência do mundo. Segue-se, pois, que os coríntios não<br />

<strong>de</strong>viam permitir-se abandonar o ensino <strong>de</strong> Paulo, quando sabiam muito<br />

bem que ele contava com o apoio da autorida<strong>de</strong> divina. Além disso,<br />

Paulo aqui está falando da fé dos coríntios, <strong>de</strong> uma maneira tal que esta<br />

frase granjeou aplicação universal. Portanto, saibamos que a característica<br />

da fé consiste em repousar ela somente em Deus, e a não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> homem algum. Pois sua segurança <strong>de</strong>ve ser tão sólida a ponto <strong>de</strong> não<br />

<strong>de</strong>smoronar ainda que fosse assaltada por todos os inventos do inferno,<br />

mas que resiste confiadamente a todos os ataques. Isso não po<strong>de</strong> ser feito<br />

a menos que sejamos firmemente convictos <strong>de</strong> que Deus nos tem falado,<br />

e que aquilo em que cremos não é <strong>de</strong> invenção humana. Mas ainda que a<br />

fé <strong>de</strong>va estar a<strong>de</strong>quadamente fundamentada só na Palavra <strong>de</strong> Deus, não<br />

há nenhuma inconveniência em adicionar este segundo apoio, a saber:<br />

que os crentes saibam, pelos efeitos <strong>de</strong> sua influência, que a Palavra [<strong>de</strong><br />

Deus] que eles têm ouvido tem sua origem em Deus.<br />

6. Seja como for, falamos sabedoria<br />

entre os que são perfeitos; não, porém,<br />

a sabedoria <strong>de</strong>ste mundo, nem<br />

a dos príncipes <strong>de</strong>ste mundo, que<br />

se reduzem a nada;<br />

6. Porro sapientiam loquimur inter<br />

perfectos: sapientiam qui<strong>de</strong>m non<br />

sæculi hujus, neque principum sæculi<br />

hujus, qui abolentur.


94 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

7. mas falamos a sabedoria <strong>de</strong> Deus em<br />

mistério, sabedoria essa que esteve<br />

oculta, a qual Deus or<strong>de</strong>nou antes<br />

dos mundos para nossa glória;<br />

8. a qual nenhum dos príncipes <strong>de</strong>ste<br />

mundo conheceu; porque, se a<br />

tivessem conhecido, não teriam<br />

crucificado o Senhor da glória;<br />

9. mas, como está escrito: Nenhum<br />

olho viu, nem ouvido ouviu, nem<br />

penetrou em coração humano, as<br />

coisas que Deus preparou para<br />

aqueles que o amam.<br />

7. Sed loquimur sapientiam Dei in<br />

mysterio, quæ est recondita: quam<br />

præfinivit Deus ante sæcula in gloriam<br />

nostram,<br />

8. Quam nemo principum sæculi hujus<br />

cognovit: si enim cognovissent,<br />

nequaquam Dominum gloriæ crucifixissent.<br />

9. Sed quemadmodum Scriptum est<br />

(Ies. lxiv. 4.) “Quæ oculus non vidit,<br />

nec auris audivit, nec in cor hominis<br />

ascen<strong>de</strong>runt, quæ præparavit<br />

Deus iis, qui ipsum diligunt.”<br />

6. Falamos sabedoria. Para que ele não fosse visto como alguém<br />

que <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha da sabedoria, assemelhando-se a pessoas incultas e ignorantes<br />

que menosprezam o saber com a ferocida<strong>de</strong> dos bárbaros,<br />

ele acrescenta que não era <strong>de</strong>stituído daquela genuína sabedoria que<br />

era digna do nome, mas que só era apreciada por aqueles que são<br />

competentes para julgar. Pela expressão os que são perfeitos ele quer<br />

dizer não aqueles que se apossam <strong>de</strong> uma sabedoria plena e completa,<br />

mas aqueles que possuem um juízo sólido e imparcial. Pois o<br />

termo hebraico t, que é sempre traduzido na Septuaginta por τελειος,<br />

significa completo. 10 Entretanto, <strong>de</strong> passagem ele censura os que não<br />

nutriam qualquer inclinação para sua pregação, e lhes dá a enten<strong>de</strong>r<br />

que a culpa era <strong>de</strong>les. É como se quisesse dizer: “Se minha doutrina<br />

<strong>de</strong>sagrada a alguns <strong>de</strong>ntre vós, tais pessoas provam suficientemente<br />

que seu entendimento é <strong>de</strong>pravado e viciado, visto que ela [a doutrina]<br />

é invariavelmente reconhecida como a mais excelente sabedoria<br />

entre os que possuem intelecto saudável e bom senso.” Em contrapartida,<br />

ainda que o ensino <strong>de</strong> Paulo fosse apresentado a todos, nem<br />

sempre era estimado por seu real valor, e esta é a razão por que ele<br />

10 Assim lemos que Jacó [Gn 25.27] era t ya, “um homem perfeito”, isto é, sem qualquer<br />

falha ostensiva. Veja-se também Jó 1.8. A palavra correspon<strong>de</strong>nte, ymt, é amiú<strong>de</strong> aplicada<br />

às vítimas sacrificiais, para <strong>de</strong>notar que eram sem <strong>de</strong>feito [ x 12.5; Lv 1.3].


Capítulo 2 • 95<br />

apela para juízes idôneos e imparciais, 11 para que pu<strong>de</strong>ssem <strong>de</strong>clarar<br />

que a doutrina, a qual o mundo reputava como sendo insípida, era<br />

a expressão da genuína sabedoria. Entrementes, pelo termo falamos<br />

ele notifica que punha diante <strong>de</strong>les um elegante exemplo <strong>de</strong> admirável<br />

sabedoria, a fim <strong>de</strong> que ninguém questionasse que ele se vangloriava<br />

<strong>de</strong> algo <strong>de</strong>sconhecido.<br />

Não a sabedoria <strong>de</strong>ste mundo. Uma vez mais ele reitera, à guisa<br />

<strong>de</strong> antecipação, o que já havia admitido – que o evangelho não era<br />

sabedoria humana, para que ninguém objetasse, dizendo que havia<br />

poucos que apoiavam tal doutrina. Mais ainda, que ela era <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhada<br />

por todos quantos eram intelectualmente eminentes. Daí ele<br />

reconhecer espontaneamente o que po<strong>de</strong>ria ser apresentado à guisa<br />

<strong>de</strong> objeção, mas <strong>de</strong> tal sorte que <strong>de</strong> forma alguma se dava por vencido.<br />

Os príncipes <strong>de</strong>ste mundo. Pela expressão, príncipes <strong>de</strong>ste mundo,<br />

Paulo tinha em mente aqueles que são eminentes no mundo por<br />

causa <strong>de</strong> algum dote. Pois alguns há que nem sempre possuem acuida<strong>de</strong><br />

intelectual, todavia são tidos em admiração em razão da dignida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sua posição pessoal. Entretanto, para que não nos alarmemos diante<br />

<strong>de</strong> suas aparências externas [larvis], o apóstolo acrescenta que eles<br />

serão reduzidos a nada ou perecerão. Pois não é justo que algo <strong>de</strong><br />

importância eterna <strong>de</strong>penda da autorida<strong>de</strong> daqueles que estão <strong>de</strong> passagem<br />

e perecendo, incapazes <strong>de</strong> oferecer perpetuida<strong>de</strong> até mesmo<br />

a si próprios. É como se quisesse dizer: “Quando o reino <strong>de</strong> Deus se<br />

manifesta, que a sabedoria <strong>de</strong>ste mundo se retraia, e o que é transitório<br />

ceda lugar ao que é eterno. Pois os príncipes <strong>de</strong>ste mundo têm sua<br />

distinção, porém é <strong>de</strong> uma natureza tal que se extingue num instante.<br />

Que é isso em comparação com o reino <strong>de</strong> Deus, que é celestial e incorruptível?<br />

7. A sabedoria <strong>de</strong> Deus em mistério. Ele assinala a razão por que<br />

a doutrina do evangelho não é tida em alta estima pelos príncipes <strong>de</strong>ste<br />

mundo: é que ela está envolta em mistério e, conseqüentemente,<br />

11 “Il ne s’en rapporte pas a vn chacvn, mais requiert <strong>de</strong>s iuges entiers.” – “Ele não submete<br />

a causa a cada um, mas apela para os juízes competentes.”


96 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

oculta. Pois o evangelho transcen<strong>de</strong> muitíssimo à perspicácia do intelecto<br />

humano, <strong>de</strong> tal forma que aqueles que são reputados como<br />

sendo <strong>de</strong> intelecto superior po<strong>de</strong>m erguer sua vista ao máximo que<br />

jamais po<strong>de</strong>rão chegar a tal altitu<strong>de</strong>. Entretanto, menosprezam sua insignificância<br />

como se ele estivesse lançado a seus pés. Em <strong>de</strong>corrência<br />

disso, quanto mais arrogantemente o <strong>de</strong>sprezam, mais terão eles <strong>de</strong><br />

conhecê-lo; além do mais, eles se acham numa posição tão eqüidistante<br />

<strong>de</strong>le, que são impedidos inclusive <strong>de</strong> vê-lo.<br />

A qual Deus or<strong>de</strong>nou antes dos mundos para nossa glória. Havendo<br />

Paulo afirmado que o evangelho era algo oculto, havia o risco<br />

<strong>de</strong> os crentes, ouvindo isso e sentindo-se enfraquecidos em meio às<br />

dificulda<strong>de</strong>s, fugirem <strong>de</strong>le e viessem a sucumbir pelo <strong>de</strong>sespero. Por<br />

isso, ele encara este perigo e <strong>de</strong>clara que, não obstante, o evangelho<br />

foi <strong>de</strong>signado para nós, para nosso <strong>de</strong>leite nele. Para que ninguém,<br />

digo, concluísse que não tinha nada a ver com uma sabedoria oculta,<br />

ou imaginasse ser ilícito dirigir seus olhos para ele, visto que o mesmo<br />

não se achava <strong>de</strong>ntro dos parâmetros da compreensão humana, Paulo<br />

ensina que ele nos foi comunicado pelo eterno conselho <strong>de</strong> Deus. Ao<br />

mesmo tempo, ele tinha algo maior em mente, pois, por meio <strong>de</strong> uma<br />

comparação tácita, ele expõe à luz ainda mais meridiana a graça que<br />

foi posta diante <strong>de</strong> nós por intermédio da vinda <strong>de</strong> Cristo, a qual nos<br />

pôs numa posição mais excelente do que a <strong>de</strong> nossos pais que viveram<br />

sob o regime da lei. Eu disse mais sobre isso no final do último capítulo<br />

<strong>de</strong> Romanos. Antes <strong>de</strong> tudo, pois, ele parte do fato <strong>de</strong> que Deus<br />

or<strong>de</strong>nou. Pois se Deus nada <strong>de</strong>signou sem um propósito, segue-se que<br />

nada per<strong>de</strong>remos em ouvir o evangelho, o qual ele <strong>de</strong>stinou a nós, pois<br />

quando nos fala, ele se acomoda a nossa capacida<strong>de</strong>. O que Isaías diz<br />

se relaciona a este fato [45.19]: “Não falei em segredo, em algum canto<br />

escuro 12 da terra; não disse à <strong>de</strong>scendência <strong>de</strong> Jacó: Buscai-me em<br />

vão!” Em segundo lugar, a fim <strong>de</strong> tornar o evangelho atrativo, e a fim <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>spertar em nós o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conhecê-lo, ele extrai ainda outro argu-<br />

12 Essa alusão geralmente leva o leitor a pensar nas cavernas profundas e escuras, <strong>de</strong> cujo<br />

antro os oráculos pagãos apresentavam suas respostas.


Capítulo 2 • 97<br />

mento do <strong>de</strong>sígnio que Deus tinha em vista conce<strong>de</strong>r-nos: para nossa<br />

glória. Nesta expressão ele também parece extrair uma comparação<br />

entre nós e os pais, a quem nosso Pai celestial não consi<strong>de</strong>rou dignos<br />

<strong>de</strong> tal honra, a qual ele reservou para a vinda <strong>de</strong> seu Filho. 13<br />

8. A qual nenhum dos soberanos <strong>de</strong>ste mundo conheceu. Se o<br />

leitor acrescentar: “por seu próprio discernimento”, a afirmação não<br />

seria mais aplicada a eles do que aos homens em geral, e às próprias<br />

pessoas mais humil<strong>de</strong>s; pois qual <strong>de</strong> todos nós, do mais ao menos importante,<br />

alcança tais obtenções? Naturalmente po<strong>de</strong>mos, talvez, dizer<br />

que os soberanos <strong>de</strong>vem ser censurados por cegueira e ignorância,<br />

mais do que outros, pela seguinte razão: que quando falam parecem<br />

ser perspicazes e sábios. Contudo prefiro enten<strong>de</strong>r a expressão <strong>de</strong> forma<br />

mais simples, seguindo o uso freqüente da Escritura que costuma<br />

falar em termos da universalida<strong>de</strong> daquelas coisas que acontecem επι<br />

το πολυ, isto é, [acontecem] comumente, e também para usar uma afirmação<br />

negativa em termos <strong>de</strong> universalida<strong>de</strong> quanto àquelas coisas<br />

que só acontecem ἐπι ἔλαττον, isto é, [acontecem] mui raramente. Neste<br />

sentido, nada houve <strong>de</strong> inconsistente nessa afirmação, ainda que<br />

houvesse achado poucos homens <strong>de</strong> distinção e elevados acima dos<br />

<strong>de</strong>mais em dignida<strong>de</strong>, os quais era, ao mesmo tempo, dotados com o<br />

puro conhecimento <strong>de</strong> Deus.<br />

Porque, se tivessem conhecido. A sabedoria <strong>de</strong> Deus resplan<strong>de</strong>ceu<br />

visivelmente em Cristo, e no entanto os príncipes não a perceberam<br />

ali. Na crucificação <strong>de</strong> Cristo, a direção foi assumida, por um lado,<br />

pelos lí<strong>de</strong>res dos ju<strong>de</strong>us, cuja reputação em justiça e sabedoria era<br />

excelente; e, por outro, por Pilatos e pelo império romano. Este é um<br />

claro exemplo da extrema cegueira <strong>de</strong> todos os que só são sábios segundo<br />

os padrões humanos. Entretanto, este argumento do apóstolo<br />

13 Locke, em concordância com o conceito <strong>de</strong> Calvino, enten<strong>de</strong> Paulo como se ele dissesse:<br />

“Por que provocais divisões, vos vangloriando em vossos eminentes mestres? A glória<br />

que Deus or<strong>de</strong>nou a nós mestres e professores cristãos é para que sejamos expositores,<br />

pregadores e crentes daquelas verda<strong>de</strong>s e propósitos divinos revelados, os quais, ainda<br />

que estejam contidos nas Escrituras Sagradas do Velho Testamento, não eram entendidos<br />

nas eras anteriores.”


98 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

po<strong>de</strong> parecer frágil. “Ora, não vemos todos os dias pessoas que não<br />

estão familiarizadas com a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, contudo se lhe opõem<br />

com <strong>de</strong>liberada malícia? Mesmo quando essa rebelião franca não fosse<br />

percebida por nossos olhos, que outro é o pecado contra o Espírito<br />

Santo senão a espontânea obstinação contra Deus, quando uma pessoa,<br />

consciente e voluntariamente, não só age contra sua Palavra, mas<br />

também levanta os braços contra ele? Eis a razão por que Cristo testifica<br />

que os fariseus e seus associados o conheciam [cf. Jo 7.28], quando<br />

ele os <strong>de</strong>spoja do pretexto <strong>de</strong> ignorância, e os acusa <strong>de</strong> cruel impieda<strong>de</strong><br />

em persegui-lo, o fiel Servo do Pai, sobre nenhuma outra base a não<br />

ser seu ódio contra a verda<strong>de</strong>.”<br />

Minha resposta é que existe dois gêneros <strong>de</strong> ignorância. Um <strong>de</strong>les<br />

tem por origem o zelo irrefletido, não rejeitando expressamente o bem,<br />

mas, ao contrário, pensa que ele é mau. Embora ninguém peque por<br />

ignorância ao ponto <strong>de</strong> não ser acusado <strong>de</strong> má consciência aos olhos<br />

<strong>de</strong> Deus, há sempre uma mistura, ou <strong>de</strong> hipocrisia, ou <strong>de</strong> orgulho, ou<br />

<strong>de</strong> escárnio; contudo, às vezes o juízo e todo o entendimento são tão<br />

reprimidos na mente <strong>de</strong> uma pessoa que nada é evi<strong>de</strong>nte a não ser a<br />

clara ignorância, não só aos olhos dos outros, mas também a seus próprios<br />

olhos. Paulo era assim antes <strong>de</strong> ser iluminado. O motivo <strong>de</strong> seu<br />

ódio a Cristo, e sua hostilida<strong>de</strong> a sua doutrina, era que, por ignorância,<br />

ele se viu <strong>de</strong>vorado por um perverso zelo pela lei. 14 Naturalmente que<br />

ele não era isento <strong>de</strong> hipocrisia, nem inocente <strong>de</strong> orgulho, <strong>de</strong> modo<br />

que fosse justificado aos olhos <strong>de</strong> Deus, mas aqueles vícios estavam<br />

tão completamente sepultados pela ignorância e cegueira, que ele nem<br />

mesmo os notava nem os sentia.<br />

O outro gênero <strong>de</strong> ignorância é mais danoso e perigoso do que<br />

uma mera ignorância. Pois aqueles que voluntariamente se levantam<br />

contra Deus são, por assim dizer, frenéticos, porquanto vêem e<br />

ao mesmo tempo não vêem [Mt 13.13]. Na verda<strong>de</strong>, a conclusão geral<br />

<strong>de</strong>ve ser que a infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> é sempre cega. Mas o que importa é o<br />

14 “Vne zele <strong>de</strong> la loy <strong>de</strong>sordonné et mal reglé.” – “Um <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado e <strong>de</strong>sequilibrado zelo<br />

pela lei.”


Capítulo 2 • 99<br />

seguinte: às vezes a cegueira subscreve a malícia, <strong>de</strong> modo que uma<br />

pessoa não tenha qualquer consciência <strong>de</strong> seu próprio mal, como se<br />

ela fosse completamente insensível. Esta é a posição daqueles que se<br />

enganam com uma boa intenção, como a chamam, o que é <strong>de</strong> fato fútil<br />

fantasia. Em alguns casos a malícia tem uma tal ascendência que,<br />

a <strong>de</strong>speito das restrições da consciência, uma pessoa se arroja em<br />

direção à impieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse tipo assemelhando-se a <strong>de</strong>mência. 15 Portanto,<br />

não surpreen<strong>de</strong> que Paulo <strong>de</strong>clare que os príncipes <strong>de</strong>ste mundo<br />

não teriam crucificado a Cristo, se porventura tivessem conhecido a<br />

sabedoria <strong>de</strong> Deus. Porque os fariseus e escribas não sabiam que a<br />

doutrina <strong>de</strong> Cristo era verda<strong>de</strong>ira, <strong>de</strong> modo que vagueavam, como homens<br />

entorpecidos, em meio a suas próprias trevas.<br />

9. Mas como está escrito: O que olhos não viram etc. Todos concordam<br />

que esta passagem é tomada <strong>de</strong> Isaías 64.3 (na LXX é 4); e visto<br />

que à primeira vista o significado é óbvio e fácil, os intérpretes não se<br />

dão muito ao trabalho <strong>de</strong> explicá-la. No entanto, ao atentar para ela<br />

mais <strong>de</strong> perto, duas diferenças bem sérias aí surgem. A primeira consiste<br />

em que as palavras, como usadas por Paulo, não concordam com<br />

as palavras do profeta. A segunda consiste em que Paulo parece estar<br />

operando em linhas diferentes das do profeta, e assim a <strong>de</strong>claração do<br />

profeta parece ter um propósito totalmente estranho a seu <strong>de</strong>sígnio.<br />

Então trataremos primeiramente das palavras. Uma vez que são<br />

ambíguas, os intérpretes explicam-nas <strong>de</strong> diferentes formas. Alguns as<br />

traduzem nesta forma: “Des<strong>de</strong> os primórdios do mundo os homens não<br />

têm ouvido nem percebido com os ouvidos, e nenhum olho tem visto<br />

Deus além <strong>de</strong> ti, que age [faciat] <strong>de</strong> tal maneira em favor daquele que<br />

espera nele.” Outros interpretam as palavras como direcionadas para<br />

Deus, como segue: “Olhos não viram, nem ouvidos ouviram além <strong>de</strong> ti, ó<br />

Deus, as coisas que fizeste por aqueles que esperam em ti.” Literalmente,<br />

contudo, a intenção do profeta é esta: “Des<strong>de</strong> o princípio do mundo<br />

15 A distinção traçada por Calvino é ilustrada por uma afirmação <strong>de</strong> Salomão em Provérbios<br />

21.27: “O sacrifício do perverso é abominação; quanto mais quando ele a associa com<br />

uma mente perversa.” hmzb – “com um <strong>de</strong>sígnio perverso.”


100 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

os homens não têm houvido, nem têm percebido com os ouvidos, não<br />

têm visto <strong>de</strong>us [ou ó Deus] além <strong>de</strong> ti, que fará [ou preparará] para<br />

aquele que espera nele.” Se lermos yhla [Deus] no acusativo [Deum], o<br />

relativo que [qui] terá <strong>de</strong> ser aplicado. Em primeira instância, esta exposição<br />

parece a<strong>de</strong>quar-se melhor ao contexto do profeta, porque o verbo<br />

que segue está na terceira pessoa, 16 porém ele vai além da intenção <strong>de</strong><br />

Paulo, e que <strong>de</strong>ve levar mais peso em relação a nós do que outras razões.<br />

Pois quem melhor que o Espírito <strong>de</strong> Deus será um infalível e fiel<br />

intérprete <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>claração profética, a qual ele mesmo ditou a Isaías,<br />

visto que era ele quem o explicava pelos lábios <strong>de</strong> Paulo? Não obstante,<br />

a fim <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rmos resistir as acusações dos ímpios, <strong>de</strong>claro que a natureza<br />

da construção hebraica permite este como o genuíno significado<br />

do profeta: “Ó Deus, nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, mas tu<br />

somente sabes as coisas que tens costume <strong>de</strong> fazer por aqueles que<br />

esperam em ti.” A mudança súbita <strong>de</strong> pessoa não traz dificulda<strong>de</strong>s. Sabemos<br />

ser tão comum nos escritos dos profetas, que nem precisamos<br />

ser <strong>de</strong>tidos aqui. Se a primeira interpretação agrada mais a alguns, eles<br />

não estarão em posição <strong>de</strong> nos culpar ou culpar o apóstolo <strong>de</strong> partir do<br />

simples significado das palavras, pois completamos menos do que eles<br />

fazem, porque serão forçados a adicionar um termo <strong>de</strong> similitu<strong>de</strong> ao<br />

verbo agir (formando a frase: “que ages <strong>de</strong> tal maneira”).<br />

Ainda que o profeta não inclua o que segue sobre “a entrada daquelas<br />

coisas no coração humano”, a frase não imprime uma nota distinta<br />

da outra frase “além <strong>de</strong> ti”. Pois ao atribuir este conhecimento só a Deus,<br />

ele exclui <strong>de</strong>le [conhecimento] não só os sentidos físicos do homem,<br />

mas também a habilida<strong>de</strong> da mente. Portanto, embora o profeta faça<br />

diferença só à visão e à audição, ao mesmo tempo ele implicitamente<br />

inclui todas as faculda<strong>de</strong>s da mente. Por certo que aquelas são as duas<br />

membranas por meio das quais obtemos conhecimento daquelas coisas<br />

que alcançam o entendimento. Ao usar a frase “aqueles que o amam”,<br />

Paulo está seguindo os intérpretes gregos, que a traduziram assim,<br />

16 “Assauoir, Fera, ou Preparera.” – “Isto é – Ele fará, ou Ele preparará.”


Capítulo 2 • 101<br />

porém se equivocaram por causa da similarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma carta para a<br />

outra; 17 mas como isso não faz nenhuma diferença para o ponto <strong>de</strong>ste<br />

versículo, ele não quis partir da tradução comum, porque paulatinamente<br />

vemos o quanto ele dá forma ao texto aceito. Portanto, ainda que<br />

as palavras não sejam as mesmas, não há real diferença <strong>de</strong> significado.<br />

Passo agora à abordagem do tema. Nesta passagem, o profeta<br />

recorda quão maravilhosamente Deus veio ao encontro <strong>de</strong> seu povo<br />

para assisti-lo nos momentos <strong>de</strong> profundas necessida<strong>de</strong>s, e exclama<br />

que o favor divino em prol dos piedosos exce<strong>de</strong> à compreensão da<br />

mente humana. Mas alguém po<strong>de</strong>ria dizer: “O que isso tem a ver com<br />

o ensino espiritual e com as promessas <strong>de</strong> vida eterna, os quais Paulo<br />

está discutindo aqui?” Há três maneiras como essa pergunta po<strong>de</strong> ser<br />

respondida. Não estará fora <strong>de</strong> propósito dizer que o profeta, tendo<br />

mencionado os benefícios terrenos, foi arrebatado pela reflexão <strong>de</strong>stes<br />

para uma afirmação geral, e naturalmente para gloriar-se na bem-<br />

-aventurança espiritual, a qual está reservada no céu para os crentes.<br />

Prefiro, não obstante, entendê-lo simplesmente como fazendo referência<br />

aos dons da graça <strong>de</strong> Deus, os quais são diariamente conferidos<br />

aos crentes. Ao tratarmos <strong>de</strong>les, <strong>de</strong>vemos sempre observar sua fonte,<br />

não limitando nossa visão a seus aspectos presentes. Ora, sua fonte é<br />

o gracioso beneplácito <strong>de</strong> Deus, por meio do qual ele nos adotou no<br />

número <strong>de</strong> seus filhos. A pessoa, pois, que <strong>de</strong>seja avaliar essas coisa<br />

corretamente, não as contemplará em seu aspecto <strong>de</strong>spido, porém as<br />

vestirá com o amor paternal <strong>de</strong> Deus como se fosse um vestuário, e<br />

assim tal pessoa será conduzida dos dons temporais para a vida eterna.<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer também que este é um argumento do menor para o<br />

maior. Pois se o intelecto humano não po<strong>de</strong> chegar à medida dos dons<br />

terrenais <strong>de</strong> Deus, muito menos atingirá ele as altitu<strong>de</strong>s celestiais [Jo<br />

3.12]. Entretanto, já <strong>de</strong>i a enten<strong>de</strong>r que interpretação prefiro.<br />

17 A palavra usada por Isaías é hkjm, que é uma parte do verbo hkj, aguardar, e a intenção <strong>de</strong><br />

Calvino mais provavelmente é que os “intérpretes gregos” foram (<strong>de</strong>vido à semelhança<br />

entre b e k) levados ao equívoco <strong>de</strong> concluir que ela era parte do verbo bbj, amar, enquanto<br />

a parte correspon<strong>de</strong>nte do último verbo, bbwjm, claramente difere muito da palavra<br />

usada pelo profeta.


102 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

10. Deus, porém, no-las revelou pelo<br />

Espírito; pois o Espírito perscruta<br />

todas as coisas, sim, as coisas profundas<br />

<strong>de</strong> Deus.<br />

11. Pois qual dos homens sabe as coisas<br />

do homem, senão o espírito<br />

do homem que nele está? Assim<br />

também ninguém sabe as coisas <strong>de</strong><br />

Deus, senão o Espírito <strong>de</strong> Deus.<br />

12. Ora, nós recebemos, não o espírito<br />

do mundo, e, sim, o Espírito que<br />

vem <strong>de</strong> Deus; para que pudéssemos<br />

conhecer as coisas que nos são dadas<br />

gratuitamente por Deus.<br />

13. Coisas essas das quais também<br />

falamos, não em palavras que a sabedoria<br />

humana ensina, mas que o<br />

Espírito Santo ensina, comparando<br />

coisas espirituais com espirituais.<br />

10. Nobis autem Deus revelavit per<br />

Spiritum suum: Spiritus enim omnia<br />

scrutatur, etiam profundditates<br />

Dei.<br />

11. Quis enim hominum novit, quæ<br />

ad eum pertinent, nisi spiritus hominis,<br />

qui est in ipso? Ita et quæ<br />

Dei sunt, nemo novit, nisi Spiritus<br />

Dei.<br />

12. Nos autem non spiritum mundi<br />

accepimus, sed Spiritum qui est ex<br />

Deo: ut sciamus quæ a Christo donata<br />

sunt nobis:<br />

13. Quæ et loquimur, non in eruditis<br />

humanæ sapientiæ sermonibus,<br />

sed Spiritus sancti, spiritualibus<br />

spiritualia coaptantes.<br />

10. Deus, porém, no-las revelou. Tendo concluído que todos os<br />

homens são cegos, e tendo <strong>de</strong>spojado o intelecto humano do po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> obter o conhecimento <strong>de</strong> Deus, Paulo agora mostra como os fiéis<br />

são isentados <strong>de</strong>sta cegueira, a saber, honrando-os o Senhor com a<br />

iluminação especial do Espírito. Portanto, quanto mais obtuso é o intelecto<br />

humano para compreen<strong>de</strong>r os mistérios <strong>de</strong> Deus, e quanto mais<br />

profunda é a incerteza sob a qual labora, tanto mais segura é nossa fé,<br />

a qual tem seu apoio na revelação do Espírito <strong>de</strong> Deus. Nisso reconhecemos<br />

a infinita bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus que faz com que nossa imperfeição<br />

contribua para nosso benefício.<br />

Pois o Espírito perscruta todas as coisas. Isso é acrescido para<br />

a consolação dos piedosos, para que <strong>de</strong>scansem com mais tranqüilida<strong>de</strong><br />

na revelação que eles possuem da parte do Espírito <strong>de</strong> Deus. É<br />

como se dissesse: “Que nos seja suficiente ter o Espírito <strong>de</strong> Deus como<br />

testemunha, pois nada existe em Deus tão profundo que ele não possa<br />

atingir.” Pois esse é o sentido que perscrutar tem aqui. Pela expressão,


Capítulo 2 • 103<br />

“as coisas profundas”, <strong>de</strong>ve-se enten<strong>de</strong>r não pensamentos secretos, os<br />

quais não nos é permitido investigar, mas toda a doutrina da salvação,<br />

a qual as Escrituras teriam posto diante <strong>de</strong> nós sem qualquer objetivida<strong>de</strong>,<br />

se Deus, por intermédio <strong>de</strong> seu Espírito, não conduzisse nossas<br />

mentes a ela.<br />

11. Pois qual dos homens sabe? Paulo preten<strong>de</strong> ensinar duas<br />

coisas aqui: Primeiramente, que a doutrina do evangelho só po<strong>de</strong> ser<br />

assimilada pelo testemunho do Espírito Santo; e, segundo, que aqueles<br />

que possuem um testemunho <strong>de</strong> tal natureza, provindo do Espírito<br />

Santo, também possuem uma certeza tão sólida e firme, como se pu<strong>de</strong>ssem<br />

realmente tocar com suas próprias mãos o que crêem, pois o<br />

Espírito é uma testemunha fiel e confiável. Isso ele prova pela similitu<strong>de</strong><br />

[similitudine] extraída <strong>de</strong> nosso próprio espírito. Pois cada um <strong>de</strong><br />

nós é cônscio <strong>de</strong> seus próprios pensamentos; e, em contrapartida, o<br />

que vai escondido no coração humano é <strong>de</strong>sconhecido a outros. Semelhantemente,<br />

o conselho e a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus são <strong>de</strong> tal natureza que<br />

se acham ocultos <strong>de</strong> todos os homens; pois “quem foi seu conselheiro?”<br />

[Rm 11.34]. Portanto, ele [coração <strong>de</strong> Deus] é um recesso secreto<br />

e inacessível a todo o gênero humano. Mas, se o próprio Espírito <strong>de</strong><br />

Deus nos introduzir a ele, ou, em outros termos, nos fizer mais familiarizados<br />

com aquelas coisas que são, por outro lado, ocultas <strong>de</strong> nossa<br />

percepção, então não <strong>de</strong>ve haver motivo para hesitação, porquanto<br />

não existe nada em Deus que escape à observação <strong>de</strong> seu Espírito.<br />

Entretanto, esta similitu<strong>de</strong> não aparenta ser totalmente apropriada.<br />

Porque, visto que falar é uma ativida<strong>de</strong> caracteristicamente<br />

mental, o ser humano comunica suas disposições uns aos outros para<br />

que se tornem familiarizados, cada um com o pensamento do outro.<br />

Por que, pois, não po<strong>de</strong>ríamos assimilar na Palavra <strong>de</strong> Deus qual é sua<br />

vonta<strong>de</strong>? Pois embora o gênero humano, por pretensão e falsida<strong>de</strong>,<br />

às vezes obscureçam, em vez <strong>de</strong> revelarem, seu real estado mental,<br />

o mesmo não se dá com Deus, cuja Palavra é a verda<strong>de</strong> absoluta e<br />

sua genuína e viva imagem. Não obstante, <strong>de</strong>vemos observar cuidadosamente<br />

até que ponto Paulo pretendia esten<strong>de</strong>r esta similitu<strong>de</strong>. O


104 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

pensamento mais íntimo <strong>de</strong> uma pessoa, acerca do qual ninguém nada<br />

sabe, só é percebido por ela mesma. Se <strong>de</strong>pois ela o revela a outrem,<br />

tal coisa não altera o fato <strong>de</strong> que seu espírito só conhece o que está<br />

em seu íntimo. Pois é possível que tal pessoa não use uma linguagem<br />

persuasiva; é possível ainda que ela não expresse convenientemente<br />

a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua intenção. Se ela, contudo, alcança ambos os objetivos,<br />

esta afirmação não entra em conflito com a outra, a saber: que<br />

exclusivamente seu próprio espírito é que mantém o verda<strong>de</strong>iro conhecimento<br />

<strong>de</strong>la. Existe, entretanto, esta importante diferença entre<br />

os pensamentos <strong>de</strong> Deus e os dos homens: <strong>de</strong> um lado, os homens se<br />

enten<strong>de</strong>m reciprocamente; do outro, a Palavra <strong>de</strong> Deus é uma espécie<br />

<strong>de</strong> sabedoria oculta, a cuja altitu<strong>de</strong> o frágil intelecto humano não po<strong>de</strong><br />

alcançar. Assim, a luz brilha nas trevas [Jo 1.5], até que o Espírito abra<br />

os olhos do cego.<br />

O espírito do homem. Note-se que aqui o espírito <strong>de</strong> uma pessoa<br />

significa a alma [anima] na qual resi<strong>de</strong> a faculda<strong>de</strong> intelectual, como<br />

é chamada. Porquanto Paulo se teria expresso <strong>de</strong> forma imprecisa se<br />

tivesse atribuído esse conhecimento ao intelecto humano, ou, em outros<br />

termos, á própria faculda<strong>de</strong>, e não à alma, a qual é dotada o po<strong>de</strong>r<br />

do discernimento.<br />

12. Ora, nós temos recebido, não o espírito do mundo. Ele intensifica,<br />

à guisa <strong>de</strong> contraste, aquela certeza <strong>de</strong> que fizera menção.<br />

Diz ele: “O Espírito <strong>de</strong> revelação que recebemos não é proveniente do<br />

mundo, ao ponto <strong>de</strong> a<strong>de</strong>rir ao pó e converter-se em tema <strong>de</strong> futilida<strong>de</strong>;<br />

ao ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar-nos em suspenso; ou a enfrentar variação ou<br />

flutuação; ou a <strong>de</strong>ixar-nos em incerteza e perplexida<strong>de</strong>. Ao contrário,<br />

ele tem sua origem em Deus; e daí, paira acima <strong>de</strong> todas as nuvens; ele<br />

é a verda<strong>de</strong> sólida e invariável, e está posto acima <strong>de</strong> toda e qualquer<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dúvida.”<br />

Esta é uma passagem muitíssimo clara para refutar o princípio<br />

diabólico dos sofistas <strong>de</strong> que os crentes vivem num contínuo estado<br />

<strong>de</strong> hesitação. Porque seu intuito é suscitar dúvidas na mente dos crentes,<br />

se <strong>de</strong> fato vivem ou não na graça <strong>de</strong> Deus; e não admitem nenhuma


Capítulo 2 • 105<br />

certeza da salvação, porém <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da aprovação moral ou <strong>de</strong> conjetura<br />

provável. Não obstante, ao agirem assim eles <strong>de</strong>stroem a fé <strong>de</strong><br />

duas maneiras: Em primeiro lugar, seu intuito é que nutramos dúvida<br />

se <strong>de</strong> fato estamos em estado <strong>de</strong> graça; em seguida, sugerem uma segunda<br />

ocasião a dúvidas – a incerteza quanto à perseverança final. 18<br />

Aqui, porém, o apóstolo <strong>de</strong>clara, em termos gerais, que o Espírito foi<br />

dado aos eleitos, por cujo testemunho lhes é assegurado que foram<br />

adotados para a esperança da salvação eterna. Indubitavelmente, se<br />

os sofistas mantivessem sua doutrina, necessariamente privariam os<br />

eleitos do Espírito Santo e fariam o próprio Espírito também sujeito à<br />

incerteza. Ambos estes pontos estão em franco conflito com a doutrina<br />

<strong>de</strong> Paulo. Daí po<strong>de</strong>rmos saber ser esta a natureza da fé, a saber: que<br />

a consciência tem, pela operação do Espírito Santo, uma testemunha<br />

infalível do beneplácito <strong>de</strong> Deus para com ela, e, apoiando-se neste<br />

fato, confiadamente invoca a Deus na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pai. É assim que<br />

Paulo eleva nossa fé acima <strong>de</strong>ste mundo, para que ela contemple com<br />

majestoso <strong>de</strong>sdém toda a soberba carnal. Porque, do contrário, ela<br />

será sempre tímida e vacilante, porque vemos quão audaciosamente<br />

a engenhosida<strong>de</strong> humana se exalta; e os filhos <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong>vem pisar<br />

com a planta <strong>de</strong> seus pés este orgulho, através <strong>de</strong> um gênero oposto<br />

<strong>de</strong> altivez: a heróica magnanimida<strong>de</strong>. 19<br />

Para que pudéssemos conhecer as coisas que foram dadas por<br />

Cristo. A palavra conhecer é usada a fim <strong>de</strong> externar mais plenamente<br />

a convicção da confiança. Não obstante, notemos bem que a mesma<br />

não é obtida por vias naturais, nem é assimilada por nossa capacida<strong>de</strong><br />

mental <strong>de</strong> compreensão, senão que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> completamente da revelação<br />

do Espírito. As coisas <strong>de</strong> que ele faz menção como dadas por<br />

Cristo são as bênçãos que granjeamos através <strong>de</strong> sua morte e ressurreição<br />

– que sendo conciliados com Deus, e tendo obtido a remissão<br />

<strong>de</strong> pecados, sabemos que já fomos adotados para a esperança da vida<br />

18 O leitor encontrará este tema tratado numa forma mais extensa nas Institutas, vol. ii., p. 143.<br />

19 “Fondée en vne magnanimité heroique.” – “Fundamentada em uma heróica magnanimida<strong>de</strong>.”


106 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

eterna, e que, sendo santificados pelo Espírito <strong>de</strong> regeneração, fomos<br />

feitos novas criaturas a fim <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rmos viver para Deus. Paulo diz em<br />

Efésios 1.18 o equivalente à mesma coisa: “Para que saibais qual seja a<br />

esperança <strong>de</strong> sua vocação.”<br />

13. Coisas essas das quais falamos, não em palavras ensinadas<br />

pela sabedoria humana, mas pelo Espírito Santo. Paulo está fazendo<br />

referência a si próprio, pois está ainda empenhado em enaltecer<br />

seu ministério. Ora, é um notável tributo que ele presta a sua própria<br />

pregação quando diz que ela contém a revelação do segredo<br />

<strong>de</strong> questões muitíssimo importantes: a doutrina do Espírito Santo;<br />

a plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossa salvação; e os inestimáveis tesouros <strong>de</strong> Cristo.<br />

Ele age assim para que os coríntios soubessem quão sublimemente<br />

ela <strong>de</strong>ve ser valorizada. Nesse ínterim, ele volta à concessão que<br />

previamente fizera, ou, seja, que sua pregação não havia sido adornada<br />

com qualquer esplendor <strong>de</strong> palavras; que ela não possuía um<br />

estilo elegante; senão que ela simplesmente continha a doutrina do<br />

Espírito Santo.<br />

Pela expressão, ensinadas pela sabedoria humana, ele quer dizer<br />

aquelas palavras que contêm sabor <strong>de</strong> erudição humana e são polidas<br />

segundo as regras dos retóricos; ou bafejadas com imponência<br />

filosófica, com vistas a excitar a admiração dos ouvintes. Mas as palavras<br />

“ensinadas pelo Espírito” se amoldam a um estilo repassado <strong>de</strong><br />

sincerida<strong>de</strong> e simplicida<strong>de</strong>, ao contrário <strong>de</strong> fútil e ostentoso, e que<br />

correspon<strong>de</strong>m à dignida<strong>de</strong> do Espírito. Porque, para que a eloqüência<br />

esteja presente, <strong>de</strong>vemos cuidar sempre a fim <strong>de</strong> impedir que a<br />

sabedoria <strong>de</strong> Deus venha sofrer <strong>de</strong>gradação por uma excelência emprestada<br />

e profana. Mas o método <strong>de</strong> ensino adotado por Paulo era <strong>de</strong><br />

um gênero tal que o po<strong>de</strong>r do Espírito resplan<strong>de</strong>cia nele <strong>de</strong> uma forma<br />

singular e <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> atavios humanos, sem qualquer assistência<br />

estranha.<br />

Coisas espirituais com espirituais. Συγκρινεσθαι é usada aqui, não<br />

tenho a menor dúvida, no sentido <strong>de</strong> adaptar [aptare]. Este é às vezes<br />

o significado da palavra (segundo uma citação <strong>de</strong> Aristóteles feita por


Capítulo 2 • 107<br />

Budæus), e daí συγκριμα é também usada para o que é entrelaçado<br />

ou colado junto, e certamente se a<strong>de</strong>qua bem melhor ao contexto <strong>de</strong><br />

Paulo do que comparar ou equiparar, como alguns a têm traduzido.<br />

Ele, pois, diz que adapta coisas espirituais com espirituais, ao acomodar<br />

as palavras ao tema. Em outros termos, ele tempera aquela<br />

sabedoria celestial do Espírito com um estilo <strong>de</strong> linguagem simples, e<br />

<strong>de</strong> uma natureza tal ao ponto <strong>de</strong> levar em sua dianteira a energia natural<br />

do próprio Espírito. Nesse ínterim, ele reprova outros que, com<br />

afetada elegância <strong>de</strong> expressão, e <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> refinamento, se<br />

empenhavam pela obtenção dos aplausos dos homens, como pessoas<br />

completamente carentes que são ou <strong>de</strong>stituídas da sólida verda<strong>de</strong> ou,<br />

por meio <strong>de</strong> ornamentos inconvenientes, corrompem a doutrina espiritual<br />

<strong>de</strong> Deus.<br />

14. O homem natural, porém, não recebe<br />

as coisas do Espírito <strong>de</strong> Deus;<br />

porque lhe são loucura; nem po<strong>de</strong><br />

entendê-las, porque elas são discernidas<br />

espiritualmente.<br />

15. Aquele, porém, que é espiritual<br />

julga todas as coisas, contudo ele<br />

mesmo não é julgado por ninguém.<br />

16. Porque, quem conheceu a mente<br />

do Senhor, para que possa instruí-<br />

-lo? Nós, porém, temos a mente <strong>de</strong><br />

Cristo.<br />

14. Animalis autem homo non comprehendit<br />

quæ sunt Spiritus Dei.<br />

Sunt enim illi stultitia; nec potest<br />

intelligere, quia spiritualiter diiudicantur.<br />

15. Spiritualis autem diiudicat omnia,<br />

ipse vero a nemine [vel, nullo] diiudicatur.<br />

16. Quis enim cognovit mentem Domini,<br />

qui adjuvet ipsum? nos autem<br />

mentem Christi habemus.<br />

14. Ora, o homem natural. 20 Pela expressão, homem animal [animalis<br />

homo], Paulo não quer dizer, como comumente se preten<strong>de</strong>,<br />

uma pessoa escravizada a <strong>de</strong>sejos grosseiros, ou, como se diz, a sua<br />

própria sensualida<strong>de</strong>, mas alguém dotado meramente das faculda<strong>de</strong>s 21<br />

20 “Or l’homme naturel. A le traduire du Grec mot a mot, il y auroit l’homme animl.” – “Mas<br />

o homem natural. Traduzindo o grego literalmente, significa o homem animal.”<br />

21 “Les facultés et graces.” – “As faculda<strong>de</strong>s e dons.”


108 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

da natureza. 22 Isso é evi<strong>de</strong>nte à luz do termo correspon<strong>de</strong>nte, pois ele<br />

extrai uma comparação entre o homem animal e o espiritual. Uma vez<br />

que o espiritual <strong>de</strong>nota o homem cujo entendimento é regulado pela<br />

iluminação do Espírito <strong>de</strong> Deus, não po<strong>de</strong> haver dúvida <strong>de</strong> que o animal<br />

significa o homem que é <strong>de</strong>ixado, por assim dizer, simplesmente<br />

numa condição natural [in puris naturalibus]. Pois a alma 23 [anima]<br />

pertence à natureza, mas o Espírito vem <strong>de</strong> uma comunicação supernatural<br />

[ex dono supernaturali].<br />

Paulo traz a lume novamente o que mencionara levemente antes.<br />

Pois ele quer remover uma pedra <strong>de</strong> tropeço que po<strong>de</strong>ria frustrar o<br />

fraco, a saber, o fato <strong>de</strong> tantos estarem rejeitando o evangelho com<br />

<strong>de</strong>sdém. Ele mostra que não <strong>de</strong>vemos levar em conta o <strong>de</strong>sdém proveniente<br />

da ignorância, e por essa razão isso não <strong>de</strong>ve impedir-nos <strong>de</strong><br />

nos apressarmos no curso da fé; a menos que, eventualmente, <strong>de</strong>cidamos<br />

fechar nossos olhos ao esplendor do sol, sob a alegação <strong>de</strong> que os<br />

cegos não po<strong>de</strong>m vê-lo! Entretanto, <strong>de</strong>ve-se atribuir gran<strong>de</strong> ingratidão<br />

aos que rejeitam um favor especial <strong>de</strong> Deus, do qual são indignos, sob<br />

a alegação <strong>de</strong> que cada um <strong>de</strong>les não o tem, quando, ao contrário, sua<br />

própria rarida<strong>de</strong> põe em relevo seu valor. 24<br />

Porque lhe são loucura; e ele não po<strong>de</strong> entendê-las. Ele está<br />

dizendo o seguinte: “Todos aqueles cuja sabedoria se encontra num<br />

nível meramente humano, nunca experimentaram o sabor 25 do evangelho.<br />

Mas, como isso é assim? É proveniente da cegueira <strong>de</strong>les. Em<br />

que sentido, pois, isso po<strong>de</strong> prejudicar a majesta<strong>de</strong> do evangelho?<br />

Em suma, embora as pessoas ignorantes <strong>de</strong>preciem o evangelho só<br />

22 A <strong>de</strong>finição que Beza faz do termo é muito semelhante: “Homo non aliâ quam naturali<br />

animi luce præditus.” – “Um homem que não é dotado com nada mais do que a luz natural<br />

da mente.”<br />

23 A alma (anima) correspon<strong>de</strong> ao termo grego ψυχη e o termo hebraico pn, enquanto que<br />

spiritus (espírito) correspon<strong>de</strong> a πνευμα e jwr. Calvino, porém, emprega a <strong>de</strong>signação animalis<br />

(animal) como um <strong>de</strong>rivativo <strong>de</strong> anima (a alma), e como que <strong>de</strong>signando o homem<br />

cuja alma existe em um estado puramente natural – <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> iluminação supernatural.<br />

Em outros termos, o homem <strong>de</strong> mera mente.<br />

24 “D’autant qu’il est fait à peu <strong>de</strong> gens, dá autant doit-il estre trouué plus excellent.” –<br />

“Quanto menos é conferido, tanto mais se <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar valioso.”<br />

25 “Et n’auoir point <strong>de</strong> goust.” – “E é sem sabor.”


Capítulo 2 • 109<br />

porque, medindo seu valor pelo critério humano, Paulo extrai <strong>de</strong>ste<br />

fato um argumento em prol da mais sublime eminência <strong>de</strong> sua dignida<strong>de</strong>.<br />

Pois ele ensina que a razão por que ele [o evangelho] se <strong>de</strong>ve<br />

ao fato <strong>de</strong> o mesmo ser <strong>de</strong>sconhecido do homem, e que também<br />

é <strong>de</strong>sconhecido em razão <strong>de</strong> ser, ao mesmo tempo, tão profundo<br />

e elevado <strong>de</strong>mais para ser assimilado pela mente humana. Quão<br />

superior é esta sabedoria, 26 que transcen<strong>de</strong> infinitamente a todo o<br />

conhecimento humano, que o homem não po<strong>de</strong> ter sequer o mais<br />

leve sabor <strong>de</strong>la! 27 Mas ainda que aqui ele esteja tacitamente responsabilizando<br />

o orgulho humano pelo fato <strong>de</strong> os homens preten<strong>de</strong>rem<br />

con<strong>de</strong>nar como loucura o que eles não enten<strong>de</strong>m, ao mesmo tempo,<br />

contudo, ele mostra quão profunda é a <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>, ou, melhor, a<br />

obtusida<strong>de</strong> da mente humana, ao afirmar ser ela incapaz <strong>de</strong> [inerentemente]<br />

possuir discernimento espiritual. Porquanto ele ensina<br />

que o homem, por si só, não po<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r as coisas do Espírito,<br />

não só <strong>de</strong>vido ao orgulho obstinado da vonta<strong>de</strong> humana, mas também<br />

em <strong>de</strong>corrência da impotência <strong>de</strong> sua mente. Ele não teria dito<br />

nada além da verda<strong>de</strong>, caso afirmasse que os homens não <strong>de</strong>sejam<br />

ser sábios, porém avança um pouco mais dizendo que os homens<br />

nem mesmo têm o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> o ser. Daí concluirmos que a fé não provém<br />

das próprias faculda<strong>de</strong>s humanas, senão que ela é divinamente<br />

conferida.<br />

Porque elas se discernem espiritualmente. Ou, seja, o Espírito<br />

<strong>de</strong> Deus, 28 <strong>de</strong> quem emana a doutrina do evangelho, é o único<br />

e genuíno intérprete para no-la tornar acessível. Segue-se que, no<br />

transcorrer <strong>de</strong> [o processo <strong>de</strong>] julgá-la, as mentes humanas necessariamente<br />

permanecem cegas até que sejam iluminadas pelo<br />

Espírito <strong>de</strong> Deus. Do contrário o argumento seria inconclusivo. É<br />

verda<strong>de</strong> que provém do Espírito <strong>de</strong> Deus que possuímos aquela<br />

26 “O quelle sagesse!” – “Oh, que sabedoria!”<br />

27 “Vn petit goust.” – “Um leve sabor.”<br />

28 O leitor encontrará a afirmação do apóstolo a respeito do “homem natural” comentada<br />

em certa extensão nas Institutas.”


110 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

débil fagulha <strong>de</strong> razão <strong>de</strong> que todos <strong>de</strong>sfrutamos; mas aqui estamos<br />

falando daquela <strong>de</strong>scoberta especial da sabedoria celestial<br />

que só Deus outorga a seus filhos. Por essa causa não existe a<br />

menor base para se tolerar a ignorância daqueles que pensam ser<br />

o evangelho universalmente oferecido à humanida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> tal sorte<br />

que todos indiscriminadamente estão livres 29 para apropriar-se da<br />

salvação pela fé.<br />

15. Mas o homem espiritual julga todas as coisas. Havendo <strong>de</strong>spido<br />

o juízo carnal do homem <strong>de</strong> toda autorida<strong>de</strong>, ele agora ensina<br />

que só os espirituais são juízes qualificados nesta matéria; visto que<br />

somente o Espírito conhece a Deus, e é sua função pessoal fazer distinção<br />

entre suas próprias coisas e as das <strong>de</strong>mais criaturas, para aprovar<br />

o que é propriamente seu e anular todas as <strong>de</strong>mais coisas. Portanto,<br />

o significado é o seguinte: “Nesta conexão, não existe lugar para o discernimento<br />

da carne! É tão-somente o homem espiritual que possui o<br />

conhecimento, firme e sólido, dos mistérios <strong>de</strong> Deus; é ele que <strong>de</strong> fato<br />

distingue entre verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> falsida<strong>de</strong>; a doutrina <strong>de</strong> Deus das invenções<br />

humanas; <strong>de</strong> modo a não cair em equívocos.” 30 Em contrapartida,<br />

“ninguém o julga”, porque a certeza <strong>de</strong> fé não se acha sob o controle<br />

humano, como se a seu bel-prazer 31 pu<strong>de</strong>sse ser reduzida a ruínas,<br />

quando <strong>de</strong> fato é ela superior aos próprios anjos. Note-se que esta<br />

prerrogativa é atribuída não ao homem como um indivíduo, mas à Palavra<br />

<strong>de</strong> Deus, a qual usa o espiritual como guia para julgar, e a qual,<br />

naturalmente, lhes é imposta por Deus, com verda<strong>de</strong>iro discernimento.<br />

On<strong>de</strong> isso é propiciado, a persuasão humana fica situada além da<br />

categoria do juízo humano.<br />

29 Calvino obviamente não quer com isso negar que “todos indiscriminadamente” sejam convidados<br />

e autorizados a “abraçar a salvação pela fé”. Ele diz na Harmonia, vol. iii, p. 109:<br />

“Porque, visto que por meio <strong>de</strong> sua palavra ele [Deus] chama a todos os homens indiscriminadamente<br />

à salvação, e visto que o propósito da pregação é para que todos recorram a sua<br />

guarda e proteção, po<strong>de</strong>-se com razão dizer que ele quer congregar a todos em torno <strong>de</strong> si.”<br />

Sua intenção é dizer que a vonta<strong>de</strong> tem que ser libertada pelo Espírito <strong>de</strong> Deus.<br />

30 “En cest endroit.” – “Nesta matéria.”<br />

31 “Pour estre ou n’estre point selon qu’il leur plaira.” – “De modo a ser ou não <strong>de</strong> acordo<br />

com seu prazer.”


Capítulo 2 • 111<br />

Observe-se, além do mais, a palavra traduzida julgada, pela qual<br />

o apóstolo notifica que somos não meramente iluminados pelo Senhor<br />

para recebermos a verda<strong>de</strong>, mas que somos igualmente dotados com<br />

o espírito <strong>de</strong> discriminação a fim <strong>de</strong> não vivermos suspensos pela<br />

dúvida entre verda<strong>de</strong> e falsida<strong>de</strong>, mas para sermos capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar<br />

o que <strong>de</strong>vemos evitar e o que <strong>de</strong>vemos seguir.<br />

Neste ponto, porém, po<strong>de</strong>mos formular a seguinte pergunta:<br />

Quem é esse homem espiritual, e on<strong>de</strong> havemos <strong>de</strong> encontrá-lo munido<br />

<strong>de</strong> tanta luz que se torna capaz <strong>de</strong> a tudo julgar, quando estamos<br />

bem cientes do fato <strong>de</strong> estarmos envoltos por um gran<strong>de</strong> volume <strong>de</strong><br />

ignorância e sujeitos ao risco <strong>de</strong> cair em erros, e, o que é ainda mais<br />

sério, quando ainda o mais excelente <strong>de</strong>ntre os homens reiteradamente<br />

fracassa? A resposta é fácil: Paulo não esten<strong>de</strong> esta faculda<strong>de</strong><br />

a todos, <strong>de</strong> modo a representar a todos os que são renovados pelo<br />

Espírito <strong>de</strong> Deus como isentos <strong>de</strong> todo gênero <strong>de</strong> erro; mas simplesmente<br />

se propõe a ensinar que a sabedoria da carne é <strong>de</strong> nenhuma<br />

valia para julgar a doutrina da pieda<strong>de</strong>, e que a prerrogativa <strong>de</strong> juízo<br />

e autorida<strong>de</strong> pertence exclusivamente ao Espírito <strong>de</strong> Deus. Portanto,<br />

um homem só julga corretamente e com segurança <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ser<br />

regenerado e segundo a medida da graça que lhe for conferida – e<br />

não mais que isso!<br />

Ele mesmo não é julgado por ninguém. Já expliquei sobre<br />

que base Paulo afirma que o homem espiritual não está sujeito<br />

ao julgamento <strong>de</strong> qualquer ser humano, a saber, porque a veracida<strong>de</strong><br />

da fé, que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> exclusivamente <strong>de</strong> Deus, e se acha<br />

fundamentada em sua Palavra, não prevalece nem cai segundo o<br />

bel-prazer humano. 32 O que ele afirma <strong>de</strong>pois, que o espírito <strong>de</strong> um<br />

profeta está sujeito a outros profetas [1Co 14.32], <strong>de</strong> modo algum é<br />

inconsistente com essa <strong>de</strong>claração. Pois qual é o propósito <strong>de</strong>ssa<br />

sujeição senão para que cada um dos profetas ouça os <strong>de</strong>mais e<br />

32 “N’est point suiete au plaisir <strong>de</strong>s hommes, pour estre ou n’estre point, selon qu’ils voudront.”<br />

– “Não está sujeito à vonta<strong>de</strong> humana, <strong>de</strong> modo a obe<strong>de</strong>cer ou não segundo sua<br />

<strong>de</strong>cisão.”


112 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

não menospreze nem rejeite suas revelações, a fim <strong>de</strong> que, o que<br />

for <strong>de</strong>scoberto como sendo a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, 33 por fim permaneça<br />

firme e seja recebido por todos? Nesta passagem, contudo, ele<br />

põe a ciência da fé, que foi recebida da parte <strong>de</strong> Deus, 34 acima das<br />

excilsitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> céu e terra, para que ela não venha a ser avaliada<br />

pelo juízo humano.<br />

Ao mesmo tempo, ὕπ ̓ οὐδενός po<strong>de</strong> ser lido como do gênero neutro,<br />

a saber, “por nada”, <strong>de</strong> modo a ser entendido como uma referência<br />

a uma coisa e não a uma pessoa. Por esse prisma o contraste será mais<br />

completo, 35 sugerindo que o homem espiritual, até on<strong>de</strong> é ele dotado<br />

com o Espírito <strong>de</strong> Deus, julga todas as coisas, porém não é julgado por<br />

nada, porquanto não se acha sujeito a nenhuma sabedoria ou razão<br />

humana. E assim Paulo também isentaria a consciência dos piedosos<br />

<strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>cretos, leis e censuras dos homens.<br />

16. Pois quem conheceu...? É provável que Paulo estivesse olhando<br />

para o que lemos no capítulo 40 <strong>de</strong> Isaías. O profeta ali pergunta:<br />

“Quem foi o conselheiro <strong>de</strong> Deus? Quem pesou seu Espírito 36 [Is 40.13];<br />

ou o ajudou tanto na criação do mundo quanto em suas <strong>de</strong>mais obras?<br />

E, finalmente, quem tem compreendido a razão <strong>de</strong> suas obras?” Por<br />

esta mesma razão, Paulo <strong>de</strong>seja ensinar, pelo uso <strong>de</strong>sta pergunta,<br />

quão afastado da mente humana está seu conselho secreto que se<br />

acha contido no evangelho. Essa, pois, é a confirmação da afirmação<br />

prece<strong>de</strong>nte.<br />

Nós, porém, temos a mente <strong>de</strong> Cristo. Não está claro se ele fala<br />

dos crentes universalmente ou exclusivamente dos ministros. Ambos<br />

esses significados se a<strong>de</strong>quam suficientemente bem ao contexto, ainda<br />

que eu prefira vê-lo como uma referência mais particularmente a<br />

33 “La pure ferité du Seigneur.” “A verda<strong>de</strong> pura do Senhor.”<br />

34 “Mais yci il establit et conferme la science <strong>de</strong> foy, laquelle les eleus recoyuent <strong>de</strong> Dieu.” –<br />

“Aqui, porém, ele estabelece e confirma a ciência da fé, a qual os eleitos têm recebido <strong>de</strong><br />

Deus.”<br />

35 “Et expresse.” – “E exato.”<br />

36 A expressão usada por Isaías é: Quem dirigiu o Espírito do Senhor? Nosso autor, citando<br />

<strong>de</strong> memória, parece ter diante <strong>de</strong> seus olhos uma expressão que ocorre numa parte anterior<br />

da mesma passagem: “e pesados os montes em balanças.”


Capítulo 2 • 113<br />

ele próprio e a outros ministros fiéis. 37 Ele diz, pois, que os servos do<br />

Senhor são instruídos pela particular autorida<strong>de</strong> do Espírito, o que se<br />

acha <strong>de</strong>masiadamente distanciado da compreensão humana, a fim <strong>de</strong><br />

que falem <strong>de</strong>stemidamente, por assim dizer, [o que flui] da boca do<br />

Senhor. Posteriormente, esse dom se disseminará gradativamente por<br />

toda a Igreja.<br />

37 Calvino, ao aludir a esta passagem, como evi<strong>de</strong>ntemente faz em seu comentário aos<br />

Romanos [11.34], consi<strong>de</strong>ra a expressão, Temos a mente <strong>de</strong> Cristo, como aplicável aos<br />

crentes universalmente – “Nam et Paulus ipse alibi, postquam testatus ert omnia Dei mysteria<br />

ingenii nostri captum longe exce<strong>de</strong>re, mox tamen subjiicit, fi<strong>de</strong>les tenere mentem<br />

Domini: quia non spiritum hujus mundi acceperint, sed a Deo sibi datum, per quem <strong>de</strong> incomprehensibili<br />

alioqui ejus bonitate edocentur.” – “Pois ainda o próprio Paulo, em outro<br />

passo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> testificar que todos os mistérios <strong>de</strong> Deus muito exce<strong>de</strong>m a capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> nossa compreensão, não obstante imediatamente acrescenta que os crentes estão <strong>de</strong><br />

posse da mente do Senhor, porque já receberam não o espírito <strong>de</strong>ste mundo, mas aquele<br />

que lhes foi dado por Deus, por meio do qual são instruídos quanto a sua incompreensível<br />

bonda<strong>de</strong>.”


Capítulo 3<br />

1. E eu, irmãos, não vos pu<strong>de</strong> falar<br />

como a espirituais, mas como a<br />

carnais, como a crianças em Cristo.<br />

2. Tenho vos alimentado com leite, e<br />

não com carne, porque até aqui não<br />

éreis capazes <strong>de</strong> suportar, nem ainda<br />

agora o sois.<br />

3. Porque ainda sois carnais; pois havendo<br />

entre vós inveja, contenda e<br />

divisões, porventura não sois carnais<br />

e não andais como os homens?<br />

4. Pois quando um diz: Eu sou <strong>de</strong> Paulo;<br />

e outro: Eu sou <strong>de</strong> Apolo; porventura,<br />

não sois carnais?<br />

1. Et ego, fratres, non potui vobis<br />

loqui tanquam spiritualibus, sed<br />

tanquam carnalibus, tanquam pueris<br />

in Christo. 1<br />

2. Lactis potu vos alui, non solido<br />

cibo. Nondum enim eratis capaces,<br />

ac ne nunc qui<strong>de</strong>m estis:<br />

3. Siqui<strong>de</strong>m estis adhuc carnales.<br />

Postquam enim sunt inter vos<br />

æmulatio et contentio, et factiones;<br />

nonne carnales estis, et secundum<br />

hominem ambulatis?<br />

4. Quum enim dicat unus, Ego sum<br />

Pauli: alter vero, Ego Apollo: nonne<br />

carnales estis?<br />

1. E eu, irmãos. Ele inicia aplicando aos próprios coríntios<br />

o que dissera sobre as pessoas carnais, <strong>de</strong> modo que pu<strong>de</strong>ssem<br />

compreen<strong>de</strong>r que a culpa era <strong>de</strong>les mesmos se a doutrina da<br />

cruz não mais exercia atração sobre eles. É provável também que<br />

muita autoconfiança e orgulho ainda restassem em suas mentes,<br />

<strong>de</strong> modo que não era sem consi<strong>de</strong>rável relutância e mui gran<strong>de</strong><br />

dificulda<strong>de</strong> que os impedia ainda <strong>de</strong> abraçar a simplicida<strong>de</strong> do<br />

evangelho. O resultado foi que negligenciaram o apóstolo e a divina<br />

eficácia <strong>de</strong> sua pregação, e passaram a prestar mais atenção<br />

aos mestres que provocavam ruído, porém eram <strong>de</strong>stituídos do<br />

1 “C’est à dire comme à enfans en Christ.” – “Isto é, como a bebês em Cristo.”


116 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Espírito. 2 Daí, a fim <strong>de</strong> restringir ao máximo sua insolência, ele<br />

lhes assevera que <strong>de</strong>viam ser contados entre aqueles que, havendo<br />

sido subjugados pelo senso da carne, não tinham a capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> receber a sabedoria espiritual <strong>de</strong> Deus. Sem dúvida, ele amorteceu<br />

a aspereza <strong>de</strong> sua reprovação chamando-os <strong>de</strong> ‘irmãos’;<br />

porém, por mais que suavizasse a maneira franca <strong>de</strong> reprová-los,<br />

suas mentes estavam tão sufocadas pelas trevas da carne, que tal<br />

fato tornou-se um obstáculo à pura pregação entre eles. Como,<br />

pois, podia-se atribuir-lhes um juízo saudável, quando ainda não<br />

estavam dispostos e nem ainda preparados para ouvir? Paulo, porém,<br />

não preten<strong>de</strong> dizer que fossem completamente carnais, sem<br />

nem mesmo uma pequena fagulha do Espírito <strong>de</strong> Deus, mas que<br />

ainda se achavam tão saturados da mente carnal, que esta prevalecia<br />

contra o Espírito e, por assim dizer, extinguia sua luz. Ainda<br />

que não estivessem inteiramente sem a graça, todavia suas vidas<br />

possuíam muito mais da carne do que do Espírito, e esta é a razão<br />

por que os <strong>de</strong>nomina carnais. E isso é bastante claro à luz do<br />

que em seguida ele acrescenta, ou, seja, que os coríntios eram<br />

“criancinhas em Cristo” [pueros in Christo], pois não teriam sido<br />

criancinhas não tivessem eles sido gerados, e essa geração é proveniente<br />

do Espírito <strong>de</strong> Deus.<br />

Crianças em Cristo. Esta <strong>de</strong>scrição é às vezes usada num bom<br />

sentido, como, por exemplo, por Pedro, que nos roga para que sejamos<br />

como “crianças recém-nascidas” [1Pe 2.2]; e naquela afirmação<br />

<strong>de</strong> Cristo – “Quem não receber o reino <strong>de</strong> Deus como uma criança,<br />

<strong>de</strong> maneira alguma entrará nele” [Lc 18.17]. Entretanto, no presente<br />

caso, ele lhe atribui um sentido negativo, porque tem referência ao<br />

entendimento. Porquanto <strong>de</strong>vemos ser “crianças na malícia, mas não<br />

na mente” [Lc14.20]. Esta distinção aclara qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

haver aqui ambigüida<strong>de</strong>. Efésios 4.14 correspon<strong>de</strong> a isto: “Não sejamos<br />

meninos, levados por todo vento <strong>de</strong> doutrina, transformados<br />

2 “Combien qu’il n’y eust en eux aucune efficace <strong>de</strong> l’Esprit.” – “Ainda que não houvesse<br />

neles nenhuma eficácia do Espírito.”


Capítulo 3 • 117<br />

em joguete 3 das artimanhas dos homens; mas que cresçamos diariamente<br />

etc.”<br />

2. Tenho vos alimentado com leite. Neste ponto, alguém po<strong>de</strong>ria<br />

perguntar se Paulo transformou a Cristo para acomodar-se a pessoas<br />

diferentes. Minha resposta é que isso tem a ver mais com sua maneira<br />

ou método <strong>de</strong> ensinar do que com a substância do que ele ensinava.<br />

Porque o mesmo Cristo é leite para os nenês e alimento sólido para<br />

os adultos [Hb 5.13, 14]. A mesma verda<strong>de</strong> do evangelho é dirigida a<br />

ambos, mas <strong>de</strong> forma a<strong>de</strong>quada à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada um. Portanto,<br />

um mestre sábio tem a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acomodar-se à capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> compreensão daqueles a quem ele administra o ensino, <strong>de</strong> modo a<br />

iniciar com os primeiros princípios ou rudimentos quando instrui os<br />

fracos e ignorantes, não lhes dando algo que seja mais forte do que po<strong>de</strong>m<br />

ingerir [Mc 4.33]. Em suma, ele <strong>de</strong>ve instilar seu ensino pouco a<br />

pouco, pois comunicar uma porção <strong>de</strong>masiadamente forte resultaria<br />

apenas em perda. Pois, estes rudimentos <strong>de</strong>vem conter tudo quanto é<br />

necessário para o conhecimento, não menos do que a instrução mais<br />

completa administrada aos mais fortes. É bom ler, nesta conexão, a 98ª<br />

Homília sobre João, <strong>de</strong> Agostinho. Assim, fica provado ser falsa a forjada<br />

escusa <strong>de</strong> alguns que, por temerem o perigo, não fazem mais do que<br />

algumas referências gaguejantes e indistintas ao evangelho, e alegam<br />

que neste respeito Paulo é seu exemplo. Entrementes, eles apresentam<br />

um Cristo tão distante da realida<strong>de</strong>, e inclusive oculto por muitos véus,<br />

resultando que mantêm sempre seus seguidores num estado <strong>de</strong> fatal ignorância.<br />

Nada direi <strong>de</strong> seu envolvimento em muitas corrupções; <strong>de</strong> sua<br />

apresentação não apenas <strong>de</strong> um Cristo pelas meta<strong>de</strong>s, mas <strong>de</strong> um Cristo<br />

fragmentado 4 em partículas; não apenas sua dissimulação <strong>de</strong> grosseira<br />

idolatria, mas também em conformá-lo a seu próprio exemplo; e, se dis-<br />

3 Nosso autor apresenta aqui, como em muitos outros exemplos, a substância da passagem<br />

citada, e não palavras expressas. Na expressão, “como joguete das falácias humanas”, é<br />

como se ele tivesse diante <strong>de</strong> seus olhos o termo κυβεια – traduzido por nossos tradutores<br />

estratagema (dos homens), o qual, como o próprio Calvino observa quando comenta<br />

a passagem, é “translatum ab aleatoribus, quod inter eos multæ sint fallendi artes” – emprestado<br />

dos jogadores <strong>de</strong> dados, com suas muitas artes <strong>de</strong> engano praticadas entre si.<br />

4 “Par pieces et morceaux.” – “Em pedaços e petiscos.”


118 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

sessem algumas coisas, imediatamente diriam uma porção <strong>de</strong> mentiras.<br />

É muitíssimo evi<strong>de</strong>nte como Paulo e eles são diametralmente diferentes;<br />

pois leite é nutriente, não veneno; e é alimento a<strong>de</strong>quado e benéfico<br />

para crianças até que atinjam seu a<strong>de</strong>quado <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

Porque não podíeis nem ainda po<strong>de</strong>is suportar. Para que não<br />

se gloriasse em <strong>de</strong>masia em seu próprio discernimento, Paulo revela,<br />

antes <strong>de</strong> tudo, o que <strong>de</strong>scobrira neles <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio, e acrescenta<br />

algo que é ainda mais <strong>de</strong>sagradável, ou, seja, que as mesmas falhas<br />

ainda persistem entre eles. Pois ao menos <strong>de</strong>viam ter-se livrado da<br />

carne quando receberam a Cristo; e assim nos <strong>de</strong>paramos com Paulo<br />

a queixar-se <strong>de</strong> achar-se interrompido o progresso a que seu ensino se<br />

<strong>de</strong>stinara. Porque, se o ouvinte não ocasiona atraso em razão <strong>de</strong> sua<br />

indolência, o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> um bom mestre é estar sempre incitando-o mais<br />

energicamente 5 até que a perfeição tenha sido alcançada.<br />

3. Porque sois ainda carnais. Enquanto a carne, isto é, a corrupção<br />

natural, governa uma pessoa, ela toma posse <strong>de</strong> sua mente para<br />

que a sabedoria divina não logre acesso. Em razão <strong>de</strong>sse fato, se <strong>de</strong>sejarmos<br />

lograr algum progresso na escola do Senhor, <strong>de</strong>vemos antes<br />

renunciar nosso próprio entendimento e nossa própria vonta<strong>de</strong>. Ainda<br />

que houvesse algum vislumbre <strong>de</strong> religião nos coríntios, pelo menos<br />

boa parte, não obstante, se achava extinta. 6<br />

Pois havendo entre vós. A prova se <strong>de</strong>riva dos efeitos. Porque,<br />

uma vez que a inveja, as disputas e as facções eram frutos da carne,<br />

po<strong>de</strong>mos estar certos <strong>de</strong> que sempre serão vistos; haverão sempre <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>itar raízes. Esses males predominavam entre os coríntios; portanto,<br />

é à luz <strong>de</strong>sse fato que Paulo mostra que eles eram carnais. Ele usa igualmente<br />

o mesmo argumento em Gálatas 5.25: “Se vivemos pelo Espírito,<br />

an<strong>de</strong>mos também pelo Espírito.” Pois enquanto estavam ansiosos em<br />

ser consi<strong>de</strong>rados espirituais, ele os lembra <strong>de</strong> olhar para suas pró-<br />

5 “D’avancer tousiours ses escholiers, et monter plus haut.” – “Estar sempre levando avante<br />

seus alunos e subindo sempre mais alto.”<br />

6 “L’estouffement touteffois venant <strong>de</strong> leurs affections perverses, surmontoit.” – “A sufocação,<br />

não obstante, proce<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> seus próprios afetos, prevalecia.”


Capítulo 3 • 119<br />

prias obras, por meio das quais estavam negando o testemunho <strong>de</strong><br />

seus próprios lábios [Tt 1.16]. Observe-se, porém, a or<strong>de</strong>m apropriada<br />

que Paulo adota aqui. Pois é da inveja que nascem as contendas, as<br />

quais, uma vez inflamadas, resultam em seitas danosas. Além disso, a<br />

ambição é a mãe <strong>de</strong> todos estes males.<br />

Andais como os homens. Daqui se manifesta que o termo carne<br />

não se limita meramente aos <strong>de</strong>sejos inferiores, como os sofistas fazem<br />

crer, chamando-os a fonte <strong>de</strong> toda a sensualida<strong>de</strong>; ela é predicado<br />

do homem natural como um todo. Pois aqueles que seguem as diretrizes<br />

da natureza não são governados pelo Espírito <strong>de</strong> Deus. Esses,<br />

segundo a <strong>de</strong>finição do apóstolo, são carnais, <strong>de</strong> modo que a carne e a<br />

disposição natural do homem são absolutamente sinônimas. Portanto,<br />

Paulo tem boas razões para pedir, em outra passagem, que sejamos<br />

“novas criaturas em Cristo” [2Co 5.17].<br />

4. Pois enquanto um diz. Paulo agora especifica a forma precisa<br />

que as contendas 7 assumem, e age assim personificando os coríntios,<br />

para que sua <strong>de</strong>scrição tivesse mais força – que cada um <strong>de</strong>les se vangloriava<br />

em seu próprio mestre em particular, como se Cristo não fosse<br />

o único Mestre <strong>de</strong> todos [Mt 23.8]. Aliás, on<strong>de</strong> tal ambição ainda prevalece,<br />

o evangelho faz pouco ou nenhum progresso. Entretanto, não<br />

<strong>de</strong>vemos esperar que fizessem uma pública profissão <strong>de</strong> fé com muitas<br />

palavras, porém o apóstolo reprova aquelas disposições <strong>de</strong>pravadas<br />

pelas quais se <strong>de</strong>ixaram controlar. Ao mesmo tempo é provável que,<br />

visto que a tagarelice vazia que geralmente alguém exibe visa à conquista<br />

do favor do povo em benefícios <strong>de</strong> seus fins pessoais, 8 e é provável<br />

que tenham <strong>de</strong>scoberto seu ponto <strong>de</strong> vista distorcido por causa do qual<br />

cantaram os louvores extravagantes a seus próprios mestres em termos<br />

que tocavam o próprio céu, ao mesmo tempo que <strong>de</strong>rramaram seu <strong>de</strong>sprezo<br />

sobre Paulo e sobre aqueles que estavam com ele.<br />

7 “Qui estoyent entr’eux.” – “Que havia entre eles.”<br />

8 “Cette façon <strong>de</strong> jetter son cœur sur un homme par ambition, est accompagnée d’un sot<br />

babil.” – “Este modo <strong>de</strong> estabelecer alguém o coração sobre um indivíduo através da<br />

ambição é acompanhado <strong>de</strong> uma fútil tagarelice.”


120 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

5. Quem, pois, é Paulo? E quem é<br />

Apolo? Ministros através <strong>de</strong> quem<br />

crestes, conforme o Senhor <strong>de</strong>u a<br />

cada um.<br />

6. Eu plantei, Apolo regou; Deus, porém,<br />

<strong>de</strong>u o crescimento.<br />

7. Assim, pois, não é quem planta alguma<br />

coisa, nem aquele que rega; mas<br />

Deus que dá o crescimento.<br />

8. Ora, aquele que planta e aquele que<br />

rega são um; e cada um receberá<br />

seu próprio galardão segundo seu<br />

próprio trabalho.<br />

9. Porque somos cooperadores <strong>de</strong><br />

Deus; vós sois lavoura <strong>de</strong> Deus, edifício<br />

<strong>de</strong> Deus sois vós.<br />

5. Quis ergo est Paulus, aut quis<br />

Appolos, nisi ministri, per quos<br />

credidistis, et sicut unicuique Dominus<br />

<strong>de</strong>dit?<br />

6. Ego plantavi, Appolos rigavit; at<br />

Deus incrementum <strong>de</strong>dit.<br />

7. Ergo neque qui plantat aliquid est,<br />

neque qui rigat; sed Deus qui dat<br />

incrementum.<br />

8. Qui autem plantat, et qui rigat, unum 9<br />

sunt. Porro quisque propriam merce<strong>de</strong>m<br />

secundum laborem suum<br />

recipiet.<br />

9. Dei enim cooperarii sumus, 10 Dei<br />

agricultura, Dei ædificatio estis.<br />

5. Quem, pois, é Paulo? Ele agora começa a tratar da estima em<br />

que os ministros <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>rados e o propósito para o qual<br />

foram separados pelo Senhor. Ele, porém, nomeia a si e a Apolo antes<br />

dos outros para que evitassem a aparência <strong>de</strong> inveja. 11 “Que outro<br />

trabalho é o dos ministros”, pergunta ele, “senão o <strong>de</strong> conduzir-vos à<br />

fé por meio <strong>de</strong> sua pregação?” De tal fato Paulo infere que não <strong>de</strong>ve<br />

haver ostentação em homem algum, porquanto a fé não permite que<br />

alguém se glorie senão exclusivamente em Cristo. Segue-se que aqueles<br />

que exaltam excessivamente os homens, os privam <strong>de</strong> sua genuína<br />

dignida<strong>de</strong>. Pois a mais importante <strong>de</strong> todas as coisas é que eles sejam<br />

ministros da fé, em outros termos, que conquistam seguidores,<br />

sim, mas não para si próprios, mas para Cristo. Não obstante, embora<br />

pareça que ele, portando-se assim, está subtraindo a autorida<strong>de</strong><br />

dos ministros, na verda<strong>de</strong> não lhes está conferindo menos do <strong>de</strong>vido.<br />

Pois ele lhes confere uma gran<strong>de</strong> honra ao dizer que obtemos nossa fé<br />

9 “Sont vn, ou vne chose.” – “São um, ou uma só coisa.”<br />

10 “Car nous sommes ouuriers avec Dieu, ou, nous ensemble sommes ouuriers <strong>de</strong> Dieu.” –<br />

“Porque somos trabalhadores com Deus, ou somos cooperadores <strong>de</strong> Deus.”<br />

11 “Afin que le propos soit moins odieux, et qu’on ne dise qu’il porte enuie aux autres.” –<br />

“Para que o discurso fosse menos ofensivo, e para que ninguém dissesse que ele tinha<br />

inveja dos outros.”


Capítulo 3 • 121<br />

por intermédio do ministério <strong>de</strong>les. Não só isso, a eficácia da doutrina<br />

externa [externæ doctrinæ] recebe aqui a extraordinária aprovação<br />

quando é expressa como o instrumento do Espírito Santo; e os pastores<br />

são honrados não com um título <strong>de</strong> distinção comum quando<br />

lemos que Deus os usa como ministros para ministrar os incomparáveis<br />

tesouros da fé.<br />

E conforme o Senhor <strong>de</strong>u a cada um. No grego <strong>de</strong> Paulo, a partícula<br />

<strong>de</strong> comparação, ὡς, como, é colocada <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ἑκαστῳ, a cada um; mas<br />

a or<strong>de</strong>m foi invertida. 12 Portanto, para que o significado fique mais claro,<br />

prefiro traduzir “como a cada um” [sicut unicuique], em vez <strong>de</strong> “a cada<br />

um como” [unicuique sicut]. Além disso, em algumas cópias, a partícula<br />

και, e, se per<strong>de</strong>u, <strong>de</strong> modo a ficar a frase assim: “ministros através <strong>de</strong><br />

quem crestes, como o Senhor <strong>de</strong>u a cada um.” Se ficarmos com esta redação,<br />

a segunda frase será acrescida para explicar a primeira, <strong>de</strong> modo<br />

que Paulo pô<strong>de</strong> realçar o que quis significar com o termo ‘ministro’. É<br />

como se dissesse: “Ministros são aqueles cujo trabalho Deus utiliza; não<br />

aqueles que estão confiantes em seus próprios esforços, mas aqueles<br />

que são guiados por sua mão, como instrumentos.”<br />

Todavia, a redação que tenho adotado está, em minha opinião,<br />

mais próxima da verda<strong>de</strong>. Se a seguirmos, a oração será mais rica, porque<br />

consistirá <strong>de</strong> duas sentenças, como seguem: Em primeiro lugar,<br />

ministros são aqueles que põem seus serviços à disposição <strong>de</strong> Cristo,<br />

<strong>de</strong> modo a po<strong>de</strong>rem crer nele. Além do mais, eles não possuem nada<br />

propriamente seu, em que possam se orgulhar, visto que nada realizam<br />

movidos por sua própria iniciativa, mas unicamente pelo dom <strong>de</strong><br />

Deus, e cada um segundo sua própria medida – o que revela que tudo<br />

o que uma pessoa possui é <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong> outra fonte. Finalmente, ele os<br />

mantém todos juntos como por um vínculo comum, visto que tinham<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> assistência mútua.<br />

12 Um exemplo do mesmo gênero ocorre em Romanos 12.3. ἑκάστῳ ὡς ο Θεὸς εμερισε μέτρον<br />

πίστεως – “como Deus distribuiu a cada um segundo a medida da fé.” Calvino, ao comentar<br />

a passagem, observa que ela é um exemplo <strong>de</strong> “anastrophe, seu vocum inversio, pro<br />

Quemadmodum unicuique.” – “anástrofe, ou inversão <strong>de</strong> palavras para como a cada um.”


122 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

6. Eu plantei, Apolo regou. Ele <strong>de</strong>snuda ainda mais claramente a<br />

natureza <strong>de</strong>sse ministério através <strong>de</strong> uma similitu<strong>de</strong>, na qual a natureza<br />

da palavra e o uso da pregação são mui apropriadamente ilustrados. A<br />

fim <strong>de</strong> que a terra produza fruto, são necessários todos os processo da<br />

agricultura, como a aradura, a semeadura etc. Mas quando tudo isso<br />

tiver se processado, o trabalho do agricultor seria vão se o Senhor não<br />

<strong>de</strong>r “o crescimento” vindo do céu mediante a influência do sol e, ainda<br />

mais, por seu próprio, maravilhoso e secreto po<strong>de</strong>r. Portanto, mesmo<br />

que o cuidado do agricultor não fosse eficiente, e a semente que ele semeia<br />

não fosse produtiva, contudo é tão-só pela bênção <strong>de</strong> Deus que ela<br />

se torna produtiva. Porque, o que é mais espantoso do que a semente<br />

apodrecendo para então germinar? Semelhantemente, a Palavra do Senhor<br />

é semente frutífera por sua própria natureza. Os ministros são, por<br />

assim dizer, agricultores que preparam a terra e semeiam. Então outros<br />

auxílios se agregam, como, por exemplo, a irrigação. Os ministros são<br />

igualmente responsáveis por esses <strong>de</strong>veres quando, havendo semeado<br />

a semente no solo, prestam tanto auxílio quanto possível à própria terra,<br />

até que ela dê à luz o que concebeu. Todavia, a influência real para<br />

a fertilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu trabalho emana, naturalmente, do milagre da graça<br />

divina – não um produto do esforço humano.<br />

Observe-se, entretanto, nesta passagem, quão necessária é a<br />

pregação da Palavra, e quão indispensável é que a mesma seja feita<br />

continua mente. 13 Certamente que não seria mais difícil para Deus<br />

abençoar a terra sem qualquer diligência por parte dos homens, <strong>de</strong><br />

modo a produzir fruto por sua própria vonta<strong>de</strong> do que extrair ou,<br />

melhor, forçar 14 sua produção através <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> medida <strong>de</strong><br />

aplicação por parte dos homens, com muito suor e frustração. Visto,<br />

porém, que o Senhor assim <strong>de</strong>terminou [1Co 9.14] que o homem<br />

labutasse e a terra por sua vez correspon<strong>de</strong>sse a seu cultivo, então<br />

procuremos agir concor<strong>de</strong>mente. De igual modo, não existe nada que<br />

13 “Combien aussi il est necessaire qu’elle continue et soit tousiours entretenue.” – “Quão<br />

necessário é também que ela continue e seja sempre mantida.”<br />

14 “Tous les ans.” – “A cada ano.”


Capítulo 3 • 123<br />

impeça a Deus <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ele implantar fé nas pessoas dormentes, caso<br />

ele o queira, sem qualquer auxílio humano. Ele, porém, o <strong>de</strong>terminou<br />

<strong>de</strong> outra maneira, a saber, que a fé nasce do ouvir. Portanto, a pessoa<br />

que se sente segura <strong>de</strong> que po<strong>de</strong> receber fé, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rando esses<br />

meios, age precisamente como se os agricultores, <strong>de</strong>sistindo do arado,<br />

negligenciando a semeadura e abandonando todo o cultivo, abrissem<br />

sua boca e esperassem a comida cair do céu nela.<br />

Descobrimos agora o que Paulo tem em mente com referência à<br />

incessante 15 pregação da Palavra. Certamente que a semeadura não<br />

bastará se a semente não for assessorada pelo freqüente uso <strong>de</strong> outros<br />

agentes corroborantes. Portanto, aquele que já recebeu a semente ainda<br />

precisa regar, e não <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>sistir até que tenha atingido a plenitu<strong>de</strong><br />

do <strong>de</strong>senvolvimento; em outros termos, até o fim <strong>de</strong> sua vida [terrena].<br />

De Apolo, pois, que suce<strong>de</strong>u Paulo no ministério da Palavra em<br />

Corinto, diz-se ter regado o que Paulo semeara.<br />

7. Nem o que planta é alguma coisa. É evi<strong>de</strong>nte, à luz do que ficou<br />

expresso, que a obra <strong>de</strong>les [os ministros] não é <strong>de</strong> modo algum insignificante.<br />

Por isso é preciso que entendamos a razão por que a <strong>de</strong>precia<br />

como fez. Aliás, antes <strong>de</strong> tudo é preciso observar que ele costumava<br />

discorrer <strong>de</strong> duas maneiras sobre os ministros, 16 como também sobre os<br />

sacramentos. Porque às vezes ele fala <strong>de</strong> um ministro como alguém or<strong>de</strong>nado<br />

pelo Senhor, no primeiro caso regenerando as almas, e no segundo<br />

para alimentá-las visando à vida eterna, à remissão <strong>de</strong> pecados, à renovação<br />

das mentes humanas, ao estabelecimento do reino <strong>de</strong> Cristo e à<br />

<strong>de</strong>struição <strong>de</strong> Satanás. Conseqüentemente, Paulo <strong>de</strong>signa o ministro não<br />

só com o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> plantar e regar, mas também o mune com o po<strong>de</strong>r do<br />

Espírito Santo para que seu labor não venha a ser improdutivo. Assim, 17<br />

em outra passagem [2Co 3.6], ele o chama ministro do Espírito, e não da<br />

letra, já que ele imprime a Palavra do Senhor nos corações dos homens.<br />

15 Nosso autor se refere àquilo para o qual ele, um pouco antes, chamara a atenção (p. 104)<br />

quanto à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a palavra <strong>de</strong> Deus continuar sendo administrada.<br />

16 Po<strong>de</strong>remos encontrar Calvino chamando a atenção para o mesmo tema em extensão consi<strong>de</strong>rável,<br />

ao comentar 1 Coríntios 9.1.<br />

17 “Suyuant ceste consi<strong>de</strong>ration.” – “De acordo com este ponto <strong>de</strong> vista.”


124 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Em contrapartida, ele às vezes fala do ministro como sendo um<br />

servo, não um mestre; como um instrumento, não uma autorida<strong>de</strong>; e,<br />

em suma, como homem, e não Deus. Visto por esse prisma, ele nada<br />

lhe <strong>de</strong>ixa senão seu trabalho; aliás, morto e impotente, a menos que o<br />

Senhor lhe confira po<strong>de</strong>r eficaz pela operação <strong>de</strong> seu Espírito. A razão<br />

consiste em nisto: quando é simplesmente uma questão <strong>de</strong> ministério,<br />

não <strong>de</strong>vemos atentar <strong>de</strong>masiadamente para o ser humano, mas para<br />

Deus que está operando no homem pela graça do Espírito. Não significa<br />

que a graça do Espírito está sempre atada à palavra do homem,<br />

mas que Cristo esten<strong>de</strong> seu próprio po<strong>de</strong>r ao ministério que ele instituiu,<br />

<strong>de</strong> tal forma que fica evi<strong>de</strong>nciado que o mesmo não foi instituído<br />

em vão. Por este prisma, Cristo não subtrai nem reduz nada que lhe<br />

pertença com o fim <strong>de</strong> transferi-lo ao homem. Porquanto ele não está<br />

separado do ministro, 18 e, sim, que, ao contrário, <strong>de</strong>clara-se que seu<br />

po<strong>de</strong>r é eficaz no ministro. Visto, porém, que, através da <strong>de</strong>pravação<br />

<strong>de</strong> nosso juízo, às vezes tiramos vantagem <strong>de</strong>ste fato para valorizar <strong>de</strong>mais<br />

o homem, precisamos fazer uma distinção a fim <strong>de</strong> corrigir esta<br />

falha: o Senhor <strong>de</strong>ve ser colocado <strong>de</strong> um lado e o ministro, do outro.<br />

É assim que se torna evi<strong>de</strong>nte que a necessida<strong>de</strong> do homem está nele<br />

mesmo, e quão plenamente carente é ele <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />

Portanto, aprendamos <strong>de</strong>sta passagem que os ministros sãos postos<br />

lado a lado com o Senhor à guisa <strong>de</strong> comparação. A razão para<br />

tal comparação é que os homens, atribuindo pouco valor à graça <strong>de</strong><br />

Deus, são excessivamente liberais em enaltecer os ministros; e assim<br />

furtam a Deus daquilo que por direito lhe pertence e o transferem para<br />

si próprios. Entretanto, Paulo sempre mantém o mais pleno senso <strong>de</strong><br />

proporção, pois quando afirma que “Deus é quem dá o crescimento”,<br />

ele quer dizer que os esforços dos próprios homens não ficam sem<br />

sucesso. Veremos em outra passagem 19 que o mesmo raciocínio se<br />

18 “Car en ces façons <strong>de</strong> parler Christ n’est point separé du ministre.” – “Nessas formas <strong>de</strong><br />

expressão Cristo não é separado (ou consi<strong>de</strong>rado à parte) do ministro.”<br />

19 Calvino mui provavelmente se refere aqui às afirmações feitas por ele ao comentar Gálatas<br />

3.27 nestes termos: “Respon<strong>de</strong>o, Paulum <strong>de</strong> Sacramentis bifariam solere loqui. Dum<br />

negotium est cum hypocritis, qui nudis signis superbiunt, tum concionatur, quam inanis


Capítulo 3 • 125<br />

aplica também aos sacramentos. Portanto, ainda que nosso Pai celestial<br />

não rejeite nosso labor no cultivo <strong>de</strong> seu campo, não permitindo<br />

que o mesmo seja improdutivo, não obstante ele <strong>de</strong>seja que seu êxito<br />

<strong>de</strong>penda exclusivamente <strong>de</strong> sua bênção, <strong>de</strong> modo que todo louvor permaneça<br />

sendo seu. Portanto, se queremos granjear algum benefício<br />

<strong>de</strong> nosso labor, <strong>de</strong> nosso esforço, <strong>de</strong> nossa diligência, então <strong>de</strong>vemos<br />

conscientizar-nos <strong>de</strong> que não lograremos progresso a menos que o<br />

Senhor faça prosperar nossa obra, nossos esforços e nossa perseverança,<br />

a fim <strong>de</strong> que encomen<strong>de</strong>mos a sua graça nós mesmos e tudo<br />

quanto fazemos.<br />

8. Ora, aquele que planta e aquele que rega são um. Ao<br />

consi<strong>de</strong>rar outro fator, Paulo <strong>de</strong>monstra que os coríntios estão erroneamente<br />

tirando vantagem dos nomes <strong>de</strong> seus mestres, no interesse<br />

<strong>de</strong> seus partidos e facções. Estão equivocados porque tais mestres<br />

unificam seus esforços em prol <strong>de</strong> uma e a mesma coisa, e <strong>de</strong> modo<br />

algum po<strong>de</strong>m estar separados ou divididos sem ao mesmo tempo<br />

abandonarem os <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> seu ofício. “Eles são um”, diz Paulo. Em<br />

outros termos, se acham tão conectados, que sua união não permite<br />

separação, porque todos <strong>de</strong>vem ter um objetivo em vista, e todos<br />

servem ao único Senhor e estão engajados na mesma obra. Daí, se<br />

porventura se <strong>de</strong>dicam seu labor ao fiel cultivo do campo do Senhor,<br />

ac nihili res sit externum signum: et in præposteram fiduciam fortiter invehitur. Quare?<br />

non respicit Dei institutionem, sed impiorum corruptelam. Quum autem fi<strong>de</strong>les alloquitur,<br />

qui rite utuntur signis, illa tunc conjungit cum sua veritate, quam figurant. Quare?<br />

neque enim fallacem pompam ostentat in Sacramentis, sed quæ externa ceremonia figurat,<br />

exhibet simul re ipsa. Hinc fit, ut veritas, secundum Dei institutum, conjuncta sit cum<br />

signis.” – “Respondo que é costumeiro em Paulo falar dos sacramentos <strong>de</strong> duas maneiras<br />

distintas. Quando ele enfrenta os hipócritas que se gloriam nos meros símbolos, nesse<br />

caso ele proclama em alto e bom som a futilida<strong>de</strong> e ausência <strong>de</strong> valor do símbolo externo, e<br />

<strong>de</strong>nuncia em termos fortes sua absurda confiança. Por quê? Porque ele tem em vista, não a<br />

or<strong>de</strong>nança divina, mas a corrupção <strong>de</strong>la feita pelos ímpios. Quando, em contrapartida, ele<br />

se dirige aos crentes que fazem um uso a<strong>de</strong>quado dos símbolos, nesse caso ele os vê em<br />

conexão com a realida<strong>de</strong> que representam. Por quê? Porque ele não faz mera exibição <strong>de</strong><br />

algum falso esplendor porventura pertencente aos sacramentos, mas põe diante <strong>de</strong> nossos<br />

olhos a realida<strong>de</strong> que a cerimônia externa representa. Daí suce<strong>de</strong>r que, concor<strong>de</strong>mente<br />

com a <strong>de</strong>signação divina, a realida<strong>de</strong> é associada com os símbolos.” O mesmo tema é abordado<br />

nas Institutas, Livro III, p. 305.


126 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

então manterão a unida<strong>de</strong>; e, através <strong>de</strong> mútua comunicação, ajudarão<br />

uns aos outros – eis uma questão bem diferente <strong>de</strong> seus nomes<br />

servirem <strong>de</strong> motivo ou tema <strong>de</strong> acirradas controvérsias. Aqui temos<br />

uma excelente passagem para estimular os ministros à unida<strong>de</strong>.<br />

Entrementes, contudo, indiretamente, ele reprova os mestres ambiciosos<br />

que viviam a provocar divisões, e assim tornavam evi<strong>de</strong>nte<br />

que não eram servos <strong>de</strong> Cristo, mas escravos da vanglória, ou, seja,<br />

não se davam ao trabalho <strong>de</strong> plantar ou regar; ao contrário, se ocupavam<br />

em arrancar e queimar.<br />

Cada um receberá seu próprio galardão. Aqui Paulo ensina<br />

que o alvo <strong>de</strong> todos os ministros <strong>de</strong>ve ser, antes <strong>de</strong> tudo, não ficar<br />

<strong>de</strong> espreita com o intuito <strong>de</strong> arrancar os aplausos da multidão, e,<br />

sim, agradar o Senhor. Ele proce<strong>de</strong> assim com vistas a convocar<br />

os mestres ambiciosos a comparecerem diante do trono do juízo<br />

divino, os quais haviam se intoxicado com as glorificações do<br />

mundo e em nada mais pensavam; e ao mesmo tempo admoestar<br />

os coríntios quanto à futilida<strong>de</strong> daquele vão aplauso arrancado<br />

pela elegância <strong>de</strong> expressão e vã ostentação. Ao mesmo tempo,<br />

ele <strong>de</strong>scerra nestas palavras a imperturbabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua própria<br />

consciência, porquanto se aventura a antecipar, <strong>de</strong>stemidamente,<br />

o juízo <strong>de</strong> Deus. Pois a razão por que os ambiciosos tentavam encomendar-se<br />

aos olhos do mundo consiste em que nunca tinham<br />

aprendido a <strong>de</strong>votar-se a Deus, e nunca tinham posto diante <strong>de</strong><br />

seus olhos o reino celestial <strong>de</strong> Cristo. Por conseguinte, assim que<br />

Deus se <strong>de</strong>ixa ver, esse tresloucado <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conquistar a aprovação<br />

humana se <strong>de</strong>svanece.<br />

9. Porque somos cooperadores <strong>de</strong> Deus. Aqui temos o melhor<br />

argumento. Estamos engajados nas li<strong>de</strong>s do Senhor, e é a ele que consagramos<br />

nossos labores. Portanto, visto ser fiel e justo, ele não nos<br />

<strong>de</strong>cepcionará no tocante a nossa remuneração. Por essa razão, a pessoa<br />

que olha para o ser humano e espera <strong>de</strong>le sua remuneração está<br />

cometendo um grave erro. Aqui temos um admirável enaltecimento<br />

do ministério, ou, seja, que quando Deus realiza a obra inteiramente


Capítulo 3 • 127<br />

movido por si mesmo, ele nos chama, insignificantes mortais 20 que<br />

somos, para sermos seus coadjuvantes e nos usa como instrumentos.<br />

Certamente que a perversão que os papistas fazem <strong>de</strong>ste texto<br />

com o fim <strong>de</strong> estabelecer o livre-arbítrio vai além <strong>de</strong> toda medida da<br />

estupi<strong>de</strong>z, porquanto Paulo está aqui ensinando, não que os homens<br />

sejam capazes <strong>de</strong> efetuar algo por suas próprias faculda<strong>de</strong>s naturais,<br />

mas que o Senhor age através <strong>de</strong>les por sua mera graça. Quanto à<br />

explicação que alguns dão <strong>de</strong> que Paulo, sendo um operário <strong>de</strong> Deus,<br />

era um cooperador junto a seus colegas, isto é, os <strong>de</strong>mais mestres,<br />

em minha opinião este ponto <strong>de</strong> vista parece dissonante e forçado;<br />

aliás, nenhuma razão nos compele a dar guarida a uma distinção tão<br />

engenhosa. Pois o seguinte concorda com a intenção do apóstolo, a<br />

saber: quando é função própria <strong>de</strong> Deus construir seu templo ou cultivar<br />

sua vinha, ele convoca ministros para que sejam cooperadores<br />

com ele, pois dos quais somente ele trabalha; mas, ao mesmo tempo,<br />

<strong>de</strong> tal maneira que, por sua vez, eles trabalham com ele visando a um<br />

fim comum. No tocante à remuneração das obras, vejam-se minhas<br />

Institutas, 3.18. 21<br />

Lavoura <strong>de</strong> Deus, edifício <strong>de</strong> Deus. Estas expressões po<strong>de</strong>m ser<br />

explicadas <strong>de</strong> duas maneiras. Po<strong>de</strong>m ser tomadas ativamente, neste<br />

sentido: “Vós fostes plantados no campo do Senhor mediante o esforço<br />

<strong>de</strong> outras pessoas, <strong>de</strong> maneira que o Pai celestial mesmo é o<br />

legítimo Agricultor e o Autor <strong>de</strong>sta plantação. Além disso, fostes edificados<br />

por pessoas, <strong>de</strong> maneira que o Senhor mesmo é o legítimo<br />

Mestre <strong>de</strong> obra. 22 Ou po<strong>de</strong>riam ser tomadas passivamente, assim: “Nós<br />

trabalhamos em cultivá-lo, em semear a Palavra <strong>de</strong> Deus em vós e em<br />

regar. Todavia, não fizemos tal coisa por nossa própria causa, ou para<br />

que o fruto venha a ser nosso; senão que <strong>de</strong>votamos nosso serviço ao<br />

Senhor. Em nosso anseio <strong>de</strong> ver-vos edificados, não fomos impelidos a<br />

20 “Poures vers <strong>de</strong> terre.” – “Meros vermes do pó.”<br />

21 O tema Galardões é amplamente discutido nas Institutas. O leitor achará a expressão “trabalhadores<br />

juntamente com Deus” comentada ali.<br />

22 “Et conducteur <strong>de</strong> l’œuvre.” – “E condutor da obra.”


128 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

levar em conta nossas vantagens pessoais, mas pela preocupação <strong>de</strong><br />

ver em vós uma lavoura e um edifício <strong>de</strong> Deus.<br />

A segunda interpretação parece-me ser a melhor. Porque entendo<br />

Paulo como que <strong>de</strong>sejando expressar aqui que os genuínos ministros<br />

não trabalham para si próprios, mas para o Senhor. Daqui se segue<br />

que os coríntios estavam equivocados ao se sujeitarem aos homens, 23<br />

quando <strong>de</strong> direito pertenciam exclusivamente a Deus. E em primeiro<br />

plano ele <strong>de</strong> fato os <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> “lavoura <strong>de</strong> Deus”, mantendo a metáfora<br />

já iniciada; e daí, a fim <strong>de</strong> operar a transição e ampliar a discussão,<br />

ele emprega outra metáfora, a saber, a arquitetura. 24<br />

10. Segundo a graça <strong>de</strong> Deus que me foi<br />

dada, como sábio mestre <strong>de</strong> obra<br />

lancei o fundamento, e outro edifica<br />

sobre ele. Mas cada um <strong>de</strong>ve prestar<br />

atenção como edifica sobre ele.<br />

11. Porque ninguém po<strong>de</strong> lançar outro<br />

fundamento além do que já está<br />

posto, o qual é Jesus Cristo.<br />

12. Ora, se o que alguém edificar sobre<br />

o fundamento for ouro, prata,<br />

pedras preciosas, ma<strong>de</strong>ira, feno,<br />

restolho,<br />

13. a obra <strong>de</strong> cada um se manifestará,<br />

porque o dia a <strong>de</strong>clarará, pois será<br />

revelada pelo fogo; e o fogo provará<br />

<strong>de</strong> que gênero é a obra <strong>de</strong> cada um.<br />

14. Se a obra que alguém edificou [sobre<br />

o fundamento] permanecer,<br />

esse receberá galardão.<br />

15. Se a obra <strong>de</strong> alguém for queimada,<br />

esse sofrerá perda; mas ele mesmo<br />

será salvo, todavia como que através<br />

do fogo.<br />

10. Ut sapiens architectus, secundum<br />

gratiam Dei mihi datam,<br />

fundamentum posui, alius autem<br />

superædificat: porro unusquisque<br />

vi<strong>de</strong>at, quomodo superædificet.<br />

11. Fundamentum enim aliud nemo<br />

potest ponere, præter id quod positum<br />

est, quod est Iesus Christus.<br />

12. Si quis autem superstruat super<br />

fundamentum hoc aurum,<br />

argentum, lapi<strong>de</strong>s pretiosos, ligna,<br />

fœnum, stipulam,<br />

13. Cuiuscunque opus manifestum fiet:<br />

dies enim manifetabit, quia in igne<br />

revelabitur, et cuiuscunque opus<br />

quale sit, ignis probabit.<br />

14. Si cuius opus maneat quod<br />

superædificaverit, merce<strong>de</strong>m accipiet.<br />

15. Si cuius opus arserit, jacturam<br />

faciet: ipse autem salvus fiet, sic tamen<br />

tanquam per ignem. 25<br />

23 “De se rendre suiets aux hommes, et attacher là leurs affections.” – “Ao se tornarem sujeitos<br />

aos homens e pondo neles suas afeições.”<br />

24 “De la massonerie, ou charpenterie.” – “Da alvenaria ou carpintaria.”<br />

25 “Par feu, ou parmi le feu.” – “Pelo fogo ou no meio do fogo.”


Capítulo 3 • 129<br />

10. Como sábio arquiteto. Esta é uma metáfora muitíssimo apropriada,<br />

e por isso ocorre com freqüência nas Escrituras, como veremos<br />

mais adiante. Entretanto, aqui o apóstolo <strong>de</strong>clara sua própria fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />

pessoal com muita confiança e segurança. Tal afirmação tinha<br />

<strong>de</strong> ser feita, não só por causa das calúnias dos ímpios, mas também<br />

em razão do orgulho dos coríntios, que já tinham começado a tratar<br />

sua doutrina com <strong>de</strong>sdém. Por isso, quanto mais o empurravam para<br />

baixo, mais alto ele subia; e falando como se estivesse num púlpito<br />

altaneiro, então proclama 26 que fora posto entre eles como o primeiro<br />

mestre <strong>de</strong> obra <strong>de</strong> Deus; e, ao lançar os fundamentos, ele cumpria este<br />

papel com sabedoria, e <strong>de</strong>ixa para outros a continuação nos mesmos<br />

mol<strong>de</strong>s e a completação da superestrutura, consi<strong>de</strong>rando como padrão<br />

a obra lançada sobre os fundamentos. Observemos que Paulo<br />

diz essas coisas, primeiramente tendo em vista o enaltecimento <strong>de</strong><br />

sua doutrina, a qual ele via sendo menosprezada pelos coríntios; e,<br />

em segundo lugar, com o propósito <strong>de</strong> refrear a insolência <strong>de</strong> outros<br />

que, saindo em busca <strong>de</strong> distinção, afetavam um novo método <strong>de</strong> ensino.<br />

Portanto, ele os admoesta a nada intentarem temerariamente no<br />

edifício <strong>de</strong> Deus. Ele os proíbe <strong>de</strong> fazerem duas coisas: que não se<br />

aventurem a pôr outro fundamento; e que não ergam uma superestrutura<br />

que esteja fora <strong>de</strong> conformida<strong>de</strong> com o fundamento.<br />

Segundo a graça. Ele sempre se porta com muita diligência no<br />

sentido <strong>de</strong> não usurpar para si a menor parcela daquela glória que<br />

pertence a Deus. Pois ele restitui tudo a Deus, e não <strong>de</strong>ixa para si nada<br />

senão o fato <strong>de</strong> ser ele um mero instrumento. Mas enquanto humil<strong>de</strong>mente<br />

se submete assim a Deus, indiretamente reprova a arrogância<br />

daqueles que não se preocupavam se estavam ou não obscurecendo a<br />

graça <strong>de</strong> Deus, 27 contanto que eles mesmos gozassem <strong>de</strong> bom conceito.<br />

E ainda insinua que nessa fútil ostentação, pela qual vieram a ser<br />

26 “Il leur fait assavoir, et <strong>de</strong>clare fort et ferme.” – “Ele lhes dá a conhecer e <strong>de</strong>clara forte e<br />

firmemente.”<br />

27 “Ne faisoyent point <strong>de</strong> conscience d’amoindrir ou offusquer la grace <strong>de</strong> Dieu.” – “Sem<br />

qualquer escrúpulo <strong>de</strong> <strong>de</strong>preciar e obscurecer a graça <strong>de</strong> Deus.”


130 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

muito admirados, não havia a menor parcela da graça do Espírito. No<br />

tocante a ele mesmo, com lisura <strong>de</strong>svencilha-se do <strong>de</strong>sdém humano<br />

sobre a base <strong>de</strong> que estivera sob a influência divina. 28<br />

11. Porque ninguém po<strong>de</strong> lançar outro fundamento. Esta afirmação<br />

contém duas partes: em primeiro lugar, que Cristo é o único<br />

fundamento da Igreja; e, em segundo lugar, que os coríntios tinham<br />

sido solidamente fundados sobre Cristo mediante a pregação <strong>de</strong> Paulo.<br />

Por isso, era necessário que fossem reconduzidos exclusivamente<br />

a Cristo, pois seus ouvidos sentiam agudos comichões por novida<strong>de</strong>s.<br />

Não era uma questão <strong>de</strong> somenos importância que Paulo fosse conhecido<br />

como o principal e (se assim posso afirmar) fundamental mestre<br />

<strong>de</strong> obra, <strong>de</strong> cuja doutrina os coríntios não podiam afastar-se sob pena<br />

<strong>de</strong> abandonar o próprio Cristo. Em suma, a Igreja <strong>de</strong>ve por todos os<br />

meios estar plena e <strong>de</strong>finitivamente fundamentada exclusivamente em<br />

Cristo, e que Paulo <strong>de</strong>sempenhava seu papel nesta esfera tão fielmente,<br />

que nada se podia encontrar em seu ministério que estivesse em<br />

carência. Segue-se que, quem quer que viesse após ele, não po<strong>de</strong>ria<br />

servir ao Senhor em sã consciência, ou ser ouvido como ministro <strong>de</strong><br />

Cristo, <strong>de</strong> algum outro modo que não fosse se esforçando em conformar<br />

sua doutrina à <strong>de</strong>le, e manter o fundamento que ele estabelecera.<br />

Daqui inferimos que, aqueles que não são obreiros fiéis na edificação<br />

da Igreja, ao contrário tudo fazem para dispersá-la [Mt 12.30],<br />

em vez <strong>de</strong> serem ministros fiéis, não se preocupando em almejar a<br />

conformação a sua doutrina e seguir <strong>de</strong> perto um bom princípio a fim<br />

<strong>de</strong> tornar perfeitamente evi<strong>de</strong>nte 29 que não se ocupam com novida<strong>de</strong>s.<br />

Po<strong>de</strong>mos concluir que esses não estão trabalhando fielmente para a<br />

edificação da igreja, mas que são seus <strong>de</strong>molidores. Pois o que é mais<br />

<strong>de</strong>strutivo do que confundir os crentes bem fundamentados na sã doutrina<br />

com um novo gênero <strong>de</strong> ensino, <strong>de</strong> modo que não sabem com<br />

28 “Monstrant, quant à luy qu’il a esté poussé et conduit <strong>de</strong> Dieu, il se <strong>de</strong>fend et maintient<br />

contre tout mepris.” – “Mostrando, quanto a ele próprio, que se <strong>de</strong>ixa guiar e conduzir<br />

por Deus, se guarda e se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> contra todo <strong>de</strong>sdém.”<br />

29 “En sorte qu’on puisse voir a l’œil.” – “De modo a que alguém veja com seus próprios<br />

olhos.”


Capítulo 3 • 131<br />

certeza on<strong>de</strong> estão ou para on<strong>de</strong> vão? Por outro lado, a doutrina fundamental,<br />

que não po<strong>de</strong> ser subvertida, é aquela que apren<strong>de</strong>mos <strong>de</strong><br />

Cristo. Porquanto Cristo é o único fundamento da Igreja. Não obstante,<br />

muitos são os que usam o nome <strong>de</strong> Cristo como pretexto e arrancam<br />

toda a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus pelas raízes. 30<br />

Observemos, pois, <strong>de</strong> que maneira a Igreja é corretamente edificada<br />

sobre Cristo, ou, seja, só quando ele é estabelecido para justiça,<br />

re<strong>de</strong>nção, santificação, sabedoria, satisfação, purificação, em suma,<br />

como vida e glória; ou, se alguém o preferir <strong>de</strong> forma mais breve,<br />

quando ele é proclamado <strong>de</strong> tal forma que seu ofício e influência são<br />

entendidos em conformida<strong>de</strong> com o que se encontra expresso no final<br />

do primeiro capítulo [1Co 1.30]. Em contrapartida, se Cristo for conhecido<br />

só em algum grau, e for chamado Re<strong>de</strong>ntor apenas nominalmente,<br />

enquanto que, ao mesmo tempo, a justiça, a santificação e a salvação<br />

forem buscadas em outras fontes, ele é lançado fora do fundamento e<br />

pedras espúrias 31 são postas em seu lugar. Temos um exemplo disso<br />

no procedimento dos papistas, quando roubam a Cristo <strong>de</strong> quase todos<br />

seus ornamentos, e não lhe <strong>de</strong>ixam quase nada senão um mero<br />

nome. Tais pessoas, pois, não estão <strong>de</strong> forma alguma sendo estabelecidas<br />

em Cristo. Ora, visto que Cristo é o fundamento da Igreja em razão<br />

<strong>de</strong> ser ele a única fonte <strong>de</strong> salvação e vida eterna, em razão <strong>de</strong> que é<br />

nele que conhecemos Deus o Pai e em razão <strong>de</strong> se achar nele a fonte<br />

<strong>de</strong> todas nossas bênçãos, então, se ele não for reconhecido como tal,<br />

imediatamente cessa <strong>de</strong> ser o fundamento.<br />

Po<strong>de</strong>-se, porém, perguntar se Cristo é uma mera parte, ou se ele<br />

é o próprio originador da doutrina sobre a salvação, porquanto o<br />

fundamento é apenas uma parte do edifício. Porque, se tal é o caso,<br />

os crentes fariam <strong>de</strong> Cristo meramente o ponto <strong>de</strong> partida, e seriam<br />

perfeitos sem ele. Ora, <strong>de</strong> fato é isso que Paulo parece sugerir. Minha<br />

resposta é que este não é o significado do que ele diz, <strong>de</strong> outra sorte<br />

estaria se contradizendo ao dizer em Colossenses 2.3 que “todos<br />

30 “Arrachent et renversent entierement.’ – “Arrancam e subvertem inteiramente.”<br />

31 “Et non convenantes.” – “E não adaptáveis.”


132 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão escondidos nele”.<br />

Portanto, a pessoa que tem “aprendido Cristo” [Ef 4.20] já se acha plenificada<br />

<strong>de</strong> toda a doutrina celestial. Visto, porém, que o ministério<br />

<strong>de</strong> Paulo visava mais a estabelecer os coríntios do que a erguer em<br />

seu meio a parte mais alta do edifício, ele apenas mostra aqui o que já<br />

fizera, a saber, que proclamara Cristo em sua pureza. Por essa razão,<br />

pensando no que fizera, Paulo o <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> o fundamento, enquanto,<br />

ao mesmo tempo, ele com isso não o exclui do resto do edifício. Em<br />

outros termos, Paulo não põe algum outro tipo <strong>de</strong> doutrina em contraste<br />

com o conhecimento <strong>de</strong> Cristo; ele está, em vez disso, realçando<br />

a relação existente entre ele mesmo [Cristo] e os ministros.<br />

12. Mas se alguém edifica sobre este fundamento. Ele continua<br />

persistindo na metáfora. Não era suficiente que o fundamento fosse estabelecido,<br />

se toda a superestrutura não lhe correspon<strong>de</strong>sse. Porque,<br />

já que seria absurdo usar material inferior numa fundação <strong>de</strong> ouro, é<br />

igualmente um crime hediondo sepultar Cristo sob a massa <strong>de</strong> doutrinas<br />

estranhas. 32 Portanto, Paulo quer dizer por “ouro, prata e pedras<br />

preciosas a doutrina digna <strong>de</strong> Cristo e se a natureza <strong>de</strong> uma tal superestrutura<br />

não correspon<strong>de</strong> a esse fundamento. Além do mais, não<br />

imaginemos que essa doutrina seja extraída <strong>de</strong> outras fontes além <strong>de</strong><br />

Cristo, mas, ao contrário, <strong>de</strong>vemos enten<strong>de</strong>r que temos <strong>de</strong> continuar<br />

proclamando Cristo, até que o próprio edifício se complete. Contudo,<br />

temos <strong>de</strong> prestar atenção na or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> fazer as coisas, começando com<br />

a doutrina geral e os artigos mais essenciais, como os fundamentos, e<br />

em seguida continuar com reprovações, exortações e tudo quanto se<br />

faz necessário para a perseverança, a confirmação e o progresso.<br />

Visto que há pleno acordo sobre o que Paulo quis dizer até aqui,<br />

sem qualquer controvérsia, segue-se, por outro lado, que a idéia que<br />

é expressa aqui como “ma<strong>de</strong>ira, restolho e feno” não correspon<strong>de</strong> ao<br />

fundamento, isto é, como é engendrado pela mente humana e nos é<br />

32 “Ce seroit vne chose mal seante que Christ fust suffoqué en mettant et meslant euec luy<br />

quelques doctrines estranges.” – “Era algo mui inconveniente ser Cristo asfixiado, colocando<br />

sobre ele um misto <strong>de</strong> doutrinas estranhas.”


Capítulo 3 • 133<br />

empurrado como se fosse oráculo <strong>de</strong> Deus. 33 Porquanto Deus quer que<br />

sua Igreja seja edificada com base na genuína pregação <strong>de</strong> sua Palavra,<br />

não com base em ficções humanas; <strong>de</strong> cuja sorte é também aquilo que<br />

não tem qualquer tendência para a edificação, como, por exemplo, as<br />

questões especulativas [1Tm 1.4], que comumente contribuem mais<br />

para a ostentação, ou algum louco <strong>de</strong>sejo, do que para a salvação dos<br />

homens.<br />

Ele os previne <strong>de</strong> que toda a obra humana um dia manifestará sua<br />

qualida<strong>de</strong>; mesmo que por algum tempo ela se oculte. É como se ele<br />

quisesse dizer: “Po<strong>de</strong> ser que os obreiros sem princípios por algum<br />

tempo enganem, <strong>de</strong> modo que o mundo não perceba o quanto cada<br />

um trabalhou fiel ou fraudulentamente. Mas o que agora se acha, por<br />

assim dizer, submerso em trevas, <strong>de</strong>verá necessariamente vir à luz;<br />

e o que agora é glorioso aos olhos dos homens, <strong>de</strong>verá ser <strong>de</strong>struído<br />

diante da face <strong>de</strong> Deus, e será consi<strong>de</strong>rado como algo sem valor.”<br />

13. Porque o dia a <strong>de</strong>clarará. A Vulgata traz “o dia do Senhor”. 34<br />

Mas é provável que o genitivo tenha sido adicionado por alguém à<br />

guisa <strong>de</strong> explicação. Pois o significado está inquestionavelmente completo<br />

sem tal adição. Porque a <strong>de</strong>signação “o dia” é com proprieda<strong>de</strong><br />

aplicada ao tempo em que as trevas e a obscurida<strong>de</strong> forem dissipadas<br />

e a verda<strong>de</strong> for trazida à luz. Portanto, o apóstolo <strong>de</strong>clara que não<br />

po<strong>de</strong> viver sempre escondido quem realiza a obra do Senhor fraudulentamente,<br />

nem quem cumpre fielmente seus <strong>de</strong>veres. É como se<br />

quisesse dizer: “As trevas nem sempre prevalecerão; no fim a luz brilhará<br />

e <strong>de</strong>ixará tudo a <strong>de</strong>scoberto.” Reconheço que esse é “o dia do<br />

Senhor”, não o do homem. Mas a metáfora é mais agradável se lermos<br />

simplesmente “o dia”, porque Paulo insinua, <strong>de</strong>ssa maneira, que os<br />

genuínos servos <strong>de</strong> Deus nem sempre se distinguem <strong>de</strong>vidamente dos<br />

falsos obreiros, porque os pontos bons e maus são encobertos pelo<br />

33 “On veut à force faire receuoir pour oracles et reuelations procedées <strong>de</strong> Dieu.” – “Eles nos<br />

forçariam a recebê-la como se fossem oráculos e revelações que emanaram <strong>de</strong> Deus.”<br />

34 É assim em duas versões inglesas antigas. Na versão <strong>de</strong> Wiclif (1380), a tradução é como<br />

segue: Pois o dia do Senhor <strong>de</strong>clarará. A versão Rheims (1582) lê assim: Pois o dia <strong>de</strong> nosso<br />

Senhor <strong>de</strong>clarará.


134 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

manto da noite; todavia, essa noite não durará para sempre. Porque<br />

a ambição é cega, a generosida<strong>de</strong> humana é cega, o aplauso do mundo<br />

é cego, porém Deus um dia dissipará essas trevas, a seu próprio<br />

tempo. Atentemos bem para o fato <strong>de</strong> que Paulo sempre <strong>de</strong>monstra<br />

possuir aquela confiança que uma boa consciência produz; e com uma<br />

incontestável gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> mente, ele <strong>de</strong>spreza os juízos perversos.<br />

Ele assim proce<strong>de</strong>, primeiramente, chamando <strong>de</strong> volta os coríntios, da<br />

ambiciosa busca da aprovação humana para um saudável padrão <strong>de</strong><br />

julgamento; e, em segundo lugar, para estabelecer a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu<br />

próprio ministério.<br />

Porque será revelada pelo fogo. Tendo falado da doutrina em<br />

linguagem metafórica, agora aplica novamente a linguagem metafórica<br />

aos meios reais pelos quais a doutrina é examinada chamando-os <strong>de</strong><br />

fogo, para que as partes correspon<strong>de</strong>ntes da comparação se harmonizassem<br />

entre si. O fogo, pois, subenten<strong>de</strong> aqui o Espírito do Senhor<br />

que, por meio <strong>de</strong> seu exame, testifica que a doutrina se assemelha ao<br />

ouro e igualmente se assemelha ao restolho. Quanto mais próxima a<br />

doutrina legada por Deus é levada para perto <strong>de</strong>sse fogo, mais evi<strong>de</strong>nte<br />

se fará. Em contrapartida, o que é produzido nas mentes humanas<br />

se <strong>de</strong>svanecerá imediatamente, 35 como o restolho ou a palha é consumida<br />

pelo fogo. Tudo indica que aqui há também uma alusão a “o<br />

dia”, conforme já mencionei. É como se ele dissesse: “Naquele dia, as<br />

coisas que a fútil ambição ocultou entre os coríntios, como uma negra<br />

noite, serão trazidas para a luz pelo esplendor do sol. Ainda mais,<br />

haverá concomitantemente um po<strong>de</strong>roso calor, não só para dissipar<br />

e purificar as impurezas, mas também para queimar todos os erros.”<br />

Porque, embora os homens acreditem que possuem vívidos po<strong>de</strong>res<br />

<strong>de</strong> discernimento, sua inteligência, não obstante, não penetra além<br />

da superfície, a qual, geralmente, não possui bastante profundida<strong>de</strong>.<br />

O apelo do apóstolo visa tão-somente àquele dia que prova tudo, no<br />

35 “Celle, qui aura esté forgée au cerveau <strong>de</strong>s hommes s’esuanouira tout incontinent, et s’en<br />

ira em fumée.” – “Aquilo que foi forjado no cérebro do homem rapidamente se <strong>de</strong>svanecerá<br />

e se dissipará como fumaça.”


Capítulo 3 • 135<br />

mais profundo <strong>de</strong> sua existência, não meramente por seu resplendor,<br />

mas também por sua chama abrasadora.<br />

14. Se a obra <strong>de</strong> alguém permanecer, esse receberá galardão.<br />

Sua intenção aqui é dizer que não passa <strong>de</strong> tolo aquele que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />

da avaliação humana, ao ponto <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar suficiente ser aprovado<br />

pelos homens, porque então a obra receberá louvor e recompensa<br />

somente <strong>de</strong>pois que tiver sido provada no dia do Senhor. Portanto,<br />

Paulo conclama os ministros genuínos a ter seus olhos postos naquele<br />

dia. (Acerca dos galardões, vejam-se minhas Institutas 3.18.) Pois ele<br />

<strong>de</strong>clara, ao usar o verbo permanecer, que as doutrinas voam com os<br />

ventos como se não tivessem estabilida<strong>de</strong> alguma, ou, melhor ainda,<br />

elas cintilam por um curto tempo como bolhas [<strong>de</strong> sabão contra o sol],<br />

até serem trazidas ao tribunal <strong>de</strong> um teste severo. Disso se segue que<br />

todos os aplausos do mundo têm <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rados como algo <strong>de</strong>sprezível,<br />

porque o juízo divino logo exporá sua vacuida<strong>de</strong>.<br />

15. Se a obra <strong>de</strong> alguém se queimar. É como se ele dissesse: “Que<br />

ninguém se gabe <strong>de</strong>mais, porque, segundo a opinião do homem, ele<br />

está classificado entre os arquitetos mais eminentes. Pois tão logo chegue<br />

a aurora, todo seu trabalho se reduzirá completamente a nada,<br />

isso se não for aprovado pelo Senhor.” Esta, pois, é a regra pela qual o<br />

ministério <strong>de</strong> alguém <strong>de</strong>ve ser conformado.<br />

Alguns explicam isso como uma referência à doutrina, <strong>de</strong> modo<br />

que ζημιουσθαι 36 significa meramente perecer, e então o que imediatamente<br />

segue eles o vêem como uma referência ao fundamento,<br />

porque o grego θεμελιος (fundamento) é do gênero masculino. Entretanto,<br />

esses intérpretes não prestam bastante atenção ao contexto<br />

como um todo. Pois nesta passagem Paulo não está sujeitando sua<br />

própria doutrina a um teste, mas a <strong>de</strong> outrem. 37 Portanto, a menção<br />

do fundamento neste ponto está fora <strong>de</strong> propósito. Ele já disse que<br />

36 “Le mot Grec suyuant, qui signifie souffrir perte ou dommage.” – “A palavra grega seguinte,<br />

a qual significa sofrer perda ou prejuízo.”<br />

37 “Car ce n’est pas sa doctrine, mais celle <strong>de</strong>s autres que Sainct Paul dit, qui viendra a<br />

l’examen.” – “Pois não é <strong>de</strong> sua própria doutrina, e, sim, a <strong>de</strong> outrem, que São Paulo diz<br />

que será provada.”


136 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

“a obra <strong>de</strong> cada um será provada pelo fogo.” Então passa a uma alternativa,<br />

a qual não <strong>de</strong>ve retroce<strong>de</strong>r além daquela afirmação geral.<br />

Mas é verda<strong>de</strong> que Paulo ali estava falando apenas do edifício que<br />

fora erigido sobre o fundamento. Já na primeira alternativa ele prometeu<br />

galardão aos bons arquitetos, cuja obra terá sido aprovada.<br />

Portanto, a antítese na segunda alternativa se a<strong>de</strong>qua muito bem, ou,<br />

seja, os que tiverem misturado restolho, ou ma<strong>de</strong>ira, ou palha serão<br />

privados do louvor pelo qual tanto esperaram.<br />

Mas esse mesmo será salvo. Não há dúvida <strong>de</strong> que Paulo está<br />

falando dos que, embora retenham sempre o fundamento, misturam<br />

feno com ouro, restolho com prata, ma<strong>de</strong>ira com pedras preciosas. Em<br />

outros termos, aqueles que edificaram sobre Cristo, porém, em razão<br />

da enfermida<strong>de</strong> da carne, <strong>de</strong>ram espaço a algum conceito humano, ou,<br />

motivados pela ignorância, se <strong>de</strong>sviaram, até certo ponto, da estrita<br />

pureza da Palavra <strong>de</strong> Deus. Muitos dos santos fizeram isso – Cipriano,<br />

Ambrósio, Agostinho e outros. O leitor po<strong>de</strong> adicionar também, caso<br />

o queira, os que se acham mais próximos <strong>de</strong> nossos próprios dias –<br />

Gregório e Bernardo, bem como outros como eles –, cujo propósito<br />

era edificar sobre Cristo, mas que, infelizmente, às vezes retrocediam<br />

do correto sistema <strong>de</strong> construir.<br />

Paulo afirma que pessoas como essas po<strong>de</strong>m ser salvas, porém<br />

sobre esta condição: se o Senhor apagar sua ignorância e purificá-la <strong>de</strong><br />

toda impureza; e isso é o que significa a frase “como por meio do fogo”.<br />

Portanto, sua intenção é sugerir que ele mesmo não os priva da esperança<br />

da salvação, contanto que espontaneamente aceitem a perda da<br />

obra que empreen<strong>de</strong>ram e sejam purificados pela mercê divina, tal<br />

como o ouro é refinado na fornalha. Além do mais, ainda que Deus às<br />

vezes purifique seu povo por meio <strong>de</strong> sofrimentos, tomo o termo fogo<br />

aqui no sentido <strong>de</strong> o teste feito pelo Espírito. É assim que Deus corrige<br />

e <strong>de</strong>strói a ignorância <strong>de</strong> seu povo, pela qual po<strong>de</strong> ser controlado por<br />

algum tempo. Sei muito bem que muitos aplicam isso à cruz, porém<br />

estou certo <strong>de</strong> que minha interpretação satisfará a todos quantos <strong>de</strong>sfrutam<br />

<strong>de</strong> são juízo.


Capítulo 3 • 137<br />

Po<strong>de</strong>mos concluir forjando uma réplica, breve, a ser direcionada<br />

para os papistas que usam esta passagem em apoio do purgatório. Seu<br />

ponto <strong>de</strong> vista é que os pecadores, a quem Deus perdoa, passam pelo<br />

fogo a fim <strong>de</strong> que sejam salvos. Então, por esse caminho eles sofrem o<br />

castigo <strong>de</strong> Deus a fim <strong>de</strong> que sua justiça seja aperfeiçoada. Prefiro omitir<br />

aqui seus inumeráveis comentários sobre o montante <strong>de</strong> castigo e sobre<br />

o livramento <strong>de</strong>le. Pergunto, porém: quem <strong>de</strong> fato são aqueles que<br />

passam pelo fogo? Paulo está peremptoriamente falando somente <strong>de</strong><br />

ministros. “Mas”, dizem eles, “a mesma consi<strong>de</strong>ração se aplica a todos.”<br />

Como a dizer: Deus é certamente o melhor juiz, não nós! 38 Mas, mesmo<br />

que lhes fizesse tal concessão, quão infantilmente se aferram à palavra<br />

fogo. No entanto, qual é o propósito do fogo 39 senão o <strong>de</strong> consumir o<br />

feno e a palha e, em contrapartida, o <strong>de</strong> provar o ouro e a prata? Querem<br />

dizer, porventura, que as doutrinas são discernidas pelo fogo <strong>de</strong> seu<br />

purgatório? Quem ainda não <strong>de</strong>scobriu o quanto a verda<strong>de</strong> se distingue<br />

da falsida<strong>de</strong>? Além disso, quando esse dia chegará, em cuja luz a obra<br />

<strong>de</strong> cada um será exibida? Começou com o princípio do mundo e prosseguirá<br />

até seu término? Se restolho, feno, ouro e prata são empregados<br />

metaforicamente, que limites a conce<strong>de</strong>r, que sorte <strong>de</strong> correspondência<br />

haverá entre as diferentes sentenças, se fogo não é usado metaforicamente?<br />

Nem mais um passo com tais futilida<strong>de</strong>s, porque seus absurdos<br />

prontamente saltam aos olhos! Quanto a mim, acredito que a real intenção<br />

do apóstolo já ficou sobejamente estabelecida.<br />

16. Não sabeis vós que sois templo <strong>de</strong><br />

Deus, e que o Espírito <strong>de</strong> Deus habita<br />

em vós?<br />

17. Se alguém macular o templo <strong>de</strong><br />

Deus, Deus o <strong>de</strong>struirá; porque o<br />

templo <strong>de</strong> Deus é santo, templo<br />

esse que sois vós.<br />

16. An nescitis, quod templum Dei estis<br />

et Spiritus Dei habitat in vobis?<br />

17. Si quis templum Dei corrumpit, 40<br />

hunc per<strong>de</strong>t Deus. Templum enim<br />

Dei sanctum est, quod estis vos.<br />

38 “Je respon, que ce n’est pas à nous.” – “Respondo que não nos compete.”<br />

39 “Car à quel propos est-il yci parlé du feu?” – “Com que propósito ele fala aqui <strong>de</strong> fogo?”<br />

40 “Viole, ou <strong>de</strong>struit.” – “Viola ou <strong>de</strong>strói.”


138 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

18. Que ninguém a si mesmo se engane.<br />

Se alguém <strong>de</strong>ntre vós se tem por<br />

sábio neste mundo, que se faça <strong>de</strong><br />

tolo para ser sábio.<br />

19. Porque a sabedoria <strong>de</strong>ste mundo<br />

é loucura diante <strong>de</strong> Deus. Pois está<br />

escrito: Ele apanha os sábios em<br />

sua própria astúcia.<br />

20. E outra vez: o Senhor conhece os<br />

pensamentos dos sábios, que são<br />

fúteis.<br />

21. Por isso, que ninguém se glorie nos<br />

homens. Porque todas as coisas são<br />

vossas;<br />

22. seja Paulo, seja Apolo, seja Cefas,<br />

seja o mundo, seja a vida, seja a<br />

morte, sejam coisas presentes, sejam<br />

coisas por vir; tudo é vosso;<br />

23. e vós sois <strong>de</strong> Cristo; e Cristo é <strong>de</strong><br />

Deus.<br />

18. Nemo se <strong>de</strong>cipiat, si quis vi<strong>de</strong>tur<br />

sapiens esse inter vos: in sæculo<br />

hoc stultus fiat, 41 ut fiat sapiens.<br />

19. Sapientia enim mundi huius stultitia<br />

est apud Deum. Scriptum est<br />

enim (Job v.13) Deprehen<strong>de</strong>ns sapientes<br />

in astutia sua.<br />

20. Et rursum (Ps.xciv.11) Dominus<br />

novit cogitationes sapientum vanas<br />

esse.<br />

21. Proin<strong>de</strong> nemo glorietur in hominibus,<br />

omnia enim vestra sunt;<br />

22. Sive Paulus, sive Apollos, sive Cephas,<br />

sive mundus, sive vita, sive<br />

mors, sive præsentia, sive futura:<br />

omnia vestra sunt,<br />

23. Vos autem Christi; Christus autem<br />

Dei.<br />

16. Não sabeis vós? Após apresentar diretrizes aos mestres sobre<br />

seu trabalho, Paulo então se volta para os discípulos, para que eles também<br />

prestassem muita atenção. Ele dissera aos mestres: “Vós sois os<br />

mestres <strong>de</strong> obra da casa <strong>de</strong> Deus.” E agora ele diz ao povo: “Vós sois o<br />

templo <strong>de</strong> Deus. É vossa a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cuidar para <strong>de</strong> alguma<br />

forma não ser<strong>de</strong>s contaminados.” Ora, o que ele tencionava 42 é que os<br />

coríntios não se entregassem indignamente nas mãos dos homens. Na<br />

verda<strong>de</strong>, ao falar-lhes <strong>de</strong>ssa forma, ele está lhes conferindo uma rara<br />

honra, porém seu intuito é mostrar-lhes mais claramente sua culpa. Porque,<br />

já que Deus os consagrara como templos <strong>de</strong>le, concomitantemente<br />

os <strong>de</strong>signara como guardiães <strong>de</strong> seu templo. Portanto, ao se entregarem<br />

aos homens, estavam violando um <strong>de</strong>pósito sagrado. Ele <strong>de</strong>nomina a<br />

todos eles, juntos, <strong>de</strong> um templo <strong>de</strong> Deus. Porque cada crente em par-<br />

41 “Si aucvn entre vous cui<strong>de</strong> estre sage, qu’il soit fait fol en ce mon<strong>de</strong>, afin qu’il soit sage –<br />

ou, sage en ce mon<strong>de</strong>, qu’il soit fait fol, afin, &.” – “Se alguém entre vós parece ser sábio,<br />

que se torne louco neste mundo, para que seja sábio – ou, sábio neste mundo, que se<br />

torne louco para que” etc.<br />

42 “De cest aduertissement.” – “Dessa cautela.”


Capítulo 3 • 139<br />

ticular é uma pedra viva para a ereção do edifício <strong>de</strong> Deus. Entretanto,<br />

indivíduos também são às vezes chamados templos. Um pouco <strong>de</strong>pois,<br />

Paulo usa novamente a mesma idéia, mas com outro propósito. Naquela<br />

passagem, ele está tratando da castida<strong>de</strong>; aqui, porém, ele está apelando-lhes<br />

para que mantivessem até o fim sua fé na riqueza <strong>de</strong> Cristo,<br />

tão-somente <strong>de</strong> Cristo. O uso da pergunta lhe empresta maior realce,<br />

porque, ao recorrer a eles como testemunhas, está sugerindo que lhes<br />

está falando acerca <strong>de</strong> algo <strong>de</strong> que estavam bem cientes.<br />

E o Espírito <strong>de</strong> Deus. Aqui temos a razão por que são o templo <strong>de</strong><br />

Deus. Por isso é preciso ler o e como se fosse porque. Isso é bastante<br />

comum; por exemplo, on<strong>de</strong> o poeta diz: “Ten<strong>de</strong>s ouvido e foi anunciado”,<br />

Paulo diz: “Sois o templo <strong>de</strong> Deus porque ele habita em vós por<br />

intermédio <strong>de</strong> seu Espírito; porquanto nenhum lugar impuro po<strong>de</strong> ser<br />

habitação <strong>de</strong> Deus.” Nesta passagem temos clara evidência para afirmar<br />

a divinda<strong>de</strong> do Espírito Santo. Porque, se ele fosse um ser criado,<br />

ou simplesmente algo a nós outorgado, então não po<strong>de</strong>ria, ao habitar-<br />

-nos, fazer <strong>de</strong> nós templos <strong>de</strong> Deus. Ao mesmo tempo, enten<strong>de</strong>mos<br />

como Deus se comunica conosco e o elo pelo qual somos ligados a ele,<br />

a saber, <strong>de</strong>rramando sobre nós o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seu Santo Espírito.<br />

17. Se alguém <strong>de</strong>struir o templo <strong>de</strong> Deus, Deus o <strong>de</strong>struirá. Ele<br />

agrega uma grave advertência: uma vez que o templo <strong>de</strong>ve ser sacratíssimo,<br />

então quem quer que o saqueie, não escapará impunemente.<br />

No entanto, o gênero <strong>de</strong> violação do qual ele agora fala consiste em<br />

que os homens se põem no lugar <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong> modo a se tornarem<br />

senhores na Igreja. Porque, assim como a fé, que se <strong>de</strong>vota à doutrina<br />

pura <strong>de</strong> Cristo, é <strong>de</strong>nominada em outro lugar <strong>de</strong> “castida<strong>de</strong> espiritual”<br />

[2Co 11.2], ela também nos consagra para aquela adoração a Deus que<br />

é correta e pura. Pois assim que somos atingidos pelas tramas humanas,<br />

o templo <strong>de</strong> Deus é poluído como que por alguma imundícia, e a<br />

razão disso é que o sacrifício da fé, o qual Deus <strong>de</strong>clara ser exclusivamente<br />

seu, passa a ser oferecido às criaturas.<br />

18. Que ninguém se engane. Aqui ele põe seu <strong>de</strong>do na raiz do problema,<br />

visto que todos os danos eram oriundos do elevado conceito


140 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

que nutriam por si mesmos. Portanto, ele os adverte energicamente<br />

a não se <strong>de</strong>ixarem levar por uma idéia errônea, ou, seja, reivindicando<br />

alguma sabedoria como se a mesma fosse oriunda <strong>de</strong>les mesmos.<br />

O que ele quer transmitir é que todos quantos confiam em seu próprio<br />

entendimento estão enganando-se. Em minha opinião, porém, ele<br />

aqui se dirige tanto aos ouvintes quanto aos mestres. Pois os ouvintes<br />

tinham melhor disposição para emprestar um ouvido 43 aos homens<br />

ambiciosos. E visto que tinham um paladar tão fastidioso, <strong>de</strong> modo<br />

que a simplicida<strong>de</strong> do evangelho se tornou insípida a seu paladar,<br />

enquanto que os mestres, querendo causar boa impressão, <strong>de</strong> outra<br />

coisa não cuidavam senão aparecer. Portanto, Paulo adverte a ambos<br />

[mestres e alunos]: “Que nenhum <strong>de</strong> vós se exalte diante <strong>de</strong> sua<br />

própria sabedoria; ao contrário, aquele que acredita ser sábio, que se<br />

faça <strong>de</strong> tolo neste mundo.” Colocando <strong>de</strong> outra forma: “Aquele que<br />

<strong>de</strong>sfruta <strong>de</strong> posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque no mundo em razão da reputação <strong>de</strong><br />

possuir sabedoria, livre-se disso, esvazie-se 44 <strong>de</strong> si mesmo e se faça <strong>de</strong><br />

tolo a seus próprios olhos.”<br />

Além do mais, nestas palavras o apóstolo não está pedindo-nos<br />

que renunciemos totalmente aquela sabedoria que é implantada em<br />

nós pela natureza, ou adquirida por longa prática, mas simplesmente<br />

nos pe<strong>de</strong> que a sujeitemos ao serviço <strong>de</strong> Deus, para que não possuamos<br />

nenhuma outra sabedoria senão aquela que é <strong>de</strong>rivada <strong>de</strong> sua<br />

Palavra. Pois este é o significado <strong>de</strong> “tornar-se tolo neste mundo” ou a<br />

nossos próprios olhos, significa: quando estamos preparados a entregar-nos<br />

a Deus e a abraçar com temor e reverência tudo quanto ele nos<br />

ensina, em vez <strong>de</strong> seguirmos o que nos parece plausível. 45<br />

O significado da frase “neste mundo” é como se ele dissesse: “segundo<br />

o critério ou a opinião do mundo.” Pois esta é a sabedoria do<br />

mundo: se nos consi<strong>de</strong>rarmos auto-suficientes, capazes <strong>de</strong> aconse-<br />

43 “Trop facilement.” – “Tão prontamente.”<br />

44 “Soit fait fol en soy <strong>de</strong> son bom gré s’abbaissant, et s’aneantissant soy-mesme.” – “Que se<br />

torne, espontaneamente, um tolo em sua própria estima, aviltando-se e esvaziando-se.”<br />

45 “Bom et raisonnable..” – “Bom e razoável.”


Capítulo 3 • 141<br />

lhar em todas as questões [Sl 13.2], <strong>de</strong> governar-nos a nós mesmos,<br />

<strong>de</strong> administrar tudo o que temos <strong>de</strong> fazer – se não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rmos <strong>de</strong><br />

ninguém 46 e se não precisarmos que alguém nos guie, mas que somos<br />

capazes <strong>de</strong> controlar nossos próprios atos. 47<br />

Portanto, por outro lado, “tolo neste mundo” se refere a alguém<br />

que renuncia a seu próprio entendimento e, como se fosse cego, se<br />

permite guiar pelo Senhor; que, <strong>de</strong>sconfiando <strong>de</strong> si mesmo, se inclina<br />

inteiramente sobre o Senhor; que <strong>de</strong>posita nele toda sua sabedoria;<br />

que se ren<strong>de</strong> a Deus em docilida<strong>de</strong> e submissão. É necessário que nossa<br />

sabedoria <strong>de</strong>ssa forma se <strong>de</strong>svaneça a fim <strong>de</strong> que a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus<br />

possa exercer autorida<strong>de</strong> sobre nós; e que nos esvaziemos <strong>de</strong> nosso<br />

próprio entendimento, para que venhamos a encher-nos da plenitu<strong>de</strong><br />

da sabedoria <strong>de</strong> Deus. Ao mesmo tempo, “neste mundo” po<strong>de</strong> ou ter<br />

conexão com a primeira parte do versículo, ou com a segunda. Entretanto,<br />

visto que o significado não tem gran<strong>de</strong> diferença, <strong>de</strong>ixo ao leitor<br />

o exercício <strong>de</strong> sua própria escolha.<br />

19. Porque a sabedoria <strong>de</strong>ste mundo. Este é um argumento extraído<br />

<strong>de</strong> coisas opostas. A confirmação <strong>de</strong> uma significa a <strong>de</strong>struição da<br />

outra. Portanto, uma vez que a sabedoria <strong>de</strong>ste mundo é loucura aos<br />

olhos <strong>de</strong> Deus, segue-se que a única maneira <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rmos ser sábios aos<br />

olhos <strong>de</strong> Deus é tornando-nos loucos aos olhos do mundo. Já explicamos<br />

[1.20] o que Paulo quis dizer com a expressão “sabedoria <strong>de</strong>ste mundo”:<br />

porquanto a perspicácia natural é um dom <strong>de</strong> Deus, e as artes liberais, e<br />

todas as ciências por meio das quais a sabedoria é adquirida, são também<br />

dons <strong>de</strong> Deus. Tudo isso, porém, tem seus limites <strong>de</strong>finidos, porquanto<br />

não po<strong>de</strong>m penetrar no reino celestial <strong>de</strong> Deus. Conseqüentemente, todas<br />

essas ciências <strong>de</strong>vem ocupar a posição <strong>de</strong> servas, não <strong>de</strong> senhoras.<br />

Além disso, elas <strong>de</strong>vem ser vistas como inúteis e indignas até que estejam<br />

completamente subordinadas à Palavra e ao Espírito <strong>de</strong> Deus. Mas se,<br />

46 “Que <strong>de</strong> nous-mesmes.” – “Além <strong>de</strong> nós mesmos.”<br />

47 “Nous semble que nous sommes assez suffisans <strong>de</strong> nous conduire, et gouuerner nous-<br />

-mesmes.” – “Parece-nos que somos plenamente competentes para conduzir-nos e<br />

governar-nos.”


142 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

em contrapartida, elas se puserem contra Cristo, que então sejam consi<strong>de</strong>radas<br />

como pestes perigosas. E se seus possuidores continuarem<br />

acreditando que são capazes <strong>de</strong> por si mesmos realizar algo, então que<br />

sejam consi<strong>de</strong>radas como o pior <strong>de</strong> todos os obstáculos. 48<br />

Portanto, a sabedoria <strong>de</strong>ste mundo é, na conceituação <strong>de</strong> Paulo,<br />

aquilo que energicamente assume para si a autorida<strong>de</strong> e não permite<br />

ser regulado pela Palavra <strong>de</strong> Deus, e nem se <strong>de</strong>ixa humilhar para que<br />

esteja completamente sujeito a Deus. Portanto, até que suceda <strong>de</strong> uma<br />

pessoa reconhecer que nada sabe exceto o que apren<strong>de</strong>u <strong>de</strong> Deus e,<br />

tendo renunciado seu próprio entendimento, se resigna sem reserva<br />

à direção <strong>de</strong> Cristo, tal pessoa é sábia segundo os padrões do mundo,<br />

no entanto é tola na avaliação <strong>de</strong> Deus.<br />

Pois está escrito: Ele apanha os sábios em sua própria astúcia.<br />

Paulo confirma o que acaba <strong>de</strong> afirmar à luz <strong>de</strong> dois textos da Escritura.<br />

O primeiro é extraído <strong>de</strong> Jó 5.13, on<strong>de</strong> a sabedoria <strong>de</strong> Deus é exaltada<br />

com base no seguinte: nenhuma sabedoria terrena po<strong>de</strong> permanecer<br />

na presença da sabedoria <strong>de</strong> Deus. Não há dúvida <strong>de</strong> que nesse contexto<br />

o profeta está falando daqueles que são astutos e insidiosos. Visto,<br />

porém, que a sabedoria do homem, quando divorciada <strong>de</strong> Deus, 49 é<br />

invariavelmente a mesma, Paulo a aplica neste sentido: embora os homens<br />

adquiram muita sabedoria por seus próprios esforços, isso não<br />

tem o menor valor aos olhos <strong>de</strong> Deus. O segundo é o Salmo 94.11, on<strong>de</strong>,<br />

após atribuir a Deus a função e a autorida<strong>de</strong> para ensinar a todos, Davi<br />

acrescenta que “O Senhor conhece os pensamentos do homem, que<br />

são pensamentos vãos.” Portanto, não importa quão valorizados tais<br />

pensamentos sejam por nós, segundo o critério divino são fúteis. Esta<br />

é uma excelente passagem para humilhar a confiança da carne, pois<br />

aqui Deus do alto <strong>de</strong>clara que tudo o que a mente humana concebe e<br />

propõe é simples nulida<strong>de</strong>. 50<br />

48 “Ce sont <strong>de</strong> grans empeschements, et bien à craindre.” – “Constituem gran<strong>de</strong>s obstáculos<br />

e <strong>de</strong>vem ser temidas.”<br />

49 “Quand la sagesse <strong>de</strong> Dieu n’y est point.” – “Quando a sabedoria <strong>de</strong> Deus não está nela.”<br />

50 A humilhante tendência da afirmação referida é bem realçada por Kettering. (Fuller’s<br />

Works, vol. iv. p. 389.)


Capítulo 3 • 143<br />

21. Por isso, ninguém se glorie nos homens. Visto que nada é mais<br />

vão do que o homem, quão pouca segurança há em <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong><br />

uma sombra evanescente! Daí, ele faz uma válida inferência da oração<br />

prece<strong>de</strong>nte ao dizer que não se <strong>de</strong>ve gloriar nos homens visto que ali<br />

vemos como o Senhor <strong>de</strong>spe a todos os homens das bases para ostentação.<br />

Entretanto, esta conclusão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> tudo o que ensinou no<br />

argumento prece<strong>de</strong>nte, como logo veremos. Pois já que pertencemos<br />

exclusivamente a Cristo, Paulo está plenamente certo ao ensinar-nos<br />

que qualquer preeminência que porventura seja atribuída ao homem,<br />

pela qual a glória <strong>de</strong> Cristo é prejudicada, envolve sacrilégio.<br />

22. Todas as coisas são vossas. Ele continua mostrando qual o<br />

lugar e a condição que os mestres <strong>de</strong>vem ocupar, 51 a saber, que não<br />

<strong>de</strong>nigram um mínimo grau sequer a singular autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo em<br />

seu ofício <strong>de</strong> Mestre único. Portanto, visto que Cristo é <strong>de</strong> fato o único<br />

Mestre da Igreja; e visto que ele só, e em todas as circunstâncias, <strong>de</strong>ve<br />

ser ouvido, é necessário fazer distinção entre ele e os <strong>de</strong>mais. Cristo<br />

mesmo também <strong>de</strong>u testemunho a seu próprio respeito em termos<br />

similares [Mt 23.8], e nenhum outro nos é recomendado pelo Pai com<br />

esta honrosa <strong>de</strong>claração: 52 A ele ouvi [Mt 17.5]. Portanto, visto que<br />

unicamente ele é investido <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> para governar-nos por meio<br />

<strong>de</strong> sua Palavra, Paulo diz que os outros homens são nossos; em outros<br />

termos, que nos são <strong>de</strong>stinados por Deus a fim <strong>de</strong> que possamos fazer<br />

uso <strong>de</strong>les; mas não para que exerçam domínio sobre nossas consciências.<br />

E assim ele mostra, por um lado, que não são inúteis; e, por outro,<br />

que ele os mantém em seu próprio lugar para que não se exaltem e se<br />

ponham em oposição a Cristo.<br />

Pelo que toca à presente passagem, ele faz uso <strong>de</strong> hipérbole, no<br />

que tange à morte e à vida, e assim por diante. Entretanto, ele tinha em<br />

vista argumentos do maior para o menor, por assim dizer, como segue:<br />

51 “C’est à dire, quelle estime on en doit auoir.” – “Equivale dizer, em que estima <strong>de</strong>vem ser<br />

tidos.”<br />

52 “Nul autre ne nous a esté donné du Pere authorizé <strong>de</strong> ce titre et comman<strong>de</strong>ment.” – “Nenhum<br />

outro nos foi dado pelo Pai, autorizado por esta distinção e injunção.”


144 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

“Visto que Cristo pôs em sujeição a nós a vida, a morte e tudo mais,<br />

po<strong>de</strong> que duvi<strong>de</strong>mos se ele tornou os homens também sujeitos a nós,<br />

a fim <strong>de</strong> auxiliar-nos por meio <strong>de</strong> suas administrações; certamente não<br />

para nos oprimir com tirania.”<br />

Ora, se à luz <strong>de</strong>sse fato alguém objetar, dizendo que os escritos<br />

<strong>de</strong> Paulo e Pedro também estão sujeitos a nosso julgamento, visto que<br />

ambos eram homens, e que não estão isentos da sorte comum dos<br />

<strong>de</strong>mais, minha resposta é que, enquanto Paulo <strong>de</strong> modo algum poupa<br />

a si e a Pedro, ele aconselha os coríntios a distinguirem entre a pessoa<br />

como indivíduo e a dignida<strong>de</strong> e caráter do ofício. É como se ele quisesse<br />

dizer: “Quanto a mim, pessoalmente, uma vez que sou homem,<br />

<strong>de</strong>sejo ser julgado somente como homem, a fim <strong>de</strong> que só Cristo venha<br />

a ser o único a ter a preeminência em meu ministério.” Entretanto, <strong>de</strong><br />

um modo geral <strong>de</strong>vemos afirmar 53 que todos quantos exercem o ofício<br />

do ministério, do maior ao menor, são nossos, <strong>de</strong> modo que somos<br />

livres, não para aceitar o que ensinam enquanto não provarem ser o<br />

mesmo <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong> Cristo. Pois todos eles <strong>de</strong>vem ser provados, e obediência<br />

só lhes <strong>de</strong>ve ser prestada quando tiverem <strong>de</strong>monstrado que<br />

são genuínos servos <strong>de</strong> Cristo. No que diz respeito a Pedro e Paulo, porém,<br />

o Senhor <strong>de</strong>u sobejas evidências, <strong>de</strong> modo que não fica qualquer<br />

sombra <strong>de</strong> dúvida <strong>de</strong> que sua doutrina tem nele sua fonte. Em conseqüência,<br />

quando apreciamos e respeitamos, como <strong>de</strong>claração do céu,<br />

tudo o que fizeram conhecido, damos ouvido não propriamente a eles,<br />

mas ao próprio Cristo falando neles.<br />

23. Cristo é <strong>de</strong> Deus. Esta sujeição [<strong>de</strong> Cristo a Deus] tem referência<br />

à humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo; porque, ao vestir-se com nossa carne,<br />

ele assumiu para si a forma e condição <strong>de</strong> escravo, <strong>de</strong> modo que se fez<br />

obediente ao Pai em todos os aspectos [Fp 2.7, 8]. E para que pudéssemos<br />

a<strong>de</strong>rir a Deus através <strong>de</strong>le, é certo que ele <strong>de</strong>ve ter o Pai por<br />

cabeça [1Co 11.2]. Todavia, é preciso que prestemos atenção no propósito<br />

que Paulo tinha em mente quando adicionou isso. Pois ele nos<br />

53 “Pour vne maxime.” – “Como uma máxima.”


Capítulo 3 • 145<br />

cientifica que nossa mais plena felicida<strong>de</strong> consiste 54 em nossa união<br />

com Deus, que é o principal bem. Isso é efetuado <strong>de</strong> forma concreta<br />

quando somos reunidos sob a Cabeça a quem o Pai celestial estabeleceu<br />

sobre nós. Em termos semelhantes, Cristo disse a seus discípulos<br />

[Jo 14.28]: “Regozijai-vos, porque eu vou para o Pai, porque o Pai é<br />

maior do que eu.” Pois ele o levantou como o Mediador através <strong>de</strong><br />

quem os crentes po<strong>de</strong>m ir à fonte original <strong>de</strong> todas as bênçãos. É verda<strong>de</strong><br />

que aqueles que se apartam da unida<strong>de</strong> da Cabeça 55 se privam<br />

<strong>de</strong>sse gran<strong>de</strong> benefício. Daí, esta or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> coisas se ajusta à conexão<br />

da passagem – que esses se sujeitem somente a Cristo os quais <strong>de</strong>sejam<br />

permanecer sob a jurisdição <strong>de</strong> Deus.<br />

54 “Car il nous donne à entendre, et remonstre, que le comble et la perfection <strong>de</strong> nostre<br />

felicité consiste là.” – “Pois ele nos dá a enten<strong>de</strong>r e nos mostra que o auge e perfeição <strong>de</strong><br />

nossa felicida<strong>de</strong> consiste nisto.”<br />

55 “Qui ne retienent ce seul Chef.” – “Que não retêm aquela única Cabeça.”


Capítulo 4<br />

1. Que os homens nos consi<strong>de</strong>rem<br />

como ministros <strong>de</strong> Cristo e <strong>de</strong>spenseiros<br />

dos mistérios <strong>de</strong> Deus.<br />

2. Além disso, o que se requer dos<br />

<strong>de</strong>spenseiros é que cada um seja<br />

encontrado fiel.<br />

3. Mas, quanto a mim, pouco me importa<br />

que eu seja julgado por vós, ou<br />

por juízo humano; sim, eu mesmo<br />

não me julgo.<br />

4. Porque, nada sei contra mim mesmo;<br />

mas nem por isso sou justificado,<br />

pois quem me julga é o Senhor.<br />

5. Portanto, nada julgueis antes do<br />

tempo, até que o Senhor venha, o<br />

qual trará à luz as coisas ocultas<br />

das trevas e manifestará os <strong>de</strong>sígnios<br />

ocultos do coração; e então<br />

cada um receberá o louvor <strong>de</strong> Deus.<br />

1. Sic nos æstimet homo ut ministros<br />

Christi, et dispensatores arcanorum<br />

Dei.<br />

2. Cæterum in ministris hoc quæritur,<br />

ut fi<strong>de</strong>lis aliquis reperiatur.<br />

3. Mihi viro pro minimo est, a vobis<br />

diiudicari, aut ab humano die: 1 imo<br />

nec me ipsum diiudico.<br />

4. Nullius enim rei mihi sum conscius:<br />

sed non in hoc sum justificatus.<br />

Porro qui me diiudicat, Dominus<br />

est.<br />

5. Itaque ne ante tempus quicquam<br />

iudicetis, donec venerit Dominus,<br />

qui et illustrabit abscondita tenebrarum,<br />

et manifestabit consilia<br />

cordium; et tunc laus erit cuique<br />

a Deo.<br />

1. Que os homens nos consi<strong>de</strong>rem. Visto que era um assunto<br />

<strong>de</strong> séria preocupação ver a igreja entregue a divisões e facções nocivas,<br />

em razão dos gostos e <strong>de</strong>sgostos do povo, Paulo parte para uma<br />

discussão mais extensa sobre o ministério da Palavra. Três coisas<br />

precisam ser consi<strong>de</strong>radas aqui em sua or<strong>de</strong>m. Primeira, Paulo <strong>de</strong>fine<br />

o ofício <strong>de</strong> um pastor da Igreja. Segunda, ele mostra que não basta<br />

1 “De iour humain – c’est à dire, <strong>de</strong> iugement d’homme.” – “O dia do homem – isto é, do<br />

critério humano.”


148 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

que alguém exiba um título, nem mesmo que enfrente o <strong>de</strong>ver – o<br />

requisito é uma fiel administração do ofício. Terceira, visto que os<br />

coríntios tinham um conceito completamente distorcido 2 a seu respeito,<br />

ele convoca, a eles e a si próprio, a comparecerem diante do<br />

tribunal <strong>de</strong> Cristo.<br />

Portanto, em primeiro lugar ele ensina em que estima se <strong>de</strong>ve ter<br />

por cada mestre da Igreja. Ao tratar disso, ele modifica seu discurso <strong>de</strong><br />

modo que, por um lado, não se dê pouco crédito à dignida<strong>de</strong> do ministério,<br />

ou, por outro lado, não se <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>signar ao homem além do que<br />

é conveniente. Pois ambas essas posições são extremamente perigosas<br />

porque, quando os ministros são menosprezados, surge também<br />

o menosprezo pela Palavra; 3 enquanto que, em contrapartida, se lhes<br />

é dado mais importância do que merecem, os ministros abusam <strong>de</strong><br />

sua liberda<strong>de</strong> e passam a fazer precisamente o que apreciam, “agindo<br />

displicentemente contra o Senhor” [1Tm 5.11]. Ora, a mo<strong>de</strong>ração <strong>de</strong><br />

Paulo repousa no fato <strong>de</strong> os chamar ministros <strong>de</strong> Cristo. Ao agir assim,<br />

ele preten<strong>de</strong> dizer-lhes que não <strong>de</strong>vem ocupar-se <strong>de</strong> seu próprio trabalho,<br />

mas do trabalho do Senhor, o qual os convocou como seus servos,<br />

e igualmente sugere que não foram <strong>de</strong>signados para governarem a<br />

Igreja com autorida<strong>de</strong> imperiosa, mas para viverem sob a suprema autorida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Cristo. 4 Em suma, eles são servos, não senhores.<br />

O acréscimo, <strong>de</strong>spenseiros dos mistérios <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong>screve<br />

o caráter [genus] do ministério. Com isso ele insinua que a função<br />

<strong>de</strong>les é confinada à administração dos mistérios <strong>de</strong> Deus. Em outros<br />

termos, eles se <strong>de</strong>dicam aos homens, corpo-a-corpo, como dizemos, 5<br />

não segundo seus próprios gostos, mas segundo o Senhor confiou a<br />

sua responsabilida<strong>de</strong>. Ele po<strong>de</strong>ria colocar <strong>de</strong>sta forma: “Deus os es-<br />

2 “Pource que les Corinthiens iugeoyent <strong>de</strong> luy d’vne mauuaise sorte, et bien inconsi<strong>de</strong>reement.”<br />

– “Como os coríntios o julgavam <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong>sfavorável e mui abruptamente.”<br />

3 “Facilement on viendra à mespriser la parole <strong>de</strong> Dieu.” – “Prontamente virão a <strong>de</strong>sprezar<br />

a palavra <strong>de</strong> Deus.”<br />

4 “Ils sont eux-mesmes comme les autres sous la domination <strong>de</strong> Christ.” – “Eles mesmos<br />

estão, em comum com os <strong>de</strong>mais, sob o domínio <strong>de</strong> Cristo.”<br />

5 Nosso autor usa da mesma expressão quando comenta 1 Coríntios 11.23 e 15.3.


Capítulo 4 • 149<br />

colheu para serem ministros <strong>de</strong> seu Filho, para, através <strong>de</strong>les, tornar<br />

conhecida dos homens sua sabedoria celestial. Por essa razão, <strong>de</strong>vem<br />

restringir-se estritamente a esta tarefa.” Mas tudo indica que ele está<br />

repreen<strong>de</strong>ndo indiretamente os coríntios, porque, tendo negligenciado<br />

os mistérios celestiais, passaram a seguir, com extrema avi<strong>de</strong>z,<br />

após coisas estranhas, engendradas pelos homens, e isso em virtu<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> avaliarem seus mestres meramente pelos padrões da erudição<br />

mundana.<br />

Paulo enaltece o evangelho <strong>de</strong>nominando-o os mistérios <strong>de</strong><br />

Deus. Além do mais, visto que os sacramentos se acham conectados<br />

a esses mistérios, como suplementos, segue-se que, aqueles<br />

que são responsáveis pela proclamação da Palavra, também estão<br />

autorizados a ministrá-los.<br />

2. Além disso, o que se requer dos ministros. 6 É como se quisesse<br />

dizer: “É <strong>de</strong> pouca serventia ser administrador [dispensator], se a administração<br />

[dispensatio] não for correta.” Ora, a regra para se efetuar<br />

uma administração correta é o administrador portando-se com toda fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>.<br />

Temos <strong>de</strong> prestar cuidadosa atenção a esta passagem a fim<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrirmos como, <strong>de</strong> uma forma arrogante, 7 os papistas exigem<br />

que tudo o que fizerem, e tudo o que ensinarem, tem <strong>de</strong> assumir uma<br />

autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lei, simplesmente sob o pretexto <strong>de</strong> serem eles chamados<br />

‘pastores’. Longe <strong>de</strong> Paulo, porém, sentir-se satisfeito com um simples<br />

título. Para ele, nem mesmo basta a vocação legítima, a menos que a<br />

pessoa chamada execute os <strong>de</strong>veres do ofício com toda fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>. Portanto,<br />

sempre que os papistas põem diante <strong>de</strong> nó a camuflagem <strong>de</strong> um<br />

título com o fim <strong>de</strong> manter a tirania <strong>de</strong> seus ídolos, nossa resposta <strong>de</strong>ve<br />

ser que Paulo requer dos ministros <strong>de</strong> Cristo muito mais que isso. Todavia,<br />

se tudo for <strong>de</strong>vidamente consi<strong>de</strong>rado, o leitor <strong>de</strong>scobrirá que o<br />

papa e seu séquito carecem não só <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> no <strong>de</strong>sempenho dos<br />

<strong>de</strong>veres do ofício, mas também do próprio ministério.<br />

Não obstante, esta passagem discute o problema não só dos falsos<br />

6 “Entre les dispensateurs.” – “Entre os <strong>de</strong>spenseiros.”<br />

7 “Et d’une façon magistrate.” – “E com um ar <strong>de</strong> magistrado.”


150 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

mestres, mas também <strong>de</strong> todos aqueles que têm algum outro propósito<br />

em vista além da glória <strong>de</strong> Cristo e a edificação da Igreja. Pois<br />

o caso não consiste em que todos os que ensinam a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>vam<br />

ser consistentemente fiéis, mas somente a pessoa que <strong>de</strong>seja sinceramente<br />

servir ao Senhor e buscar o avanço do reino <strong>de</strong> Cristo. Não é<br />

sem razão que Agostinho proveitosamente <strong>de</strong>signa aos mercenários<br />

[Jo 10.12] uma posição intermediária entre os lobos e os bons mestres.<br />

Além do mais, Agostinho, nesta passagem, <strong>de</strong> fato fala claramente do<br />

que Paulo afirma sobre o fato <strong>de</strong> Cristo também exigir sabedoria <strong>de</strong><br />

um bom <strong>de</strong>spenseiro [Lc 12.42]. O significado, porém, é o mesmo. Pois<br />

o que Cristo quer dizer por fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> é a integrida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consciência,<br />

a qual <strong>de</strong>ve ser acompanhada <strong>de</strong> conselho sadio e pru<strong>de</strong>nte. E pela<br />

expressão “ministro fiel” ele tem em mente alguém que, com conhecimento<br />

tanto quanto com retidão <strong>de</strong> coração, 8 <strong>de</strong>sempenha o ofício <strong>de</strong><br />

um bom e fiel ministro.<br />

3. Quanto a mim, pouco me importa. Restava a Paulo manter<br />

sua fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> justamente no centro do quadro para que os coríntios<br />

pu<strong>de</strong>ssem manter suas mentes direcionadas para ela. Mas, em virtu<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> seu juízo ser corrupto, ele vira as costas e apela para o tribunal<br />

<strong>de</strong> Cristo. Os coríntios continuavam equivocados, já que viviam fascinados<br />

pelas aparências externas e não atentavam para as marcas<br />

genuínas e a<strong>de</strong>quadas <strong>de</strong> distinção. 9 Conseqüentemente, com gran<strong>de</strong><br />

confiança, ele testifica que <strong>de</strong>spreza um juízo pervertido e cego <strong>de</strong>sse<br />

gênero. E assim ele, <strong>de</strong> um lado, admiravelmente <strong>de</strong>ixa exposta a<br />

vaida<strong>de</strong> dos falsos apóstolos que viviam na expectativa <strong>de</strong> receber a<br />

aprovação humana e nada mais, e se consi<strong>de</strong>ravam felizes quando se<br />

viam como alvos do aplauso dos homens. E, do outro, austeramente<br />

8 “Auec science et bonne discretion, et d’vn cœur droit.” – “Com conhecimento e boa discrição,<br />

bem como com um coração reto.”<br />

9 “Ils estoyent rauis en admiration <strong>de</strong> ces masques externes, comme gens tout transportez,<br />

et ne regardouent point a discerner vrayement ne proprement.” – “Estavam arrebatados<br />

com admiração ante as marcas estranhas, como pessoas em completo transporte, e não<br />

se cuidavam em distinguir o verda<strong>de</strong>iro e o legítimo.”


Capítulo 4 • 151<br />

açoita a arrogância 10 dos coríntios, sendo esta a razão por que estavam<br />

tão cegos em seu discernimento.<br />

Todavia, po<strong>de</strong>-se perguntar com proprieda<strong>de</strong>, que direito tinha<br />

Paulo, não só <strong>de</strong> rejeitar a censura <strong>de</strong> uma Igreja, mas ainda <strong>de</strong> pôr-se<br />

acima do julgamento humano, já que essa é a condição comum <strong>de</strong> todos<br />

os pastores, a saber, ser julgados pela Igreja? Minha resposta é que<br />

a característica <strong>de</strong> um bom pastor é permitir que sua doutrina e sua<br />

vida sejam examinados pelo juízo da Igreja, e o sinal <strong>de</strong> uma boa consciência<br />

é que ele não evite a luz <strong>de</strong> cuidadosa inspeção. Por exemplo,<br />

Paulo mesmo estava sempre pronto a submeter-se ao juízo da Igreja<br />

<strong>de</strong> Corinto e a ser chamado a prestar contas tanto <strong>de</strong> sua vida quanto<br />

<strong>de</strong> sua doutrina, caso houvesse entre eles meios apropriados <strong>de</strong><br />

averiguação; 11 pois com freqüência lhes outorga esse po<strong>de</strong>r, e <strong>de</strong> sua<br />

própria iniciativa sinceramente solicita que se prontifiquem a julgar<br />

corretamente. Mas quando um fiel pastor se vê assenhoreado por sentimentos<br />

hostis e ilógicos, e não se <strong>de</strong>ixa nenhum lugar para a justiça e<br />

a verda<strong>de</strong>, então não importa o que os homens pensem: ele apela para<br />

Deus e busca recursos em seu tribunal, especialmente quando não se<br />

po<strong>de</strong> assegurar <strong>de</strong> se chegar a um conhecimento verda<strong>de</strong>iro e acurado<br />

das questões em pauta.<br />

Portanto, se os servos do senhor se lembrarem <strong>de</strong> que <strong>de</strong>vem agir<br />

<strong>de</strong>ssa maneira, então que consintam que sua doutrina e sua vida sejam<br />

expostas à prova e, ainda mais, que eles mesmos se prontifiquem voluntariamente;<br />

e se porventura houver alguma queixa contra eles, que<br />

não se furtem <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r. Mas se perceberem que são con<strong>de</strong>nados<br />

sem uma audiência formal, e o julgamento é transmitido sem que suas<br />

razões sejam ouvidas, então que assumam sua posição <strong>de</strong> honra, on<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhando do que os homens pensem, intrépidos 12 aguar<strong>de</strong>m que<br />

Deus seja seu Juiz. Des<strong>de</strong> a antigüida<strong>de</strong>, quando os profetas tinham<br />

10 “Et orgueil” – “E orgulho.”<br />

11 “Si entr’eux il y eust eu vne legitime et droite façon <strong>de</strong> iuger.” – “Se houvesse entre eles<br />

um método lícito e correto <strong>de</strong> julgar.”<br />

12 “Ils auoyent affaire à <strong>de</strong>s gens opiniastes et pleins <strong>de</strong> rebellion.” – “Têm a ver com pessoas<br />

que eram obstinadas e dominadas pela rebelião.”


152 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

que tratar com pessoas irredutíveis, que ousavam <strong>de</strong>sprezar a Palavra<br />

<strong>de</strong> Deus afrontando-a na pessoa dos profetas, estes se punham numa<br />

posição imponente a fim <strong>de</strong> esmagar a diabólica obstinação que, tão<br />

notória, subverte o soberano domínio <strong>de</strong> Deus e a luz da verda<strong>de</strong>. Mas<br />

quando se oferece a alguém a chance <strong>de</strong> se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, ou, ao menos,<br />

quando precisa inocentar-se, e apela para Deus à guisa <strong>de</strong> subterfúgio,<br />

por certo que garantirá sua inocência por esse método, porém sua<br />

repugnante impudência ficará a <strong>de</strong>scoberto. 13<br />

Ou por algum juízo humano. [O latim: aut ab humanodie. O grego:<br />

ἤ υ̒πὸ ἀνθρωπίνης η̒μέρας] Ainda que outros expliquem isso <strong>de</strong> outra<br />

forma, meu ponto <strong>de</strong> vista consiste em que é mais fácil tomar a palavra<br />

dia metaforicamente, no sentido <strong>de</strong> juízo, porque há dias <strong>de</strong>signados<br />

para a administração da justiça, e as partes são citadas para um certo<br />

dia. Paulo o chama “dia do homem” 14 quando se pronuncia juízo, não<br />

em concordância com a verda<strong>de</strong> ou com a Palavra <strong>de</strong> Deus, mas em<br />

concordância com as concepções e temerida<strong>de</strong> dos homens, 15 quando,<br />

na verda<strong>de</strong>, Deus não presi<strong>de</strong> o tribunal. Paulo está dizendo: “Que<br />

os homens tomem assento no tribunal como lhes apraz; quanto a mim,<br />

basta-me que Deus rescinda qualquer <strong>de</strong>cisão que porventura tenham<br />

pronunciado.”<br />

Sim, nem eu mesmo me julgo. O significado é o seguinte: “Não<br />

ouso julgar a mim mesmo, ainda que eu seja quem melhor me conhece;<br />

como, pois, me julgaríeis, quando <strong>de</strong> vós eu sou menos intimamente<br />

conhecido?” E ele prova que não se aventura a julgar-se a si mesmo,<br />

ao dizer que, embora pessoalmente talvez não tivesse consciência <strong>de</strong><br />

algum erro, contudo não significava que fosse inocente aos olhos <strong>de</strong><br />

Deus. Ele, pois, conclui que o que os coríntios reivindicavam para si<br />

era algo que pertencia exclusivamente a Deus. Diz ele: “Quanto a mim,<br />

13 170 “Se <strong>de</strong>monstrera estre merueilleusement impu<strong>de</strong>nt.” – “Ele <strong>de</strong>monstrará ser admiravelmente<br />

impu<strong>de</strong>nte.”<br />

14 A palavra dia, que é uma tradução literal da palavra original η̒μέρας, é usada em algumas<br />

<strong>de</strong> nossas versões.<br />

15 “Selon les sottes affections, ou les mouuemens temeraires <strong>de</strong>s hommes.” – “Segundo os<br />

tolos afetos ou impulsos temerários dos homens.”


Capítulo 4 • 153<br />

ao fazer um criterioso exame <strong>de</strong> meu íntimo, percebo que minha visão<br />

não é suficientemente penetrante para visualizar as condições dos<br />

recessos mais íntimos <strong>de</strong> meu ser. Eis aqui a razão por que <strong>de</strong>ixo tal<br />

empreendimento para Deus, porquanto só ele é capaz <strong>de</strong> julgar, e só<br />

ele tem o direito <strong>de</strong> fazê-lo. Quanto a vós, sobre que bases cre<strong>de</strong>s ser<br />

capazes <strong>de</strong> fazer melhor?”<br />

Entretanto, visto que seria absurdo proibir todo gênero <strong>de</strong> julgamento,<br />

por exemplo, o próprio indivíduo aplicando a si mesmo e cada<br />

pessoa aplicando a seu irmão, ou todos a uma só voz aplicando ao pastor,<br />

<strong>de</strong>vemos enten<strong>de</strong>r que Paulo não está se referindo aqui às ações<br />

humanas, que po<strong>de</strong>m ser julgadas boas ou más segundo a Palavra do<br />

Senhor, mas ao valor <strong>de</strong> cada pessoa, o qual não <strong>de</strong>ve ser aquilatado<br />

pela <strong>de</strong>cisão dos homens. É prerrogativa <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong>terminar o valor<br />

<strong>de</strong> cada pessoa e que gênero <strong>de</strong> honra ela merece. Os coríntios, contudo,<br />

<strong>de</strong>sprezavam Paulo e sem qualquer base sólida exaltavam os<br />

<strong>de</strong>mais até o céu, como se o exame que pertencia exclusivamente a<br />

Deus fosse matéria <strong>de</strong> sua jurisdição. Este é o “dia do homem” que já<br />

mencionei, a saber, quando os homens se assentam no trono do juízo<br />

e, como se fossem <strong>de</strong>uses, antecipam o dia <strong>de</strong> Cristo, o qual foi <strong>de</strong>signado<br />

pelo Pai como o único Juiz; quando aquinhoam a cada um com<br />

uma posição <strong>de</strong> honra, pondo alguns em posição eminente, enquanto<br />

que a outros relegam a posições inferiores. Mas, qual é o critério que<br />

governa suas distinções? Ficam atentos no que está na superfície e<br />

nada mais; e assim, o que é nobre e honroso para eles é, com freqüência,<br />

uma abominação aos olhos <strong>de</strong> Deus [Lc 16.15].<br />

Se alguém objetar, dizendo que os ministros da Palavra po<strong>de</strong>m,<br />

neste mundo, ser distinguidos por suas obras, como a árvore e seus<br />

frutos [Mt 7.16], reconheço que isso <strong>de</strong>veras tem fundamento, todavia<br />

<strong>de</strong>vemos consi<strong>de</strong>rar aqueles <strong>de</strong> quem Paulo tratava. Eram pessoas<br />

que meramente amavam a ostentação e estavam sempre prontas a julgar,<br />

e que arrogavam para si o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>signar a cada um seu lugar<br />

no reino <strong>de</strong> Deus [Mt 20.23], quando Cristo mesmo, durante sua estada<br />

neste mundo, se absteve <strong>de</strong> fazê-lo. Portanto, ele não nos proíbe <strong>de</strong>


154 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

ter em profunda estima aqueles <strong>de</strong> quem tomamos conhecimento <strong>de</strong><br />

serem fiéis, e a quem não tememos recomendar; nem nos proíbe <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>cidir quem é mau obreiro à luz da Palavra <strong>de</strong> Deus. Mas con<strong>de</strong>na a<br />

insolência que vem a lume quando alguns, governados pela ambição,<br />

se põem acima <strong>de</strong> outros, não porque o mereçam, mas porque não<br />

atentam para um <strong>de</strong>tido exame do caso. 16<br />

4. Porque, nada sei contra mim mesmo. Notemos que aqui Paulo<br />

não está falando acerca <strong>de</strong> toda sua vida, mas simplesmente do ofício<br />

<strong>de</strong> seu apostolado. Porque, se <strong>de</strong> fato ele não tivesse consciência <strong>de</strong><br />

algum erro pessoal, 17 a queixa que ele faz em Romanos 7.19 não seria<br />

totalmente <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> base, a saber: o mal que eu não quero fazer,<br />

esse eu faço; e que se via impedido pelo pecado <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicar-se inteiramente<br />

a Deus. Portanto, Paulo tinha consciência <strong>de</strong> que o pecado<br />

habitava nele e o confessava. Mas ao <strong>de</strong>frontar-se com seu apostolado<br />

– e é disso que ele está tratando aqui –, ele se comportava com<br />

tanta integrida<strong>de</strong> e fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, que sua consciência <strong>de</strong> forma alguma<br />

o acusava. Este não é um testemunho ordinário, e o mesmo revela<br />

claramente o quanto ele tinha um coração reto e santo. 18 Ele, porém,<br />

nega que pu<strong>de</strong>sse ser justificado por isto: que fosse inocente e isento<br />

<strong>de</strong> toda culpa aos olhos <strong>de</strong> Deus. Por quê? Porque Deus possui uma<br />

percepção infinitamente mais penetrante do que a nossa, e por isso o<br />

que em nossa percepção parece ser <strong>de</strong>slumbrantemente belo, a seus<br />

olhos não passa <strong>de</strong> imundícia. Aqui surge uma advertência excelente<br />

e mui benéfica, a saber: que não meçamos a exatidão da justiça divina<br />

pelo critério <strong>de</strong> nossas próprias idéias. Porquanto nossa percepção é<br />

paupérrima; a <strong>de</strong> Deus, porém, é infinitamente penetrante. Somos <strong>de</strong>masiadamente<br />

complacentes no que respeito a nossa própria pessoa,<br />

porém Deus é um juiz extremamente severo. Portanto, o que Salomão<br />

16 “Comme on dit.” – “Como dizem.”<br />

17 “Si nihil prorsus sibi consciret.” – nosso autor mais provavelmente tinha em vista uma<br />

passagem bem conhecida <strong>de</strong> Horácio (Ep. I.i.61): “Nil conscire sibi” – “Ter consciência <strong>de</strong><br />

que em si não existe nenhum erro.”<br />

18 “Combien sas conscience estoit pure et nette.” – “Quão pura e límpida era sua consciência.”


Capítulo 4 • 155<br />

afirma é mui verda<strong>de</strong>iro (Pv 21.2): “Todo caminho <strong>de</strong> um homem é reto<br />

a seus próprios olhos, porém o Senhor pesa os corações.”<br />

Os papistas tiram vantagem <strong>de</strong>sta passagem com o fim <strong>de</strong> abalar<br />

a certeza da fé em seus fundamentos; e <strong>de</strong>veras confesso que, se<br />

sua doutrina fosse aceita, não faríamos outra coisa senão viver em um<br />

ignóbil estado <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong> todos os dias <strong>de</strong> nossa vida. Pois que sorte<br />

<strong>de</strong> paz <strong>de</strong> espírito possuiríamos caso nossas obras <strong>de</strong>cidissem se<br />

somos ou não aceitos por Deus? Portanto, confesso que do principal<br />

fundamento dos papistas nada promana senão incessante distúrbio <strong>de</strong><br />

consciência. Por causa disso, ensinamos que é preciso buscar refúgio<br />

na graciosa promessa da misericórdia que nos é oferecida em Cristo,<br />

para que saibamos com certeza que somos reputados por justos aos<br />

olhos <strong>de</strong> Deus.<br />

5. Portanto, nada julgueis antes do tempo. Desta conclusão<br />

se manifesta que Paulo não estava con<strong>de</strong>nando todo e qualquer gênero<br />

<strong>de</strong> julgamento, mas somente aquele julgamento precipitado e<br />

audacioso sem que haja um exame criterioso. Pois os coríntios não<br />

estavam atentos para o caráter <strong>de</strong> cada pessoa com olhos <strong>de</strong>stituídos<br />

<strong>de</strong> preconceito, mas, vivendo sob o domínio da ambição, cometiam o<br />

<strong>de</strong>svario <strong>de</strong> exaltar a uma pessoa e <strong>de</strong> <strong>de</strong>negrir a outra, e assumiam<br />

mais do que os homens têm o direito <strong>de</strong> fazer, ou, seja, <strong>de</strong>terminar o<br />

que cada um realmente merece. Saibamos, pois, o quanto nos é permitido,<br />

o que agora nos cabe examinar e o que <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>ferido até o<br />

dia <strong>de</strong> Cristo, e não nos aventuremos ir além <strong>de</strong>sses limites. Porquanto<br />

existem algumas coisas que agora são claras a nossos olhos, porém<br />

existem outras que permanecerão sepultadas em obscurida<strong>de</strong> até o<br />

dia <strong>de</strong> Cristo.<br />

O qual trará à luz. Se esta é uma afirmação genuína e apropriada<br />

sobre o dia <strong>de</strong> Cristo, segue-se que os negócios <strong>de</strong>ste mundo nunca<br />

são bem or<strong>de</strong>nados, mas que muitas coisas estão envoltas em trevas;<br />

que nunca há luz suficiente para que muitas coisas evitem permanecer<br />

em obscurida<strong>de</strong>. Estou me referindo à vida e às ações dos homens.<br />

Na segunda parte da sentença ele explica qual é a causa das trevas e


156 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, <strong>de</strong> modo que nem tudo é explícito agora. Naturalmente que<br />

isso se <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong> haver no coração humano extraordinárias regiões<br />

secretas e recessos por <strong>de</strong>mais profundos. Portanto, até que os<br />

pensamentos dos corações sejam trazidos à plena luz, haverá sempre<br />

trevas.<br />

E então cada um receberá <strong>de</strong> Deus seu louvor. É como se ele dissesse:<br />

“Ora, vós, coríntios, proce<strong>de</strong>is como se fôsseis árbitros <strong>de</strong> jogos<br />

públicos, 19 porque a alguns conferis a coroa, enquanto que a outros<br />

<strong>de</strong>spedis humilhados. No entanto, esse direito e essa função pertencem<br />

exclusivamente a Cristo. Estais fazendo isso antes do tempo, antes <strong>de</strong><br />

evi<strong>de</strong>nciar-se quem <strong>de</strong> fato merece a coroa. O Senhor <strong>de</strong>veras <strong>de</strong>signou<br />

um dia em que o fará conhecido.” Esta afirmação proce<strong>de</strong> da confiança<br />

<strong>de</strong> uma sã consciência, a qual também traz este benefício, a saber:<br />

quando <strong>de</strong>ixamos a questão <strong>de</strong> nosso louvor nas mãos <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ramos<br />

a fútil aclamação dos homens e os aplausos humanos.<br />

6. E essas coisas, irmãos, aplico em<br />

figura transferida a mim e a Apolo<br />

por amor <strong>de</strong> vós; para que, em nós,<br />

aprendais a não julgar os homens<br />

acima do que está escrito; para que<br />

nenhum <strong>de</strong> vós se ensoberbeça a favor<br />

<strong>de</strong> um, em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> outro.<br />

7. Porque, quem te faz diferente <strong>de</strong><br />

outro? e o que possuis que não recebeste?<br />

ora, se o recebeste, por que<br />

te glórias, como se não o tivesses<br />

recebido?<br />

8. Já estais saciados; já estais ricos; já<br />

estais reinando como reis sem nós;<br />

bem que eu quisera que reinásseis,<br />

para que nós também pudéssemos<br />

reinar convosco.<br />

6. Hæc autem, fratres, transfiguravi in<br />

me ipsum et Apollo propter vos, ut<br />

in nobis disceretis, ne quis supra id<br />

quod scriptum est, <strong>de</strong> se sentiat: ut<br />

ne quis pro hoc vel illo infletur adversus<br />

alterum.<br />

7. Quis enim te discernit? quid autem<br />

habes, quod non acceperis? si vero<br />

etiam acceperis, quid gloriaris, tanquam<br />

non acceperis?<br />

8. Jam saturati estis, jam ditati estis,<br />

absque nobis regnum a<strong>de</strong>pti estis;<br />

atque utinam sitis a<strong>de</strong>pti ut et nos<br />

vobiscum regnemus.<br />

19 Tanquam agnothetæ. A alusão é aos oficiais ou árbitros (αγωνοθέται) que julgavam os<br />

prêmios nos jogos gregos. (Ver Heródoto vi.127.)


Capítulo 4 • 157<br />

6. Aplico em figura transferida a mim e a Apolo. Daqui inferimos<br />

que os fundadores dos partidos não se contavam entre os que eram<br />

<strong>de</strong>votados a Paulo, porque é plenamente certo que eles não tinham<br />

recebido nenhuma instrução para proce<strong>de</strong>rem assim; em vez disso,<br />

eram os que, movidos por ambição, se puseram nas mãos dos mestres<br />

ostentosos. 20 Visto, porém, que ele podia mais livremente, e com<br />

menos indignação, fazer referência particular a sua própria pessoa e a<br />

<strong>de</strong> seus irmãos, ele preferiu apresentar uma ilustração <strong>de</strong> sua própria<br />

pessoa ao erro que estava em outros. Ao mesmo tempo, o que teria<br />

sido um aborrecimento para eles, Paulo <strong>de</strong>tecta culpa nos fundadores<br />

dos partidos e aponta com seu <strong>de</strong>do as fontes das quais esta fatal<br />

separação teve sua origem. Pois ele sugere que, se permanecessem<br />

contentes com os bons mestres, este mal não lhes teria acontecido. 21<br />

Para que, em nós. Outros manuscritos trazem “para que, em vós”.<br />

Ambas as redações são plenamente possíveis, e não envolve nenhuma<br />

diferença <strong>de</strong> significado. Porquanto Paulo preten<strong>de</strong> dizer: “Para servir<br />

<strong>de</strong> exemplo, eu transferi essas coisas para mim e para Apolo, a fim <strong>de</strong><br />

que possais aplicar a vós mesmos este mo<strong>de</strong>lo. Portanto, apren<strong>de</strong>i,<br />

pois, em nós, isto é, no exemplo <strong>de</strong> nossas vidas, o que tenho posto<br />

diante <strong>de</strong> vós como um espelho.” Ou: “Apren<strong>de</strong>i em nós, isto é, aplicai<br />

este exemplo a vós mesmos.”<br />

Não obstante, o que ele quer que apren<strong>de</strong>ssem? Que ninguém se<br />

ensoberbeça contra outrem por seu próprio mestre, isto é, que não<br />

se encham <strong>de</strong> orgulho por causa <strong>de</strong> seus mestres, e não façam uso <strong>de</strong><br />

seus nomes para manter as facções vivas nem para dividir a Igreja por<br />

meio <strong>de</strong> controvérsias. Deve-se observar que o orgulho ou arrogância<br />

é a causa e ponto <strong>de</strong> partida <strong>de</strong> todas as controvérsias, quando cada<br />

um, reivindicando para si mais do que permite seu direito, procura<br />

com avi<strong>de</strong>z assenhorear-se dos <strong>de</strong>mais.<br />

20 “A ces docteurs pleins d’ostentation.” – “Àqueles mestres saturados <strong>de</strong> ostentação.”<br />

21 “S’ils se contentent <strong>de</strong> bons et fi<strong>de</strong>les docteurs, ils seront hors <strong>de</strong> danger d’vn tel mal.” –<br />

“Se tivessem se contentado com os bons e fiéis mestres, se teriam postos além do risco<br />

<strong>de</strong>sse gênero <strong>de</strong> mal.”


158 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

A frase, “acima do que está escrito”, po<strong>de</strong> ser explicada <strong>de</strong> duas<br />

maneiras, ou, seja: como uma referência ao que Paulo escreveu, ou às<br />

provas bíblicas a que fez referência. Visto, porém, que isso não é muito<br />

importante, os leitores estão livres para escolherem o que preferirem.<br />

7. Porque, quem te faz diferente? O significado é o seguinte: “Qualquer<br />

homem que nutre avi<strong>de</strong>z por preeminência e perturba a Igreja com sua<br />

ambição, que venha para campo aberto. Eu lhe pedirei que se ponha diante<br />

<strong>de</strong> outra pessoa, ou, seja, que lhe dê o direito <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada da mesma<br />

categoria que outros e <strong>de</strong> ser superior a outrem.” Ora, este argumento todo<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da organização que o Senhor estabeleceu em sua Igreja, a saber,<br />

que os membros do corpo <strong>de</strong> Cristo vivam juntos, e que cada um <strong>de</strong>les viva<br />

contente com seu próprio espaço, sua própria posição, sua própria função<br />

e com a honra que lhe é conferida. Se um membro quiser <strong>de</strong>ixar seu espaço<br />

e ocupar o espaço <strong>de</strong> outrem, e tomar posse <strong>de</strong> seu ofício, que <strong>de</strong>stino<br />

terá todo o corpo? Portanto, lembremos bem que o Senhor nos colocou<br />

juntos na Igreja, e <strong>de</strong>stinou a cada um seu posto, <strong>de</strong> maneira tal que, sob<br />

a Cabeça, nos empenhemos por auxiliar uns aos outros. Lembremos ainda<br />

que dons tão diferentes nos têm sido conferidos para po<strong>de</strong>rmos servir<br />

ao Senhor humil<strong>de</strong> e <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> pretensão, e aplicar-nos ao avanço da<br />

glória daquele que nos tem concedido tudo quanto possuímos. Portanto, o<br />

melhor método <strong>de</strong> corrigir a ambição daqueles que querem ser superiores<br />

é chamando-os <strong>de</strong> volta a Deus, <strong>de</strong> modo que aprendam que nenhum <strong>de</strong>les<br />

diga que por mérito seu é que foi posto em posição eminente, ou que por<br />

<strong>de</strong>mérito é que foi posto em posição humil<strong>de</strong>, porque somente Deus faz<br />

isso. Devem igualmente saber que Deus não admite tanto a alguém que se<br />

promove ao lugar da Cabeça; mas ele distribui seus dons <strong>de</strong> tal maneira<br />

que só ele recebe a glória em todas as coisas.<br />

Distinguir, aqui, significa tornar eminente. 22 Entretanto, Agostinho<br />

amiú<strong>de</strong> e com habilida<strong>de</strong> faz uso <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>claração com o intuito <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a seguinte tese, em oposição aos pelagianos, 23 que seja o que<br />

22 “Rendre excellent, ou mettre en reputation.” – “Tornar eminente ou exaltar à fama.”<br />

23 O leitor encontrará uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> passagens <strong>de</strong>ste teor citadas <strong>de</strong> Agostinho nas<br />

Institutas.


Capítulo 4 • 159<br />

houver <strong>de</strong> excelência no gênero humano, não é implantado nele pela<br />

natureza, <strong>de</strong> modo que a mesma não po<strong>de</strong> ser atribuída à natureza<br />

nem à hereditarieda<strong>de</strong>, nem é obtida por nosso livre-arbítrio, ao ponto<br />

<strong>de</strong> pôr Deus sob obrigação [para conosco], mas emana unicamente <strong>de</strong><br />

sua misericórdia, a qual é absoluta e imerecida. Pois não po<strong>de</strong> haver<br />

dúvida <strong>de</strong> que Paulo aqui contrasta a graça <strong>de</strong> Deus com o mérito ou a<br />

dignida<strong>de</strong> dos homens. 24<br />

E o que tens tu? Esta é uma confirmação da afirmação prece<strong>de</strong>nte,<br />

porquanto o homem nada possui que lhe forneça base para<br />

exaltar-se, o qual não possui superiorida<strong>de</strong> acima <strong>de</strong> outros. Pois que<br />

maior vaida<strong>de</strong> existe do que a ostentação sem qualquer base para<br />

sua existência? Ora, não existe um sequer que possua inerentemente<br />

alguma excelência, que o faça superior; portanto, quem quer que se<br />

ponha num nível superior aos <strong>de</strong>mais é um mero idiota e impertinente.<br />

A genuína base da modéstia cristã é esta: <strong>de</strong> um lado, não ser<br />

presumido, porquanto sabemos que somos vazios e <strong>de</strong>stituídos do<br />

que é bom, isto é, que ele tenha implantado em nós algo que seja<br />

inerentemente bom; e, do outro, por esta razão, somos tanto mais<br />

<strong>de</strong>vedores à divina graça. Em outros termos, não existe em nós nada<br />

que seja propriamente nosso.<br />

Por que te glorias, como se não o tivesses recebido? Observe-se<br />

que não é <strong>de</strong>ixada nenhuma base para a vanglória radicar-se em nós,<br />

visto que é pela graça <strong>de</strong> Deus que somos o que somos [1Co 15.10]. E<br />

isso é o que tivemos no primeiro capítulo, ou, seja, que Cristo é a fonte<br />

<strong>de</strong> todas nossas bênçãos, para que aprendamos a gloriar-nos no Senhor<br />

[1Co 1.30], e isso só fazemos quando renunciamos nossa própria vanglória.<br />

Porquanto Deus só nos dá o que é seu quando nos esvaziamos,<br />

para que seja plenamente evi<strong>de</strong>nte que tudo o que em nós é digno <strong>de</strong><br />

louvor é <strong>de</strong>rivado.<br />

8. Já estais fartos. Tendo diretamente, e sem o uso <strong>de</strong> qualquer<br />

figura, refreado a infundada confiança dos coríntios, ele agora também<br />

24 “Comme estans choses contraires.” – “Como sendo coisas opostas.”


160 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

a ridiculariza, à guisa <strong>de</strong> ironia, 25 porquanto se sentem tão satisfeitos<br />

consigo mesmos como se fossem as pessoas mais felizes do mundo.<br />

Paulatinamente ele também avança realçando a insolência <strong>de</strong>les. Primeiro,<br />

ele diz que se sentem satisfeitos, uma referência que aponta<br />

para o passado. Então, acrescenta que são ricos, o que aponta para<br />

o futuro. Finalmente, ele diz que passaram a reinar como reis – e isso<br />

contém muito mais do que os outros dois elementos. É como se dissesse:<br />

“O que será <strong>de</strong> vós quando não for suficiente que no presente<br />

estejais satisfeitos, mas que também no futuro for<strong>de</strong>s ricos e, ainda<br />

mais, quando passar<strong>de</strong>s a governar como reis?” Ao mesmo tempo, tacitamente<br />

os culpa <strong>de</strong> ingratidão, porque tiveram a audácia <strong>de</strong> olhar<br />

para ele com ares <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong>, ou talvez também para aqueles <strong>de</strong><br />

cujas mãos tinham obtido tudo.<br />

Sem nós, diz ele. “Porque neste momento Apolo e eu nada significamos<br />

para vós, ainda que seja através <strong>de</strong> nosso trabalho que o<br />

Senhor vos muniu <strong>de</strong> tudo. Que modo <strong>de</strong>sumano <strong>de</strong> fazer<strong>de</strong>s dos dons<br />

<strong>de</strong> Deus algo para satisfazer vosso próprio envai<strong>de</strong>cimento, e para, ao<br />

mesmo tempo, olhar<strong>de</strong>s com <strong>de</strong>sdém às próprias pessoas <strong>de</strong> quem<br />

ten<strong>de</strong>s recebido tudo!”<br />

E eu quisera que reinásseis. 26 Aqui ele <strong>de</strong>ixa bem claro que não<br />

lhes inveja a felicida<strong>de</strong>, se é que possuíam alguma; e que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início<br />

não nutriu nenhum <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ter domínio sob eles, a não ser o <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>de</strong> introduzi-los no reino <strong>de</strong> Deus. Entretanto, em contrapartida ele<br />

está querendo dizer que o reino do qual se vangloriavam é meramente<br />

imaginário, e que, portanto, sua exultação é espúria e nociva. 27 Pois a<br />

25 “Vsant d’ironie, c’est à dire, d’vne façon <strong>de</strong> parler qui sonne en mocquerie.” – “Fazendo<br />

uso <strong>de</strong> ironia, isto é, uma forma <strong>de</strong> linguagem que possui um tom <strong>de</strong> zombaria.”<br />

26 “Uma amarga zombaria”, diz Lightfoot, “castigando a vanglória dos coríntios, os quais<br />

tinham se esquecido <strong>de</strong> quem primeiro receberam esses privilégios evangélicos, concernente<br />

aos quais agora se envai<strong>de</strong>ciam. Tinham se enriquecido com dons espirituais;<br />

reinavam, sendo eles mesmos juízes, estando no próprio topo da dignida<strong>de</strong> e felicida<strong>de</strong><br />

do evangelho; e isso ‘sem nós’, diz o apóstolo, ‘como se nada nos <strong>de</strong>vêsseis por tais<br />

privilégios’, e: ‘Oh, queira Deus que reinásseis, e isso seria tão bom que gostaríamos <strong>de</strong><br />

também reinar convosco para partilhar<strong>de</strong>s conosco um pouco <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> nessa vossa<br />

promoção, e para que tivéssemos alguma boa reputação em vosso meio’!”<br />

27 “Fausse et dangereuse.” – “Infundada e perigosa.”


Capítulo 4 • 161<br />

única ostentação genuína é aquela em que todos os filhos <strong>de</strong> Deus se<br />

regozijam <strong>de</strong> se acharem sob Cristo, sua Cabeça, aquela que cada um,<br />

segundo a medida da graça, lhe ren<strong>de</strong>.<br />

Pelas palavras, para que nós também pudéssemos reinar convosco,<br />

Paulo tem em mente isto: “Aos próprios olhos, sois tão ilustres que não<br />

hesitastes em <strong>de</strong>sprezar-me, a mim e aos que são como eu, porém não<br />

atentastes para o fato <strong>de</strong> quão fútil é vossa ostentação. Porquanto não<br />

po<strong>de</strong>is ter nenhuma glória diante <strong>de</strong> Deus da qual não tenhamos nenhuma<br />

participação; porque, se porventura vos redunda alguma honra<br />

possuir o evangelho <strong>de</strong> Deus, quanto mais em se tratando <strong>de</strong> nós, por<br />

cujo ministério ele nos foi comunicado! Aliás, atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>mente 28 como<br />

esta é comum a todas as pessoas orgulhosas, com o seguinte resultado:<br />

quando açambarcam tudo para si, elas se privam <strong>de</strong> todas as bênçãos;<br />

mais ainda, se privam da própria esperança <strong>de</strong> salvação eterna.”<br />

9. Porque penso que Deus nos pôs a<br />

nós, apóstolos, por último, como<br />

homens <strong>de</strong>signados à morte; pois<br />

somos feitos um espetáculo aos<br />

olhos do mundo, dos anjos e dos<br />

homens.<br />

10. Nós somos loucos por amor a<br />

Cristo, vós, porém, sois sábios em<br />

Cristo; nós somos fracos, vós, porém,<br />

sois fortes; vós sois honrados,<br />

nós, porém, somos <strong>de</strong>sprezados.<br />

11. Até a presente hora sofremos fome<br />

e se<strong>de</strong>, estamos nus e somos esbofeteados,<br />

e não temos nenhum lugar<br />

<strong>de</strong> repouso;<br />

12. e labutamos, trabalhando com<br />

nossas próprias mãos; ao sermos<br />

injuriados, abençoamos; ao sermos<br />

perseguidos, suportamos;<br />

9. Existimo enim, quod Deus nos postremos<br />

Apostolos <strong>de</strong>monstraverit<br />

tanquam morti <strong>de</strong>stinatos: nam<br />

theatrum facti sumus mundo, et angelis,<br />

et hominibus.<br />

10. Nos stulti propter Christum, vos<br />

autem pru<strong>de</strong>ntes in Christo: nos<br />

infirmi, vos autem robusti: vos gloriosi,<br />

nos autem ignobiles.<br />

11. Ad hanc enim horam usque et sitimus,<br />

et esurimus, et nudi sumus, et<br />

colaphis cædimur.<br />

12. Et circumagimur, et laboramus operantes<br />

manibus propriis: maledictis<br />

lacessiti benedicimus: persequutionem<br />

patientes sustinemus:<br />

28 “C’est vne folie, et bestise.” – “Isso constitui uma loucura e estupi<strong>de</strong>z.”


162 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

13. ao sermos difamados, imploramos.<br />

Somos consi<strong>de</strong>rados lixo do mundo,<br />

e somos a escória <strong>de</strong> todas as<br />

coisas, e isso até hoje.<br />

14. Não escrevo estas coisas com o<br />

fim <strong>de</strong> envergonhar-vos, mas para<br />

admoestar-vos como meus filhos<br />

amados.<br />

15. Porque, ainda que tivésseis <strong>de</strong>z mil<br />

tutores em Cristo, não teríeis muitos<br />

pais. Porque, por intermédio do<br />

evangelho, eu vos gerei em Cristo<br />

Jesus.<br />

13. Conviciis affecti obsecramus: quasi<br />

exsecrationes mundi facti sumus,<br />

omnium reiectamentum usque ad<br />

hunc diem.<br />

14. Non quo pudorem vobis incutiam<br />

hæc scribo: sed ut filios meos dilectos<br />

admoneo.<br />

15. Nam etsi <strong>de</strong>cem millia pædagogorum<br />

habueritis in Christo, non<br />

tamen multos patres; in Christo<br />

enim Iesu par Evangelium ego vos<br />

genui.<br />

9. Porque penso. É incerto se ele está se reportando exclusivamente<br />

a si próprio, ou se ao mesmo tempo inclui também Apolo e Silvano,<br />

pois às vezes ele <strong>de</strong>nomina essas pessoas <strong>de</strong> apóstolos. Não obstante,<br />

prefiro entendê-lo como que se referindo a si com exclusivida<strong>de</strong>. Se<br />

alguém <strong>de</strong>sejar uma aplicação mais ampla, não faço muita objeção, contanto<br />

que, como o entendia Crisóstomo, não o entendamos afirmando<br />

que todos os apóstolos, por causa da ignomínia, mereciam uma posição<br />

menos importante. 29 Pois não po<strong>de</strong> haver dúvida <strong>de</strong> que Paulo quer dizer<br />

pelo termo “em último lugar” aqueles que haviam sido admitidos<br />

à or<strong>de</strong>m apostólica após a ressurreição <strong>de</strong> Cristo. Mas ele admite que<br />

se assemelhava àqueles que são exibidos ao povo antes <strong>de</strong> serem entregues<br />

à morte. Pois o significado <strong>de</strong> exibido encontra sua ilustração<br />

naqueles que eram levados pelas ruas em triunfo com o fim <strong>de</strong> serem<br />

exibidos, e então eram arrastados à prisão, e ali estrangulados.<br />

Ele realça isso ainda mais nitidamente quando acrescenta que<br />

se tornara um espetáculo. Diz ele: “Minha sina é exibir, na forma <strong>de</strong><br />

espetáculo, minhas aflições ao mundo, como os que são con<strong>de</strong>nados<br />

ou a lutar com bestas selvagens, 30 ou a enfrentar os jogos dos<br />

29 “Et bien peu estimez.” – “E em tão pouca estima.”<br />

30 “Condamnez à seruir <strong>de</strong> passe-temps en combattant contre <strong>de</strong>s bestes.” – “Con<strong>de</strong>nados a<br />

servirem como passa-tempo na luta contra animais selvagens.”


Capítulo 4 • 163<br />

gladiadores, ou a sofrer algum outro tipo <strong>de</strong> tortura, e então são<br />

conduzidos perante a multidão extasiada; e, com referência a mim,<br />

não se trata <strong>de</strong> apenas uns poucos espectadores, mas do mundo<br />

todo.” Observe-se a admirável imperturbabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paulo, pois<br />

quando percebeu que esse era o tratamento que Deus lhe aplicava,<br />

não sucumbiu nem per<strong>de</strong>u o ânimo. Porque ele não atribuía à arbitrarieda<strong>de</strong><br />

do mundo o fato <strong>de</strong> ele ser arrastado, por assim dizer,<br />

a um <strong>de</strong>gradante espetáculo dos jogos nas arenas, mas o atribui<br />

totalmente à providência <strong>de</strong> Deus.<br />

A última parte da frase – dos anjos e dos homens –, evi<strong>de</strong>ntemente<br />

eu a tomo neste sentido: “Apresento-me como provedor <strong>de</strong> esportes, e<br />

inclusive como o próprio espetáculo, não só para a terra, mas também<br />

para o céu.” Esta passagem geralmente é explicada como significando<br />

<strong>de</strong>mônios, visto que parecia absurdo que se referisse a anjos bons.<br />

Paulo, porém, não quis fazer-se enten<strong>de</strong>r que todos quantos são testemunhas<br />

<strong>de</strong> seu infortúnio se <strong>de</strong>leitavam com o que eles viam. Ele<br />

simplesmente quer dizer que Deus guia sua vida <strong>de</strong> tal maneira que parece<br />

ter sido <strong>de</strong>signado a provi<strong>de</strong>nciar esporte para o mundo inteiro.<br />

10. Somos loucos por amor a Cristo. Este contraste vem repassado<br />

<strong>de</strong> ironia e observações penetrantes, pois era manifestamente intolerável<br />

e <strong>de</strong>veras um gran<strong>de</strong> absurdo que os coríntios fossem felizes em<br />

tudo e usufruíssem <strong>de</strong> honra segundo os padrões humanos, e ao mesmo<br />

tempo assistissem seu mestre e pai sofrer a vil ignomínia e misérias<br />

<strong>de</strong> todo gênero. Pois os que são <strong>de</strong> opinião que Paulo se humilha <strong>de</strong>ssa<br />

maneira para que pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong> alguma forma confiar na solicitu<strong>de</strong> dos coríntios<br />

para lhe darem as coisas que ele mesmo reconhece lhe faltavam,<br />

dificilmente po<strong>de</strong>m impedir que seu ponto <strong>de</strong> vista seja refutado diante<br />

da pequena sentença que vem imediatamente em seguida.<br />

Portanto, ele está usando <strong>de</strong> ironia ao admitir que os coríntios<br />

são sábios em Cristo, fortes e honrados. É como se dissesse: 31 “Vós<br />

31 “C’est une concession ironique, c’est à dire, qu’il accor<strong>de</strong> ce dont ils se vntoyent, mais<br />

c’est par mocquerie, comme s’il disoit.” – “É uma irônica concessão; isto é, ele admite<br />

aquilo <strong>de</strong> que se gloriam, mas zombeteiramente, como se ele quisesse dizer.”


164 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

<strong>de</strong>sejais, juntamente com o evangelho, manter a fama <strong>de</strong> sabedoria, 32<br />

ao passo que eu só fui capaz <strong>de</strong> vos pregar Cristo tornando-me louco<br />

no conceito do mundo. Ora, quando me disponho a ser um louco ou<br />

a <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> tal reputação, pergunto se é justo que <strong>de</strong>sejeis ser consi<strong>de</strong>rados<br />

como sábios. Dificilmente teríeis condição <strong>de</strong> afirmar que<br />

estas duas coisas se harmonizam bem: que eu, que tenho sido vosso<br />

mestre, não passo <strong>de</strong> um louco por amor a Cristo, enquanto que vós<br />

permaneceis sábios.” Segue-se que, ser sábio em Cristo não logra aqui<br />

um bom sentido, porque ele ridiculariza os coríntios por <strong>de</strong>sejarem<br />

misturar Cristo com a sabedoria da carne, já que isso equivalia ao esforço<br />

<strong>de</strong> unir elementos diretamente antagônicos.<br />

O raciocínio nas frases que seguem é similar: “Vós sois fortes”,<br />

diz ele, “e honrados”; em outros termos, vos gloriais nas riquezas e<br />

recursos do mundo, e não po<strong>de</strong>is suportar a ignomínia da cruz. Entrementes,<br />

é razoável que eu seja obscuro e <strong>de</strong>sprezível, e sujeito a<br />

muitas enfermida<strong>de</strong>s enquanto busco 33 vossos interesses? Ora, esta<br />

queixa não conta com o respaldo da dignida<strong>de</strong>, 34 porquanto, na verda<strong>de</strong>,<br />

ele não é um indivíduo fraco e <strong>de</strong>sprezível entre eles [2Co 10.10].<br />

Em suma, ele moteja da vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les, porquanto as coisas viram <strong>de</strong><br />

ponta-cabeça quando se esperava que os filhos e alunos se tornassem<br />

famosos e renomados, enquanto os pais permaneciam na obscurida<strong>de</strong>,<br />

e igualmente expostos a todos os insultos do mundo.<br />

11. Até a presente hora. Aqui o apóstolo pinta um vívido quadro<br />

<strong>de</strong> suas circunstâncias pessoais, para que os coríntios apren<strong>de</strong>ssem<br />

<strong>de</strong> seu exemplo a <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong> seu orgulho e a submeter-se sinceramente<br />

e a abraçar a cruz <strong>de</strong> Cristo juntamente com ele. Ele <strong>de</strong>monstra a<br />

máxima habilida<strong>de</strong> nesse aspecto, porque, ao lembrá-los das coisas<br />

que o transformaram num ser abjeto, ele propicia clara prova <strong>de</strong> sua<br />

singular fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> seu infatigável zelo em buscar o avanço do<br />

32 “En faisant profession <strong>de</strong> l’Euangile, vous voulez auec cela estre estimez pru<strong>de</strong>ns.” – “Ao<br />

fazer<strong>de</strong>s uma confissão do evangelho, <strong>de</strong>sejais, juntamente com isso, ser tidos como sábios.”<br />

33 “Pour l’amour <strong>de</strong> vous.” – “De amor por vós.”<br />

34 “Est d’autant plus picquante, et aigre.” – “É tanto mais cortante e severo.”


Capítulo 4 • 165<br />

evangelho; e, por outro lado, tacitamente censura seus rivais que, sem<br />

apresentar qualquer evidência, esperavam, não obstante, ser tidos na<br />

mais elevada estima.<br />

Nas palavras propriamente ditas não há obscurida<strong>de</strong>, exceto o<br />

fato <strong>de</strong> que <strong>de</strong>vemos observar a distinção existente entre estes dois<br />

particípios: λοιδορουμενοι και βλασφημουμενοι (injuriado e difamado).<br />

λοιδορια (injuriar) significa que a mais cruel sorte <strong>de</strong> rivalida<strong>de</strong> que<br />

alguém emite, produz não apenas um leve arranhão, mas uma ferida<br />

profunda, e expõe seu caráter aos insultos públicos. Portanto, não<br />

po<strong>de</strong> haver dúvida <strong>de</strong> que λοιδορειν significa ferir alguém com palavras<br />

ferinas como se fossem feitas com algum instrumento cortante; 35 por<br />

isso a traduzi “molestado com ultrajes”. Βλασφημια significa reprovação<br />

em termos mais francos, quando alguém é severa e cruelmente<br />

caluniado. 36<br />

12. Ao dizer que enfrenta perseguição, suportando-a e orando por<br />

seus caluniadores, sua intenção não é apenas expressar que é afligido<br />

e humilhado por Deus, através da cruz, mas também que se acha munido<br />

<strong>de</strong> disposição para humilhar-se voluntariamente. Talvez com isso<br />

esteja ele golpeando os falsos apóstolos, que eram tão efeminados e<br />

<strong>de</strong>licados que nem mesmo podiam suportar ser tocados por alguém<br />

com seu <strong>de</strong>do mínimo. Ao falar <strong>de</strong> seu trabalho, ele acrescenta “com<br />

nossas próprias mãos”, a fim <strong>de</strong> tornar ainda mais evi<strong>de</strong>nte quão ignóbil<br />

era sua ocupação. 37 Diria ele: “Não só produzo meu sustento<br />

pessoal através <strong>de</strong> meu próprio labor, mas através <strong>de</strong> um labor humil<strong>de</strong>,<br />

usando minhas próprias mãos.”<br />

35 192 Eustátio presume que λοιδορια se <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> λογος, uma palavra, e δορυ, uma lança. Uma<br />

figura afim é empregada pelo salmista, quando fala <strong>de</strong> palavras que são espadas <strong>de</strong>sembainhadas.<br />

[Sl 55.21.]<br />

36 “Or le premier signifie non seulement se gaudir d’vn homme, mais aussi toucher son<br />

honneur comme en le blasonnant, et le naurer en termes picqunas: ce que nous disons<br />

communement, Mordre en riant. Le second signifie quando on <strong>de</strong>tracte apertement <strong>de</strong><br />

quelqu’vn sans vser <strong>de</strong> couuerture <strong>de</strong> paroles.” – “Ora, o primeiro significa não simplesmente<br />

divertir-se alguém em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> outrem, mas também ferir sua reputação<br />

como se fosse com o intuito <strong>de</strong> <strong>de</strong>negri-la e feri-la com expressões cortantes, como comumente<br />

dizemos: dar-lhe um bom golpe em seu humor. O segundo significa quando<br />

pessoas caluniam alguém publicamente sem usar qualquer disfarce <strong>de</strong> palavras.”<br />

37 “Que c’estoit vn mestier ville, et mechanique.” – “Que era um meio e ocupação mecânica.”


166 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

13. Como lixo do mundo. Ele faz uso <strong>de</strong> dois termos: o primeiro<br />

<strong>de</strong>les significa alguém que foi <strong>de</strong>dicado aos <strong>de</strong>uses por meio <strong>de</strong><br />

execrações públicas, com vistas a fazer expiação pela cida<strong>de</strong>. 38 Às<br />

vezes os gregos chamam tais pessoas καθαρμοι, mais freqüentemente,<br />

καθάρματα, 39 porque levam sobre si todos os crimes e culpas da<br />

cida<strong>de</strong>, e assim purificam o resto <strong>de</strong> seus habitantes. Além disso, ao<br />

usar a preposição περι, (ao redor), parece que Paulo tinha um olho no<br />

próprio rito expiatório, visto que aqueles homens <strong>de</strong>sventurados que<br />

eram <strong>de</strong>votados a execrações eram levados ao redor pelas ruas, para<br />

que pu<strong>de</strong>ssem levar com eles a qualquer esquina [da cida<strong>de</strong>] tudo<br />

quanto fosse ruim 40 e assim a purificação viesse a ser mais completa.<br />

Po<strong>de</strong> parecer que o plural indique que ele fala não exclusivamente <strong>de</strong><br />

si mesmo, mas também dos outros que eram seus associados, e que<br />

não menos eram tidos em <strong>de</strong>sprezo pelos coríntios. Não há, contudo,<br />

razão urgente para consi<strong>de</strong>rar o que ele diz como se esten<strong>de</strong>ndo além<br />

<strong>de</strong> sua própria pessoa. O outro termo, περίψημα (raspagem), é usado<br />

para serragem, raspaduras <strong>de</strong> alguma sorte, e também para a sujeira<br />

<strong>de</strong> assoalho. 41 Sugiro que se consultem as anotações <strong>de</strong> Budæus 42 concernentes<br />

a ambos os termos.<br />

38 “Comme c’estoit vne chose qui se faisoit anciennement entre les payens.” – “Como esta<br />

era uma coisa praticada antigamente entre os pagãos.”<br />

39 Os escolásticos sobre Aristófanes, Plut. 454, apresentam a seguinte explicação do termo<br />

κάθαρμα: Καθάρματα ἐλέγοντο ο̒ι επὶ τη̑, καθάρσει λοιμου̑ τινος ἤ τινος ἕτὲρας νάσου θυόμενοι τοις<br />

θεοι̑ς. Του̑το δὲ τὸ ἔθος καὶ παρὰ Ῥωμαίοις ἐπεκράτησε. Aquelas eram chamadas purificações,<br />

as quais eram sacrificadas aos <strong>de</strong>uses para propiciar a fome ou alguma outra calamida<strong>de</strong>.<br />

Esse costume prevalecia também entre os romanos.<br />

40 “De malediction.” – “De maldição.”<br />

41 “Les ballieures d’vne maison.” – “A varredura <strong>de</strong> uma casa.”<br />

42 O ponto <strong>de</strong> vista apresentado por Budæus do primeiro termo (περικαθάρματα) é expresso<br />

por Leigh em seu Critica Sacra como sendo este: “O apóstolo faz alusão às expiações em<br />

uso entre os pagãos, no tempo <strong>de</strong> quaisquer pestes ou infecções contagiosas; para a remoção<br />

<strong>de</strong> tais doenças, sacrificavam então certos homens a seus <strong>de</strong>uses, homens esses<br />

que eram <strong>de</strong>nominados καθάρματα. Como se o apóstolo dissesse: Somos tão <strong>de</strong>sprezíveis<br />

e tão odiosos aos olhos do povo, como se carregássemos as ignomínias e maldições<br />

da multidão, como as pessoas con<strong>de</strong>nadas que eram oferecidas para expiação pública.”<br />

Budæus traduz o último termo (περίψημα) assim: “Scobem aut ramentum et quicquid<br />

limando <strong>de</strong>teritur.” – “Limagem ou raspagem, ou qualquer coisa que é limpada por limatão.”


Capítulo 4 • 167<br />

Precisamos ver como isso se aplica ao significado da passagem<br />

que se acha diante <strong>de</strong> nossos olhos. Com o fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver sua própria<br />

e extrema <strong>de</strong>gradação, Paulo diz que é merecedor das maldições<br />

do mundo todo como se fosse alguém <strong>de</strong>signado a ser um sacrifício<br />

expiatório, 43 e que, como se fosse escória, ele era nauseabundo a todos.<br />

Não obstante, ele não sugere, pelo primeiro símile, que ele mesmo<br />

fosse um sacrifício expiatório pelos pecados, mas simplesmente que,<br />

no tocante aos infortúnios e insultos, não existe diferença entre ele e<br />

aquele sobre quem as execrações do mundo inteiro são cumuladas.<br />

14. Não escrevi estas coisas para vos envergonhar. Depois <strong>de</strong><br />

Paulo haver usado termos ferinos e irônicos, <strong>de</strong> modo a sensibilizar<br />

os brios dos coríntios, ele agora manifesta seu aborrecimento, <strong>de</strong>clarando<br />

que não dizia essas coisas com o intuito <strong>de</strong> envergonhá-los,<br />

mas, antes, para admoestá-los com amor paterno. É natural que o<br />

efeito e natureza <strong>de</strong> uma correção paterna levem um filho a sentir-se<br />

envergonhado. Pois o princípio do arrependimento é o senso <strong>de</strong> vergonha<br />

<strong>de</strong>spertado pela consciência do filho ao ser reprovado por seu<br />

pecado. Portanto, ao reprovar seu filho, o objetivo do pai é fazê-lo<br />

sentir-se insatisfeito consigo mesmo. Percebemos que tudo quanto<br />

Paulo disse até aqui visava a levar os coríntios a ter vergonha <strong>de</strong><br />

si mesmos. Sim, e tanto é verda<strong>de</strong> que um pouco <strong>de</strong>pois [1Co 6.5]<br />

ele esclarece que faz menção <strong>de</strong> seus erros a fim <strong>de</strong> que comecem<br />

a sentir-se envergonhados. Mas aqui ele só <strong>de</strong>seja afirmar que sua<br />

intenção não era causar-lhes frustração, nem tirar seus pecados do<br />

anonimato e lançá-los à vista <strong>de</strong> todos, <strong>de</strong> tal modo que caíssem em<br />

<strong>de</strong>scrédito. Porquanto aquele que admoesta como amigo se esforça<br />

especialmente por ver que toda a vergonha permaneça sepultada<br />

entre ele e a pessoa a quem adverte. 44 Mas a pessoa que chama a<br />

atenção <strong>de</strong> alguém <strong>de</strong> forma maliciosa, expõe o pecado <strong>de</strong>sse alguém<br />

43 “Destiné à porter toutes les execratiions et maudissons du mon<strong>de</strong>.” – “Separado para<br />

suportar todas as execrações do mundo.”<br />

44 “Tasche sur toutes choses que toute la honte <strong>de</strong>merure entre lui et celui lequel il admoneste.”<br />

– “Tudo faz para que a vergonha permaneça entre ele e a pessoa a quem<br />

admoesta.”


168 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

e o faz sentir-se envergonhado, e assim o transforma em objeto do<br />

repúdio público. Por isso Paulo diz simplesmente que o que dissera<br />

não foi com a intenção <strong>de</strong> humilhar ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>negrir o bom nome dos<br />

coríntios; antes, foi para <strong>de</strong>monstrar afeição paternal e lembrá-los do<br />

que estava faltando neles.<br />

Entretanto, qual era o propósito <strong>de</strong>ssa admoestação? Era precisamente<br />

para que os coríntios, que se achavam ensoberbecidos<br />

com idéias bombásticas, não obstante serem vazios, apren<strong>de</strong>ssem a<br />

gloriar-se na humilhação da cruz juntamente com Paulo; e para que<br />

não mais o <strong>de</strong>sprezassem sob a alegação <strong>de</strong> que ele era mui digno <strong>de</strong><br />

gloriar-se aos olhos <strong>de</strong> Deus e dos anjos. Em suma, o propósito <strong>de</strong> tudo<br />

isso era que os coríntios abrissem mão <strong>de</strong> sua antiga arrogância e <strong>de</strong>ssem<br />

mais valor ao estigma 45 <strong>de</strong> Cristo [Gl 6.17] lançado sobre Paulo,<br />

em vez da ostentação fútil e <strong>de</strong>sprezível dos falsos apóstolos. Ora, os<br />

mestres 46 precisam apren<strong>de</strong>r que esse gênero <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>ração <strong>de</strong>ve ser<br />

sempre usado nos atos <strong>de</strong> reprovação, para que não se firam os brios<br />

dos homens no uso <strong>de</strong> excessiva austerida<strong>de</strong>; segundo um provérbio<br />

bem conhecido, o vinagre precisa ser dosado com mel e óleo. Mas, acima<br />

<strong>de</strong> tudo, <strong>de</strong>vem tomar cuidado para não parecer que escarnecem<br />

daqueles a quem estão reprovando, nem que se sentem prazerosos<br />

em seu infortúnio. Não! Ao contrário, <strong>de</strong>vem esforçar-se por <strong>de</strong>ixar em<br />

evidência que sua intenção não é outra senão a promoção <strong>de</strong> seu bem-<br />

-estar. Pois, que ganharia um mestre 47 com mera gritaria, se porventura<br />

não condimentar a aspereza <strong>de</strong> sua repreensão com a mo<strong>de</strong>ração a<br />

que me refiro? Portanto, se <strong>de</strong>sejarmos fazer algo <strong>de</strong> positivo enquanto<br />

corrigimos as falhas dos homens, é saudável convencê-los <strong>de</strong> que<br />

nossas críticas são proce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> um coração amigo.<br />

45 “Les marques et fletrisseurs <strong>de</strong> Christ en luy.” – “As marcas e estigmas <strong>de</strong> Cristo nele.” A<br />

alusão, como o próprio autor observa ao comentar Gálatas 6.17, é às “marcas com que os<br />

escravos bárbaros, ou fugitivos, ou malfeitores, eram marcados.” Daí a expressão <strong>de</strong> Juvenal:<br />

stigmate dignum cre<strong>de</strong>re – “consi<strong>de</strong>rar alguém digno <strong>de</strong> ser marcado como escravo.”<br />

(Juv. x. 183.)<br />

46 “Les docteurs et ministres.” – “Mestes e ministros.”<br />

47 “Le ministre.” – “O ministro.”


Capítulo 4 • 169<br />

15. Porque, ainda que tivésseis <strong>de</strong>z mil tutores. Ele já se havia<br />

<strong>de</strong>nominado <strong>de</strong> pai. E agora mostra que tal atribuição é peculiarmente<br />

sua em relação a eles, porque foi ele, exclusivamente, quem os gerou<br />

em Cristo. Não obstante, ao usar esta comparação, ele tem em mira<br />

os falsos apóstolos, a quem os coríntios atribuíam toda autorida<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong> modo que Paulo agora era consi<strong>de</strong>rado pouco mais que nada entre<br />

eles. Por isso, ele os aconselha que <strong>de</strong>cidam qual honra <strong>de</strong>vem prestar<br />

a um pai e qual honra <strong>de</strong>vem prestar a um tutor. 48 É como se quisesse<br />

dizer: “Vós revelais gran<strong>de</strong> respeito para com os novos mestres. Não<br />

faço objeção, contanto que lembreis bem <strong>de</strong> que eu sou vosso pai, e<br />

que eles não passam <strong>de</strong> tutores.” Mas, ao reivindicar para si tal autorida<strong>de</strong>,<br />

ele implicitamente diz que sua atitu<strong>de</strong> é diametralmente distinta<br />

da dos homens a quem os coríntios consi<strong>de</strong>ravam tão eminentes. Provavelmente<br />

Paulo po<strong>de</strong>ria dizer: “Eles se esforçam por vos ensinar.<br />

Muito bem! Mas o amor <strong>de</strong> um pai, o zelo <strong>de</strong> um pai, a boa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

um pai são atitu<strong>de</strong>s completamente diferentes das <strong>de</strong> um tutor.” Mas<br />

como, se ele está também fazendo alusão àquela imaturida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fé, 49<br />

à qual já fez referência? Porque, ainda que os coríntios eram titãs no<br />

orgulho, todavia, na fé, não passavam <strong>de</strong> crianças, e esta é a razão por<br />

que era justo encomendá-los a tutores. 50 Ele também <strong>de</strong>tecta falhas no<br />

48 “A palavra grega, pedagogue”, diz Calmet, “agora contém a idéia que se aproxima do <strong>de</strong>sdém.<br />

Com nenhuma outra palavra para qualificá-la, ela excita a idéia <strong>de</strong> um pedante que<br />

assume ares <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> sobre outrem, a qual não lhe pertence. Mas entre os antigos,<br />

pedagogo era uma pessoa a quem se confiava o cuidado dos filhos <strong>de</strong> outro, para conduzi-los,<br />

para fazê-los observar seus <strong>de</strong>veres, instruí-los nos primeiros rudimentos. Assim o<br />

ofício <strong>de</strong> pedagogo quase que correspondia ao <strong>de</strong> um governador ou tutor, que constantemente<br />

assistia seu aluno, o ensinava e formava seus hábitos. Paulo [1Co 4.13] afirma:<br />

‘Pois ainda que tivésseis <strong>de</strong>z mil instrutores (pedagogos) em Cristo, contudo não teríeis<br />

muitos pais’ – se representando como seus pais na fé, visto que os gerara no evangelho.<br />

O pedagogo, <strong>de</strong> fato, podia ter algum po<strong>de</strong>r e interesse em seu aluno, mas podia também<br />

nunca nutrir por ele a afeição natural <strong>de</strong> um pai.”<br />

49 “Quel mal y auroit-il, quand nous dirions, qu’il fait aussi vne allusion à ceste petitesse et<br />

enfance en la foy?” – “Que mal havia nisso, ainda que digamos que ele também faz uma<br />

alusão àqueles pequeninos e infantes na fé?”<br />

50 Nosso autor evi<strong>de</strong>ntemente faz alusão à etimologia do termo original, παιδαγωγοὺς, como<br />

se <strong>de</strong>rivando <strong>de</strong> παὶς, um menino, e ἄγω, guiar. Tais instrutores geralmente eram escravos,<br />

cuja ocupação era dar assistência às crianças em sua responsabilida<strong>de</strong>, guiá-las <strong>de</strong> casa<br />

para a escola e <strong>de</strong>sta para aquela.


170 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

método absurdo e <strong>de</strong>veras malicioso daqueles mestres em manterem<br />

seus alunos ocupados apenas com os primeiros rudimentos, com o fim<br />

<strong>de</strong> mantê-los sempre presos a sua autorida<strong>de</strong>. 51<br />

Porque em Cristo. Esta é a razão por que ele <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado<br />

com exclusivida<strong>de</strong> o pai da Igreja <strong>de</strong> Corinto, ou, seja: porque ele a<br />

havia gerado. E aqui ele <strong>de</strong>screve a geração espiritual <strong>de</strong> maneira mais<br />

apropriada afirmando que os gerara em Cristo, o qual é a única fonte<br />

<strong>de</strong> vida, e assim ele faz do evangelho a causa formal. 52 Portanto, notemos<br />

bem que aos olhos <strong>de</strong> Deus só somos verda<strong>de</strong>iramente gerados<br />

quando somos enxertados em Cristo, fora <strong>de</strong> quem nada existe senão<br />

morte, e que isso só po<strong>de</strong> ser feito por intermédio do evangelho, porque,<br />

visto que somos, por natureza, carne e erva, a Palavra <strong>de</strong> Deus é<br />

a semente incorruptível por meio da qual somos renovados para a vida<br />

eterna, como Pedro ensina [1Pe 1.23-25], extraindo <strong>de</strong> Isaías [Is 40.6-8].<br />

Elimine-se o evangelho, e todos permaneceremos malditos e mortos<br />

aos olhos <strong>de</strong> Deus. Esta mesma Palavra, por meio da qual somos gerados,<br />

passa a ser leite que nos nutre, e alimento sólido para nosso<br />

sustento perene. 53<br />

Alguém po<strong>de</strong>ria apresentar esta objeção: “Visto que na Igreja novos<br />

filhos são gerados para Deus todos os dias, por que Paulo nega<br />

que aqueles que o haviam sucedido eram pais? A resposta é fácil: ele<br />

aqui está falando do início da Igreja. Pois ainda que muitos haviam sido<br />

gerados pelo ministério <strong>de</strong> outros, esta honra permaneceu inalterada<br />

somente no caso <strong>de</strong> Paulo, porquanto foi ele quem fundara a Igreja <strong>de</strong><br />

Corinto. Além disso, se porventura alguém perguntar: “Todos os pastores<br />

não <strong>de</strong>vem ser contemplados como pais? Por que, pois, Paulo priva<br />

a todos os <strong>de</strong>mais <strong>de</strong>sse título a fim <strong>de</strong> reivindicá-lo só para si?” Eis<br />

minha resposta: Aqui ele fala numa forma comparativa. Conseqüente-<br />

51 “La mauuaise procedure et façon d’enseigner <strong>de</strong>s docteurs, d’autant qu’ils amusoyent leurs<br />

disciples aux premiers rudimens et petis commencemens, et les tenoyent tousiours là.” –<br />

“O vil procedimento e método <strong>de</strong> instrução dos mestres, ainda que entretivessem seus<br />

seguidores com os primeiros e leves princípios, e os mantivessem constantemente aí.”<br />

52 “Qu’on appelle.” – “Como a chamam.”<br />

53 210 Nosso autor provavelmente se refere ao que dissera ao comentar 1 Coríntios 3.2.


Capítulo 4 • 171<br />

mente, embora o título <strong>de</strong> pai seja pertinente também a eles em outros<br />

aspectos, todavia, em comparação com Paulo, eles não passavam <strong>de</strong><br />

tutores. Devemos igualmente ter em mente o que referi um pouco antes,<br />

ou, seja, que ele não está falando <strong>de</strong> todos eles (porque, no que respeita<br />

a homens como ele, a saber, Apolo, Silvano e Timóteo, homens que buscavam<br />

ansiosamente o avanço do reino <strong>de</strong> Cristo, não haveria qualquer<br />

dificulda<strong>de</strong> em <strong>de</strong>nominá-los <strong>de</strong> pais e atribuir-lhes as mais elevadas<br />

honras), mas ele aponta erros naqueles que, com <strong>de</strong>senfreada ambição,<br />

estavam transferindo para si a glória que pertencia a outrem. Tais eram<br />

os homens que se apropriavam da honra <strong>de</strong>vida a Paulo, para que pu<strong>de</strong>ssem<br />

tomar posse <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>spojos.<br />

Certamente, hoje a condição da Igreja Universal é semelhante à da<br />

Igreja <strong>de</strong> Corinto <strong>de</strong> então. Pois quão poucos há que cuidam das igrejas<br />

com afeição paternal; em outros termos, que não buscam recompensas<br />

pessoais e não se <strong>de</strong>dicam a seu próprio bem-estar! Entrementes,<br />

gran<strong>de</strong> é o número <strong>de</strong> tutores, os quais alugam seus serviços para<br />

que tenham um retorno lucrativo; e isso fazem como se estivessem<br />

empenhados numa tarefa por tempo limitado e a fim <strong>de</strong> manterem as<br />

pessoas sob seu próprio controle e para tê-los em admiração. 54 Não<br />

obstante, mesmo assim é sempre bom que haja muitos tutores, que<br />

façam o bem, pelo menos em alguma medida ensinando e não <strong>de</strong>struindo<br />

a Igreja pelo efeito corruptor do falsa doutrina. Quanto a mim,<br />

ao me queixar do gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> tutores, não estou me reportando<br />

dos sacerdotes papistas (porquanto não os consi<strong>de</strong>ro dignos <strong>de</strong> figurarem<br />

neste número), mas refiro-me aos que concordam conosco em<br />

doutrina, e todavia se ocupam em aten<strong>de</strong>r a seus próprios afazeres<br />

no lugar dos <strong>de</strong> Cristo. Todos nós, naturalmente, <strong>de</strong>sejamos ser tidos<br />

como pais, e exigimos <strong>de</strong> outros a obediência <strong>de</strong> filhos; entretanto,<br />

54 “Qui se loent, comme ouuriers à la iourneé, pour exercer l’office à leur profit, ainsi qu’on<br />

feroit vne chose qu’on aura prise pour vn temps certain, et cependant tenir le peuple en<br />

obeissance, et acquerir bruit, ou estre en admiration enuers iceluy.” – “Que se alugam<br />

como obreiros por um dia a fim <strong>de</strong> exercerem o ofício em seu próprio benefício, como<br />

se fossem fazer algo por apenas certo tempo, e no momento azado po<strong>de</strong>rem manter as<br />

pessoas em sujeição, e adquirirem fama ou <strong>de</strong>sfrutarem <strong>de</strong> admiração entre eles.”


172 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

<strong>de</strong> quantos o leitor po<strong>de</strong> dizer são dignos só porque realmente agem<br />

como pais? 55<br />

Existe ainda outra questão muito difícil. Visto que Cristo nos proíbe<br />

<strong>de</strong> chamar alguém <strong>de</strong> pai sobre a terra em razão <strong>de</strong> termos um Pai no<br />

céu [Mt 23.9], como, pois, Paulo ousa aplicar a si o título pai? Eis minha<br />

resposta: propriamente falando, Deus é o único Pai, não só <strong>de</strong> nossas<br />

almas, mas também <strong>de</strong> nosso corpo. Entretanto, diante do fato <strong>de</strong> que,<br />

no que se refere ao corpo, ele outorga o título pai àqueles a quem ele<br />

conce<strong>de</strong> filhos, todavia retém para si só o direito e título especial <strong>de</strong> “o<br />

Pai dos espíritos”, com o fim <strong>de</strong> ser distinguido dos pais terrenos, como<br />

o apóstolo afirma em Hebreus 12.9. Não obstante, visto que somente ele<br />

gera as almas por seu próprio po<strong>de</strong>r, então as regenera e as vivifica, e<br />

ainda faz uso do ministério <strong>de</strong> seus servos para esse propósito, não há<br />

mal algum em chamá-los pais com referência a este ministério, porque,<br />

ao agirem assim, a honra divina é <strong>de</strong>ixada intata. A Palavra (como temos<br />

dito) é a semente espiritual. Por meio <strong>de</strong>la, e por meio <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r, unicamente<br />

Deus é quem conduz nossas almas ao novo nascimento, porém<br />

ele não exclui o labor dos ministros. Se o leitor consi<strong>de</strong>rar atentamente<br />

o que Deus faz por si só, e o que <strong>de</strong>seja que se faça por intermédio dos<br />

ministros, então enten<strong>de</strong>rá facilmente em que sentido só ele merece a<br />

honra <strong>de</strong> Pai, e como em alto grau este título é apropriado aos ministros,<br />

sem qualquer violação dos direitos divinos.<br />

16. Por isso vos rogo que sejais meus<br />

seguidores.<br />

17. Por essa causa vos enviei Timóteo,<br />

que é meu amado e fiel filho no Senhor,<br />

o qual vos trará à memória<br />

meus caminhos que estão em Cristo,<br />

como em toda parte ensino em<br />

cada igreja.<br />

16. Adhortor ergo vos, imitatores mei<br />

estote.<br />

17. Hac <strong>de</strong> causa misi ad vos Timotheum,<br />

qui est filius meus dilectus<br />

et fi<strong>de</strong>lis in Domino: qui vobis in<br />

memoriam reducat vias meas, quæ<br />

sunt in Christo, quemadmodum ubique<br />

in omnibus Ecclesiis doceam.<br />

55 “Combien y en a-t-il qui facent office <strong>de</strong> père, et qui <strong>de</strong>monstrent par effet ce qu’ils veulent<br />

estre appelez?” – “Quantos há entre eles que cumprem o ofício <strong>de</strong> pai e mostram nos atos<br />

do que <strong>de</strong>sejam ser chamados?”


Capítulo 4 • 173<br />

18. Ora, alguns se acham ensoberbecidos,<br />

como se eu não houvesse <strong>de</strong> ir<br />

ter convosco.<br />

19. Mas em breve irei, se o Senhor<br />

quiser; e então conhecerei, não a<br />

palavra dos que andam ensoberbecidos,<br />

mas o po<strong>de</strong>r.<br />

20. Porque o reino <strong>de</strong> Deus não consiste<br />

<strong>de</strong> palavras, mas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />

21. Que preferis? Irei ter convosco com<br />

vara, ou com amor e no espírito <strong>de</strong><br />

mansidão?<br />

18. Perin<strong>de</strong> quasi non sum ad vos venturus,<br />

inflati sunt quidam:<br />

19. Veniam autem brevi ad vos, si Dominus<br />

voluerit, et cognoscam non<br />

sermonem eorum qui sunt inflati,<br />

sed virtutem.<br />

20. Neque enim in sermone regnum Dei<br />

est, sed in virtute.<br />

21. Quid vultis? in virga veniam ad vos,<br />

an dilectione spirituque mansuetudinis?<br />

16. Por isso vos rogo. Ele agora também expressa, em suas próprias<br />

palavras, o que está preten<strong>de</strong>ndo obter <strong>de</strong>les por meio <strong>de</strong> sua<br />

correção paternal, ou, seja, que justamente porque são seus filhos, não<br />

interrompam as relações com seu pai. Há algo mais razoável do que<br />

o esforço dos filhos para se assemelharem a seus pais tanto quanto<br />

possível? Ele ainda está dispensando algo <strong>de</strong> seus próprios direitos<br />

ao instar com eles à guisa <strong>de</strong> pedido em vez <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m. Mas ao propor-lhes<br />

que fossem seus imitadores, ele traz a lume outra passagem,<br />

quando, pois, adiciona outra idéia, ou, seja, “como sou <strong>de</strong> Cristo” [1Co<br />

11.1]. Esta qualificação <strong>de</strong>ve ser sempre mantida, para que não venhamos<br />

seguir algum ser humano, exceto até on<strong>de</strong> nos conduza a Cristo.<br />

Sabemos, porém, com que Paulo está tratando aqui. Os coríntios não<br />

estavam evitando a ignomínia da cruz, mas também faziam <strong>de</strong> seu pai<br />

um objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo, só porque ele olvidava a glória que este mundo<br />

tem a oferecer e se gloriava mais nas reprovações que sofria por<br />

causa <strong>de</strong> Cristo; e os coríntios tinham sua atenção posta em si mesmos<br />

e noutros afortunados, em nada terem a ver, pelos padrões do mundo,<br />

com o que é <strong>de</strong>sprezível. Portanto, ele os aconselha a seguirem seu<br />

exemplo e a prestarem obediência a Cristo para que tivessem condição<br />

<strong>de</strong> suportar tudo.<br />

17. Por essa causa. O significado é como segue: “Para que saibais que<br />

tipo <strong>de</strong> vida é realmente o que eu vivo, e se sou um a<strong>de</strong>quado exemplo a


174 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

ser seguido, ouvi o que Timóteo tem a dizer, pois ele estará na condição<br />

<strong>de</strong> fornecer confiável evidência neste sentido.” Ora, duas coisas produzem<br />

confiança mediante a evidência que uma pessoa tem a apresentar, a<br />

saber: seu conhecimento das coisas sobre as quais ela tem a dizer, e sua<br />

lealda<strong>de</strong>. Paulo lhes informa que Timóteo possui ambas. Pois quando afetuosamente<br />

o chama <strong>de</strong> amado filho, revela que Timóteo conhece Paulo<br />

com intimida<strong>de</strong> e que está bem familiarizado com todas suas circunstâncias.<br />

Ele então o trata como fiel no Senhor. Ele também confia duas coisas<br />

à responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo. Primeiro, ele <strong>de</strong>sperta a mente dos coríntios<br />

para que se lembrassem <strong>de</strong> seu próprio assentimento, e nisso ele<br />

tacitamente lhes atribui falta. Segundo, Timóteo lhes fizera saber quão<br />

invariável e consistente era o método <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong> Paulo em todo lugar.<br />

É bem provável, porém, que Paulo estivesse sendo alvo das <strong>de</strong>turpações<br />

dos falsos apóstolos, como se ele estivesse reivindicando para<br />

si mais po<strong>de</strong>r sobre os coríntios do que sobre os outros, ou se conduzindo<br />

<strong>de</strong> maneira completamente distinta em outros lugares; porque<br />

ele tinha boas razões para querer que isso fosse do conhecimento <strong>de</strong>les.<br />

Portanto, um ministro sábio <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>terminar qual <strong>de</strong>va ser seu<br />

método <strong>de</strong> ensino, e persistir nesse plano, para que não se levante<br />

qualquer objeção contra ele sem que esteja preparado a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se,<br />

baseado numa situação concreta, como Paulo possuía.<br />

18. Como se eu não tivesse <strong>de</strong> ir ter convosco. Era costume<br />

dos falsos apóstolos tirar vantagem da ausência <strong>de</strong> homens bons<br />

e fazer florescer sua insolente e incontida vanglória. Paulo realça o<br />

fato <strong>de</strong> que eles não suportavam a presença <strong>de</strong>le, e assim o expõe<br />

para que ficasse a <strong>de</strong>scoberto a má consciência <strong>de</strong>les e assim refreasse<br />

sua agressivida<strong>de</strong>. Naturalmente, suce<strong>de</strong> <strong>de</strong> vez em quando que,<br />

quando a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> insultar se lhes divisa, pessoas atrevidas e<br />

<strong>de</strong>scaradas se prorrompem abertamente contra os servos <strong>de</strong> Cristo;<br />

entretanto, nunca apresentam uma controvérsia 56 justa com o fim <strong>de</strong><br />

56 “Si est-ce que jamais ils ne vienent à combatre franchement, et s’ils ne voyent leur auantage:<br />

mais plustot en vsant <strong>de</strong> ruses et circuits obliques, ils monstrent leur <strong>de</strong>ffiance,<br />

et comment ils sont mal asseurez.” – “Assim suce<strong>de</strong> que nunca saem francamente em


Capítulo 4 • 175<br />

provar que não têm o que escon<strong>de</strong>r; ao contrário, por meio <strong>de</strong> suas<br />

matreirices, <strong>de</strong>nunciam sua própria carência <strong>de</strong> confiança.<br />

19. Mas em breve irei. “Eles estão cometendo um grave erro”, diz<br />

ele, “ao emplumar suas penas durante minha ausência, como se isso<br />

fosse durar por muito tempo; logo, porém, perceberão quão fútil tem<br />

sido seu orgulho.” Mas ele não preten<strong>de</strong> propriamente assustá-los,<br />

como se sua chegada fosse trovejar contra eles, mas para gerar tensão<br />

e atingir suas consciências, porque, por outro lado, não importa o<br />

que pretendiam, sabiam muito bem que Paulo estava equipado com a<br />

influência divina.<br />

A frase, se o Senhor quiser, nos ensina que não <strong>de</strong>vemos fazer<br />

nenhuma promessa a alguém visando ao futuro; nem fazer planos pessoais<br />

sem incluir esta restrição: até on<strong>de</strong> o Senhor o permitir. Por isso,<br />

Tiago está plenamente certo ao ridicularizar a temerida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas<br />

que planejam o que farão até o final <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos, quando, na verda<strong>de</strong>,<br />

não têm certeza alguma se viverão por toda uma hora [Tg 4.15]. Ora,<br />

ainda que não sejamos obrigados a usar constantemente tais expressões,<br />

mesmo assim é melhor que cui<strong>de</strong>mos em torná-las habituais,<br />

para que mais e mais formulemos todos nossos planos em plena conformida<strong>de</strong><br />

com a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus.<br />

E então conhecerei, não a palavra. Pelo termo palavra <strong>de</strong>vemos<br />

enten<strong>de</strong>r aquela loquacida<strong>de</strong> fútil em que os falsos apóstolos se <strong>de</strong>leitavam;<br />

pois seu arrimo tinha por base certa facilida<strong>de</strong> e charme<br />

<strong>de</strong> linguagem, no entanto eram completamente carentes <strong>de</strong> zelo e<br />

da eficácia do Espírito. Pelo termo po<strong>de</strong>r Paulo quer dizer a eficácia<br />

espiritual com que são revestidos aqueles que administram solicitamente<br />

57 a Palavra <strong>de</strong> Deus. Portanto, o significado é como segue:<br />

“Verei se eles <strong>de</strong>sfrutam <strong>de</strong> tão fortes razões para se sentirem tão<br />

arrogantes, e certamente não os julgarei por seu rico fluxo <strong>de</strong> palacombate,<br />

a não ser que tenham uma visão <strong>de</strong> sua própria vantagem; mas, ao contrário,<br />

ao fazerem uso <strong>de</strong> artimanhas e ro<strong>de</strong>ios, <strong>de</strong>monstram sua falta <strong>de</strong> confiança e <strong>de</strong> quão<br />

<strong>de</strong>sconfiados são.”<br />

57 “D’vn bon zele, et pure affection.” – “Com um zelo correto e uma afeição pura.”


176 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

vras, no qual <strong>de</strong>positam toda sua glória, e no qual tanto confiam para<br />

reivindicarem tudo 58 para si. Se quiserem <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> algum crédito<br />

em minha presença, que então revelem aquele po<strong>de</strong>r que distingue<br />

os genuínos servos <strong>de</strong> Cristo dos impostores [arratis]; do contrário,<br />

não per<strong>de</strong>rei tempo com eles e suas exibições. Portanto, eles estão<br />

pondo sua confiança em sua vã eloqüência, enquanto que, para mim,<br />

ela não passa <strong>de</strong> fumaça.”<br />

20. Porque o reino <strong>de</strong> Deus não consiste em palavras. Visto<br />

que o Senhor governa sua Igreja com sua Palavra, como se ela fosse<br />

um cetro, a administração do evangelho [evangelii administratio] é<br />

às vezes chamada o reino <strong>de</strong> Deus. Aqui, pois, <strong>de</strong>vemos enten<strong>de</strong>r por<br />

reino <strong>de</strong> Deus tudo quanto aponta nesta direção e é <strong>de</strong>terminado com<br />

este propósito: que Deus possa reinar em nosso meio. Paulo diz que<br />

este reino não consiste em palavras [sermone]; pois quão pequeno<br />

é o esforço para alguém que tem a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar fluentemente,<br />

quando o mesmo não produz nada senão sons vazios! 59 Portanto,<br />

aprendamos que a graça e a habilida<strong>de</strong> meramente externas, em ensinar,<br />

é como um corpo bem elegante e saudável em sua aparência,<br />

enquanto que o po<strong>de</strong>r [virtutem] <strong>de</strong> que Paulo aqui fala é como a<br />

alma. Já vimos que a natureza da pregação evangélica é tal que se<br />

acha saturada <strong>de</strong> um sólido gênero <strong>de</strong> majesta<strong>de</strong>. Essa majesta<strong>de</strong> se<br />

revela quando um ministro entra em ação mais com po<strong>de</strong>r [virtute] do<br />

que com palavras [sermone]. Em outros termos, ele se <strong>de</strong>vota ativamente<br />

à obra do Senhor, não <strong>de</strong>positando confiança em seu próprio<br />

intelecto ou eloqüência, mas é equipado com armas espirituais, que<br />

são o zelo em proteger a glória do Senhor, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> estabelecer o<br />

reino <strong>de</strong> Cristo, o anseio por edificação, o temor do Senhor, a perseverança<br />

invicta e outros dons indispensáveis. Sem eles a pregação é<br />

morta e não possui nenhuma energia, não importa quão excelente e<br />

58 “Proram et puppim.” – “A proa e a popa.”<br />

59 “Sçaura bien babiller et parler eloquemment, et cependant il n’aura rien qu’vn son retentissant<br />

en l’air.” – “Tem habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tagarelar com facilida<strong>de</strong> e falar eloqüentemente, e<br />

no ínterim nada tem senão sons lançados ao ar.”


Capítulo 4 • 177<br />

bem adornada venha a ser. Por esta razão é que ele diz em sua segunda<br />

Epístola que não equivale a nada senão ser uma nova criação<br />

[2Co 5.17] em Cristo. E este arrazoado tem o mesmo propósito em<br />

vista. Pois ele não quer que permaneçamos satisfeitos com qualquer<br />

atrativo externo [externis larris], senão que perseveremos no po<strong>de</strong>r<br />

interior [interna e virtute] do Espírito Santo.<br />

Ainda que, com estas palavras, ele refira à ambição dos falsos<br />

apóstolos, todavia, ao mesmo tempo, ele acusa os coríntios <strong>de</strong> perverterem<br />

o juízo, visto que estavam formando a opinião preconcebida<br />

dos servos <strong>de</strong> Cristo, vendo-os pelo prisma <strong>de</strong> suas excelências menos<br />

importantes. Esta é uma conclusão notável, a qual se aplica tanto<br />

a nós quanto a eles. No que respeita ao evangelho, do qual tantos<br />

nos orgulhamos, on<strong>de</strong> está a novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida em muitas pessoas,<br />

on<strong>de</strong> sua eficácia espiritual, a não ser em sua língua? E esta não é a<br />

situação <strong>de</strong> uma só pessoa. 60 Porque, quantos há que fazem uso do<br />

evangelho com o fim <strong>de</strong> conquistar simpatia e renome, como se ele<br />

fosse algum ramo secular <strong>de</strong> conhecimento, e cuja preocupação seja<br />

falar com apuro e refinamento! Não acalento a crença <strong>de</strong> que o po<strong>de</strong>r<br />

se restrinja aos milagres, visto que, em contraste, é fácil <strong>de</strong> <strong>de</strong>duzir<br />

que ele tem uma aplicação muito mais ampla.<br />

21. Que quereis? Quem fez a divisão das epístolas em capítulos<br />

<strong>de</strong>veria ter começado o quinto capítulo neste ponto. Porque,<br />

até aqui, Paulo esteve reprovando o fútil orgulho dos coríntios, sua<br />

estulta confiança, seu juízo distorcido e afetado pela ambição; mas<br />

agora menciona os vícios que os afligiam, os quais <strong>de</strong>veriam fazê-los<br />

envergonhar-se <strong>de</strong> si mesmos. É como se dissesse: “Vós vos sentis envai<strong>de</strong>cidos,<br />

justamente como se vossos negócios transcorressem em<br />

uma situação excelente, porém seria melhor se reconhecêsseis vossa<br />

infeliz situação com pudor e tristeza, pois se prosseguir<strong>de</strong>s assim serei<br />

abrigado a pôr <strong>de</strong> lado minha mansidão e a ser um pai severo para convosco.”<br />

Mas este tom <strong>de</strong> ameaça leva mais peso do que a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

60 “Et ce n’est point au peuple seulement qu’est ce <strong>de</strong>faut.” – “E não é meramente entre as<br />

pessoas que tal <strong>de</strong>feito existe.”


178 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

escolha que porventura ele lhes houvesse dado, pois <strong>de</strong>clara que não<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá <strong>de</strong> si mesmo ser manso e gentil com eles, senão que está<br />

se vendo forçado a usar <strong>de</strong> severida<strong>de</strong> por culpa <strong>de</strong>les. Diz ele: “É para<br />

que <strong>de</strong>cidis com que temperamento eu vou encontrar-vos. Quanto a<br />

mim, estou preparado para ser manso. Mas se continuar<strong>de</strong>s a proce<strong>de</strong>r<br />

como vin<strong>de</strong>s fazendo, o jeito é usar a vara.” Assim, ele se coloca<br />

numa posição mais consistente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> evocar sobre si a autorida<strong>de</strong><br />

paterna; pois teria sido ridículo iniciar com uma advertência como<br />

esta, caso não tivesse antes aberto o caminho para si, com o que disse,<br />

e os preparado para nutrirem temor.<br />

Pelo termo vara ele indica aquela autorida<strong>de</strong> disciplinar com<br />

que um pastor <strong>de</strong>ve corrigir os erros <strong>de</strong> seu povo. Em confronto com<br />

isso ele põe amor (caritatem) e espírito <strong>de</strong> mansidão, não porque o<br />

pai tenha aversão pelos filhos a quem reprova (pois, do contrário, a<br />

correção não seria oriunda do amor), mas porque, através <strong>de</strong> uma expressão<br />

facial sombria e palavras ásperas, ele assume ares como se<br />

estivesse irado com seu filho. Para o expressar com mais clareza, não<br />

importa que expressão use, um pai sempre ama seu filho, porém revela<br />

esse amor ensinando-o <strong>de</strong> maneira serena e amável; mas quando se vê<br />

aborrecido com os pecados do filho e o corrige com palavras ásperas,<br />

ou mesmo com a vara, então assume o papel <strong>de</strong> uma pessoa irada.<br />

Portanto, visto que o amor fica oculto quando a disciplina severa é<br />

aplicada, Paulo está plenamente certo ao relacionar amor com espírito<br />

<strong>de</strong> mansidão. Alguns intérpretes tomam vara aqui como significando<br />

excomunhão. No que me diz respeito, ainda que concor<strong>de</strong> com eles<br />

que a excomunhão seja parte daquela severida<strong>de</strong> com que Paulo ameaça<br />

os coríntios, ao mesmo tempo a estendo mais amplamente a todas<br />

as reprovações <strong>de</strong> natureza mais severa.<br />

Observa-se aqui qual o padrão <strong>de</strong> comportamento que um bom<br />

pastor <strong>de</strong>ve seguir, pois ele <strong>de</strong>ve estar mais disposto a ser <strong>de</strong>licado<br />

a fim <strong>de</strong> atrair pessoas para Cristo do que a sucumbi-las com <strong>de</strong>masiada<br />

energia. Ele <strong>de</strong>ve manter essa docilida<strong>de</strong> até on<strong>de</strong> for possível,<br />

e não lançar mão da severida<strong>de</strong> a menos que a isso seja forçado. Mas


Capítulo 4 • 179<br />

quando há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal expediente, ele não <strong>de</strong>ve poupar a vara<br />

[Pv 13.24], porque, embora se <strong>de</strong>va usar <strong>de</strong> mansidão com os que são<br />

dóceis e maleáveis, faz-se necessário a autorida<strong>de</strong> no trato com os<br />

obstinados e insolentes. E assim vemos que a Palavra <strong>de</strong> Deus não<br />

só contém doutrina e nada mais, mas também é composta <strong>de</strong> reprovações,<br />

que se acham esparsas por toda ela, para que os pastores se<br />

vejam também supridos com a vara. Pois às vezes suce<strong>de</strong> que, por<br />

causa da obstinação <strong>de</strong> certas pessoas, os pastores, que são naturalmente<br />

mansos, 61 se vêem constrangidos a assumir outra atitu<strong>de</strong>, por<br />

assim dizer, ao agir com rigor e inclusive <strong>de</strong> maneira implacável.<br />

61 “Qu’on pourra trouuer.” – “Que se possa achar um.”


Capítulo 5<br />

1. Geralmente se ouve que há fornicação<br />

entre vós, e fornicação tal que<br />

nem mesmo entre os gentios se<br />

ouve, ou, seja, que um <strong>de</strong>ntre vós<br />

possua a esposa <strong>de</strong> seu pai.<br />

2. E vós estais ensoberbecidos, e nem<br />

mesmo chorastes, para que quem<br />

cometeu tal ação fosse eliminado<br />

<strong>de</strong> entre vós.<br />

3. Pois eu, na verda<strong>de</strong>, estando ausente<br />

no corpo, porém presente no espírito,<br />

já julguei, como se estivesse presente,<br />

que aquele que praticou tal coisa,<br />

4. em nome <strong>de</strong> nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, reunidos vós e meu espírito,<br />

com o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> nosso Senhor Jesus<br />

Cristo,<br />

5. seja entregue a Satanás para a <strong>de</strong>struição<br />

da carne, a fim <strong>de</strong> que o espírito<br />

seja salvo no dia do Senhor Jesus.<br />

1. Omnino auditur in vobus scortatio,<br />

et talis scortatio, quæ ne inter<br />

Gentes qui<strong>de</strong>m nominatur, ut quis<br />

uxorem patris habeat.<br />

2. Et vos inflati estis, ac non magis<br />

luxistis, ut e medio vestri removeretur,<br />

qui facinus hoc admisit.<br />

3. Ego qui<strong>de</strong>m certe tanquam absens<br />

corpore, præsens autem spiritu,<br />

jam iudicavi tanquam præsens, qui<br />

hoc ita <strong>de</strong>signavit,<br />

4. In nomine Domini nostri Iesu Christi,<br />

congregatis vobis et spiritu meo,<br />

cum potentia Domini nostri Iesu<br />

Christi, eiusmodi inquam hominem.<br />

5. Tra<strong>de</strong>re Satanæ in exitium carnis,<br />

ut spiritus salvus fiat in die Domini<br />

Iesu.<br />

1. Geralmente se ouve que há fornicação. Visto que suas disputas<br />

eram oriundas do orgulho e excessiva autoconfiança, como já<br />

observamos, 1 Paulo se apressa <strong>de</strong> maneira bastante apropriada ao fazer<br />

menção <strong>de</strong> suas doenças [morbos], reconhecendo que os esteve,<br />

provavelmente, humilhando. Primeiramente, ele lhes traz à lembrança<br />

que é algo muitíssimo <strong>de</strong>sditoso que se permita que alguém <strong>de</strong>ntre<br />

1 Veja-se página XXX.


182 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

seu rebanho mantenha uma iníqua relação com sua madrasta. Não<br />

fica claro se ele a seduziu, tirando-a <strong>de</strong> seu pai, como uma prostituta,<br />

ou se a conservou sob o disfarce do casamento. Mas isso, indubitavelmente,<br />

não constitui muito problema, pois enquanto no primeiro<br />

caso teria havido uma extrema impieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>testável fornicação, em<br />

contrapartida, no último teria havido uma união incestuosa, estranha<br />

à respeitabilida<strong>de</strong> e ao <strong>de</strong>coro. Ora, para que não parecesse estar<br />

apresentando uma acusação contra eles com base numa suspeita incerta,<br />

ele <strong>de</strong>clara que está apresentando algo que constitui matéria <strong>de</strong><br />

comum conhecimento. Porque consi<strong>de</strong>ro o termo ὅλως (geralmente)<br />

como que realçando aquilo que não era um rumor duvidoso, mas um<br />

fato óbvio, notícias <strong>de</strong> um fato que era divulgado por toda parte, provocando<br />

muito escândalo.<br />

Visto Paulo dizer que essa era uma fornicação <strong>de</strong> tal gênero que<br />

nem mesmo entre os gentios se tinha notícia, há quem acredita que ele<br />

está se referindo ao incesto <strong>de</strong> Rúben [Gn 35.22], o qual também cometeu<br />

esse crime com sua nora. Acredita-se que Paulo não fez menção<br />

<strong>de</strong> Israel em razão <strong>de</strong> o mesmo ter o exemplo <strong>de</strong> algo tão <strong>de</strong>primente<br />

em sua história, como se as histórias dos gentios, <strong>de</strong> fato, não fizessem<br />

referência a tantos casos <strong>de</strong> incestos do mesmo gênero! Pelo quê,<br />

esta noção fictícia é completamente estranha ao que Paulo tinha em<br />

mente, pois a razão para ele mencionar mais os gentios do que os ju<strong>de</strong>us<br />

é que ele <strong>de</strong>sejava salientar a hedion<strong>de</strong>z do crime acima <strong>de</strong> todos<br />

os <strong>de</strong>mais. Diz ele: “Vós permitis este caso tão infame como se fosse<br />

algo natural, porém é algo que nem mesmo entre os gentios seria tolerado;<br />

sim, algo tão grave que eles [os gentios] têm sempre olhado<br />

com horror, aliás, da mesma maneira que se olha para um monstro.”<br />

Portanto, quando ele assevera que tal coisa não era ouvida nem entre<br />

os gentios, nem mesmo mencionada em sua literatura, porquanto suas<br />

tragédias certamente escreveram a respeito, mas que abominava os<br />

gentios, assim como uma asquerosida<strong>de</strong> e horrível monstruosida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>strói até mesmo a própria modéstia natural, porquanto não passa<br />

<strong>de</strong> uma luxúria bestial.


Capítulo 5 • 183<br />

Se alguém perguntar se é justo que o pecado <strong>de</strong> alguém se torne<br />

um motivo para repreensão <strong>de</strong> todos, respondo que os coríntios são<br />

acusados não porque um <strong>de</strong> seus membros pecara, mas porque, como<br />

vemos mais adiante, fechavam seus olhos para um ato tão abominável,<br />

o qual merecia o mais severo repúdio, ao contrário, se encorajavam.<br />

2. E vós estais ensoberbecidos. “Não vos envergonhais <strong>de</strong> vós<br />

mesmos por sentir-vos orgulhosos <strong>de</strong> algo que <strong>de</strong>veria, ao contrário,<br />

provocar-vos humilhação? Paulo asseverara anteriormente que<br />

mesmo as mais excelentes qualida<strong>de</strong>s possíveis não <strong>de</strong>vem provocar<br />

vanglória, visto que ninguém possui algo propriamente seu, senão que,<br />

na verda<strong>de</strong>, são todos possuidores das mesmas excelentes qualida<strong>de</strong>s<br />

[1Co 4.7] provindas da graça <strong>de</strong> Deus, e nada mais. Agora, porém, os<br />

ataca por um prisma diferente. “Visto que o infortúnio vos cobre”, diz<br />

ele, “que espaço <strong>de</strong>ixais vós, portanto, para o orgulho e vanglória?<br />

Porquanto sois espantosamente cegos em vangloriar-vos quando vos<br />

achais envolvidos por coisas tão <strong>de</strong>primentes, a <strong>de</strong>speito, por assim<br />

dizer, dos anjos e dos homens.”<br />

Ao dizer e nem mesmo chorastes, ele está argumentando à guisa<br />

<strong>de</strong> contraste; pois on<strong>de</strong> há pranto não po<strong>de</strong> haver mais glorificação.<br />

Po<strong>de</strong>-se perguntar por que <strong>de</strong>veriam chorar os pecados <strong>de</strong> outrem.<br />

Para isso apresento duas razões: Em primeiro lugar, uma vez que existe<br />

comunhão entre os membros da Igreja, o fato é que todos eles seriam<br />

afetados pela apostasia da parte <strong>de</strong> um <strong>de</strong>les. Em segundo lugar, quando<br />

um ato danoso é cometido em alguma igreja, a culpa não se confina<br />

à pessoa que o cometeu, mas todo o grupo em alguma extensão é também<br />

contaminado. Por exemplo, Deus humilha um pai pelo infortúnio<br />

<strong>de</strong> sua esposa ou filhos; e toda uma família, pela <strong>de</strong>sgraça <strong>de</strong> um <strong>de</strong><br />

seus membros. Cada Igreja <strong>de</strong>ve pon<strong>de</strong>rar sobre este fato, ou, seja,<br />

que ela é marcada com o estigma da <strong>de</strong>sgraça toda vez que algum<br />

infamante crime é cometido em seu seio. Mais que isso: lembremo-nos<br />

<strong>de</strong> que a ira <strong>de</strong> Deus se inflamou contra todo o Israel em virtu<strong>de</strong> do<br />

sacrilégio <strong>de</strong> apenas um homem – Acã [Jz 7.1]. Não é o caso <strong>de</strong> Deus<br />

ser tão cruel que dê vazão a sua fúria sobre o inocente por causa do


184 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

crime <strong>de</strong> algum outro. Mas, uma vez que já existe alguma evidência <strong>de</strong><br />

sua ira, toda vez que algo assim acontece entre um povo, e então passa<br />

a punir a todos pela ofensa <strong>de</strong> apenas um, faz-se evi<strong>de</strong>nte que o corpo<br />

todo se acha infectado e corrompido pela contaminação causada<br />

por algum erro. Po<strong>de</strong>-se facilmente inferir disso que é <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> cada<br />

Igreja prantear os pecados <strong>de</strong> seus membros individuais, como se as<br />

<strong>de</strong>sgraças domésticas fossem envolver o corpo todo. E não há dúvida<br />

<strong>de</strong> que uma piedosa e justa correção começa quando nos dispomos a<br />

inflamar-nos <strong>de</strong> zelo pela santida<strong>de</strong> através do <strong>de</strong>scontentamento com<br />

o erro, porque, do contrário, a severida<strong>de</strong> virá saturada <strong>de</strong> amargura. 2<br />

Para que ... fosse eliminado <strong>de</strong> vosso meio. Paulo agora esclarece<br />

ainda mais que gênero <strong>de</strong> acusação promove contra os coríntios,<br />

ou, seja, sua indiferença fechando seus olhos para uma abominação<br />

tão grave. Subten<strong>de</strong>-se também <strong>de</strong>ste fato que as igrejas são supridas<br />

com este po<strong>de</strong>r 3 para que possam corrigir ou remover por meio <strong>de</strong> estrita<br />

disciplina algum erro que porventura surja nelas; e para que não<br />

sejam escusados os que não são vigilantes com referência à necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> se afastar a imundícia. Por isso Paulo aqui con<strong>de</strong>na os coríntios.<br />

Por quê Porque não tiveram a mínima preocupação em punir um homem<br />

por seu crime. Não obstante, sua acusação contra os coríntios<br />

teria sido injusta se porventura não possuísse este po<strong>de</strong>r. Portanto, à<br />

luz <strong>de</strong>sta passagem estabelece-se o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> excomunhão. Por outro<br />

lado, visto que esses meios <strong>de</strong> punição foram dados às igrejas, Paulo<br />

mostra que aquelas [igrejas] que não os usam, quando as circunstâncias<br />

o requeiram, estão pecando. 4 Pois, do contrário, ele seria injusto<br />

para com os coríntios responsabilizando-os por esse erro.<br />

3. Pois eu, na verda<strong>de</strong>. Diante do fato <strong>de</strong> que os coríntios estavam<br />

<strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> cumprir seus <strong>de</strong>veres, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> haver con<strong>de</strong>nado sua negligência,<br />

Paulo agora mostra o que <strong>de</strong>ve ser feito. Para que essa <strong>de</strong>sonra<br />

fosse obliterada, o incestuoso teria que ser posto para fora da socieda<strong>de</strong><br />

2 “Et ne profitera pas.” – “E não fará o bem.”<br />

3 “Et authorité.” – “E autorida<strong>de</strong>.”<br />

4 “Offensent Dieu.” – “Ofen<strong>de</strong>m a Deus.”


Capítulo 5 • 185<br />

dos fiéis. Assim ele estabelece que a excomunhão é a cura para os distúrbios;<br />

mas enquanto estes fossem protelados, eles também prosseguiriam<br />

no erro. Ao dizer que já tomara essa <strong>de</strong>cisão enquanto “ausente no corpo”,<br />

essa foi a forma <strong>de</strong> apresentar sua queixa contra a mais séria <strong>de</strong><br />

todas as displicências dos coríntios, pois um contraste implícito subjaz<br />

a ela. É como se dissesse: “Vós, que vos achais em dificulda<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>víeis<br />

ter encontrado um remédio para essa antiga enfermida<strong>de</strong>, visto que ela<br />

está constantemente diante <strong>de</strong> vossos olhos; quanto a mim, que me acho<br />

distante, 5 não posso conformar-me com tal situação.”<br />

No presente caso, entretanto, alguém po<strong>de</strong>ria formular um veemente<br />

protesto, dizendo que, já que se acha distante, ele ousa formalizar um<br />

veemente juízo com base na influência <strong>de</strong> rumores. Paulo insiste, contudo,<br />

que ele se acha “presente em espírito”, cuja intenção é dizer que sua<br />

responsabilida<strong>de</strong> era nele tão nítida como se estivesse pessoalmente ao<br />

lado <strong>de</strong>les, e como se visse as coisas com seus próprios olhos. Agora<br />

vale a pena ver o que ele ensina sobre o método <strong>de</strong> excomunhão.<br />

4. Reunidos vós com meu espírito, ou, seja, “reunidos comigo”,<br />

porém em espírito, uma vez que lhes era fisicamente impossível que estivessem<br />

juntos. Mas ele assevera que estarão juntos exatamente como<br />

se ele estivesse pessoalmente presente. Deve-se observar que Paulo,<br />

ainda que apóstolo, não excomunga sozinho, satisfazendo sua própria<br />

vonta<strong>de</strong>, porém leva em consi<strong>de</strong>ração a Igreja em conselho para que a<br />

questão seja tratada em consenso geral. É verda<strong>de</strong> que ele vai em frente<br />

e mostra o caminho, mas, quando associa outros consigo, ele <strong>de</strong>ixa<br />

plenamente claro que o po<strong>de</strong>r não repousa sobre um único indivíduo.<br />

Todavia, visto que a multidão nunca faz nada com mo<strong>de</strong>ração nem com<br />

dignida<strong>de</strong> a menos que seja guiada por conselho, um Presbitério 6 foi<br />

<strong>de</strong>signado na Igreja primitiva, ou, seja, um colégio <strong>de</strong> anciãos [ou presbíteros]<br />

[collegium Seniorum], o qual, por consenso geral, era incumbido<br />

da investigação inicial <strong>de</strong> um caso. A partir <strong>de</strong>les, o caso, já prejulgado 7<br />

5 “Vous dissimulez.” – “Vossa conivência.”<br />

6 “Qu’on appeloit le Presbytère.” – “O que chamam <strong>de</strong> Presbitério.”<br />

7 “Puis apres la chose estoit renuoyee au peuple par eux, avec un advertissement touteffois<br />

<strong>de</strong> ce qui leur en sembloit.” – “O assunto era <strong>de</strong>pois trazido por eles diante do povo, con-


186 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

em seu curso, era encaminhado ao povo. Não importa qual o caso, está<br />

em completa <strong>de</strong>sarmonia com a instituição <strong>de</strong> Cristo e dos apóstolos,<br />

com a or<strong>de</strong>m da Igreja e, <strong>de</strong> fato, com a própria eqüida<strong>de</strong>, que o direito<br />

<strong>de</strong> excomunhão seja posto nas mãos <strong>de</strong> um único homem, sobre sua<br />

própria autorida<strong>de</strong>, não importa que pessoa seja ele. Portanto, notemos<br />

bem que, em se tratando <strong>de</strong> uma questão <strong>de</strong> excomunhão, este arranjo<br />

regular <strong>de</strong>ve ser mantido, ou, seja, que esta disciplina particular <strong>de</strong>ve<br />

ser exercida pelos anciãos consultores reunidos, com a anuência do<br />

povo. E notemos ainda que este é um remédio preventivo contra a tirania.<br />

Porque nada existe em mais frontal oposição à disciplina <strong>de</strong> Cristo<br />

[Christi disciplinae] do que a tirania; e a porta se abre <strong>de</strong> par em par para<br />

ela quando todo o po<strong>de</strong>r fica circunscrito a um único homem.<br />

No nome <strong>de</strong> nosso Senhor. Pois não é suficiente estarmos reunidos,<br />

se isso não é feito no nome <strong>de</strong> Cristo; pois até mesmo os ímpios<br />

se congregam para maquinar seus males, seus planos iníquos. Além<br />

do mais, para que a reunião seja celebrada no nome <strong>de</strong> Cristo, duas<br />

coisas são requeridas: (1) que tenha início com a invocação <strong>de</strong> seu<br />

nome; e (2) não se <strong>de</strong>ve realizar nada que não esteja em conformida<strong>de</strong><br />

com sua Palavra. Portanto, que as pessoas reunidas estejam comprometidas<br />

<strong>de</strong> só agir <strong>de</strong>pois que o Senhor seja invocado com toda<br />

sincerida<strong>de</strong>, rogando que sejam guiados por seu Espírito e que todos<br />

seus planos sejam, por sua graça, dirigidos rumo a resultados benéficos.<br />

Para que se faça uma boa abertura, <strong>de</strong>vem igualmente “consultar<br />

sua boca”, no dizer do profeta [Is 30.2]; em outros termos, após consultar<br />

seus oráculos, <strong>de</strong>vem entregar-se a si e a todos seus planos em<br />

completa obediência a sua vonta<strong>de</strong>. Se este <strong>de</strong>ve ser o procedimento,<br />

mesmo em relação a nossas ações menos importantes, quanto mais<br />

em se tratando <strong>de</strong> questões concernentes a Deus, do que se tratando<br />

<strong>de</strong> questões propriamente nossas! Por exemplo, a excomunhão é uma<br />

or<strong>de</strong>nança <strong>de</strong> Deus mesmo, e não do homem; portanto, sempre que<br />

a usarmos, em que ponto começaremos senão em Deus? 8 Em suma,<br />

tudo com uma notificação <strong>de</strong> suas opiniões a respeito.”<br />

8 “Le nom <strong>de</strong> Dieu.” – “O nome <strong>de</strong> Deus.”


Capítulo 5 • 187<br />

quando Paulo impele os coríntios a se reunirem no nome <strong>de</strong> Cristo,<br />

ele solicita não tanto que usem o nome <strong>de</strong> Cristo ou o confessem com<br />

seus lábios (porque também os ímpios po<strong>de</strong>m fazê-lo), mas que o busquem<br />

sinceramente, com todas as veras do coração. Além do mais, ao<br />

dizer isso, ele indica a serieda<strong>de</strong> e importância do que está dizendo.<br />

E acrescenta: com o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> nosso Senhor. Porque, se a promessa<br />

é genuína – “on<strong>de</strong> estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali<br />

estou no meio <strong>de</strong>les” [Mt 18.20] –, segue-se que tudo quanto se realizar<br />

em tal reunião provém <strong>de</strong> Cristo. Daí inferirmos quão importante é a<br />

excomunhão legítima aos olhos <strong>de</strong> Deus, visto que ela <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> Deus. Pois a seguinte palavra <strong>de</strong>ve também ser implementada:<br />

“... tudo o que ligar<strong>de</strong>s na terra terá sido ligado no céu” [Mt 18.18]. Entretanto,<br />

visto que esta <strong>de</strong>claração <strong>de</strong>ve encher <strong>de</strong> inusitado espanto<br />

os corações dos que <strong>de</strong>sprezam 9 a Deus, então os pastores fiéis, tanto<br />

quanto todas as igrejas em geral, são com isso admoestados com que<br />

espírito <strong>de</strong>voto, 10 <strong>de</strong>vem eles proce<strong>de</strong>r em questões tão sérias. Pois a<br />

verda<strong>de</strong> é que o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Cristo não está sujeito à vonta<strong>de</strong> e opiniões<br />

humanas, mas está associado a sua verda<strong>de</strong> eterna.<br />

5. Seja entregue a Satanás para a <strong>de</strong>struição da carne. Visto que<br />

os apóstolos estavam munidos com po<strong>de</strong>res, entre outros, <strong>de</strong> entregar<br />

os ímpios e os obstinados a Satanás, e <strong>de</strong> usá-lo como um chicote para<br />

corrigi-los, Crisóstomo e outros que o seguiam tomam estas palavras<br />

<strong>de</strong> Paulo como uma indicação <strong>de</strong>sse gênero <strong>de</strong> castigo. E isso está<br />

em harmonia com a exposição usualmente dada <strong>de</strong> outra passagem<br />

alusiva a Alexandre e Himeneu [1Tm 1.2]. Daí enten<strong>de</strong>rem eles que<br />

“entregar a Satanás” nada mais é senão a aplicação <strong>de</strong> algum castigo<br />

físico muito severo. Quanto a mim, particularmente, quando observo<br />

<strong>de</strong> mais perto o texto todo, e ao mesmo tempo comparo o que é expresso<br />

na próxima epístola, rejeito a interpretação supra como sendo<br />

forçada e não estando em harmonia com a intenção <strong>de</strong> Paulo, e a entendo<br />

simplesmente no sentido <strong>de</strong> excomunhão. Porque “entregar a<br />

9 “Contempteurs <strong>de</strong> Dieu.” – “Desprezadores <strong>de</strong> Deus.”<br />

10 “En quelle crainte et obeissance.” – “Com que temor e obediência.”


188 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Satanás” é uma forma a<strong>de</strong>quada <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver excomunhão; visto que,<br />

enquanto Cristo reina <strong>de</strong>ntro da Igreja, Satanás reina fora <strong>de</strong>la. Agostinho<br />

também faz um comentário semelhante em seu sexagésimo oitavo<br />

sermão sobre as palavras do apóstolo, on<strong>de</strong> esta passagem é ventilada.<br />

Portanto, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sermos recebidos à comunhão da Igreja e<br />

<strong>de</strong> permanecermos nela na condição <strong>de</strong> que estamos sob a proteção<br />

e responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo, afirmo que a pessoa que é afastada da<br />

Igreja está, <strong>de</strong> certa forma, entregue ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Satanás, porquanto<br />

se acha alienada e excluída do reino <strong>de</strong> Cristo.<br />

A frase que segue – para a <strong>de</strong>struição da carne – é adicionada à guisa<br />

<strong>de</strong> mitigação. Porquanto Paulo não preten<strong>de</strong> dizer que a pessoa, ao<br />

ser corrigida, está sendo entregue a Satanás para completa <strong>de</strong>struição,<br />

ou que se fez escrava <strong>de</strong>le para sempre, mas que sua sentença é temporária<br />

e, ainda mais, que será para seu bem. Visto que, no que concerne<br />

ao espírito, tanto sua salvação quanto sua reprovação são eternas, ele<br />

toma a con<strong>de</strong>nação da carne como sendo temporária. Ele po<strong>de</strong>ria dizer:<br />

“Nós o con<strong>de</strong>naremos por um período <strong>de</strong> tempo, neste mundo, a fim <strong>de</strong><br />

que o Senhor o conserve em seu reino. “Assim é removida a objeção,<br />

pela qual alguns tentam refutar esta explicação. Porque, diante do fato<br />

<strong>de</strong> a sentença <strong>de</strong> excomunhão ser dirigida mais contra a alma do que<br />

contra o corpo, então perguntam como é possível ser ela a<strong>de</strong>quadamente<br />

<strong>de</strong>nominada “<strong>de</strong>struição da carne”. Replico que, como já sugeri, a<br />

<strong>de</strong>struição da carne é uma questão completamente distinta da salvação<br />

do espírito sobre esta única base, a saber, a primeira é temporal, enquanto<br />

que a última é eterna. É neste sentido que o apóstolo fala <strong>de</strong> “os dias<br />

<strong>de</strong> sua carne”, com referência a Cristo, em Hebreus 5.7, significando o<br />

período <strong>de</strong> sua vida mortal. Mas a razão por que a Igreja pune severamente<br />

transgressores e não os <strong>de</strong>ixa impunes neste mundo, é para que<br />

Deus os poupe. 11 Se alguém <strong>de</strong>seja apren<strong>de</strong>r mais sobre a disciplina da<br />

excomunhão, suas causas, necessida<strong>de</strong>, propósitos e mo<strong>de</strong>ração quanto<br />

a seu uso, po<strong>de</strong>rá encontrá-la em minhas Institutas (4.12).<br />

11 “Mais c’est afin que Dieu leur espargne.” – “Mas é a fim <strong>de</strong> Deus os poupar.”


Capítulo 5 • 189<br />

6. Não é boa vossa vanglória. Não sabeis<br />

que um pouco <strong>de</strong> fermento faz<br />

levedar toda a massa?<br />

7. Expurgai-vos, pois, do velho fermento,<br />

para que sejais uma nova massa,<br />

assim como estais sem fermento.<br />

Porque Cristo, nossa páscoa, também<br />

foi crucificado.<br />

8. Por isso observemos a festa, não<br />

com o velho fermento, nem com o<br />

fermento da malícia e da malda<strong>de</strong>,<br />

mas com o pão asmo da sincerida<strong>de</strong><br />

e da verda<strong>de</strong>.<br />

6. Non est bona gloriatio vestra: an<br />

nescitis, quod exiguum fermentum<br />

totam massam fermenta?<br />

7. Expurgate ergo vetus fermentum, ut<br />

sitis nov conspersio, sicut estis azymi:<br />

nam Pascha nostrum pro nobis<br />

immolatum est, Christus. 12<br />

8. Proin<strong>de</strong> epulemur non in fermento<br />

veteri, neque in fermento malitiæ et<br />

pravitatis, sed in azymis sinceritatis<br />

veritatis. 13<br />

6. Não é boa vossa vanglória. Paulo con<strong>de</strong>na sua ostentação, não<br />

só porque se consi<strong>de</strong>ravam num nível mais elevado do que os homens<br />

<strong>de</strong>signados para tal, mas porque se <strong>de</strong>leitavam em seus erros. Anteriormente<br />

ele <strong>de</strong>spiu os homens <strong>de</strong> toda glória; pois mostrou que, já<br />

que não possuem nada propriamente seu, não importa quão excelentes<br />

venham a ser, o fato é que <strong>de</strong>vem tudo a Deus somente. Por certo<br />

que o que ele está discutindo aqui não é se Deus é ou não esbulhado<br />

<strong>de</strong> seus direitos quando os mortais reivindicam para si o crédito <strong>de</strong><br />

suas próprias virtu<strong>de</strong>s, mas que os coríntios estavam sendo extremamente<br />

insensatos ao tomar conhecimento <strong>de</strong> sua bela plumagem sem<br />

a menor razão para isso. Porque se achavam tão imbuídos <strong>de</strong> orgulho,<br />

que acreditavam que viviam nas condições <strong>de</strong> uma ida<strong>de</strong> áurea, quando,<br />

na realida<strong>de</strong>, estavam cercados por muitas coisas que eram ímpias<br />

e <strong>de</strong>sditosas.<br />

Não sabeis? Para que não chegassem a pensar que esta é uma<br />

questão <strong>de</strong> pouca ou <strong>de</strong> nenhuma importância para instigá-los a um<br />

mal tão gran<strong>de</strong>, Paulo mostra quão nociva é uma atitu<strong>de</strong> displicente e<br />

<strong>de</strong>scuidosa em casos como este. Ele, porém, faz uso <strong>de</strong> um dito proverbial,<br />

no caso <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> toda ser infectada pela enfermida<strong>de</strong><br />

12 “Nostre Pasque, assavoir Christ.” – “Nossa páscoa, isto é, Cristo.”<br />

13 “Avec pains sans leuain, c’est a dire, <strong>de</strong> syncerité et <strong>de</strong> verité.” – “Com pão não levedado,<br />

isto é, <strong>de</strong> sincerida<strong>de</strong> e verda<strong>de</strong>.”


190 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

<strong>de</strong> uma só pessoa. Pois, neste contexto, 14 este provérbio tem o mesmo<br />

significado <strong>de</strong>stas palavras <strong>de</strong> Juvenal (Sat.II.79ss): “Todo um rebanho<br />

nos campos é abatido por causa da sarna <strong>de</strong> um porco; e uma uva é<br />

danificada por causa <strong>de</strong> outra.” Eu disse “neste contexto” porque em<br />

outro lugar Paulo faz <strong>de</strong>le um sentido bem distinto (bom, evi<strong>de</strong>ntemente),<br />

como veremos [Gl 5.9].<br />

7. Expurgai-vos. Tendo adotado a metáfora do fermento, Paulo continua<br />

usando-a, embora faça uma transição <strong>de</strong> um caso particular para<br />

um ensino mais geral. Pois ele não mais está se referindo ao caso <strong>de</strong> incesto,<br />

mas está fazendo um apelo aos coríntios para que busquem uma<br />

pureza <strong>de</strong> vida mais plena, visto que não po<strong>de</strong>m permanecer em Cristo<br />

a não ser que se purifiquem continuamente. É plenamente normal para<br />

ele proce<strong>de</strong>r assim, ou, seja: quando afirma algo acerca <strong>de</strong> uma questão<br />

particular, então aproveita a oportunida<strong>de</strong> para transitar disso para<br />

palavras <strong>de</strong> encorajamento geral. Ele mencionara o fermento em outra<br />

conexão, como já vimos, mas já que esta mesma metáfora se ajusta ao<br />

ensino geral que está para apresentar, então repete o uso <strong>de</strong>la.<br />

Nossa Páscoa [pascha] foi crucificada. Antes <strong>de</strong> tratar do conteúdo,<br />

falarei um pouco sobre as palavras propriamente ditas. O “velho<br />

fermento” se apresenta, nesta <strong>de</strong>scrição, sob o mesmo princípio do<br />

“velho homem”; porque a corrupção da natureza é nossa primeira<br />

condição antes <strong>de</strong> nascermos <strong>de</strong> novo em Cristo. Portanto, o que trazemos<br />

conosco do ventre materno diz-se ser “velho”, e o mesmo <strong>de</strong>ve<br />

morrer quando somos renovados pela graça do Espírito. 15<br />

O verbo crucificar (ἐτύθη), visto encontrar-se entre o nome <strong>de</strong><br />

Cristo e a palavra para sacrifício (πάσχα), po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado como<br />

14 “Ha en ce passage un mesme sens comme ce qu’on dit communeement, Qu’il ne faut<br />

qu’vne brebis rongneuse pour gaster tou le groupeau.” – “Há nesta passagem o mesmo<br />

significado quando comumente se diz: “Só basta uma ovelha enferma para infectar todo<br />

o rebanho.”<br />

15 Nosso autor fornece uma <strong>de</strong>finição semelhante da expressão o velho homem ao comentar<br />

Romanos 6.6. “Totam autem naturam significat, quam afferimus ex utero, quæ a<strong>de</strong>o regni<br />

Dei capax non est, ut interire eatenus oporteat, quatenus in veram vitam instauramur.”<br />

– “Denota a totalida<strong>de</strong> daquela natureza que trazemos conosco do ventre, e é também<br />

nesse sentido que o reino <strong>de</strong> Deus quando somos renovados para uma vida genuína.”


Capítulo 5 • 191<br />

uma referência a outro. Tenho-o consi<strong>de</strong>rado como uma referência a<br />

sacrifício; entretanto, isso não tem muita importância, visto que o significado<br />

não é afetado.<br />

O verbo ἑορτάζωμεν, que Erasmo traduziu por “celebremos a festa”<br />

[Festum celebremus], também significa tomar parte na festa solene<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o sacrifício ser oferecido. Este significado parece a<strong>de</strong>quar-se<br />

melhor ao presente contexto. Portanto, tenho seguido mais a Vulgata<br />

[epulemur] do que Erasmo, visto que esta tradução está muito mais<br />

em consonância com o mistério com o qual Paulo está tratando.<br />

Voltemos ao conteúdo. Visto que Paulo <strong>de</strong>seja que os coríntios<br />

sejam encorajados para a prática da santida<strong>de</strong>, ele propõe que o que<br />

fora há muito tempo representado na páscoa, <strong>de</strong>ve agora tornar-se uma<br />

realida<strong>de</strong> em nós; explica qual é a relação existente entre a figura e a<br />

realida<strong>de</strong>. Em primeiro lugar, visto que a páscoa tinha duas partes, o<br />

sacrifício e a festa sacra, ele menciona ambas. Pois ainda que haja quem<br />

pense que o cor<strong>de</strong>iro pascoal não era um sacrifício, não obstante a razão<br />

consegue provar que ele era um sacrifício apropriado, porque neste rito<br />

o povo era reconciliado com Deus por meio da aspersão <strong>de</strong> sangue. No<br />

entanto, não existe reconciliação sem um sacrifício. O apóstolo, imediata<br />

e claramente, confirma isso; pois ele usa o verbo θύεσθαι (sacrificar), o<br />

qual é o termo apropriado para sacrifícios, do contrário estaria fora <strong>de</strong><br />

propósito neste contexto. O cor<strong>de</strong>iro, pois, era sacrificado a cada ano, e<br />

a festa costumava vir imediatamente <strong>de</strong>pois, e durava por sete dias sucessivos.<br />

“Cristo”, diz Paulo, “é nossa Páscoa”. 16 Ele foi sacrificado uma<br />

vez por todas, e, nesta condição, que o efeito <strong>de</strong> seu único sacrifício<br />

dure para sempre. Nesse ínterim, o que <strong>de</strong>vemos fazer é comer; 17 e que<br />

não seja apenas uma vez ao ano, mas perenemente.<br />

16 Charnock faz as seguintes observações sobre a forma <strong>de</strong> expressão aqui empregada:<br />

“Cristo a Páscoa, isto é, o cor<strong>de</strong>iro pascal. O cor<strong>de</strong>iro era chamado a páscoa. O sinal pela<br />

coisa significada por ele [2Cr 35.11]. E matavam a páscoa, isto é, o cor<strong>de</strong>iro; pois a páscoa<br />

era propriamente a passagem do anjo sobre Israel, quando ele foi enviado como executor<br />

da ira <strong>de</strong> Deus sobre os egípcios. Assim Mateus 26.17. “On<strong>de</strong> te prepararemos a páscoa<br />

para que a comas? isto é, o cor<strong>de</strong>iro pascal. Nossa páscoa, isto é, nosso cor<strong>de</strong>iro pascal.<br />

Ele é chamado o cor<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Deus [Jo 1.29].<br />

17 “Il ne reste plus sinon que nous en soyons nourris.” – “Nada resta senão que somos nutridos<br />

por ele.”


192 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

8. Na celebração <strong>de</strong>sta festa sacra <strong>de</strong>vemos, naturalmente, abster-<br />

-nos <strong>de</strong> fermento, como Deus or<strong>de</strong>nara aos pais que se abstivessem;<br />

mas, <strong>de</strong> que gênero <strong>de</strong> fermento? Exatamente como o rito da páscoa<br />

representava a genuína páscoa para eles, assim seus elementos [accessiones]<br />

também prefiguravam aquela realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo, introduzamos<br />

sincerida<strong>de</strong> e verda<strong>de</strong> na festa, permitindo-lhes que sejam nosso pão<br />

sem fermento. Que haja um fim para toda a malícia e impieda<strong>de</strong>, já que<br />

é contra a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus introduzir fermento na páscoa. Em suma,<br />

ele assevera que só seremos membros <strong>de</strong> Cristo quando abrirmos<br />

mão da malícia e do engano. Entretanto, esta passagem requer nossa<br />

prestimosa atenção, pois ela evi<strong>de</strong>ncia que a antiga páscoa não era só<br />

μνημοσυνον, 18 isto é, o memorial <strong>de</strong> uma bênção no passado, mas também<br />

um sacramento do Cristo que estava para vir, o qual é o vínculo <strong>de</strong><br />

nossa passagem da morte para a vida. De outro modo não ficará confirmado<br />

que em Cristo está a substância das sombras da lei [Cl 2.17]. Esta<br />

passagem será também eficaz para provar que o sacrifício da hóstia papal<br />

é falso. Pois Paulo não ensina que Cristo é oferecido todo dia, mas<br />

que o sacrifício, tendo sido efetuado uma vez por todas, o que nos resta<br />

fazer é celebrar a festa espiritual ao longo <strong>de</strong> toda nossa vida.<br />

9. Escrevi-vos em uma epístola a não fazer<strong>de</strong>s<br />

companhia aos fornicadores;<br />

10. não exatamente com os fornicadores<br />

<strong>de</strong>ste mundo, ou com os<br />

avarentos e extorsores, ou com os<br />

idólatras; porque então vos seria<br />

necessário sair do mundo.<br />

11. Mas agora vos escrevi para não<br />

manter<strong>de</strong>s em vossa companhia a<br />

alguém que se chama irmão for fornicador,<br />

ou avarento, ou idólatra, ou<br />

maldizente, ou beberrão ou extorsor;<br />

com o tal nem mesmo comais.<br />

9. Scripsi vobis in Epistola, Ne commisceamini<br />

scortatoribus:<br />

10. Neque in universum scortatoribus<br />

mundi hujus, vel avaris, vel rapacibus,<br />

vel idololatris: quandoqui<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong>buissetis ex hoc mundo exire.<br />

11. Nunc autem scripsi vobis, Ne<br />

commisceamini: si is qui frater<br />

nominatur, vel scortator sit, vel<br />

avarus, vel idoloatra, vel maledicus,<br />

vel ebriosus, vel rapax: eum<br />

tali ne cibum qui<strong>de</strong>m sumatis.<br />

18 Nosso autor, mais provavelmente, alu<strong>de</strong> a xodo 12.14: “E neste dia seremos para ti um<br />

memorial” etc. O termo usado na Septuaginta é μνεμοσυνον, correspon<strong>de</strong>ndo ao termo<br />

hebraico wrkz.


Capítulo 5 • 193<br />

12. Porque, que tenho eu em julgar os<br />

<strong>de</strong> fora? Não julgais vós os que estão<br />

<strong>de</strong>ntro?<br />

13. Mas Deus julga os que estão <strong>de</strong><br />

fora. Expulsai <strong>de</strong> entre vós o ímpio.<br />

12. Quid enim mea refert extraneos<br />

iudicare? an non eos qui intus sunt<br />

indicatis?<br />

13. Extraneos vero Deus iudicat: eiicite<br />

scelestum ex vobis ipsis.<br />

9. Escrevi-vos em uma epístola. A epístola a que se refere não<br />

existe hoje. Não há dúvida <strong>de</strong> que muitas outras se acham perdidas.<br />

Não obstante, baste-nos que po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>scansar no fato <strong>de</strong> que o<br />

Senhor fez com que fossem preservadas as que satisfariam nossas necessida<strong>de</strong>s.<br />

No entanto, em razão <strong>de</strong> sua obscurida<strong>de</strong>, esta passagem<br />

tem sido torcida com o fim <strong>de</strong> sugerir diferentes significados. Em meu<br />

modo <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r, não <strong>de</strong>vemos gastar tempo em refutar tais interpretações,<br />

mas simplesmente <strong>de</strong>claro qual me parece ser o genuíno<br />

significado. Paulo traz à memória dos coríntios que já os avisara: que<br />

se abstivessem <strong>de</strong> manter qualquer tipo <strong>de</strong> relação com os ímpios.<br />

Porque o significado da expressão traduzida por “vos abster<strong>de</strong>s da<br />

companhia <strong>de</strong>” é viver em termos amigáveis com alguém e viver em<br />

envolvimento íntimo com ele. Além disso, seu lembrete se presta a<br />

<strong>de</strong>smascarar sua lentidão, porque, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> sua advertência, não<br />

haviam feito absolutamente nada.<br />

Ele acrescenta uma exceção, para que pu<strong>de</strong>ssem enten<strong>de</strong>r mais<br />

claramente que o que ele diz tem a ver, estritamente falando, com os<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da Igreja, porquanto não havia necessida<strong>de</strong> que fossem advertidos<br />

19 quanto a evitar as pessoas <strong>de</strong> fora ou do mundo. Em suma,<br />

pois, ele proíbe os coríntios <strong>de</strong> manterem relação social com aqueles<br />

que, professando ser crentes, não obstante estavam vivendo <strong>de</strong> uma<br />

forma <strong>de</strong>gradante e ofensiva a Deus. Ele po<strong>de</strong>ria ter dito: “Todos quantos<br />

<strong>de</strong>sejam ser consi<strong>de</strong>rados irmãos, ou vivam vidas santas e dignas,<br />

ou sejam excomungados da socieda<strong>de</strong> dos piedosos; e que todos os<br />

justos evitem manter negócios e relações sociais com eles. Seria su-<br />

19 “Ce seroit vne chose superflue <strong>de</strong> les admonester” &. – “seria uma coisa supérflua admoestá-los”<br />

etc.


194 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

pérfluo mencionar aqueles que não fazem questão <strong>de</strong> dissimular suas<br />

vidas ímpias, pois estes po<strong>de</strong>riam evitar espontaneamente, sem necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> qualquer aviso meu.” Mas esta exceção só faz a acusação <strong>de</strong><br />

negligência ser ainda mais séria, porque no seio da própria Igreja, um<br />

homem infame está sendo estimulado. Pois é mais vergonhoso negligenciar<br />

um membro da própria família do que alguém <strong>de</strong> fora.<br />

10. Porque então vos seria necessário sair do mundo. É especialmente<br />

sobre esta frase que os intérpretes diferem. Pois alguns<br />

dizem: “Seria preferível que vos emigrásseis da Grécia.” Ambrósio,<br />

porém, prefere: “É preferível que morrais.” Erasmo o põe no optativo,<br />

como se Paulo dissesse: “Realmente gostaria que vos fosse permitido<br />

<strong>de</strong>ixar o mundo <strong>de</strong> uma vez por todas; 20 mas, visto que não po<strong>de</strong>is<br />

fazer isso, pelo menos po<strong>de</strong>is romper as relações com aqueles que<br />

falsamente se dizem cristãos, cujas vidas, ao mesmo tempo, são um<br />

péssimo exemplo.” A explicação <strong>de</strong> Crisóstomo se aproxima mais da<br />

verda<strong>de</strong>. Segundo ele, o significado seria o seguinte: “Quando vos digo<br />

que eviteis os fornicadores, não pretendo que todos eles sejam <strong>de</strong>ssa<br />

categoria, do contrário precisaríeis procurar outro mundo. Porquanto<br />

seria preferível vivermos entre os espinheiros enquanto somos hóspe<strong>de</strong>s<br />

na terra. A única condição que faço é que não vos mistureis com<br />

os fornicadores que vos obrigam a consi<strong>de</strong>rá-los como irmãos; neste<br />

caso, ao tolerar<strong>de</strong>s sua impieda<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>ríeis dar a impressão <strong>de</strong> os<br />

estar<strong>de</strong>s aprovando.” Daí a palavra mundo, aqui, <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada<br />

como significando esta presente vida, como em João 17.15: “Não peço<br />

que os tires do mundo, e, sim, que os guar<strong>de</strong>s do mal.”<br />

A seguinte objeção po<strong>de</strong> apresentar-se contra esta exposição: “Visto<br />

que Paulo vem falando até aqui do tempo em que os cristãos se achavam<br />

ainda misturados e espalhados por entre os ímpios, o que se <strong>de</strong>veria fazer<br />

agora, quando todos se acham alistados sob a ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Cristo?<br />

Pois precisaria haver uma retirada do mundo também em nossos dias,<br />

caso queiramos evitar a companhia dos ímpios; e não existe ninguém do<br />

20 A tradução <strong>de</strong> Erasmo é como segue: “Alioqui utinam vi<strong>de</strong>licet e mundo exissetis.” – “Do<br />

contrário, <strong>de</strong> fato seria preferível que partísseis <strong>de</strong>ste mundo.”


Capítulo 5 • 195<br />

lado <strong>de</strong> fora quando todos reconhecem o nome <strong>de</strong> Cristo e lhe são consagrados<br />

no batismo. “Caso alguém se sinta inclinado a seguir Crisóstomo,<br />

então não lhe será difícil respon<strong>de</strong>r, com este resultado: que Paulo aqui<br />

admitiu um fato verídico: on<strong>de</strong> existe o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> excomunhão, ele é um<br />

mero paliativo para separar o mal do bem, se as igrejas cumprirem seu<br />

<strong>de</strong>ver. Os cristãos <strong>de</strong> Corinto não exerciam jurisdição sobre os <strong>de</strong> fora, e<br />

ele [Paulo] não tinha nenhum po<strong>de</strong>r para controlar suas vidas dissolutas.<br />

Portanto, era necessário que <strong>de</strong>ixassem o mundo, caso preten<strong>de</strong>ssem<br />

evitar os ímpios, cujos vícios não podiam curar.<br />

Eu mesmo não acho fácil adotar interpretações que não há como<br />

concordar com as palavras, se estas não forem torcidas a fim <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quar-<br />

-se àquelas, e por isso sou favorável àquela que é um pouco diferente<br />

<strong>de</strong> todas as <strong>de</strong>mais. Tomo sair no sentido <strong>de</strong> “ser separado”; e mundo,<br />

no sentido <strong>de</strong> “as coisas impuras do mundo”. É como se Paulo dissesse:<br />

“Que necessida<strong>de</strong> ten<strong>de</strong>s <strong>de</strong> advertência quanto aos filhos <strong>de</strong>ste mundo<br />

[Lc 16.8], visto que uma vez por todas renunciastes o mundo e <strong>de</strong>veis<br />

manter-vos longe <strong>de</strong> sua socieda<strong>de</strong>? porquanto ‘o mundo inteiro está<br />

sob o po<strong>de</strong>r do maligno’ 21 [1Jo 5.19].” Se alguém não se sente satisfeito<br />

com esta explicação, há outra também provável: “Não escrevo com o<br />

fim <strong>de</strong> fazer-vos um apelo geral, para que eviteis a companhia dos fornicadores<br />

<strong>de</strong>ste mundo; não obstante, provavelmente estais fazendo isso<br />

<strong>de</strong> vossa própria iniciativa, sem qualquer advertência <strong>de</strong> minha parte.”<br />

Entretanto, eu mesmo prefiro a primeira alternativa. Certamente que<br />

não sou o primeiro a pensar assim, por isso apresento o que outros propuseram<br />

antes; outra coisa não tenho feito senão buscar mais harmonia<br />

com o discurso <strong>de</strong> Paulo, se eu não estiver equivocado. Há, pois, 22 uma<br />

sorte <strong>de</strong> omissão intencional aqui, quando ele diz que não está se referindo<br />

aos <strong>de</strong> fora, uma vez que os coríntios já tinham se separado <strong>de</strong>les,<br />

para que soubessem que mesmo em casa 23 requerer-se-ia <strong>de</strong>les que conservassem<br />

esta disciplina <strong>de</strong> evitar-se os ímpios.<br />

21 “Car tout le mon<strong>de</strong> est mis a mal.” – “Pois o mundo inteiro é habituado ao mal.”<br />

22 “En ceste sentence.” – “Nesta sentença.”<br />

23 “C’est à dire, entr’eux.” – “Equivale dizer, entre eles.”


196 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

11. Alguém que se chama irmão. No grego temos um particípio 24<br />

sem um verbo. 25 Aqueles que consi<strong>de</strong>ram isso como se referindo ao<br />

que segue introduzem um significado que é forçado e diferente do que<br />

Paulo tinha em mente. Admito, naturalmente, que o ponto <strong>de</strong> vista correto<br />

e digno <strong>de</strong> atenção é o seguinte: ninguém po<strong>de</strong> ser punido pelo<br />

veredito da Igreja, a menos que seu pecado seja conhecido. Estas palavras<br />

<strong>de</strong> Paulo, porém, não po<strong>de</strong>m ser tomadas para produzirem esse<br />

significado. Portanto, sua intenção era dizer o seguinte: “Se alguém, a<br />

quem consi<strong>de</strong>rais irmão, vive uma vida vergonhosa e indigna <strong>de</strong> um<br />

cristão, então nada ten<strong>de</strong>s a ver com ele.” Em suma, a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> irmão<br />

aqui se refere a uma falsa profissão <strong>de</strong> fé, a qual não correspon<strong>de</strong><br />

à realida<strong>de</strong>. Além do mais, Paulo aqui não apresenta uma lista completa<br />

<strong>de</strong> pecados, porém menciona cinco ou seis à guisa <strong>de</strong> exemplo.<br />

Finalmente, ele sintetiza o lembrete nas palavras “o tal”; e os pecados<br />

que ele menciona são aqueles dos quais as pessoas têm consciência.<br />

Porque as impieda<strong>de</strong>s da vida íntima, e tudo o que é secreto, não são<br />

expostos ao tribunal da Igreja.<br />

Entretanto, é incerto o que Paulo tinha em mente para idólatra.<br />

Pois, como po<strong>de</strong>ria alguém que vive sob o mandamento <strong>de</strong> Cristo se<br />

<strong>de</strong>dicar aos ídolos? Há quem pense que entre os coríntios daquele<br />

tempo havia quem abraçava Cristo parcialmente, e que, no entanto,<br />

ao mesmo tempo não se <strong>de</strong>sembaraçava das superstições. Assim foi<br />

com os primeiros israelitas, e mais tar<strong>de</strong> com os samaritanos <strong>de</strong> outrora;<br />

não importa que gênero <strong>de</strong> adoração a Deus praticavam, o certo<br />

é que costumavam contaminá-la com vis superstições. Todavia, minha<br />

opinião é que se refere aos que, enquanto <strong>de</strong>sprezavam os ídolos, não<br />

obstante estavam fazendo uma encenação <strong>de</strong> culto a eles com o fim<br />

24 “Au texte Grec il y a <strong>de</strong> mot à mot, Si aucun frere nommé” &. – “No texto grego é literalmente:<br />

Se alguém, chamado irmão” etc.<br />

25 É assim segundo a redação comum, que é como segue: – ἐάν τις, ἀδελφὸς ὀνομαζόμενος,<br />

ἤ πόρνος, ἤ πλεονέκτης, κ.τ.λ. – “Se alguém, chamado irmão – ou fornicador, ou cobiçoso”<br />

etc. Mas, como afirma Bloomfield, “sete manuscritos, e muitas versões, e os pais, a Ed.<br />

Princ. e as <strong>de</strong> Beza, Schmid e Beng., têm (antes <strong>de</strong> πόρνος) que é aprovado por Wets.<br />

e Matth., e editado por Griesb., Knapp., Vat. e Tittm.” E, na opinião <strong>de</strong> Bloomfield, “corretamente”.


Capítulo 5 • 197<br />

<strong>de</strong> agradar os ímpios. Paulo está afirmando que a fraternida<strong>de</strong> cristã<br />

não <strong>de</strong>ve incluir pessoas <strong>de</strong>sse gênero; e isso é justificável ante o fato<br />

<strong>de</strong> que estavam cooperando para expor a glória <strong>de</strong> Deus à ignomínia.<br />

É preciso, porém, que atentemos bem para as circunstâncias do<br />

caso, porque, enquanto tinham uma igreja ali, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>riam prestar<br />

a Deus um culto puro, e legitimamente <strong>de</strong>sfrutar dos benefícios<br />

dos sacramentos, todavia se chegavam à igreja não com a intenção<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>svencilhar-se da comunhão impura com os incrédulos. Faço esta<br />

observação a fim <strong>de</strong> ninguém pense que <strong>de</strong>vamos empregar medidas<br />

igualmente severas contra os que, enquanto nestes dias se <strong>de</strong>ixam<br />

dispersar pela tirania do papa, se contaminam com muitos ritos <strong>de</strong>teriorados.<br />

Estes, <strong>de</strong>veras, repito, geralmente pecam neste aspecto<br />

e <strong>de</strong>vem, reconheço, ser tratados com severida<strong>de</strong> e diligentemente<br />

instados 26 para que aprendam, por fim, a consagrar-se totalmente a<br />

Cristo; porém não ouso avançar mais, consi<strong>de</strong>rando-os dignos <strong>de</strong> excomunhão,<br />

porquanto seu caso é diferente. 27<br />

Com o tal nem mesmo comais. Precisamos saber, em primeiro<br />

lugar, se Paulo aqui está dirigindo-se a toda a Igreja ou a indivíduos.<br />

A isso <strong>de</strong>vo replicar que certamente a referência é a indivíduos, mas,<br />

ao mesmo tempo, está conectado com sua disciplina em comum.<br />

Porque o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> excomunhão não é concedido a cada membro,<br />

mas a todo o corpo. Quando, pois, a Igreja exerce excomunhão sobre<br />

alguém, nenhum crente <strong>de</strong>ve manter relações <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> com<br />

ele. Além disso, a autorida<strong>de</strong> da Igreja <strong>de</strong> nada valeria se aos indivíduos<br />

fosse permitido convidar para suas próprias mesas àqueles<br />

que foram excluídos da mesa do Senhor. Por participação <strong>de</strong> alimento<br />

aqui está implícito ou a conservação da vivência ou a associação<br />

familiar nas refeições. Pois se entro numa hospedaria e vejo alguém<br />

que sofreu excomunhão sentado ali, não há nada que me impeça <strong>de</strong><br />

26 “Il les faut redarguer auec seuerite, et les soliciter continuellement par admonitions.” –<br />

“Devem ser reprovados com severida<strong>de</strong> e brandidos com constantes admoestações.”<br />

27 “Car leur condition n’est pas telle comme estoit celle <strong>de</strong>s Corinthiens.” – “Pois sua condição<br />

não é como a dos coríntios.”


198 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

sentar-me com ele, porque não tenho po<strong>de</strong>r para expulsá-lo. Paulo,<br />

porém, está afirmando que, até on<strong>de</strong> estiver em nosso po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>vemos<br />

evitar relações com aqueles a quem a Igreja eliminou <strong>de</strong> sua<br />

comunhão.<br />

Não satisfeito com esta severida<strong>de</strong>, o anticristo romano tem-<br />

-se continuamente prorrompido com interditos, proibindo que<br />

alguém que se acha em regime <strong>de</strong> excomunhão seja socorrido com<br />

alimento, com abastecimento <strong>de</strong> bebidas ou outras necessida<strong>de</strong>s<br />

da vida. 28 Ora, isso não equivale a autorida<strong>de</strong> na disciplina, mas<br />

arbitrarieda<strong>de</strong> e cruel selvageria, o que está em violento conflito<br />

com a intenção <strong>de</strong> Paulo. Visto que infligimos este sinal <strong>de</strong> repúdio<br />

público sobre alguém com o fim <strong>de</strong> o mesmo cobrir-se <strong>de</strong> vergonha<br />

e retome o curso <strong>de</strong> seu bom senso, arrepen<strong>de</strong>ndo-se, Paulo preten<strong>de</strong><br />

que tal pessoa seja consi<strong>de</strong>rada, “não como inimigo, mas como<br />

irmão” [2Ts 3.15]. E, em nome <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong>sforram-se do inocente, 29<br />

<strong>de</strong>sabafando sua ira com extrema cruelda<strong>de</strong>! Finalmente, mesmo<br />

que às vezes haja alguém que mereça esta punição, digo que este<br />

gênero <strong>de</strong> interdição 30 é completamente impróprio para o tribunal<br />

da Igreja.<br />

12. Porque, que tenho eu em julgar os <strong>de</strong> fora? Não há nada<br />

que nos impeça <strong>de</strong> julgá-los também, e, mais ainda, mesmo os <strong>de</strong>mônios<br />

não se isentam <strong>de</strong> julgamento por meio da Palavra da qual<br />

estamos incumbidos. Neste contexto, porém, Paulo está falando da<br />

jurisdição específica da Igreja. É como se dissesse: “O Senhor nos<br />

equipou com este po<strong>de</strong>r para empregá-lo contra aqueles que per-<br />

28 “Est venu furieusement jusques aux <strong>de</strong>fenses et menaces, Que nul ne fust si hardi <strong>de</strong><br />

donner à boire ou à manger, ou <strong>de</strong> feu à celuy qui seroit excommunier, ou <strong>de</strong> luy ai<strong>de</strong>r<br />

aucunement <strong>de</strong>s choses necesaires à la vie presente.” – “Tem sua fúria ido tão longe ao<br />

ponto <strong>de</strong> emitir proibições e ameaças: Que ninguém ouse dar alimento, bebida ou combustível<br />

à pessoa que esteja excomungada, ou a aju<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguma maneira com as coisas<br />

necessárias para a presente vida.”<br />

29 “Et ces bourreaux encore exercent ceste cruaute extreme, mesme contre les innocens.”<br />

– “E esses carrascos, além do mais, exercem essa extrema cruelda<strong>de</strong> mesmo contra o<br />

inocente.”<br />

30 “Telle façon d’excommunier.” – “Tal é o método <strong>de</strong> excomunhão.”


Capítulo 5 • 199<br />

tencem a sua família. Porque esta punição é parte da disciplina que<br />

se confina à Igreja, e não se esten<strong>de</strong> aos <strong>de</strong> fora. Portanto, não anunciamos<br />

sobre eles sua sentença <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nação, visto que o Senhor<br />

não os sujeitou a nossa competência e jurisdição no que respeita ao<br />

castigo e censura. Somos, pois, constrangidos a <strong>de</strong>ixá-los à mercê<br />

do juízo divino.” A razão por que Paulo diz que Deus será seu Juiz é<br />

que Deus lhes permite que perambulem 31 <strong>de</strong>senfreadamente como<br />

bestas selvagens, visto que não há ninguém capaz <strong>de</strong> controlar sua<br />

libertinagem.<br />

13. Expulsai o ímpio. [eiicete Scelestum, ἐξάρατε τὸν πονηρόν].<br />

A explicação usual <strong>de</strong>sta afirmação é que ela se refere ao homem<br />

que cometeu incesto com sua madrasta. Pois os que enten<strong>de</strong>m a<br />

expressão no sentido <strong>de</strong> mal ou perversida<strong>de</strong> [malum] são refutados<br />

pelo grego <strong>de</strong> Paulo, no qual o artigo (τὸν) é masculino. O que<br />

o leitor, porém, prefere fazer? Aplicá-la ao diabo? Não há dúvida <strong>de</strong><br />

que uma pessoa perversa e sem princípio 32 se anima a estabelecer<br />

seu trono em nosso meio. Porque ὁ πονηρος (o maligno), por si só,<br />

sem qualquer adição, mais <strong>de</strong>nota o príncipe <strong>de</strong> todos os crimes 33<br />

do que alguma pessoa má em particular. Se este significado é aceitável,<br />

então Paulo está alertando para o fato <strong>de</strong> quão importante 34<br />

é que o ímpio não seja tolerado, porque, se ele é afastado, então<br />

Satanás é expulso <strong>de</strong> seu domínio. Mas ele persiste em nosso meio<br />

quando aos perversos se permite fazer o que querem. 35 Não obstante,<br />

não contendo com ninguém que queira consi<strong>de</strong>rar isso como<br />

uma referência a uma pessoa. Além disso, Crisóstomo compara o<br />

31 “Et courir à trauers champs.” – “E corram pelos campos.”<br />

32 “Quand on supporte un homme meschant et mal-vivant.” – “Quando se permite a um<br />

homem perverso e sem princípio continuar.”<br />

33 É bem observado por Witsius em seu Dissertations on the Lord’s Prayer (Biblical Cabinet,<br />

No. xxiv, pp. 361-362) que a <strong>de</strong>signação o Maligno é apropriadamente aplicada a Satanás,<br />

“porque ele nada faz senão o que é mal – porque todo o mal que existe no universo se<br />

originou nele –, porque ao fazer o mal e ao persuadir outros a fazerem o mal, ele acha seu<br />

único <strong>de</strong>leite, o conforto perverso e maligno <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>sesperadora miséria.”<br />

34 “Combien il est utile et necessaire.” – “Quão útil é e necessário.”<br />

35 “Quand il y a vne license <strong>de</strong> malfaire, et les meschans sont soufferts.” – “Quando há licença<br />

para se fazer o mal e os perversos são tolerados.”


200 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

rigor da Lei com a clemência do evangelho, visto que Paulo se sentia<br />

satisfeito quando o <strong>de</strong>lito é tratado pelo prisma da excomunhão,<br />

consi<strong>de</strong>rando que a Lei exigia em seu lugar a pena <strong>de</strong> morte. Mas<br />

não existe justificativa para tal ponto <strong>de</strong> vista. Pois aqui Paulo não<br />

está falando a juízes armados <strong>de</strong> espada, mas a um colegiado 36 <strong>de</strong>sarmado,<br />

autorizado a usar somente a reprovação fraterna.<br />

36 “Desmuée <strong>de</strong> puissance externe.” – “Destituído <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r externo.”


Capítulo 6<br />

1. Ousa algum <strong>de</strong> vós, tendo alguma questão<br />

contra outro, ir a juízo perante os<br />

injustos, e não perante os santos?<br />

2. Ou não sabeis que os santos julgarão o<br />

mundo? E se o mundo <strong>de</strong>ve ser julgado<br />

por nós, sois porventura indignos<br />

<strong>de</strong> julgar as questões menores?<br />

3. Não sabeis que julgaremos os anjos?<br />

Quanto mais as coisas que pertencem<br />

a esta vida?<br />

4. Se, pois, havemos <strong>de</strong> julgar as coisas<br />

pertencentes a esta vida, pon<strong>de</strong>s<br />

para julgá-las os que são menos<br />

consi<strong>de</strong>rados na igreja.<br />

5. Falo para vergonha vossa. Não há,<br />

pois, entre vós algum sábio que seja<br />

capaz <strong>de</strong> julgar entre seus irmãos,<br />

6. senão que um irmão vai a juízo contra<br />

outro irmão, e isso perante os<br />

incrédulos?<br />

7. Ora, pois, há um completo fracasso<br />

entre vós, porquanto <strong>de</strong>mandais<br />

uns contra os outros. Por que não<br />

sofreis antes a injustiça? Por que<br />

não sofreis antes o dano?<br />

8. Não só isto, mas vós mesmos fazeis<br />

a injustiça, fazeis o dano, e isso a<br />

vossos irmãos.<br />

1. Au<strong>de</strong>t aliquis vestrum, negotium<br />

habens cum altero, litigare sub<br />

iniustis, et non sub sanctis?<br />

2. An nescitis, quod sancti mundum<br />

iudicabunt? quodsi in vobis indicatur<br />

mundus, indigni estis minimis<br />

indiciis?<br />

3. An nescitis, quod angelos iudicabimus,<br />

nedum ad victum pertinentia?<br />

4. Indicia ergo <strong>de</strong> rebus ad victum<br />

pertinentibus si habueritis, qui<br />

contemptibiles sunt in Ecclesia, 1<br />

eos constituite.<br />

5. Ad erubescentiam vestram dico: a<strong>de</strong>o<br />

non est inter vos sapiens, ne unus qui<strong>de</strong>m,<br />

qui possit iudicare inter fratres?<br />

6. Sed frater cum fratre litigat, idque<br />

sub infi<strong>de</strong>libus.<br />

7. Jam qui<strong>de</strong>m omnino <strong>de</strong>lictum in<br />

vobis est, quod iudicia habertis<br />

inter vos: cur non potius iniuriam<br />

sustinetis? 2<br />

8. Sed vos infertis iniuriam, et fraudatis,<br />

et qui<strong>de</strong>m fratres.<br />

1 “De moindre estime en l’Eglise, ou, <strong>de</strong> nulle estime, assauoir au pris <strong>de</strong>s autres.” – “Da<br />

mínima estima na Igreja, ou <strong>de</strong> nenhuma estima; isto é, em comparação com outros.”<br />

2 “Pourquoy plustost n’endurez-vous l’inure? Pourquoy plustost ne receuez-vous dommage?”<br />

– “Por que não sofreis antes a injúria? Por que não vos submetais antes à perda?”


202 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Aqui ele passa a censurar outro erro entre os coríntios, a<br />

saber, a excessiva avi<strong>de</strong>z por litígio, e esse vício era oriundo da<br />

ganância. Mas esta repreensão consiste <strong>de</strong> duas partes. A primeira<br />

é que, ao exibirem suas disputas perante os tribunais <strong>de</strong> incrédulos,<br />

estavam dando ao evangelho uma péssima fama e expondo-o<br />

ao ridículo público. A segunda é que, embora os cristãos, por um<br />

lado, <strong>de</strong>vam enfrentar as injúrias, por outro estavam causando<br />

prejuízo a outrem, em vez <strong>de</strong> se guardarem <strong>de</strong> envolvimento em<br />

problemas <strong>de</strong> qualquer gênero. Assim, a primeira parte é particular;<br />

a segunda, geral.<br />

1. Ousa algum <strong>de</strong> vós. Esta é a primeira parte da repreensão. Se<br />

alguém tem alguma disputa com um irmão, esta <strong>de</strong>ve ser resolvida perante<br />

juízes crentes, e não perante incrédulos. Se porventura alguém<br />

<strong>de</strong>sejar saber o porquê, já disse que a razão é porque o evangelho cai<br />

em <strong>de</strong>scrédito e o nome <strong>de</strong> Cristo é exposto, por assim dizer, ao escárnio<br />

dos ímpios. Pois os ímpios, inspirados por Satanás, se acham em<br />

constante alerta, 3 ávidos pela oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrirem algo no<br />

ensino religioso que possa conduzir à falsa interpretação. Mas quando<br />

os crentes lhes revelam os <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> suas disputas, parecem estar<br />

lhes oferecendo, quase intencionalmente, uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro<br />

para a calúnia. Po<strong>de</strong>-se apresentar uma segunda razão, ou, seja: tornamos<br />

nossos irmãos <strong>de</strong>sprezíveis quando nos dispomos a sujeitá-los às<br />

<strong>de</strong>cisões dos incrédulos.<br />

Aqui, porém, po<strong>de</strong> surgir a seguinte objeção: “Já que é responsabilida<strong>de</strong><br />

do magistrado, no exercício <strong>de</strong> seu ofício, e como é<br />

peculiarmente sua jurisdição administrar justiça a todos, e <strong>de</strong>cidir sobre<br />

questões <strong>de</strong> disputa, por que os <strong>de</strong>screntes, que <strong>de</strong>têm o ofício <strong>de</strong><br />

magistrados não po<strong>de</strong>m também exercer esta autorida<strong>de</strong>? E se eles a<br />

possuem, por que somos impedidos <strong>de</strong> proteger nossos direitos sem<br />

seus tribunais? Minha resposta é que Paulo aqui não con<strong>de</strong>na os que,<br />

por força <strong>de</strong> circunstâncias, precisam entrar com recurso processual<br />

3 “Espient incessamment et d’vne affection ar<strong>de</strong>nte.” – “Vigiam incessantemente e com<br />

<strong>de</strong>sejo ar<strong>de</strong>nte.”


Capítulo 6 • 203<br />

perante os juízes incrédulos, 4 por exemplo, a alguém que é intimado<br />

a comparecer em juízo; mas ele acha danoso quando alguém, por sua<br />

própria conta, leva seus irmãos ali, e lhes faz injúrias, por assim dizer,<br />

nas mãos <strong>de</strong> incrédulos, quando outro remédio lhes está disponível.<br />

Portanto, é grave tomar a iniciativa para instaurar processos contra irmãos<br />

diante <strong>de</strong> um tribunal <strong>de</strong> juízes incrédulos. Entretanto, é correto<br />

comparecer perante um tribunal e manter sua causa, se a acusação é<br />

feita contra sua pessoa.<br />

2. Não sabeis que os santos. Este é um argumento do menor<br />

para o maior; porquanto Paulo <strong>de</strong>seja <strong>de</strong>monstrar que se faz injúria<br />

à Igreja <strong>de</strong> Deus quando <strong>de</strong>cisões, em disputas sobre questões terrenas,<br />

são postas nas mãos <strong>de</strong> incrédulos, como se não houvesse<br />

no colegiado dos santos alguém qualificado para julgar. Então ele<br />

argumenta: “Visto que Deus consi<strong>de</strong>rou os santos dignos <strong>de</strong> tal honra,<br />

quando são <strong>de</strong>signados ao ofício <strong>de</strong> juizes do mundo inteiro, por<br />

isso é intolerável que sejam eles impedidos <strong>de</strong> julgar em questões<br />

triviais, como se não fossem capazes para isso.” Segue-se <strong>de</strong>sse fato<br />

que os coríntios se prejudicavam ao transferirem para os incrédulos<br />

a honra 5 que Deus lhes conferira.<br />

O que se diz aqui sobre julgar o mundo <strong>de</strong>ve retroce<strong>de</strong>r a esta<br />

palavra <strong>de</strong> Cristo: “quando, na regeneração, o Filho do homem assentar-se<br />

no trono <strong>de</strong> sua glória, também vos assentareis em doze tronos<br />

para julgar as doze tribos <strong>de</strong> Israel” [Mt 19.28]. Pois todo o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

julgar foi <strong>de</strong>legado ao Filho, <strong>de</strong> tal maneira que associará a si nesta<br />

honra a seus santos como seus assessores. Além disso, eles julgarão o<br />

mundo, como <strong>de</strong> fato já começaram a fazê-lo, porquanto sua pieda<strong>de</strong>,<br />

fé, temor do Senhor, a consciência pura e integrida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>ixarão<br />

os ímpios sem escusa, justamente como se diz <strong>de</strong> Noé [Hb 11.7], ou,<br />

seja: que por sua fé con<strong>de</strong>nou todos os homens <strong>de</strong> seu tempo. Mas<br />

4 “Qui sont necessairement contraints <strong>de</strong> maintenir et plai<strong>de</strong>r leurs causes sous iuges infi<strong>de</strong>les.”<br />

– “Quem necessariamente se sente constrangido a manter e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r suas causas<br />

legais perante juízes incrédulos.”<br />

5 “L’honneur et la prerogatiue.” – “A honra e a prerrogativa.”


204 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

a primeira interpretação se a<strong>de</strong>qua melhor ao propósito do apóstolo,<br />

pois se o ato <strong>de</strong> julgar, mencionado aqui, não for consi<strong>de</strong>rado por<br />

esse prisma, 6 parece ficar <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> significação; pois, como disse<br />

alguém: “Os santos são dotados <strong>de</strong> sabedoria celestial, a qual exce<strong>de</strong><br />

incomensuravelmente a todas as áreas do conhecimento humano. Portanto,<br />

eles po<strong>de</strong>m tirar conclusões sobre as estrelas melhor do que os<br />

astrônomos.” Mas ninguém concordaria com isso, e a razão para não<br />

admiti-lo é óbvia: pieda<strong>de</strong> e doutrina espiritual não nos suprem com o<br />

conhecimento das ciências humanas. Minha resposta é que aqui existe<br />

a seguinte distinção entre as <strong>de</strong>mais ciências e a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> julgar:<br />

enquanto a primeira é adquirida pela acuida<strong>de</strong> do intelecto, por intermédio<br />

do estudo e da erudição dos mestres, 7 a segunda <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>,<br />

sobretudo, da eqüida<strong>de</strong> e da consciência.<br />

Mas, 8 “os jurisconsultos julgarão melhor e mais acuradamente do<br />

que qualquer crente ignorante; do contrário não haveria necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> se conhecer as leis.” A isto respondo que seu conselho não é <strong>de</strong><br />

forma alguma excluído aqui; pois se uma <strong>de</strong>cisão sobre alguma questão<br />

obscura precisa ser examinada à luz do conhecimento das leis, o<br />

apóstolo não proíbe os cristãos <strong>de</strong> consultarem advogados. 9 O único<br />

motivo que o leva a acusar os coríntios é por suas disputas serem<br />

levadas perante o tribunal dos incrédulos, como se não houvesse na<br />

Igreja alguém em condição <strong>de</strong> julgar. E ele os lembra quão superior é o<br />

julgamento para o qual Deus <strong>de</strong>signou seu povo crente.<br />

As palavras in vobis, “em vós” [por vós, outras versões], acredito<br />

que equivalem a inter vos, “entre vós”. Porque, geralmente os fiéis que<br />

se reúnem sob os auspícios <strong>de</strong> Cristo 10 já antevêem em sua assembléia<br />

um certo reflexo do juízo futuro, o qual se manifestará em sua plenitu-<br />

6 “Mais, dira quelqu’vn, encore à le prendrre ainsi.” – “Mas, dizem alguns, inclusive tomando-o<br />

<strong>de</strong>sta forma.”<br />

7 “Sous precepteurs et maistres.” – “Sob preceptores e mestres.”<br />

8 “Mais, dira qulqu’vn.” – “Mas diria alguém.”<br />

9 “Ne <strong>de</strong>fend point aux Chrestiens d’aller <strong>de</strong>man<strong>de</strong>r conseil aux Legistes.” – “Não impe<strong>de</strong><br />

os cristãos <strong>de</strong> recorrerem ao conselho dos advogados.”<br />

10 “Au nom <strong>de</strong> Christ.” – “No nome <strong>de</strong> Cristo.”


Capítulo 6 • 205<br />

<strong>de</strong> no último dia. Portanto, Paulo diz que o mundo é julgado na Igreja,<br />

on<strong>de</strong> já se acha instalado o tribunal <strong>de</strong> Cristo, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> ele exerce sua<br />

autorida<strong>de</strong>. 11<br />

3. Não sabeis que haveremos <strong>de</strong> julgar os anjos? Esta passagem<br />

é vista por diferentes prismas. Crisóstomo informa que alguns a entendiam<br />

como uma referência a sacerdotes, 12 mas tal conceito é, sem<br />

dúvida, muito forçado. Ainda outros a explicam como sendo os anjos<br />

celestiais; neste sentido, aqueles anjos estão sujeitos a julgamento<br />

pela Palavra <strong>de</strong> Deus, e, se preciso for, po<strong>de</strong>m ser julgados por nós<br />

através <strong>de</strong>sta Palavra. Gálatas 1.8 po<strong>de</strong> ser evocado à luz <strong>de</strong>ste conceito:<br />

“Mas, ainda que nós, ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue<br />

evangelho que vá além do que vos tenho pregado, seja anátema.” À<br />

primeira vista, esta explicação não parece estar em harmonia com o<br />

argumento <strong>de</strong> Paulo. Porque, se todos a quem Deus iluminou por meio<br />

<strong>de</strong> sua Palavra são possuidores <strong>de</strong> tanta autorida<strong>de</strong> que, por meio<br />

<strong>de</strong>ssa Palavra, julgam não só os homens, mas também os anjos, não<br />

são todos eles os mais qualificados para julgarem a respeito das questões<br />

triviais e <strong>de</strong>sprezíveis? Mas, como Paulo usa aqui o tempo futuro,<br />

referindo-se ao último dia, e como as palavras <strong>de</strong>notam a sugestão <strong>de</strong><br />

um juízo real (como um provérbio corrente), certamente me parece<br />

melhor enten<strong>de</strong>r o que ele diz como uma referência a anjos apóstatas.<br />

13 Pois o argumento será, não obstante, conclusivo se consi<strong>de</strong>rado<br />

<strong>de</strong>sta forma: “Julgaremos os <strong>de</strong>mônios que começaram <strong>de</strong> maneira tão<br />

excelente, e mesmo agora, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> caírem <strong>de</strong> sua elevada posição,<br />

são ainda criaturas imortais e superiores a este mundo <strong>de</strong> corrupção.<br />

E então? As coisas que são subservientes ao ventre estão isentas <strong>de</strong><br />

nosso juízo?<br />

4. Se, pois, haveremos <strong>de</strong> julgar as coisas pertencentes a esta<br />

vida. Devemos ter sempre em vista a forma específica <strong>de</strong> que tipo <strong>de</strong><br />

11 “Auquel estant comme assis, il exerce sa iurisdiction.” – “No qual, como se estivesse<br />

assentado, ele exerce sua autorida<strong>de</strong>.”<br />

12 “Des prestres et ministres.” – “De sacerdotes e ministros.”<br />

13 “Apostats et rebelles.” – “Apóstatas e rebel<strong>de</strong>s.”


206 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

causas Paulo está tratando. Porque os julgamentos públicos estão<br />

além <strong>de</strong> nossa jurisdição e não <strong>de</strong>vem ser transferidos para nosso<br />

controle. É plenamente normal, porém, estabelecer questão privativas<br />

sem o reconhecimento do magistrado. Portanto, visto que não<br />

estamos <strong>de</strong>traindo a autorida<strong>de</strong> do magistrado quando tomamos <strong>de</strong>cisão<br />

por nós mesmos, o apóstolo corretamente diz aos cristãos que<br />

se mantivessem afastados dos tribunais profanos, ou, seja, os pertencentes<br />

aos juízes incrédulos. E diante da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alegarem<br />

que estavam sendo privados <strong>de</strong> um remédio mais eficaz, ele então<br />

lhes diz que escolhessem juízes da igreja para estabelecer as causas<br />

com justiça e eqüida<strong>de</strong>. Em caso <strong>de</strong> se justificarem, dizendo que não<br />

dispunham <strong>de</strong> homens preparados para isso, ele afirma que mesmo<br />

a pessoa <strong>de</strong> condição bem inferior po<strong>de</strong>ria fazer o que é requerido.<br />

Portanto, a autorida<strong>de</strong> do magistrado não é prejudicada aqui, quando<br />

ele mostra que sua função é proteger as pessoas que são in<strong>de</strong>fesas.<br />

Porque (como já disse) isso é afirmado à guisa <strong>de</strong> antecipação, como<br />

se dissesse: “Ainda o mais humil<strong>de</strong> e o mais insignificante entre vós<br />

po<strong>de</strong>rá levar este ofício a bom termo melhor que os juízes <strong>de</strong>screntes<br />

a quem estais recorrendo, quando não existe a menor necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

proce<strong>de</strong>r<strong>de</strong>s assim.”<br />

Crisóstomo chega bem perto <strong>de</strong>sta interpretação, ainda que ele<br />

lhe acrescente algo adicional. Pois ele acredita que o apóstolo tinha<br />

em mente que, embora os coríntios não encontrassem ninguém em seu<br />

meio bastante sábio para julgar, <strong>de</strong>veriam, contudo, escolher alguns,<br />

não importasse o que fossem. Ambrósio não toca, como se diz, nem o<br />

céu nem a terra. 14 Acredito que me expressei fielmente o que o apóstolo<br />

tinha em mente, ou, seja, que ele preferia o mais <strong>de</strong>sprezível <strong>de</strong>ntre os<br />

crentes a quaisquer <strong>de</strong>screntes, no que tange à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> julgar.<br />

Alguns <strong>de</strong>senvolvem um significado completamente diferente.<br />

Pois consi<strong>de</strong>ram o verbo καθιζετε no presente, ou, seja, “vós os pon<strong>de</strong>s<br />

14 “Sainct Ambrose ne touche ne ciel ne terre (comme on dit) en l’exposition <strong>de</strong> ces mots.”<br />

– “Santo Ambrósio nem toca o céu nem a terra (segundo a expressão corrente) na exposição<br />

<strong>de</strong>stas palavras.” A intenção <strong>de</strong> nosso autor parece ser que Ambrósio pairava em<br />

suspenso, ou não <strong>de</strong>cidia qual a opinião certa.


Capítulo 6 • 207<br />

a julgar”; e os “que não <strong>de</strong>sfrutam <strong>de</strong> nenhuma consi<strong>de</strong>ração na Igreja”<br />

interpretam como pessoas profanas. 15 Mas isso é mais engenhoso<br />

do que racional, porque esta seria uma pobre <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> incrédulos.<br />

16 Finalmente, a frase “se ten<strong>de</strong>s” não se a<strong>de</strong>qua muito bem com<br />

a repreensão, pois esta condição a enfraquece; ao contrário, <strong>de</strong>veria<br />

ser usado “enquanto ten<strong>de</strong>s”. Portanto, sou mais inclinado a aceitar o<br />

ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> que está prescrito aqui um remédio para o mal.<br />

Não obstante, à luz <strong>de</strong> certa passagem <strong>de</strong> Agostinho <strong>de</strong>duz-se que<br />

esta sentença foi incorretamente entendida pelos homens <strong>de</strong> outrora.<br />

Porque em seu livro, Sobre a Obra dos Monges, on<strong>de</strong> menciona suas<br />

ocupações, ele assevera que, indubitavelmente, o mais cansativo <strong>de</strong><br />

todos seus <strong>de</strong>veres era ser ele compelido a <strong>de</strong>dicar uma parte do dia<br />

a afazeres mundanos, mas que o suportou pacientemente, porque o<br />

apóstolo 17 lhe impusera esta necessida<strong>de</strong>. Deduz-se <strong>de</strong>sta passagem,<br />

e <strong>de</strong> certa carta, que os bispos estavam acostumados, em tempos específicos,<br />

a assentar-se para resolver disputas; como se o apóstolo<br />

estivesse se referindo a elas nesta passagem em particular. Entretanto,<br />

as questões sempre se tornam piores, ou, seja, que o erro ali, no<br />

processo do tempo, se <strong>de</strong>senvolveu na jurisdição que os oficiais dos<br />

bispos assumiram para si em questões financeiras. Neste antigo costume<br />

há duas coisas que são merecedoras <strong>de</strong> reprovação: primeiro,<br />

que os bispos se envolviam em afazeres que nada tinham a ver com<br />

seu ofício; e, segundo, faziam a Deus uma injustiça preten<strong>de</strong>ndo que<br />

se <strong>de</strong>sviavam <strong>de</strong> sua própria vocação pela autorida<strong>de</strong> e mandamento<br />

divinos. Não obstante, o mal era, em alguma extensão, justificável, mas<br />

seria o cúmulo da audácia aviltar ou <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r este costume mundano,<br />

o qual tem prevalecido no papado.<br />

5. Digo isso para incitar-vos ao pundonor. O significado é o seguinte:<br />

se outras consi<strong>de</strong>rações vos <strong>de</strong>ixam insensíveis, então pelo<br />

15 “Les gens profanes et indi<strong>de</strong>les.” – “Pessoas profanas e incrédulas.”<br />

16 “Car ce seroit vne façon <strong>de</strong> parler bien maigre et <strong>de</strong> peu <strong>de</strong> grace, d’appeler ainsi les indi<strong>de</strong>les.”<br />

– “Pois esse era um modo paupérrimo e <strong>de</strong>sajeitado <strong>de</strong> falar, para <strong>de</strong>screver os<br />

incrédulos <strong>de</strong>ssa maneira.”<br />

17 “Sainct Paul.” – “São Paulo.”


208 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

menos tenhais isto em vossas mentes, a saber: quão <strong>de</strong>sditoso é que<br />

<strong>de</strong>ntre vós não haja sequer um qualificado para resolver, <strong>de</strong> uma forma<br />

amigável, algumas pendências que surgem entre os irmãos, porque<br />

conce<strong>de</strong>is esta honra a <strong>de</strong>screntes. Ora, esta passagem não é inconsistente<br />

com aquela afirmação com que nos <strong>de</strong>paramos antes, a saber:<br />

que ele não fez referência a seus erros com o fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixá-los envergonhados<br />

[1Co 4.14]; porque aqui, ao repreendê-los como faz, antes <strong>de</strong><br />

tudo lhes recorda o infortúnio 18 e mostra que realmente se preocupa<br />

com a honra <strong>de</strong>les. Ele não <strong>de</strong>seja que pensem tão miseravelmente <strong>de</strong><br />

sua fraternida<strong>de</strong> e suprimam este privilégio <strong>de</strong> todos seus irmãos e o<br />

entreguem nas mãos <strong>de</strong> incrédulos.<br />

7. Ora, <strong>de</strong> fato já é completa <strong>de</strong>ficiência. Agora chegamos à segunda<br />

parte da repreensão que contém um ensino geral. Pois ele agora<br />

<strong>de</strong>scobre os erros <strong>de</strong>les, não com base no fato <strong>de</strong> que estavam expondo<br />

o evangelho ao <strong>de</strong>sdém e à difamação, mas porque estavam<br />

movendo processo legal uns contra os outros. Paulo diz que este é um<br />

erro ou fracasso. Devemos observar bem a justeza da palavra que ele<br />

usa. Porque ἥττημα, em grego, significa “fraqueza mental”, por exemplo,<br />

quando alguém se <strong>de</strong>spedaça 19 sob a pressão das injúrias e não é<br />

bastante forte para suportar tudo. Mais tar<strong>de</strong> foi usada para erros <strong>de</strong><br />

qualquer gênero, quando todos eles emanam <strong>de</strong> fraquezas e falta <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>terminação. 20 Portanto, o que Paulo está con<strong>de</strong>nando nos coríntios<br />

é o sofrimento que causam uns nos outros por recorrerem à lei. Ele<br />

lhes assegura que isso acontece porque não estão preparados para suportar<br />

injúrias pacien temente. À luz da instrução do Senhor [Mt 5.44;<br />

18 “Il les gar<strong>de</strong> <strong>de</strong> tomber en reproche.” – “Ele os guarda <strong>de</strong> caírem em opróbrio.”<br />

19 “Aiseement abbatu et irrité.” – “Facilmente se fere e se irrita.”<br />

20 Alguns pressupõem que o termo grego, ἥττημα, se <strong>de</strong>riva originalmente do verbo hebraico<br />

ttj, ser quebrado (o qual é traduzido por ἡτταομαι em vários exemplos na Septuaginta).<br />

Nosso autor provavelmente estava olhando para este fato quando <strong>de</strong>clara que o significado<br />

original do termo é “fraqueza mental, quando alguém se vê facilemente espicaçado<br />

por injúrias.” O termo propriamente <strong>de</strong>nota <strong>de</strong>feito. É instrutivo observar que uma disposição<br />

<strong>de</strong> “recorrer à lei com irmãos”, em vez <strong>de</strong> “suportar o erro”, é representado pelo<br />

apóstolo como indicativo <strong>de</strong> um <strong>de</strong>feito, isto é, na mansidão cristã ou no amor fraternal;<br />

enquanto a disposição oposta, recomendada pelo apóstolo, segundo o padrão da moralida<strong>de</strong><br />

do mundo, <strong>de</strong>scobre o <strong>de</strong>feito com respeito ao <strong>de</strong>sânimo.


Capítulo 6 • 209<br />

Rm 12.21], não <strong>de</strong>vemos <strong>de</strong>ixar-nos dominar pelo mal, mas, ao contrário,<br />

<strong>de</strong>vemos obter o melhor das injúrias através <strong>de</strong> atos <strong>de</strong> bonda<strong>de</strong>;<br />

e é certo que, os que não po<strong>de</strong>m controlar-se ao ponto <strong>de</strong> sofrer pacientemente<br />

as injúrias pecam por sua falta <strong>de</strong> paciência. Se a falta <strong>de</strong><br />

persistência ou paciência se revela nas disputas entre os crentes, a<br />

conclusão é que tais disputas são nocivas.<br />

Não obstante, agindo assim Paulo parece abolir completamente<br />

os julgamentos legais nas ativida<strong>de</strong>s dos indivíduos. “Aqueles que recorrem<br />

à lei estão completamente errados; portanto, labora em erro<br />

todo aquele que busca proteger seus direitos perante um magistrado.”<br />

Há quem responda esta objeção da seguinte forma: O apóstolo <strong>de</strong>clara<br />

que on<strong>de</strong> há <strong>de</strong>mandas, a situação toda está completamente errada,<br />

porque uma ou outra das partes necessariamente tem uma causa errônea.<br />

Mas eles não conseguem safar-se com este sofisma, porque Paulo<br />

afirma que estão errados não só quando cometem injúria, mas também<br />

quando não a suportam com paciência. No que me diz respeito,<br />

respondo simplesmente: visto que ele apenas <strong>de</strong>ra permissão para se<br />

constituírem juízes, por meio do quê ele tem dado clara indicação <strong>de</strong><br />

que não é fora <strong>de</strong> propósito que os cristãos busquem seus direitos<br />

com mo<strong>de</strong>ração, contanto que o amor não seja prejudicado. Daqui po<strong>de</strong>mos<br />

prontamente inferir que ele era severo <strong>de</strong>mais em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

seu conhecimento das circunstâncias em questão. On<strong>de</strong> quer que as<br />

<strong>de</strong>mandas ocorram com freqüência, ou on<strong>de</strong> as partes se obstinem em<br />

discutir os problemas uma com a outra com o máximo rigor da lei, 21 é<br />

sobejamente óbvio que seus espíritos se inflamam imo<strong>de</strong>radamente<br />

com disposições ofensivas, e não estão preparados para, com eqüida<strong>de</strong><br />

e serenida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espírito, a enfrentar com paciência as ofensas, em<br />

concordância com o mandamento <strong>de</strong> Cristo.<br />

Seja-me permitido falar mais claramente. Paulo con<strong>de</strong>na as <strong>de</strong>mandas<br />

pela seguinte razão: <strong>de</strong>vemos suportar as injúrias com um<br />

espírito tranqüilo. Vejamos agora se é possível que alguém mova<br />

21 “Et qu’ils veulent veoir le bout du proces (comme on dit).” – “E se sentem <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong><br />

ver o resultado do caso (segundo a expressão).”


210 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

processo judicial sem ser dominado pela impaciência. Pois se isso<br />

for possível, então não haverá problema em mover ação legal em<br />

muitos casos, mas somente ἐπί τὸ πολύ, ou, seja, geralmente falando.<br />

Confesso, porém, que, como o comportamento humano é corrupto,<br />

a impaciência ou ausência <strong>de</strong> paciência (como se diz) é o acompanhamento<br />

inevitável em quase todas as <strong>de</strong>mandas. Não obstante, isso<br />

não impe<strong>de</strong> que façamos distinção entre a coisa propriamente dita e<br />

sua circunstância negativa. Portanto, lembremo-nos <strong>de</strong> que Paulo não<br />

con<strong>de</strong>na as <strong>de</strong>mandas com base no fato <strong>de</strong> que não é propriamente<br />

errado <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r uma boa causa nos valendo dos recursos <strong>de</strong> um magistrado,<br />

mas porque quase sempre somos dominados por atitu<strong>de</strong>s<br />

mentais ina<strong>de</strong>quadas, tais como a falta <strong>de</strong> domínio próprio, intenção<br />

vingativa, hostilida<strong>de</strong>, obstinação e assim por diante.<br />

É estranho que esta questão não tenha sido investigada mais<br />

cuidadosamente pelos escritores eclesiásticos. Agostinho lhe <strong>de</strong>u<br />

mais atenção do que outros, e esteve mais próximo do alvo; porém,<br />

até mesmo ele não se <strong>de</strong>svencilhou da obscurida<strong>de</strong>, por mais veracida<strong>de</strong><br />

exista no que ele ensina. Os que <strong>de</strong>sejam ser mais explícitos<br />

em seu ensino nos advertem que <strong>de</strong>vemos fazer certa distinção entre<br />

retribuição pública e privada. Porque, visto que a retribuição pertence<br />

ao magistrado <strong>de</strong>signado por Deus, os que buscam seu auxílio<br />

não estão irresponsavelmente tomando a vingança em suas próprias<br />

mãos, mas estão buscando os recursos <strong>de</strong> Deus como vingador. 22<br />

Tudo isso é sábia e corretamente expresso, porém temos <strong>de</strong> avançar<br />

mais. Pois se somos proibidos <strong>de</strong> buscar vingança, mesmo a <strong>de</strong> Deus,<br />

da mesma forma seríamos impedidos <strong>de</strong> recorrer ao magistrado em<br />

busca <strong>de</strong> retribuição.<br />

Portanto, reconheço que toda e qualquer vingança é totalmente<br />

proibida para o cristão, <strong>de</strong> modo que não <strong>de</strong>ve praticá-la, seja por si<br />

mesmo ou por meio do magistrado; aliás, nem mesmo <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>sejá-<br />

-la! Se um cristão, pois, <strong>de</strong>seja <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r seus direitos num tribunal,<br />

22 “Se retirent à Dieu comme à celuy à qui appartient la vengeance.” – “Têm recorrido a<br />

Deus, como aquele a quem pertence a vingança” [Sl 94.1].


Capítulo 6 • 211<br />

sem ir contra Deus, então <strong>de</strong>ve revestir-se <strong>de</strong> especial cuidado para<br />

não a<strong>de</strong>ntrar um tribunal nutrindo algum <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vingança, algum<br />

sentimento negativo, algum rancor, numa palavra, alguma atitu<strong>de</strong> peçonhenta.<br />

Em tudo isso o amor será o melhor regulador. 23<br />

Se porventura alguém objetar, dizendo ser algo muito raro alguém<br />

recorrer ao tribunal inteiramente livre e isento <strong>de</strong> todo e<br />

qualquer afeto corrupto, realmente o reconheço e ainda digo mais<br />

que é mui raro obter-se um único exemplo <strong>de</strong> um litigante justo. De<br />

fato, por muitas e boas razões, vale a pena enfatizar que a questão<br />

não é em si mesma ruim, mas que é <strong>de</strong>terminada pelo abuso. A primeira<br />

razão consiste em que não se <strong>de</strong>ve dar a impressão <strong>de</strong> que<br />

Deus per<strong>de</strong>u seu tempo em instituir tribunais <strong>de</strong> justiça. A segunda<br />

razão consiste em que os crentes <strong>de</strong>vem saber exatamente o que<br />

lhes é permitido fazer, a fim <strong>de</strong> que não façam nada que seja contra<br />

sua consciência. Eis a razão por que muitos se precipitam em franco<br />

<strong>de</strong>srespeito a Deus, uma vez que vão além dos limites que lhes são<br />

impostos. 24 A terceira razão consiste em que <strong>de</strong>vem estar conscientes<br />

<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>ve observar sempre as restrições, para que não <strong>de</strong>teriorem,<br />

por meio <strong>de</strong> sua má conduta, o remédio que Deus lhes confiou.<br />

A última razão consiste em que a ousadia dos ímpios <strong>de</strong>ve ser reprimida<br />

por um zelo impoluto e genuíno; e isso só se po<strong>de</strong> fazer se nos<br />

for permitido submetê-los a punições legais.<br />

8. Não só isso, mas vós mesmos fazeis a injustiça. Deste versículo<br />

se faz evi<strong>de</strong>nte por que Paulo os invectivava com tanto rigor; porquanto<br />

uma inusitada cobiça por possessões os fascinava <strong>de</strong> tal modo que<br />

não eram capazes <strong>de</strong> abster-se <strong>de</strong> ferir uns aos outros. Com o fim <strong>de</strong><br />

realçar a extensão do mal, ele <strong>de</strong>clara que as pessoas que não sabem<br />

como suportar os erros praticados contra si mesmas não são <strong>de</strong> fato<br />

cristãs. Aqui, pois, há uma ampliação tirada <strong>de</strong> uma comparação; por-<br />

23 “Pour estre bien gouuerné en ceci, il faut estre gaeni d’vne vraye charité.” – “Para sermos<br />

propriamente regulados nisto, <strong>de</strong>vemos ser adornados com o genuíno amor.”<br />

24 “Plusieurs tombent en ceste malediction, <strong>de</strong> mepriser Dieu ouuertement.” – “Muitos incorrem<br />

nessa maldição por publicamente <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nharem <strong>de</strong> Deus” [Sl 10.13].


212 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

que, se é errôneo não suportar pacientemente as injustiças, quão pior<br />

é praticá-las.<br />

E isso a vossos irmãos. Aqui está outra agravante do mal. Porque,<br />

se os que <strong>de</strong>fraudam os estranhos são indubitavelmente injustos, é<br />

algo monstruoso um irmão <strong>de</strong>fraudar ou roubar a seu irmão. Ora, todos<br />

nós somos irmãos, nós que invocamos aquele que é Pai celestial<br />

[Mt 23.9]. Ao mesmo tempo, se alguém age com más intenções contra<br />

estranhos, Paulo <strong>de</strong> forma alguma ameniza o <strong>de</strong>lito; porém ensina que<br />

os coríntios eram totalmente cegos quando consi<strong>de</strong>ravam a irmanda<strong>de</strong><br />

sagrada como algo <strong>de</strong> nenhuma importância.<br />

9. Ou não sabeis que os injustos não<br />

herdarão o reino <strong>de</strong> Deus? Não vos<br />

enganeis:, nem fornicadores, nem<br />

idólatras, nem adúlteros, nem efeminados,<br />

nem quem abuse <strong>de</strong> si<br />

mesmo com homens,<br />

10. nem ladrões, nem avarentos, nem<br />

bêbados, nem maldizentes, nem extorsores<br />

herdarão o reino <strong>de</strong> Deus.<br />

11. E tais foram alguns <strong>de</strong> vós; mas fostes<br />

lavados, mas fostes santificados,<br />

mas fostes justificados no nome do<br />

Senhor Jesus Cristo, e pelo Espírito<br />

<strong>de</strong> nosso Deus.<br />

9. An nescitis, quod iniusti regnum<br />

Dei hereditate non obtinebunt? Ne<br />

erretis, neque scortatores, neque<br />

idololatræ, neque mœchi, neque<br />

molles, neque pæ<strong>de</strong>rastæ.<br />

10. Neque fures, neque avari, neque<br />

ebriosi, neque maledici, neque<br />

rapaces regnum Dei hereditate obtinebunt.<br />

11. Et hæc fuistis, 25 sed abluti estis,<br />

sed sanctificati estis, sed iustificati<br />

estis in nomine Domini Jesu, et in<br />

Spiritu Dei nostri.<br />

9. Ou não sabeis? Por injustiça, aqui, enten<strong>de</strong>mos o que é oposto<br />

à estrita integrida<strong>de</strong>. Os injustos, pois, isto é, os que causam injúria a<br />

seus irmãos, que enganam e <strong>de</strong>fraudam a outrem e, numa palavra, tripudiam<br />

a terceiros na <strong>de</strong>senfreada busca <strong>de</strong> seus próprios interesses,<br />

são os injustos que não herdarão o reino <strong>de</strong> Deus. Aqui é suficientemente<br />

óbvio que, quando Paulo fornece exemplos <strong>de</strong> pessoas injustas,<br />

25 “Et telles choses auez-vous este”, ou “este aucuns.” – “E tais coisas tínheis vós”, ou “tinham<br />

alguns <strong>de</strong> vós.”


Capítulo 6 • 213<br />

tais como adúlteros, ladrões, avarentos e maldizentes, ele está se referindo<br />

àqueles que não se arrepen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> seus pecados, mas que<br />

obstinadamente persistem neles. O próprio apóstolo, um pouco mais<br />

adiante, enfatiza esse fato em suas próprias palavras, quando diz que<br />

os coríntios tinham vivido assim no passado. Naturalmente, os ímpios<br />

herdarão o reino <strong>de</strong> Deus, porém só <strong>de</strong>pois que se converterem ao<br />

Senhor com genuíno arrependimento e <strong>de</strong>ssa forma cessarem <strong>de</strong> ser<br />

ímpios. Pois ainda que a conversão não seja a base do perdão, não<br />

obstante sabemos que ninguém é reconciliado com Deus senão aqueles<br />

que se arrepen<strong>de</strong>m. Não obstante, o uso da interrogação é para o<br />

efeito <strong>de</strong> ênfase, porquanto ele faz evi<strong>de</strong>nte que está se referindo a<br />

algo com que os coríntios estão plenamente familiarizado e que é uma<br />

trivialida<strong>de</strong> entre todos os piedosos.<br />

Não vos enganeis. Uma vez tendo ocasião <strong>de</strong> tratar <strong>de</strong> um vício,<br />

agora prossegue falando <strong>de</strong> muitos. No entanto, sou <strong>de</strong> opinião que<br />

ele realçou particularmente os vícios que prevaleciam entre os coríntios.<br />

Ele usa três termos distintos em sua censura contra as paixões<br />

sexuais, as quais, segundo toda a evidência histórica, governavam,<br />

aliás, corriam soltas ali. Pois Corinto nadava em riquezas. Era um<br />

famoso centro comercial, freqüentado por mercadores <strong>de</strong> muitas nações.<br />

A luxúria anda <strong>de</strong> braços dados com a riqueza, e ela dá à luz a<br />

impudicícia e todo gênero <strong>de</strong> licenciosida<strong>de</strong>. Além disso, uma nação<br />

já naturalmente inclinada para a luxúria estava se inclinando para<br />

muitas outras corrupções.<br />

A diferença entre fornicadores e adúlteros é suficientemente conhecida.<br />

Por efeminados entendo ser aqueles que, embora não se<br />

entreguem publicamente à impureza, não obstante mostram o quanto<br />

são impelidos pelo uso <strong>de</strong> linguagem ignóbil, pela leveza <strong>de</strong> gesto e<br />

vestuário e outros incitamentos. O quarto termo nesta categoria é o<br />

mais abominável <strong>de</strong> todos, a saber, aquela monstruosa <strong>de</strong>generação<br />

que era tão prevalecente na Grécia.<br />

Ele emprega três termos ao reprovar a injustiça e as injúrias.<br />

Ele <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> ladrões àqueles que enganam seus irmãos atra-


214 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

vés <strong>de</strong> alguma sorte <strong>de</strong> frau<strong>de</strong> ou astúcia camuflada. Por extorsores<br />

ele quer dizer aqueles que violentamente se apo<strong>de</strong>ram dos bens<br />

alheios, ou, como harpias, 26 os atraem para si, <strong>de</strong> todos os lados,<br />

e os <strong>de</strong>voram. Mas, para que seu discurso se esten<strong>de</strong>sse sobre um<br />

campo bem amplo, em seguida acrescenta também todas as pessoas<br />

avarentas. Por bêbados <strong>de</strong>vemos também enten<strong>de</strong>r aqueles que<br />

exce<strong>de</strong>m na alimentação. Ele faz particular menção dos maldizentes,<br />

porque é bem provável que aquela cida<strong>de</strong> estivesse repleta <strong>de</strong><br />

mexeriqueiros e caluniadores. Em suma, Paulo faz particular menção<br />

daqueles vícios que, como ele os via, exerciam total domínio<br />

sobre a cida<strong>de</strong>.<br />

Mas para que sua ameaça adquirisse mais peso, ele diz: não vos<br />

enganeis. Com estas palavras ele os aconselha a não se embalarem<br />

com vãs esperanças, da mesma forma que os homens acostumam<br />

fazer, atenuando seus escândalos, permitem-se tratar a Deus com<br />

<strong>de</strong>sdém. Portanto, nenhum veneno é mais letal do que aquelas fascinações<br />

que nos estimulam em nossos pecados. Portanto fujamos, não<br />

como dos cantos <strong>de</strong> sereias, 27 mas como se fossem mortais estiletes <strong>de</strong><br />

Satanás – das palavras <strong>de</strong> homens profanos que se <strong>de</strong>svencilham do<br />

juízo <strong>de</strong> Deus e das reprovações <strong>de</strong> pecados causados pela zombaria.<br />

Finalmente, é preciso observar a adaptabilida<strong>de</strong> do verbo κληρονομειν<br />

(herdar). Pois ele mostra que o reino do céu é a herança <strong>de</strong> filhos, e<br />

portanto ela só nos é legada pela bênção da adoção.<br />

11. E tais foram alguns <strong>de</strong> vós. Alguns acrescentam um ermo <strong>de</strong><br />

peculiarida<strong>de</strong>: “alguns <strong>de</strong> vós foram assim”, visto que no grego se adi-<br />

26 “Comme bestes rauissantes.” – “Como animais vorazes.” As harpias, sabe-se muito bem,<br />

eram monstros fabulosos, proverbiais por sua voracida<strong>de</strong>. Merece nota que seu nome,<br />

ἅρπυίαι, e o termo usado por Paulo para <strong>de</strong>notar extorsores (ἅρπαγες), são ambos <strong>de</strong>rivados<br />

<strong>de</strong> ἅρπάζω, assenhorear-se ou tomar por meio <strong>de</strong> violência.<br />

27 As sereias eram uma espécie <strong>de</strong> monstros marinhos que supostamente habitavam certas<br />

ilhas rochosas na costa sudoeste da Itália, as quais atraíam, como se acreditava, com a<br />

entonação <strong>de</strong> sua música, os marinheiros à <strong>de</strong>struição. Homero, em sua Odisséia (viii.45),<br />

fala <strong>de</strong> seu melodioso cântico (λιγυρη̑ αἰοιδη̑). Nosso autor, se observará, na conexão em<br />

que alu<strong>de</strong> a “os cantos das sereias”, expressa veementemente sua convicção da realida<strong>de</strong><br />

da influência satânica, quando contrastada com o que é meramente fabuloso.


Capítulo 6 • 215<br />

ciona a palavra τινὲς (algum). Mas sou antes <strong>de</strong> opinião que é mais<br />

provável o apóstolo estar falando <strong>de</strong> todos eles. Realmente consi<strong>de</strong>ro<br />

esta palavra (alguns) como sendo supérflua, em consonância com a<br />

prática dos gregos que às vezes faziam uso <strong>de</strong>la para efeito <strong>de</strong> ornamento,<br />

mas não como um termo <strong>de</strong> restrição. Todavia, não <strong>de</strong>vemos<br />

entendê-lo como se quisesse dizer que todos se acham envolvidos,<br />

como um todo, como se quisesse atribuir a cada um <strong>de</strong>les todos esses<br />

vícios. Ele, porém, <strong>de</strong>seja apenas realçar que ninguém está livre<br />

<strong>de</strong>sses males enquanto não experimentar o novo nascimento operado<br />

pelo Espírito. Pois <strong>de</strong>vemos crer que a natureza humana universalmente<br />

contém a semente <strong>de</strong> todos os males, senão que alguns vícios<br />

prevalecem e se revelam mais em algumas pessoas do que em outras,<br />

à medida que o Senhor põe diante <strong>de</strong> nossos olhos a <strong>de</strong>pravação da<br />

carne realçada por seus frutos.<br />

É por isso que no primeiro capítulo <strong>de</strong> sua Epístola aos Romanos<br />

Paulo cataloga diferentes tipos <strong>de</strong> vícios e crimes, os quais são<br />

oriundos do fato <strong>de</strong> o homem ignorar a Deus e daquela ingratidão<br />

da qual ele <strong>de</strong>monstrou que todos os <strong>de</strong>screntes são culpados [Rm<br />

1.21-32]; não que cada <strong>de</strong>scrente esteja infectado por todos esses<br />

vícios, mas porque todos são vulneráveis aos mesmos, e ninguém<br />

está isento <strong>de</strong> todos eles. Porquanto a pessoa que não é culpada <strong>de</strong><br />

adultério, peca <strong>de</strong> alguma outra forma. Assim também, no terceiro<br />

capítulo, ele faz com que esses textos se refiram universalmente a<br />

todos os filhos <strong>de</strong> Adão: “sua garganta é sepulcro aberto; seus pés<br />

são velozes para <strong>de</strong>rramar sangue; sua língua é enganosa e peçonhenta”<br />

[Rm 3.13-15]. Não que todos sejam sanguinários e cruéis;<br />

que todos sejam traiçoeiros e maldizentes; mas que, antes <strong>de</strong> se<br />

transformarem em novas criaturas, pela ação divina, um tem a tendência<br />

para a cruelda<strong>de</strong>, o outro para a traição; este para a luxúria<br />

e aquele outro para a falsida<strong>de</strong>. A conclusão é que não há um sequer<br />

em quem não exista alguma evidência da corrupção comum a<br />

todos. Realmente todos nós, como se fôssemos um só ser, estamos,<br />

por uma predisposição interior e secreta da mente, sujeitos a todos


216 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

os vícios, exceto quando o Senhor os refreia em nosso íntimo para<br />

que não venham a lume em forma <strong>de</strong> atos. 28 O significado, pois, é<br />

simplesmente o seguinte: antes <strong>de</strong> receberem a graça da regeneração,<br />

alguns dos coríntios tinham sido avarentos; outros, adúlteros;<br />

outros, extorsores; outros, efeminados; outros, maldizentes; mas<br />

agora, visto que foram verda<strong>de</strong>iramente libertados por Cristo, já<br />

não são mais como o eram outrora.<br />

Não obstante, a intenção do apóstolo é humilhá-los, <strong>de</strong>spertando<br />

sua memória para sua condição <strong>de</strong> outrora, para em seguida<br />

incitá-los ao reconhecimento da graça divina em seu favor. Porque<br />

a maioria <strong>de</strong> nós reconhece a miséria da condição da qual a benignida<strong>de</strong><br />

do Senhor nos resgatou, e agora vemos muito mais nitidamente<br />

a rica plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua graça. Ora, o enaltecimento da graça é uma<br />

fonte 29 <strong>de</strong> exortações; porque precisamos prestar diligente atenção<br />

para que a benignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus não seja <strong>de</strong>smerecida, visto que<br />

ela <strong>de</strong>ve ser tida na mais elevada estima. É como se ele dissesse: “É<br />

bastante que Deus vos arraste para fora daquele lamaçal no qual<br />

uma vez vivestes imersos.” Pedro fala em termos similares: “Porque<br />

é bastante que no tempo da vida passada fizéssemos a vonta<strong>de</strong> dos<br />

gentios” [1Pe 4.3].<br />

Mas fostes lavados. Paulo usa três expressões para transmitir<br />

uma só idéia, com o fim <strong>de</strong> mais eficientemente <strong>de</strong>tê-los <strong>de</strong> recaírem<br />

na condição da qual haviam escapado. Daí, embora todos esses três<br />

termos se refiram à mesma idéia geral, há, não obstante, gran<strong>de</strong> força<br />

em sua própria varieda<strong>de</strong>. Porque há um contraste implícito entre<br />

lavagem e mácula; santificação e contaminação; justificação e culpa.<br />

Sua intenção é dizer que, uma vez haviam sido justificados, então<br />

não <strong>de</strong>vem arrastar-se outra vez a uma nova con<strong>de</strong>nação; havendo<br />

sido santificados, não <strong>de</strong>vem contaminar-se outra vez; havendo sido<br />

28 “Suiets a toutes sortes <strong>de</strong> vices, sinon entant que le Seigneur les reprime au <strong>de</strong>dans, afind<br />

qu’ils ne sortent <strong>de</strong>hors, et vienent à estre mis en effet.” – “Vulneráveis a todos os tipos<br />

<strong>de</strong> vícios, a não ser que o Senhor os restrinja interiormente, para que não prorrompam<br />

exteriormente e se concretizem na prática.”<br />

29 “Vne fontaine abondante.” – “Uma fonte abundante.


Capítulo 6 • 217<br />

lavados, não <strong>de</strong>vem macular-se com as imundícias da carne. Ao contrário,<br />

<strong>de</strong>vem ir após a pureza, perseverar na genuína santida<strong>de</strong> e<br />

abominar as coisas imundas <strong>de</strong> sua vida pregressa. E disto inferimos<br />

o propósito para o qual Deus nos reconcilia consigo mesmo pela graciosa<br />

remissão <strong>de</strong> pecados.<br />

Embora eu tenha dito que uma coisa é expressa pelo uso <strong>de</strong><br />

três termos, com isso não pretendo dizer que não exista nenhuma<br />

diferença, seja qual for sua importância, porque, propriamente<br />

falando, Deus nos justifica quando ele nos purifica <strong>de</strong> nossas culpas,<br />

não levando em conta nossos pecados; ele nos purifica quando<br />

apaga a lembrança <strong>de</strong> nossos pecados. Assim, a única diferença<br />

entre estes dois termos é que um é literal, enquanto que o outro<br />

é metafórico. A metáfora é a lavagem, porque o sangue <strong>de</strong> Cristo é<br />

consi<strong>de</strong>rado como se fosse água. Em contrapartida, ele santifica ao<br />

transformar nossa natureza corrupta pela ação <strong>de</strong> seu Espírito, e<br />

assim a santificação tem a ver com a regeneração. Nesta passagem,<br />

porém, o único propósito do apóstolo era expressar-se em mais <strong>de</strong><br />

uma forma com o fim <strong>de</strong> magnificar a graça <strong>de</strong> Deus, a qual nos libertou<br />

das ca<strong>de</strong>ias do pecado, para que viéssemos apren<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ste<br />

fato o quanto <strong>de</strong>vemos retroce<strong>de</strong>r-nos <strong>de</strong> tudo quanto incita a ira e<br />

a vingança <strong>de</strong> Deus contra nós.<br />

No nome do Senhor Jesus. Paulo faz uma distinção apropriada e<br />

judiciosa entre ofícios diferentes. Porque o sangue <strong>de</strong> Cristo é a causa<br />

<strong>de</strong> nossa purificação; <strong>de</strong> sua morte e ressurreição obtemos justiça<br />

e santificação. Visto, porém, que a purificação efetuada por Cristo,<br />

e a obtenção da justiça, não são <strong>de</strong> nenhum préstimo exceto para<br />

os que se fizeram participantes <strong>de</strong>ssas bênçãos pela influência do<br />

Espírito Santo, é com proprieda<strong>de</strong> que ele faça menção do Espírito<br />

em conexão com Cristo. Este, portanto, é a fonte <strong>de</strong> todas as bênçãos<br />

para nós; é <strong>de</strong>le que obtemos todas as coisas. Mas Cristo mesmo,<br />

com todas suas bênçãos, nos é comunicado pelo Espírito. Porque<br />

recebemos a Cristo pela fé; e é pela fé que seus benefícios [gratiæ]<br />

nos são aplicados. O autor da fé é o Espírito.


218 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

12. Todas as coisas me são lícitas,<br />

porém nem todas as coisas são convenientes;<br />

todas as coisas me são<br />

lícitas, porém não me submeterei<br />

ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> nenhuma.<br />

13. Os alimentos são para o estômago,<br />

e o estômago para os alimentos;<br />

Deus, porém, reduzirá a nada tanto<br />

aquele como estes. Ora, o corpo<br />

não é para a fornicação, mas para<br />

o Senhor, e o Senhor para o corpo.<br />

14. E Deus, que ressuscitou o Senhor,<br />

também nos ressuscitará por seu<br />

próprio po<strong>de</strong>r.<br />

15. Não sabeis que vossos corpos são<br />

membros <strong>de</strong> Cristo? E eu, pois, tomarei<br />

os membros <strong>de</strong> Cristo e os<br />

farei membros <strong>de</strong> uma meretriz?<br />

Que Deus nos livre!<br />

16. Ou, não sabeis que aquele que se<br />

une a uma meretriz faz-se um corpo<br />

com ela? Porque os dois, diz ele, se<br />

tornarão uma só carne.<br />

17. Mas aquele que se une ao Senhor é<br />

um só espírito.<br />

18. Fugi da fornicação. Todo pecado<br />

que um homem pratica é fora do<br />

corpo; mas aquele que comete a<br />

fornicação peca contra seu próprio<br />

corpo.<br />

19. Ou não sabeis que vosso corpo é o<br />

templo do Espírito Santo que está<br />

em vós, que ten<strong>de</strong>s da parte <strong>de</strong><br />

Deus, e que não sois <strong>de</strong> vós mesmos?<br />

20. Porque sois comprados por preço;<br />

portanto glorificai a Deus em vosso<br />

corpo e em vosso espírito, que são<br />

<strong>de</strong> Deus.<br />

12. Omnium mihi est potestas, at non<br />

omnia conducunt: omnium mihi est<br />

potestas, sed ego sub nullius 30 redigar<br />

potestatem.<br />

13. Escæ ventri, et venter escis: Deus<br />

vero et has et illum <strong>de</strong>struet. Corpus<br />

autem non scortationi, sed<br />

Domini, et Dominus corpori.<br />

14. Porro Deus et Dominum suscitavit,<br />

et nos suscitabit per potentiam<br />

suam.<br />

15. An nescitis, quod corpora vestra<br />

membra sunt Christi? tollens igitur<br />

membra Christi, faciam membra<br />

meretricis? Absit.<br />

16. An nescitis, quod qui adhæret<br />

meretrici, unum corpus est? erunt<br />

enim, inquit, duo in carnem unam.<br />

17. Qui autem Domino adhæret, unus<br />

spiritus est.<br />

18. Fugite scortationem. Omne peccatum<br />

quod commiserit homo, extra<br />

corpus est: qui autem scortatur, in<br />

proprium corpus peccat.<br />

19. An nescitis, quod corpus vestrum<br />

templum est Spiritus sancti, qui in<br />

vobis est, quem habetis a Deo, et<br />

non estis vestri?<br />

20. Empti enim estis pretio: glorificate<br />

iam Deum in corpore vestro et in<br />

spiritu vestro, quæ Dei sunt.<br />

30 “D’aucune chose, ou d’aucun.” – “De nada ou <strong>de</strong> ninguém.”


Capítulo 6 • 219<br />

12. Todas as coisas me são lícitas. Alguns intérpretes envidam<br />

gran<strong>de</strong>s esforços para <strong>de</strong>terminar a conexão <strong>de</strong>ssas coisas, 31 como parece<br />

ser o <strong>de</strong>sígnio do apóstolo. Omitirei as numerosas explicações e<br />

expressarei o que, segundo meu ponto <strong>de</strong> vista, é o mais apropriado.<br />

É bem provável que os coríntios retivessem, mesmo <strong>de</strong>pois daquele<br />

tempo, uma gran<strong>de</strong> porção <strong>de</strong> sua antiga licenciosida<strong>de</strong>, e ainda saboreassem<br />

os costumes da cida<strong>de</strong>. Mas on<strong>de</strong> os vícios correm a ré<strong>de</strong>as<br />

soltas e com impunida<strong>de</strong>, 32 o costume é consi<strong>de</strong>rado como lei. Então<br />

recorrem a pretextos indignos com o fim <strong>de</strong> se protegerem. Isso estava<br />

acontecendo ali, on<strong>de</strong> estavam recorrendo ao pretexto da liberda<strong>de</strong><br />

cristã, <strong>de</strong> modo a se permitirem fazer quase tudo. Entregavam-se ao<br />

excesso <strong>de</strong> luxúria. Com isso havia, segundo o costume, uma gran<strong>de</strong><br />

porção <strong>de</strong> orgulho que se misturava a tudo isso. Visto que se tratava<br />

<strong>de</strong> atos externos, não imaginavam que houvesse pecado envolvido<br />

nesses atos. Ainda mais, tudo indica que, à luz das palavras <strong>de</strong> Paulo,<br />

os coríntios abusavam <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong>, numa extensão tal que permitiam<br />

a inclusão da fornicação. Portanto, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> haver falado sobre<br />

seus vícios, é muito apropriado que passe agora à crítica daquelas escusas<br />

enganosas <strong>de</strong> que faziam uso para iludir-se acerca dos pecados<br />

externos.<br />

É evi<strong>de</strong>nte que Paulo está tratando <strong>de</strong> coisas externas que Deus<br />

<strong>de</strong>ixou para a discrição dos crentes. Todavia, falando em termos<br />

gerais, ele ou censura sua excessiva licenciosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma forma indireta,<br />

ou louva a infinita generosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, a qual é o melhor meio<br />

<strong>de</strong> mantermos nossas paixões sob controle. Porque o leitor po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar<br />

como sinal <strong>de</strong> intemperança quando as pessoas que se acham<br />

cercadas <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> riquezas não se mantêm equilibradas<br />

por seus próprios esforços nem impõem limites a si mesmas.<br />

Em primeiro lugar, <strong>de</strong> fato Paulo caracteriza a liberda<strong>de</strong> 33 com duas<br />

31 “A le conioindre avec ce qui a este dit auparauant.” – “Para conectá-lo com o que foi<br />

expresso antes.”<br />

32 “Or où on peche à bri<strong>de</strong> auallée, et là où les vices ne sont point corrigez.” – “On<strong>de</strong> as<br />

pessoas pecam a ré<strong>de</strong>as soltas e on<strong>de</strong> os vícios não são punidos.”<br />

33 “La liberte Chrestienne.” – “Liberda<strong>de</strong> cristã.”


220 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

exceções. Então ele os adverte a não favorecerem a fornicação em<br />

qualquer extensão. As palavras “todas as coisas me são lícitas” <strong>de</strong>vem<br />

ser tomadas como se ele fosse antecipar (κατ̕ ἀνθυποφορὰν) o que os<br />

coríntios po<strong>de</strong>riam dizer, ou como se fosse falar por eles. É como se<br />

dissesse: “Estou a par do tipo <strong>de</strong> resposta que geralmente apresentais<br />

quando quereis evitar uma reprimenda pelos vícios que afetam a outrem.<br />

Vós, naturalmente, imaginais que todas as coisas vos são lícitas,<br />

sem qualquer reserva ou limitação.”<br />

Mas nem todas as coisas são convenientes. Esta é a primeira exceção<br />

por meio da qual ele restringe o uso da liberda<strong>de</strong> – eles não<br />

<strong>de</strong>vem entregar-se a uma licenciosida<strong>de</strong> irrestrita, porque não po<strong>de</strong>m<br />

per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista a necessida<strong>de</strong> da edificação 34 uns dos outros. Quer<br />

dizer: “Não basta que isto ou aquilo nos seja permitido para usado segundo<br />

nossos gostos, pois precisamos atentar bem para o que visa ao<br />

bem <strong>de</strong> nossos irmãos, cujo bem-estar é nossa obrigação consi<strong>de</strong>rar”<br />

[1Co 10.23, 24]. Porque, como ele posteriormente realçará mais plenamente<br />

e como já mostrou em Romanos 14.13 e seguintes, aos olhos <strong>de</strong><br />

Deus cada um <strong>de</strong> per si é interiormente livre, 35 com base na seguinte<br />

condição: que todos <strong>de</strong>vem limitar o uso <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong> com vistas<br />

à edificação mútua.<br />

Mas eu não me submeterei a nenhuma. Esta é a segunda restrição<br />

para a liberda<strong>de</strong> – fomos constituídos senhores <strong>de</strong> todas as coisas,<br />

porém <strong>de</strong> uma forma tal que não <strong>de</strong>vemos pôr-nos sob a servidão <strong>de</strong><br />

nada. Este é o procedimento daqueles que não conseguem controlar<br />

seus próprios apetites. Porque tomo a palavra τινος (algum) como sendo<br />

neutra, e como uma referência não a pessoas, mas a coisas. Daí<br />

o significado ficando assim: “Somos senhores <strong>de</strong> todas as coisas, só<br />

que não <strong>de</strong>vemos fazer mau uso <strong>de</strong>sse senhorio e sofrer uma servidão<br />

por <strong>de</strong>mais ignóbil; <strong>de</strong> modo que, por causa das paixões que são excessivas<br />

e incontroláveis, estamos sob o controle das mesmas coisas<br />

externas que <strong>de</strong>viam estar sob nosso controle. Realmente, quando al-<br />

34 “L’edification du prochain.” – “A edificação <strong>de</strong> seu próximo.”<br />

35 “En sa conscience.” – “Em sua consciência.”


Capítulo 6 • 221<br />

guém é in<strong>de</strong>vidamente obstinado por se aborrecer <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> <strong>de</strong>sistir<br />

<strong>de</strong> algo por causa <strong>de</strong> seus irmãos, o resultado é que o mesmo inevitável<br />

e estupidamente se põe em ca<strong>de</strong>ias.”<br />

13. Os alimentos são para o estômago; e o estômago, para os alimentos.<br />

Paulo aqui mostra como as coisas materiais <strong>de</strong>vem ser usadas<br />

– para satisfazer às necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sta presente vida, a qual se <strong>de</strong>svanece<br />

rapidamente como uma sombra. Isso concorda com o que ele diz<br />

no capítulo 7.31: “... e os que se utilizam do mundo, como se <strong>de</strong>le não<br />

usassem.” E disto <strong>de</strong>duzimos também quão impróprio é que um cristão<br />

terça armas em prol das coisas materiais. 36 Portanto, quando surge alguma<br />

disputa acerca <strong>de</strong> coisas corruptíveis, o crente não <strong>de</strong>ixará que seus<br />

pensamentos sejam dominados pela ansieda<strong>de</strong> oriunda <strong>de</strong>las. Porque<br />

liberda<strong>de</strong> é uma coisa; o mau uso <strong>de</strong>la, outra. Daqui ecoa outra sentença:<br />

“O reino <strong>de</strong> Deus não é comida nem bebida” [Rm 14.17].<br />

Ora, o corpo não é para a fornicação. Tendo mencionado as exceções,<br />

ele agora acrescenta também que nossa liberda<strong>de</strong> não <strong>de</strong>ve<br />

<strong>de</strong> maneira alguma ser expandida <strong>de</strong> forma a incluir a fornicação.<br />

Pois naquele tempo ela era um mal <strong>de</strong> tal maneira prevalecente que<br />

era como se fosse permitida. A mesma coisa po<strong>de</strong> ser lida também<br />

no <strong>de</strong>creto dos apóstolos [At 15.20], on<strong>de</strong> os gentios são proibidos<br />

<strong>de</strong> fomentar a fornicação, e em tal proibição se encontravam coisas<br />

indiferentes. Não há dúvida <strong>de</strong> que houve tal medida em razão da<br />

qual geralmente essas coisas eram consi<strong>de</strong>radas lícitas. Portanto,<br />

Paulo agora diz que a fornicação e o alimento estão em condições diferentes,<br />

porque Deus não <strong>de</strong>stinou o corpo para a fornicação, assim<br />

como <strong>de</strong>stinou o estômago para o alimento. Ele confirma isso pelas<br />

coisas que são opostas ou incompatíveis, porque o corpo é consagrado<br />

a Cristo. Mas é impossível que Cristo seja ligado à fornicação.<br />

Sua adição, “e o Senhor para o corpo”, contribui com boa medida <strong>de</strong><br />

peso, porque, já que Deus o Pai nos uniu a seu Filho, que coisa <strong>de</strong>sditosa<br />

seria separar nossos corpos <strong>de</strong>ssa sacra união e entregá-los a<br />

coisas completamente indignas <strong>de</strong> Cristo. 37<br />

36 “Il s’en faut que l’homme Chrestien se doyue soucier ne <strong>de</strong>batre pour les choses externes.”<br />

– “Um cristão não <strong>de</strong>ve ser solícito ou conten<strong>de</strong>r por coisas externas.”<br />

37 “Choses du tout indignes <strong>de</strong> Christ.” – “Coisas totalmente indignas <strong>de</strong> Cristo.”


222 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

14. E Deus, que também ressuscitou o Senhor. Visualizando a<br />

posição <strong>de</strong> Cristo, Paulo mostra quão inconveniente é a fornicação na<br />

vida <strong>de</strong> um cristão. Porque, visto que Cristo foi recebido na glória celestial,<br />

o que ele tem em comum com as contaminações <strong>de</strong>ste mundo?<br />

Entretanto, dois elementos estão contidos nessas palavras. O primeiro<br />

consiste em ser algo <strong>de</strong>primente e pecaminoso que nosso corpo, que<br />

foi <strong>de</strong>dicado a Cristo, seja profanado pela fornicação, à luz do fato <strong>de</strong><br />

que Cristo mesmo ressuscitou <strong>de</strong>ntre os mortos a fim <strong>de</strong> tomar posse<br />

da glória celestial. O segundo elemento consiste em ser algo <strong>de</strong>sditoso<br />

prostituirmos 38 nosso corpo com as imundícias da terra, uma vez que<br />

seremos participantes 39 da bem-aventurada imortalida<strong>de</strong> e da glória<br />

celestial junto a Cristo. Esta idéia é semelhante em Colossenses 3.1:<br />

“Se fostes ressuscitados juntamente com Cristo” etc.<br />

Não obstante, a diferença que existe é que ali ele está se referindo<br />

somente à ressurreição final, enquanto que nesta passagem ele<br />

faz referência também à primeira ressurreição, ou, seja, a graça do<br />

Espírito Santo por meio da qual somos transformados numa nova<br />

vida. Visto, porém, que a compreensão humana crê ser a ressurreição<br />

algo quase inacreditável [At 26.8], a Escritura, nas passagens<br />

referentes a ela, nos lembra do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus, com o fim <strong>de</strong> confirmar<br />

nossa fé nela [Mt 22.29].<br />

15. Não sabeis que vossos corpos são membros <strong>de</strong> Cristo? Esta é<br />

uma explicação ou, se o leitor preferir, uma elucidação da sentença anterior.<br />

Porque, por amor à concisão, a frase, “o corpo é para o Senhor”,<br />

po<strong>de</strong> afigurar-se um tanto obscura. Assim, à guisa <strong>de</strong> explicação ele diz<br />

que Cristo está tão unido a nós, e nós a ele, que nos tornamos um só<br />

corpo com ele. Segue-se disso que, se me uno a uma meretriz, rasgo<br />

Cristo em pedaços, até on<strong>de</strong> esteja em meu po<strong>de</strong>r fazê-lo; porque é<br />

impossível que eu o force a associar-se com tais impurezas. 40 Ora, vis-<br />

38 “C’est vne meschancete d’abandonner nostre corps, et le prostituer.” – “É uma perversida<strong>de</strong><br />

entregar nosso corpo e prostituí-lo.”<br />

39 293 “Estre vn iour participant.” – “Ser um dia um participante.”<br />

40 “Vne pollution si fa<strong>de</strong> et infame.” – “Uma poluição tão imunda e infame.”


Capítulo 6 • 223<br />

to que tal coisa seria algo absolutamente <strong>de</strong>testável, Paulo usa a frase<br />

com que geralmente repudia algo inconcebível: Que Deus nos livre! 41<br />

É preciso que notemos bem que a união espiritual que temos<br />

com Cristo não é uma questão só da alma, mas igualmente do corpo,<br />

<strong>de</strong> modo que somos carne <strong>de</strong> sua carne etc [Ef 5.30]. A esperança da<br />

ressurreição seria muito débil se nossa união com ele não fosse tão<br />

completa e plenária.<br />

16. Ou não sabeis que aquele que se une a uma meretriz. Ele<br />

realça ainda mais quão seriamente Cristo é injuriado por aquele que<br />

pratica ato sexual com uma meretriz. Porque um outro corpo é formado,<br />

e assim ele separa um membro do corpo <strong>de</strong> Cristo.<br />

Não é <strong>de</strong>finido em que sentido ele se acomoda a seu <strong>de</strong>sígnio a<br />

citação <strong>de</strong> Gênesis 2.24. Porque, se ele o cita com o fim <strong>de</strong> provar que<br />

duas pessoas que cometem fornicação uma com a outra se tornam<br />

uma só carne, então está distorcendo seu significado. Porque Moisés<br />

não está falando ali da coabitação escandalosa e proibida <strong>de</strong> um homem<br />

e uma mulher, mas da união matrimonial que Deus abençoa. Pois<br />

ele ensina que esse laço é tão estreito e indissolúvel que vai além da<br />

intimida<strong>de</strong> que existe entre um pai e seu filho; o que certamente não se<br />

po<strong>de</strong> dizer da fornicação. Esta consi<strong>de</strong>ração às vezes me leva a pensar<br />

que esta citação não foi introduzida em confirmação da frase imediatamente<br />

anterior, mas precisamente o oposto, como segue: “Moisés<br />

afirma que o esposo e a esposa se tornam uma só carne nos laços matrimoniais,<br />

mas aquele que se une ao Senhor não se torna apenas uma<br />

só carne, mas também um só espírito com ele.” 42 E assim toda esta<br />

seção visa a tornar mais claro o efeito e a dignida<strong>de</strong> da união espiritual<br />

[coningium] existente entre nós e Cristo.<br />

Não obstante, se alguém enten<strong>de</strong> que esta explicação não é inteiramente<br />

satisfatória, visto parecer forçada, apresentarei outra. Visto<br />

41 “Pour ce que ce ceci est vne chose abominable, et que nous <strong>de</strong>uons auoir en horreur.” –<br />

“Como essa é uma coisa abominável, e <strong>de</strong>vemos enfrentá-la com aversão.”<br />

42 “Mais nous sommes faits non seulement vne mesme chair auec le Seigneur, auquel nous<br />

adherons,mais aussi vn mesme esprit.” – “Mas não nos tornamos meramente uma só<br />

carne com o Senhor, a quem estamos jungidos, mas também um só espírito.”


224 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

que a fornicação é a corrupção <strong>de</strong> uma instituição divina, existe alguma<br />

semelhança entre ambas. E o que se diz do matrimônio, em alguma<br />

extensão po<strong>de</strong>-se aplicar à fornicação, não com intuito <strong>de</strong> conce<strong>de</strong>r-<br />

-lhe o mesmo valor, 43 mas para que se exiba ainda mais nitidamente<br />

a hedion<strong>de</strong>z do pecado. As palavras, “e os dois se tornarão uma só<br />

carne”, referem-se, estrita e propriamente falando, exclusivamente aos<br />

que são casados. No entanto, são aplicados aos fornicadores que se<br />

encontram numa união corrupta e impura, <strong>de</strong> modo que a contaminação<br />

passe <strong>de</strong> um para o outro. 44 Pois não há nenhum absurdo em<br />

dizer que a fornicação contém alguma semelhança com a sacralida<strong>de</strong><br />

do matrimônio, como sendo, por assim dizer, uma corrupção <strong>de</strong>le.<br />

A fornicação, porém, está sob a maldição <strong>de</strong> Deus, enquanto que o<br />

matrimônio está sob sua bênção: Esta é a natureza da semelhança entre<br />

coisas que são contrastadas entre si. Entretanto, preferiria tomar<br />

essas palavras como se referindo, primariamente, ao matrimônio, e<br />

então como inapropriadamente 45 aplicadas à fornicação. Eu o poria assim:<br />

“Deus <strong>de</strong>clara o esposo e a esposa como sendo uma só carne a fim<br />

<strong>de</strong> que qualquer um <strong>de</strong>les tenha conexão com outra carne; <strong>de</strong> modo<br />

que o adúltero e a adúltera se tornem uma só carne, e se envolvam em<br />

uma conexão maldita.” E isso certamente é mais simples e concorda<br />

melhor com o contexto.<br />

17. Aquele que se une ao Senhor. Ele adiciona isto com o fim <strong>de</strong><br />

mostrar que a união [coniunctionem] <strong>de</strong> Cristo conosco é mais íntima<br />

do que a <strong>de</strong> esposo e esposa; e que a primeira é mais preferível do que<br />

a última, <strong>de</strong> modo que a mesma <strong>de</strong>ve ser cultivada através da mais<br />

estrita pureza e fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>. Porque, se um homem que se une a sua<br />

esposa em matrimônio não <strong>de</strong>ve jamais unir-se a uma prostituta, no<br />

43 “Non que la paillardise soit digne <strong>de</strong> estre ornee <strong>de</strong>s louanges qui appartiennt a<br />

l’ordonnance du marriage.” – “Não que a fornicação seja digna <strong>de</strong> ser honrada com os<br />

louvores que pertencem à or<strong>de</strong>nança do matrimônio.”<br />

44 “Pour monstrer que la contagion et vilenie passe <strong>de</strong> l’vn a l’autre.” – “Para mostrar que o<br />

contágio e poluição passam <strong>de</strong> um para o outro.”<br />

45 Nosso autor faz uso do advérbio abusive (impropriamente), provavelmente se referindo<br />

à figura <strong>de</strong> linguagem chamada por Quintiliano (viii. 6) abusio – o mesmo que catacrese<br />

(perversão).


Capítulo 6 • 225<br />

caso dos crentes é ainda muito mais grave, pois não são apenas uma<br />

só carne com Cristo, mas também um só espírito. E assim há aqui uma<br />

comparação entre o maior e o menor.<br />

18. Fugi da fornicação. Todo pecado etc. Uma vez havendo tratado<br />

da probida<strong>de</strong> da conduta, Paulo agora mostra como <strong>de</strong>vemos olhar<br />

para a fornicação com o mais extremo horror, tendo em mente quão<br />

<strong>de</strong>sditosa e imunda ela é. Ele se esten<strong>de</strong> sobre o assunto, fazendo comparação<br />

entre ela e todos os <strong>de</strong>mais pecados, porque, <strong>de</strong> todos os<br />

pecados, este é o único que mancha o corpo com estigma <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraça.<br />

Naturalmente que o corpo é também maculado pelo roubo, pelo homicídio<br />

e pela embriaguez, em concordância com estes textos e outros<br />

similares: “Vossas mãos estão manchadas <strong>de</strong> sangue” [Is 1.15]; “Assim<br />

como oferecestes vossos membros como instrumentos da iniqüida<strong>de</strong>”<br />

[Rm 6.19]. Por causa disso, e a fim <strong>de</strong> evitar essa confusão, alguns<br />

enten<strong>de</strong>m as palavras “seu próprio corpo” como uma referência a<br />

nós que estamos unidos a Cristo. Quanto a mim, porém, isso parece<br />

mais engenhoso do que exato. Além disso, nem assim eles escapam<br />

do problema, porque a mesma coisa po<strong>de</strong> se dizer tanto da idolatria<br />

quanto da fornicação. Pois aquele que se prostra diante <strong>de</strong> um ídolo<br />

peca contra a união com Cristo. Portanto, minha explicação é que<br />

ele não nega completamente que há outros pecados, os quais também<br />

atraem <strong>de</strong>sgraça e <strong>de</strong>sonra sobre nossos corpos, a mesma mácula repugnante<br />

que causa a fornicação. 46 Naturalmente que minhas mãos se<br />

mancham pelo roubo ou pelo homicídio; minha língua, pela calúnia ou<br />

pelo perjúrio; 47 meu corpo todo, pela embriaguez; mas a fornicação<br />

<strong>de</strong>ixa em nosso corpo um estigma tão in<strong>de</strong>levelmente impresso, como<br />

nenhum outro pecado po<strong>de</strong> fazê-lo. Em concordância com esta comparação,<br />

ou, em outros termos, no sentido <strong>de</strong> menos ou mais, diz-se que<br />

outros pecados são fora do corpo; porém não significa como se não<br />

afetassem absolutamente o corpo, tomando cada um <strong>de</strong> per si.<br />

46 “N’en <strong>de</strong>meure point tellement imprimee en nostre corps.” – “Não ficam impressos em<br />

nosso corpo da mesma maneira.”<br />

47 “Par mesdisance, <strong>de</strong>traction, et perinre.” – “Pela maledicência, <strong>de</strong>tração e perjúrio.”


226 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

19. Ou não sabeis que vosso corpo. Paulo usa mais dois argumentos<br />

que provam que <strong>de</strong>vemos abster-nos <strong>de</strong>ssa imundícia. O primeiro<br />

é que “nossos corpos são templos do Espírito”; e o segundo é que não<br />

vivemos sob nossa própria jurisdição, visto que o Senhor nos adquiriu<br />

para si como sua proprieda<strong>de</strong> particular. Há uma ênfase implícita no<br />

uso do termo templo, pois, visto que o Espírito <strong>de</strong> Deus não po<strong>de</strong> permanecer<br />

num ambiente impuro, só nos tornamos sua moradia quando<br />

nos consagramos como seus templos [Sl 132.14]. Que gran<strong>de</strong> honra<br />

Deus nos confere em querer habitar em nós! Portanto, <strong>de</strong>vemos viver<br />

em pleno temor a fim <strong>de</strong> não o expulsarmos, e ele, por sua vez, nos<br />

abandone, irado com nossos atos sacrílegos. 48<br />

E que não sois <strong>de</strong> vós mesmos. Este é o segundo argumento, a<br />

saber: que não estamos a nossa própria disposição, vivendo segundo<br />

nosso bel-prazer. A razão que ele apresenta em prol <strong>de</strong>sse fato é que<br />

o Senhor já pagou o preço <strong>de</strong> nossa re<strong>de</strong>nção, e nos adquiriu para ele<br />

mesmo. Paulo, em termos similares, diz em Romanos 14.9: “Porque foi<br />

para isto que Cristo morreu e ressuscitou, para ser Senhor tanto dos<br />

mortos como dos vivos.”<br />

Ora, a palavra preço po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada <strong>de</strong> duas formas: ou simplesmente<br />

entendê-la num sentido literal, quando comumente falamos<br />

<strong>de</strong> algo como tendo “um preço”, 49 quando <strong>de</strong>sejamos <strong>de</strong>ixar bem claro<br />

que não o obtemos <strong>de</strong> graça; ou quando usamos, em vez do advérbio<br />

τιμίως, “alto custo”, “muito caro”, quando costumamos <strong>de</strong>screver as<br />

coisas que nos custam um valor muito alto. Em minha opinião, não há<br />

dúvida <strong>de</strong> que o segundo é mais satisfatório. Pedro escreve em termos<br />

similares: “Sabendo que não foi com coisas corruptíveis, como prata<br />

ou ouro, que fostes resgatados <strong>de</strong> vossa vã maneira <strong>de</strong> viver. Mas com<br />

o precioso 50 sangue <strong>de</strong> Cristo, como <strong>de</strong> um cor<strong>de</strong>iro imaculado e in-<br />

48 “Par nos vilenies plenes <strong>de</strong> sacrilege.” – “Por nossas máculas, saturadas <strong>de</strong> sacrilégio.”<br />

49 Assim, ἐξευρίσκειν τιμη̑ς τι é empregado por escritores clássicos no sentido <strong>de</strong> obter algo<br />

por preço, isto é, por preço elevado. Veja-se Heródoto vii.119.<br />

50 Nosso autor evi<strong>de</strong>ntemente tem seus olhos voltados para o epíteto τιμίος (precioso),<br />

como usado pelo apóstolo Pedro, em referência ao sangue <strong>de</strong> Cristo – τιμίω αἱματι, ὡς<br />

ἀμνου ἀμώμου κ.τ.λ. – “precioso sangue, como <strong>de</strong> um Cor<strong>de</strong>iro sem mácula” etc.


Capítulo 6 • 227<br />

contaminado” [1Pe 1.18, 19]. A suma <strong>de</strong> tudo isso 51 é: que a re<strong>de</strong>nção<br />

nos mantenha sob limites, e com um freio <strong>de</strong> obediência restrinja a<br />

licenciosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossa carne.<br />

20. Glorificai a Deus. À luz <strong>de</strong>sta conclusão torna-se evi<strong>de</strong>nte<br />

que os coríntios assumiam para si a liberda<strong>de</strong>, nas coisas exteriores,<br />

quanto ao que era necessário restringir e refrear. Portanto, a censura<br />

consiste nisto: ele mostra que o corpo está sujeito a Deus, não menos<br />

que a alma, e que, conseqüentemente, é razoável que ambos sejam<br />

<strong>de</strong>votados à glória <strong>de</strong> Deus. É como se ele quisesse dizer: “Como é conveniente<br />

que a mente do cristão <strong>de</strong>va ser pura diante <strong>de</strong> Deus, assim<br />

também <strong>de</strong>ve ser com sua conduta externa diante dos homens, visto<br />

que o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> ambas está nas mãos <strong>de</strong> Deus, que redimiu a ambas<br />

[mente e conduta].” Com o mesmo propósito em vista, ele assevera,<br />

no versículo 19, que não é só nossa mente que é templo do Espírito<br />

Santo, mas também nosso corpo, <strong>de</strong> modo que não tenhamos ilusão,<br />

nos inocentando diante <strong>de</strong>le, pois só po<strong>de</strong>remos fazer isso quando nos<br />

<strong>de</strong>dicarmos a seu serviço, total e completamente, para que, por meio<br />

<strong>de</strong> sua palavra, regulemos bem inclusive as ações externas <strong>de</strong> nossa<br />

vida.<br />

51 “Le sommaire et la substance du propos revient là.” – “A suma e substância do discurso<br />

equivalem a isto.”


Capítulo 7<br />

1. Ora, no que se refere às coisas que<br />

me escrevestes, é bom para o homem<br />

não tocar uma mulher.<br />

2. Não obstante, por causa da fornicação,<br />

cada um tenha sua própria<br />

esposa, e cada uma tenha seu próprio<br />

esposo.<br />

1. Porro, <strong>de</strong> quibus scripsistis mihi,<br />

bonum est viro mulierem non tangere.<br />

2. Propter fornicationes autem unusquisque<br />

uxorem suam habeat, et<br />

unaquæque proprium maritum.<br />

Uma vez que esteve falando <strong>de</strong> fornicação, ele agora faz uma transição<br />

a<strong>de</strong>quada para o tema do matrimônio, que é o remédio para se<br />

evitar a fornicação. Ora, tudo indica que, a <strong>de</strong>speito das gran<strong>de</strong>s dispersões<br />

na igreja <strong>de</strong> Corinto, ainda restava algum respeito por Paulo,<br />

embora enfrentassem ainda alguma dúvida acerca <strong>de</strong> alguns pontos.<br />

Não sabemos quais eram exatamente as questões, exceto o que po<strong>de</strong>mos<br />

<strong>de</strong>duzir <strong>de</strong> sua réplica. Não obstante, sabe-se muito bem que,<br />

imediatamente após a primeira igreja ser fundada, infiltrou-se nela<br />

através das artimanhas <strong>de</strong> Satanás, uma superstição <strong>de</strong> tal vulto que<br />

uma gran<strong>de</strong> proporção <strong>de</strong>les, movidos <strong>de</strong> tola admiração do celibato,<br />

<strong>de</strong>sprezou a sacra conexão do matrimônio. Não só isso, porém muitos<br />

<strong>de</strong>les o consi<strong>de</strong>ravam como algo aversivo, como algo até mesmo profano.<br />

É provável que esta infecção havia se espalhado também entre os<br />

coríntios; ou, no mínimo, havia alguns espíritos extremamente indispostos<br />

que, dando <strong>de</strong>masiada importância ao celibato, 1 se esforçavam<br />

1 “C’est à dire, l’abstinence du mariage.” – “Equivale dizer, a abstinência do matrimônio.”


230 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

em alienar do matrimônio a mente dos crentes. Ao mesmo tempo,<br />

diante do fato <strong>de</strong> que o apóstolo ministrava seu ensino em referência a<br />

muitos outros assuntos, ele avalia que tinha examinado muitos <strong>de</strong>les.<br />

O que é primordialmente importante é que atentemos bem para sua<br />

doutrina acerca <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>les.<br />

1. É bom para o homem. Sua réplica consiste <strong>de</strong> duas partes. Ele<br />

ensina, antes <strong>de</strong> tudo, que seria bom se todo homem se abstivesse <strong>de</strong><br />

mulher, contanto que fosse capaz <strong>de</strong> o fazer. Em segundo lugar, ele<br />

modifica isso, dizendo que, visto que muitos não po<strong>de</strong>m agir assim<br />

em <strong>de</strong>corrência da fraqueza <strong>de</strong> sua carne, tais pessoas não <strong>de</strong>vem<br />

negligenciar o remédio que se encontra a seu alcance como lhes foi<br />

<strong>de</strong>signado pelo Senhor. Agora <strong>de</strong>vemos observar o que ele quis dizer<br />

pela palavra bom, ao asseverar que é bom abster-se do matrimônio, a<br />

não ser que cheguemos à conclusão, oposta ao que se preten<strong>de</strong>, que<br />

a união matrimonial é portanto nociva. Isso é o que suce<strong>de</strong>u no caso<br />

<strong>de</strong> Jerônimo, não tanto em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> ignorância, mas, em minha opinião,<br />

mais motivado pelo calor das controvérsias. Pois embora esse<br />

famoso homem fosse dotado <strong>de</strong> excelentes virtu<strong>de</strong>s, não obstante<br />

ele laborava sob um sério <strong>de</strong>feito, ou, seja, nos <strong>de</strong>bates costumava<br />

vencer recorrendo a excessivas extravagâncias, e assim nem sempre<br />

se preocupava em manter-se <strong>de</strong>ntro dos limites da verda<strong>de</strong>. Portanto,<br />

a inferência que aqui extraímos é como segue: “É bom não tocar<br />

uma mulher, portanto é errado tocá-la.” 2 Certamente Paulo aqui não<br />

usa o termo bom nesse sentido, ao ponto <strong>de</strong> realçar o que é mal ou<br />

saturado <strong>de</strong> vício. Ele apenas mostra o que é mais vantajoso à vista<br />

<strong>de</strong> todos os problemas, aborrecimentos e responsabilida<strong>de</strong>s, os<br />

quais envolvem aqueles que contraem os laços matrimoniais. Por<br />

isso <strong>de</strong>vemos sempre prestar atenção à modificação que ele adiciona.<br />

Portanto, as palavras <strong>de</strong> Paulo não po<strong>de</strong>m permitir nada mais que<br />

isto, a saber: que é <strong>de</strong>veras vantajoso e conveniente a um homem<br />

2 Nosso autor, quando comenta Mateus 19.10, critica em termos fortes a maneira <strong>de</strong> Jerônimo<br />

tratar o tema do matrimônio, <strong>de</strong>scobrindo “uma maliciosa e ímpia disposição”.<br />

Harmonia, vol. ii. p386.


Capítulo 7 • 231<br />

não viver preso a uma esposa, contanto que ele seja capaz <strong>de</strong> viver<br />

sem ela. Expliquemo-lo fazendo uso <strong>de</strong> uma analogia [similitudine].<br />

Alguém diria: “Seria bom que um homem não comesse, não bebesse,<br />

não dormisse”, sem querer dizer que ele estaria con<strong>de</strong>nando a<br />

comida, a bebida ou o sono como coisas em si mesmas nocivas. Ao<br />

contrário, visto que todo o tempo que se dá a essas coisas 3 significa<br />

muito menos tempo para as coisas espirituais, ele estaria querendo<br />

dizer que seríamos mais abençoados se pudéssemos estar livres<br />

<strong>de</strong>sses entraves e <strong>de</strong>votar-nos inteiramente 4 à meditação sobre as<br />

coisas celestiais. Portanto, uma vez que há muitos entraves na vida<br />

matrimonial, os quais interferem na liberda<strong>de</strong> do homem, seria bom,<br />

por essas razões, não se envolver em matrimônio.<br />

Aqui, porém, surge outra questão; pois estas palavras <strong>de</strong> Paulo<br />

aparentam inconsistência em relação às palavras do Senhor em Gênesis<br />

2.18, ou, seja, que “não é bom que o homem viva sem uma esposa”.<br />

A condição expressa pelo Senhor, nesta passagem, é ruim; Paulo, aqui,<br />

ensina que é boa. Respondo que, on<strong>de</strong> a esposa é uma auxiliadora <strong>de</strong><br />

seu esposo, fazendo sua vida feliz, então está em concordância com a<br />

intenção <strong>de</strong> Deus. Porque Deus assim o or<strong>de</strong>nou no princípio, ou, seja,<br />

que o homem sem esposa é apenas a meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> homem, por assim<br />

dizer [quasi dimidius homo], e se sente carente do apoio que pessoalmente<br />

necessita; e a esposa é, por assim dizer, o complemento do<br />

homem [quasi viri complementum]. Posteriormente, o pecado atingiu<br />

e poluiu a instituição divina, pois em lugar <strong>de</strong> uma bênção tão incomensurável,<br />

dolorosa aflição [pœna] nela perpetrou, <strong>de</strong> modo que o<br />

matrimônio se transformou numa fonte e meios <strong>de</strong> muitos problemas.<br />

Assim, todo o mal ou sofrimento que há no matrimônio é oriundo da<br />

corrupção da instituição divina. Embora haja ainda algum resquício da<br />

bênção original, <strong>de</strong> modo que a vida <strong>de</strong> uma pessoa sozinha às vezes é<br />

3 “C’est autant <strong>de</strong> perdu quant aux choses spirituelles.” – “Por isso muito se per<strong>de</strong> em<br />

relação com as coisas espirituais.”<br />

4 “Nous employer entierement et incessamment.” – “Empregam-se inteira e incessantemente.”


232 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

muito mais miserável do que a <strong>de</strong> uma pessoa casada; todavia, à vista<br />

do fato <strong>de</strong> que os casados se envolvem em muitos infortúnios, Paulo é<br />

justificado ao aconselhar que seria bom que o homem se guar<strong>de</strong> <strong>de</strong>le<br />

[o matrimônio]. Dessa forma, aquelas dificulda<strong>de</strong>s que acompanham o<br />

matrimônio não ficam encobertas. E, ao mesmo tempo, nenhum espaço<br />

se permite a jocosida<strong>de</strong>s vulgares, as quais geralmente se propõem<br />

a <strong>de</strong>sacreditar o matrimônio, tais como: “uma esposa é um mal necessário”;<br />

e “uma mulher é o maior <strong>de</strong> todos os males”. Porquanto<br />

provérbios como esses surgiram do laboratório <strong>de</strong> Satanás; e seu objetivo<br />

outro não é senão macular a santa instituição <strong>de</strong> Deus como se<br />

fosse uma <strong>de</strong>sonra; e assim, em conseqüência, os homens se retraem<br />

do matrimônio, como se foge do patíbulo [a capitali noxa] ou da peste.<br />

A suma <strong>de</strong> tudo é: <strong>de</strong>vemos lembrar <strong>de</strong> distinguir entre a or<strong>de</strong>nança<br />

<strong>de</strong> Deus em sua pureza e o castigo do pecado, o qual entrou em<br />

cena em <strong>de</strong>corrência da queda. Porque, <strong>de</strong> acordo com esta distinção,<br />

no princípio era bom para o homem viver unido a uma esposa, sem<br />

qualquer exceção; e mesmo agora é bom, mas somente até certo ponto,<br />

visto que a amargura é mesclada com a doçura, em <strong>de</strong>corrência da<br />

maldição divina. Entretanto, para aqueles que não possuem o dom da<br />

continência, ele é um remédio, o qual é necessário e faz bem à saú<strong>de</strong>,<br />

como se verá em concordância com o que vem a seguir.<br />

2. Mas, por causa da fornicação. Ele agora requer daqueles que se<br />

<strong>de</strong>ixam influenciar pel vício da incontinência, que busquem o recurso<br />

<strong>de</strong>sse antídoto. Pois ainda que tal afirmação pareça ser <strong>de</strong> aplicação<br />

universal, ela <strong>de</strong>ve, contudo, restringir-se aos que se sentem premidos<br />

pela necessida<strong>de</strong>. Cada pessoa <strong>de</strong>ve ser seu próprio árbitro, caso isso<br />

<strong>de</strong>va aplicar-se também a sua pessoa. Portanto, não importa quais são<br />

as dificulda<strong>de</strong>s que sobrevenham ao matrimônio, todos aqueles que<br />

não po<strong>de</strong>m suportar os impulsos da carne <strong>de</strong>vem lembrar que este<br />

mandamento lhes foi imposto pelo Senhor.<br />

Mas alguém perguntará: “A cura da incontinência é a única razão<br />

para se contrair o matrimônio?” Minha resposta é que isso não é o que<br />

Paulo preten<strong>de</strong> dizer. Pois aos que <strong>de</strong>sfrutam do dom da capacida<strong>de</strong>


Capítulo 7 • 233<br />

<strong>de</strong> suprimir o matrimônio, ele dá a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se casarem ou não. 5<br />

Or<strong>de</strong>na, porém, aos <strong>de</strong>mais que queiram casar-se, que atentem bem<br />

para suas fraquezas. O que importa é o seguinte: o que está em jogo<br />

aqui não são as razões pelas quais o matrimônio foi instituído, e, sim,<br />

as pessoas para quem ele é indispensável. Porque, se atentarmos para<br />

o primeiro matrimônio, percebemos que ele não podia ser um remédio<br />

para uma doença, a qual ainda não existia, senão que foi instituído<br />

para a procriação <strong>de</strong> filhos. É verda<strong>de</strong> que <strong>de</strong>pois da Queda acresceu-<br />

-se este outro propósito.<br />

Esta passagem também se opõe à poligamia [πολυγαμία]. Porque o<br />

apóstolo <strong>de</strong>seja que cada mulher tenha seu próprio marido, notificando<br />

que há obrigações mútuas. Portanto, uma vez que o homem tenha<br />

se comprometido a ser leal a sua esposa, ele não <strong>de</strong>ve separar-se <strong>de</strong>la,<br />

como claramente ocorre no caso <strong>de</strong> segundas núpicias.<br />

3. Que o esposo dê à esposa o que lhe<br />

é <strong>de</strong>vido; e <strong>de</strong> igual modo também a<br />

esposa faça ao esposo.<br />

4. A esposa não tem po<strong>de</strong>r sobre seu<br />

próprio corpo, e, sim, o esposo; e <strong>de</strong><br />

igual modo também o esposo não<br />

tem po<strong>de</strong>r sobre seu próprio corpo,<br />

e, sim, a esposa.<br />

5. Não <strong>de</strong>frau<strong>de</strong>is um ao outro, exceto<br />

por mútuo consentimento, por algum<br />

tempo, para que possais <strong>de</strong>dicar-vos<br />

à oração, e vos ajunteis novamente,<br />

para que Satanás não vos tente por<br />

causa <strong>de</strong> vossa incontinência.<br />

3. Uxori vir <strong>de</strong>bitam benevolentiam<br />

vicissim præstet, similiter et uxor<br />

marito.<br />

4. Mulier corporis sui potestatem non<br />

habet, sed maritus: similiter et maritus<br />

corporis sui potestatem non<br />

habet, sed uxor.<br />

5. Ne frau<strong>de</strong>tis alter alterum, nisi ex<br />

mutuo consensu ad tempus, ut<br />

vacetis ieiunio et orationi: et rursum<br />

in unum redite, ne tentet vos<br />

Satanas propter incontinentiam<br />

vestram.<br />

3. Que o esposo dê à esposa. Ele agora estabelece as regras para<br />

a vida dos casados, ou ensina quanto aos <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> esposo e esposa.<br />

E em primeiro lugar ele estabelece uma doutrina geral quanto à bene-<br />

5 “Il laisse la liberté <strong>de</strong> se marier ou ne se marier point.” – “Ele dá liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> casar ou não<br />

casar.”


234 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

volência mútua: que o esposo ame a sua esposa, e que a esposa ame a<br />

seu esposo. Outros interpretam a expressão <strong>de</strong>vida benevolência [<strong>de</strong>bitam<br />

benevolentiam] como sendo “as obrigações do matrimônio”, ou,<br />

seja, os direitos conjugais. Não sei até on<strong>de</strong> isso seja correto. O que os<br />

impele a formular este conceito é o que vem imediatamente a seguir:<br />

“o esposo não tem po<strong>de</strong>r sobre seu próprio corpo” etc. Mas talvez seja<br />

melhor se o entendêssemos como sendo a conclusão da afirmação anterior.<br />

O esposo e a esposa são, portanto, obrigados à boa vonta<strong>de</strong><br />

mútua, e daqui se segue que nem ele, nem ela, tem po<strong>de</strong>r [autorida<strong>de</strong>]<br />

sobre o próprio corpo, seja o <strong>de</strong>le, seja o <strong>de</strong>la.<br />

Mas alguém po<strong>de</strong>ria perguntar: Por que o apóstolo os põe em<br />

pé <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>, e não exige da esposa obediência e sujeição? Minha<br />

resposta é que ele não preten<strong>de</strong> discutir todos seus <strong>de</strong>veres, senão<br />

só a obrigação mútua que diz respeito ao ato sexual. Esposo e esposa,<br />

portanto, têm diferentes direitos e <strong>de</strong>veres em outros aspectos;<br />

porém, na preservação da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> conjugal, eles estão em pé <strong>de</strong><br />

igualda<strong>de</strong>. Pela mesma razão, a poligamia [πολυγαμία] é novamente<br />

con<strong>de</strong>nada, pois se é uma condição constante do matrimônio que<br />

o homem renuncie o po<strong>de</strong>r sobre seu próprio corpo, e se <strong>de</strong>dique a<br />

sua esposa, como po<strong>de</strong>ria ele em seguida agir como se fosse livre,<br />

juntando-se a outra mulher?<br />

5. Não <strong>de</strong>frau<strong>de</strong>is um ao outro. As pessoas profanas po<strong>de</strong>rão<br />

concluir, dizendo que Paulo não é suficientemente mo<strong>de</strong>sto em tratar<br />

das intimida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> esposo e esposa; ou, pelo menos, que isso<br />

era inconveniente para a dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um apóstolo. Mas se consi<strong>de</strong>rarmos<br />

as razões que o impeliram, <strong>de</strong>scobriremos que ele se viu<br />

forçado a falar <strong>de</strong>sses assuntos. Em primeiro lugar, ele estava cônscio<br />

<strong>de</strong> quão po<strong>de</strong>rosamente uma simulação <strong>de</strong> pureza facilmente<br />

engana as mentes piedosas, como sabemos da própria experiência.<br />

Porque Satanás nos hipnotiza, usando o que parece ser a coisa certa<br />

a fazer, <strong>de</strong> modo que chegamos a pensar no ato sexual com nossas<br />

esposas como algo que nos torna impuros, e chegamos a pensar em<br />

<strong>de</strong>sfazer nossa vocação e assumir outro estado <strong>de</strong> vida. Além disso,


Capítulo 7 • 235<br />

Paulo sabia como cada um é inclinado ao amor próprio e ávido a<br />

satisfazer seus próprios <strong>de</strong>sejos. Esta é a razão por que um esposo,<br />

tendo satisfeito sua paixão, não só negligencia sua esposa, mas ainda<br />

a <strong>de</strong>spreza. E são poucos os que às vezes não são surpreendidos<br />

pelo sentimento <strong>de</strong> aversão por suas esposas. É por essas razões que<br />

ele trata tão criteriosamente da obrigação mútua do matrimônio. É<br />

como se quisesse dizer: “Se em algum tempo penetrar na mente dos<br />

esposos o <strong>de</strong>sejo pela vida solitária, visto ser esta mais santa, ou<br />

porque são tentados por <strong>de</strong>sejos promíscuos, 6 lembrem-se <strong>de</strong> que<br />

estão obrigados por obrigação mútua. O homem é apenas a meta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> seu corpo, e o mesmo se dá com a mulher. Eles não têm, portanto,<br />

a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha, senão que, ao contrário, <strong>de</strong>vem manter-se<br />

limitados por estes pensamentos: em razão <strong>de</strong> um ser <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do<br />

apoio do outro, Deus nos uniu para vivermos juntos, <strong>de</strong> modo a auxiliarmos<br />

um ao outro. E assim, que cada um auxilie o outro em suas<br />

necessida<strong>de</strong>s; e nem aja cada um como se o outro <strong>de</strong>vesse satisfazer<br />

seu próprio gosto.”<br />

Exceto por mútuo consentimento. Ele requer “consentimento<br />

mútuo”, em primeiro lugar porque a questão não é simplesmente <strong>de</strong><br />

continência <strong>de</strong> uma das partes, mas <strong>de</strong> ambas. Imediatamente ele também<br />

adiciona duas outras exceções. A primeira é que só <strong>de</strong>ve ser feito<br />

temporariamente, visto que a continência não está em seu po<strong>de</strong>r. De<br />

outra forma, po<strong>de</strong>riam tentar <strong>de</strong> tudo para empreen<strong>de</strong>r mais do que<br />

seriam capazes, e assim cair nas malhas <strong>de</strong> Satanás. A segunda exceção<br />

é que não <strong>de</strong>vem abster-se do ato sexual como se a abstinência<br />

fosse em si mesma uma obra boa e santa, ou como se fosse um meio<br />

<strong>de</strong> cultuar a Deus; 7 mas para que sejam capazes <strong>de</strong> separar tempo para<br />

os empreendimentos <strong>de</strong> maior priorida<strong>de</strong>.<br />

Ora, ainda que Paulo houvera feito uma bem cuidadosa provisão<br />

neste sentido, Satanás, contudo, tinha a vantagem, ao ponto <strong>de</strong> con-<br />

6 “Ou qu’ils soyent tentez <strong>de</strong> se <strong>de</strong>baucher en paillardises.” – Ou são tentados a contaminar-se<br />

com prostitutas.”<br />

7 “Un seruice agreable à Dieu.” – “Um serviço agradável a Deus.”


236 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

vencer 8 a muitos da prática do divórcio ilícito, com base em um <strong>de</strong>sejo<br />

corrupto por uma vida solteira. Tendo abandonado suas esposas, os<br />

homens buscavam refúgio em uma vida <strong>de</strong> solidão com o intuito <strong>de</strong><br />

agradar melhor a Deus, vivendo como monges. As esposas, contra a<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus esposos, punham o véu, a insígnia do celibato. Nem<br />

por um momento consi<strong>de</strong>ravam que, ao violarem o voto <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />

a seus companheiros, estavam <strong>de</strong>svencilhando-se do jugo do Senhor.<br />

É verda<strong>de</strong> que este vício foi, em alguma medida, corrigido pelos<br />

antigos cânones. Porque proibiam ao esposo <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar sua esposa<br />

contra sua vonta<strong>de</strong> sob o pretexto <strong>de</strong> continência e, semelhantemente,<br />

à esposa <strong>de</strong> negar seu corpo a seu esposo. Não obstante, estavam<br />

errados ao permitirem a ambos <strong>de</strong> viver juntos em perpétuo celibato,<br />

como se os homens tivessem todo direito <strong>de</strong> estabelecer algo que está<br />

em franca oposição ao Espírito <strong>de</strong> Deus. Paulo expressamente or<strong>de</strong>na<br />

aos que são casados a não <strong>de</strong>fraudarem um ao outro exceto temporariamente.<br />

Os bispos lhes permitiam <strong>de</strong>sistir para sempre do ato sexual.<br />

Quem não perceberia o quanto isso é claramente conflitante? Portanto,<br />

que ninguém se surpreenda com nosso franco <strong>de</strong>sacordo, nesta<br />

matéria, com os anciãos que certamente se <strong>de</strong>sviaram da clara afirmação<br />

da Palavra <strong>de</strong> Deus.<br />

Para que possais entregar-vos ao lazer para jejum e oração. Notemos<br />

bem que Paulo não está se referindo aqui ao jejum e oração, em<br />

geral, e sem distinção. A sobrieda<strong>de</strong> e temperança, que <strong>de</strong>ve ser habitual<br />

por parte dos cristãos, é uma espécie <strong>de</strong> jejum. A oração, por sua<br />

vez, <strong>de</strong>ve ser uma prática não só diária, mas também contínua. Paulo,<br />

porém, está se referindo àquele gênero <strong>de</strong> jejum que é uma solene<br />

evidência <strong>de</strong> quebrantamento, que busca <strong>de</strong>sviar a ira <strong>de</strong> Deus; ou por<br />

meio do qual os crentes se preparam para a oração antes <strong>de</strong> empreen<strong>de</strong>rem<br />

alguma tarefa difícil. Semelhantemente, ele sugere o gênero <strong>de</strong><br />

oração que requer um maior e mais concentrado esforço mental. 9 Pois<br />

8 “Solicité et induit plusieurs.” – “Fascinou e induziu a muitos.”<br />

9 “L’affection du cœur plus ar<strong>de</strong>nte et extraordinarire.” – “Uma mais ar<strong>de</strong>nte e extraordinária<br />

aflição mental.”


Capítulo 7 • 237<br />

às vezes nos é necessário <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r-nos <strong>de</strong> tudo mais a fim <strong>de</strong> jejuarmos<br />

e orarmos; por exemplo, quando alguma catástrofe nos ameaça,<br />

o que se nos insinua como sendo um sinal da ira divina; ou quando<br />

passamos a digladiar contra alguma dificulda<strong>de</strong>; ou quando algo muito<br />

importante está para acontecer, tal como a or<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> pastores. 10<br />

Ora, o apóstolo é justificado ao enfeixar estes dois e mantê-los unidos,<br />

porque o jejum é a preparação para a oração; e Cristo também os traz<br />

unidos ao dizer: “Esta espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>mônios não é expulsa senão por<br />

meio <strong>de</strong> jejum e oração” [Mt 17.21].<br />

Portanto, quando Paulo diz para que tenhais lazer, ele quer dizer<br />

que, tendo-se <strong>de</strong>sembaraçado <strong>de</strong> todas as distrações, tivessem condição<br />

<strong>de</strong> ocupar-se <strong>de</strong>ssa única coisa. Ora, se alguém objetar, dizendo<br />

que o ato sexual é algo ruim porque interfere na oração, a resposta é<br />

fácil, ou, seja, ele não se torna pior que comida e bebida que obstruem<br />

o jejum. Os crentes, porém, <strong>de</strong>vem ser discretos na <strong>de</strong>cisão quanto<br />

ao tempo <strong>de</strong> comer e beber, e quanto ao tempo <strong>de</strong> jejuar. E é também<br />

uma questão da mesma discrição saber quando é o tempo certo para<br />

ato sexual com suas esposas, e quando <strong>de</strong>vem diminui-lo para se <strong>de</strong>dicarem<br />

a alguma outra ocupação que reclama sua atenção.<br />

E vos ajunteis novamente, para que Satanás não vos tente. Agora<br />

ele apresenta a razão, com base na ignorância pela qual os homens <strong>de</strong><br />

outrora se equivocavam em fazer um voto irrefletido e inconsi<strong>de</strong>rado<br />

<strong>de</strong> continência vitalícia. Pois arrazoavam <strong>de</strong>sta forma: “Se é bom para<br />

os casados concordarem por algum tempo em não praticarem o ato<br />

sexual, então <strong>de</strong>ve ser muito mais preferível que se abstenham <strong>de</strong>le<br />

permanentemente.” Não consi<strong>de</strong>ravam, porém, quão arriscado era<br />

que se <strong>de</strong>ixassem envolver com tal pensamento, porquanto a Satanás<br />

se oferece a chance <strong>de</strong> nos subjugar, quando não atentamos para algo<br />

que está além dos limites <strong>de</strong> nossa frágil resistência. 11 “Mas Satanás<br />

10 “Comme quand on veut elire ou ordonner <strong>de</strong>s pasteurs et ministres.” – “Como quando as<br />

pessoas <strong>de</strong>sejam eleger ou or<strong>de</strong>nar pastores e ministros.”<br />

11 “Par <strong>de</strong>ssus nos forces, et la mesure <strong>de</strong> nostre imbecilité.” – “Além <strong>de</strong> nossa força e da<br />

medida <strong>de</strong> nossa fraqueza.”


238 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

<strong>de</strong>ve ser resistido”, 12 dirá alguém. Como, se não há armas e nem armadura?<br />

“Então peçamo-las ao Senhor”, dirão eles. No entanto, será<br />

em vão pedirmos que o Senhor venha em nossa <strong>de</strong>fesa numa batalha<br />

temerária. Por essa razão é que precisamos prestar particular atenção<br />

à frase “por causa <strong>de</strong> vossa incontinência”, visto que as fraquezas <strong>de</strong><br />

nossa carne nos expõem às tentações <strong>de</strong> Satanás. Se porventura quisermos<br />

expulsá-las e mantê-las fora <strong>de</strong> nosso curso <strong>de</strong> ação, então que<br />

apliquemos o antídoto que o Senhor forneceu para nossa proteção.<br />

Portanto, aqueles que evitam o ato sexual estão agindo impensadamente;<br />

na verda<strong>de</strong> é como se fizessem um acordo com Deus para a<br />

obtenção <strong>de</strong> perpétua resistência. 13<br />

6. Digo, porém, isto à guisa <strong>de</strong> permissão,<br />

e não por mandamento.<br />

7. Porque eu gostaria que todos os homens<br />

fossem assim como eu sou.<br />

Seja como for, que cada um tenha<br />

<strong>de</strong> Deus seu próprio dom, um <strong>de</strong><br />

uma maneira, o outro <strong>de</strong> outra.<br />

8. Digo, porém, aos solteiros e às viúvas:<br />

seria bom que permanecessem<br />

tais como eu.<br />

9. Mas se não pu<strong>de</strong>rem conter-se, então<br />

que se casem, porque é melhor<br />

casar-se do que abrasar-se.<br />

6. Hoc autem dico secundum veniam,<br />

non secundum præceptum.<br />

7. Optarim enim, omnes homines esse<br />

sicut me: sed unusquisque proprium<br />

donum habet ex Deo, alius<br />

sic, alius autem sic.<br />

8. Dico autem inconiugatis et viduis:<br />

bonum ipsis est, si maneant ut ego.<br />

9. Si autem non continent, matrimonium<br />

contrahant: melius enim et<br />

matrimonium contrahere quam uri.<br />

6. À guisa <strong>de</strong> permissão. Para que não viessem tirar vantagem<br />

<strong>de</strong> uma regra do gênero daquela que ele estabelecera, e soltassem as<br />

ré<strong>de</strong>as da luxúria, 14 Paulo adiciona um elemento restringente. Diz que<br />

escrevera estas coisas com base nas fraquezas <strong>de</strong>les, com o fim <strong>de</strong><br />

12 “Mais (dira quelqu’vn) il faut resister à Satan.” – “Mas (dirá alguém) <strong>de</strong>vemos resistir a<br />

Satanás.”<br />

13 “Qu’il leur donnera tousiours la puissance <strong>de</strong> s’en passer.” – “Para que lhes <strong>de</strong>sse sempre<br />

o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> agir sem ele [o ato sexual].<br />

14 “Leurs affections <strong>de</strong>sordonnees.” – “Seus afetos <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nados.”


Capítulo 7 • 239<br />

lembrá-los que o matrimônio é um remédio para a ausência <strong>de</strong> castida<strong>de</strong>,<br />

para que não abusassem <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nadamente da vantagem <strong>de</strong>la, <strong>de</strong><br />

modo a gratificar por todos os meios seus <strong>de</strong>sejos, sem medida ou sem<br />

mo<strong>de</strong>ração. Ele tem também em vista pôr a <strong>de</strong>scoberto as cavilações<br />

dos perversos, para que ninguém tivesse em seu po<strong>de</strong>r apresentar uma<br />

objeção <strong>de</strong>ste teor: “Ora, ora! Então ten<strong>de</strong>s medo <strong>de</strong> que os esposos e<br />

as esposas não tenham a mesma opinião <strong>de</strong> uma suficiente inclinação<br />

para o <strong>de</strong>leite carnal para o qual estais tão propensos?” Pois inclusive<br />

os papistas, aqueles poucos santos, 15 também se ofen<strong>de</strong>m com esta<br />

doutrina, e <strong>de</strong> bom grado terçam armas com Paulo, com base em sua<br />

<strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> que os casados <strong>de</strong>vem manter a coabitação mútua, e não<br />

lhes permite que se afastem precipitadamente para a vida <strong>de</strong> celibato.<br />

Ele, pois, apresenta a razão para ensinar tal doutrina, e assevera que<br />

não recomendava o ato sexual aos que já eram casados com o fim <strong>de</strong><br />

induzi-los a entregarem-se ao <strong>de</strong>leite, ou como se nutrisse o maior prazer<br />

em or<strong>de</strong>nar tal coisa, mas porque consi<strong>de</strong>rava o que se requeria da<br />

fraqueza daqueles a quem se dirigia.<br />

Os zelotes embrutecidos, 16 <strong>de</strong>fensores do celibato, erram ao fazer<br />

uso <strong>de</strong> ambas as partes <strong>de</strong>ste versículo porque, como Paulo dizia, ele<br />

fala “à guisa <strong>de</strong> permissão” (Secundum veniacos), por isso concluem que<br />

o ato sexual no casamento é pecaminoso; pois on<strong>de</strong> se requer o perdão<br />

17 [venia], o pecado se faz presente. Por outro lado, <strong>de</strong>duzem <strong>de</strong> sua<br />

expressão, “não por mandamento”, que o sinal mais proeminente <strong>de</strong><br />

santida<strong>de</strong> é a isenção do estado conjugal e a volta ao celibato.<br />

Ao primeiro, respondo: embora eu reconheça que todas as afeições<br />

humanas po<strong>de</strong>m escapar seriamente ao controle, não nego que<br />

possa haver também, nesta conexão, falta <strong>de</strong> disciplina (ἀταξία), 18 o<br />

15 “Les hypocrites qui veulent estre estimez <strong>de</strong> petis saincts.” – “Hipócritas, que <strong>de</strong>sejam<br />

ser consi<strong>de</strong>rados como os poucos santos.”<br />

16 “Les sots et indiscrets zelateurs.” – “Zelotes loucos e inconsi<strong>de</strong>rados.”<br />

17 “Où permission et pardon ha lieu.” – “On<strong>de</strong> a permissão e o perdão têm lugar.”<br />

18 O termo ἀταξία é usado por nosso autor na Harmonia (vol. i, p. 320) no sentido <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m,<br />

como contrastado com a condição or<strong>de</strong>ira do reino <strong>de</strong> Deus. Ele contém uma alusão<br />

à conduta <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada dos soldados que abandonam suas posições. É usado neste sentido<br />

por Tucídi<strong>de</strong>s (vii.43).


240 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

que admito ser pecaminoso. 19 E, ainda mais sério, concordo que este<br />

sentimento é mais violento do que os outros, e quase bestial. Contra<br />

isso, porém, sustento também que todo e qualquer vício ou infortúnio<br />

que porventura nele exista será coberto pela dignida<strong>de</strong> do matrimônio,<br />

o que cessa <strong>de</strong> ser vício, ou, pelo menos, cessa <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado<br />

por Deus como tal. Este é o método <strong>de</strong> Agostinho em tratar o assunto,<br />

e por sinal muito bem, em seu livro Das Vantagens do Matrimônio, e às<br />

vezes em outras partes. Po<strong>de</strong>-se sumariá-lo como segue: 20<br />

“O ato sexual entre esposo e esposa é algo puro, é legítimo e santo;<br />

porque é uma instituição divina. A paixão incontrolável com que os<br />

homens são inflamados é um vício oriundo da corrupção da natureza<br />

humana; mas, para os crentes, o matrimônio é um véu que cobre essas<br />

falhas, <strong>de</strong> modo que Deus não mais as vê.”<br />

Eis minha resposta à segunda falsa interpretação <strong>de</strong>ste versículo:<br />

Visto que o termo ‘mandamento’ é apropriadamente dado a questões<br />

no que tange a <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> justiça e a coisas que em si mesmas agradam<br />

a Deus, Paulo, por isso, nega que esteja falando “à guisa <strong>de</strong> mandamento”.<br />

Não obstante, ele já mostrou com suficiente clareza que o remédio<br />

que havia prescrito <strong>de</strong>ve ser necessariamente usado.<br />

7. Porque eu gostaria que todos os homens. Isto está conectado à<br />

explicação da <strong>de</strong>claração anterior. Pois ele não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> notificar qual<br />

é para o cristão o caminho mais conveniente; porém <strong>de</strong>seja que todos<br />

pensem criteriosamente acerca do que Deus quer que cada um seja. 21<br />

Por que, pois, Paulo não disse, como no versículo anterior, “à guisa<br />

<strong>de</strong> mandamento”? A resposta é que ele não <strong>de</strong>sejava constrangê-los<br />

à vida conjugal, mas achava preferível que não sentissem qualquer<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>le. Entretanto, uma vez que isso não é possível a todos,<br />

então ele leva em conta a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les. Além do mais, se esta<br />

passagem houvera sido a<strong>de</strong>quadamente avaliada, essa falsa supersti-<br />

19 “Vn appetit <strong>de</strong>smesuré, lequel ie conce<strong>de</strong> estre vicieux.” – “Um imo<strong>de</strong>rado <strong>de</strong>sejo, o qual,<br />

admito, é vicioso.”<br />

20 “Pour resolution donc <strong>de</strong> ce poinct en peu <strong>de</strong> paroles, disons en ceste sorte.” – “Para uma<br />

solução <strong>de</strong>ste ponto em poucas palavras, expressamo-lo <strong>de</strong>sta forma.”<br />

21 “Donné <strong>de</strong> Dieu.” – “Dado por Deus.”


Capítulo 7 • 241<br />

ção <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o celibato, o qual tem sido a raiz e a causa <strong>de</strong> males<br />

tremendos, nunca teria logrado sucesso no mundo. Aqui Paulo faz sobejamente<br />

evi<strong>de</strong>nte que nem todos <strong>de</strong>sfrutam <strong>de</strong> livre escolha neste<br />

sentido, visto que a virginda<strong>de</strong> é um dom especial, o qual não é outorgado<br />

a todos indiscriminadamente. E ele não está afirmando nada<br />

diferente do que afirmou o próprio Cristo, quando diz que nem “todos<br />

os homens têm a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> receber esta palavra” [Mt 19.11].<br />

Paulo, portanto, é aqui intérprete das palavras <strong>de</strong> nosso Senhor, ao<br />

afirmar que a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver fora do estado conjugal não é concedida<br />

a todos.<br />

E o que tem acontecido sempre? Todos, sem qualquer tirocínio<br />

quanto a sua própria capacida<strong>de</strong>, têm procurado agradar a si próprios,<br />

fazendo um voto <strong>de</strong> perpétua castida<strong>de</strong>. E não só as pessoas comuns<br />

e sem cultura têm cometido esse erro. Pois eminentes doutores, os<br />

quais sinceramente têm aprovado a virginda<strong>de</strong>, e ao mesmo tempo<br />

que passam por alto a fragilida<strong>de</strong> da natureza humana, têm <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rado<br />

esta advertência <strong>de</strong> Paulo – sim, do próprio Cristo. Jerônimo,<br />

levado por um zelo cego não sei <strong>de</strong> que natureza, não simplesmente<br />

fracassa, mas se lança <strong>de</strong> ponta cabeça nesses falsos conceitos.<br />

Concordo que a virginda<strong>de</strong> é um dom admirável, porém não se <strong>de</strong>ve<br />

esquecer que ele não passa <strong>de</strong> um dom. Que ouçam também o que<br />

Cristo e Paulo dizem, isto é, que nem todos o recebem, senão apenas<br />

uns poucos. Portanto, que ninguém faça um voto precipitado se não<br />

está em seu próprio po<strong>de</strong>r controlar-se, o qual não se obtém como um<br />

dom, caso alguém se esqueça <strong>de</strong> sua vocação e aspire algo que esteja<br />

fora <strong>de</strong> seus limites fazê-lo.<br />

Não obstante, os antigos igualmente erraram na importância que<br />

davam à virginda<strong>de</strong>, porque a exaltavam como se fosse a mais excelente<br />

<strong>de</strong> todas as virtu<strong>de</strong>s, e a <strong>de</strong>sejavam que fosse consi<strong>de</strong>rada como<br />

um meio <strong>de</strong> prestar culto a Deus. 22 Mesmo nisto há um danoso erro;<br />

e então vem a lume outro, porque, <strong>de</strong>pois que o celibato começou a<br />

22 “Comme vn service agreable à Dieu.” – “Como um serviço agradável a Deus.”


242 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

ser consi<strong>de</strong>rado como algo em extremo excelente, muitos tentaram<br />

ultrapassar os <strong>de</strong>mais, fazendo votos temerários <strong>de</strong> perpétua castida<strong>de</strong>,<br />

quando dificilmente um por cento <strong>de</strong>les tinha a capacida<strong>de</strong> e o<br />

dom para isso. Um terceiro erro <strong>de</strong>senvolveu-se <strong>de</strong>ste: aos ministros<br />

da Igreja se proibiu o matrimônio, visto que este não parecia ser o<br />

modo <strong>de</strong> vida que conserva a santida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua or<strong>de</strong>m. 23 Deus puniu a<br />

presunção daqueles que menosprezaram o matrimônio e fizeram votos<br />

temerários <strong>de</strong> perene castida<strong>de</strong>, primeiro por meio do fogo secreto<br />

da luxúria, 24 e em seguida por meio <strong>de</strong> práticas horríveis e imundas.<br />

Visto, porém, que os ministros da Igreja foram excluídos do matrimônio<br />

lícito, o resultado <strong>de</strong> tal tirania foi que a Igreja se viu privada <strong>de</strong> um<br />

gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> ministros bons e fiéis; porquanto homens honestos<br />

e sábios não se <strong>de</strong>ixariam enredar em tal armadilha. Finalmente,<br />

após um longo período <strong>de</strong> tempo, a luxúria, que até então havia sido<br />

reprimida, expeliu seu abominável odor. Não foi consi<strong>de</strong>rado como<br />

uma questão <strong>de</strong> pouca importância para aqueles que mantinham<br />

concubinas, isto é, prostitutas, para os quais era uma ofensa capital<br />

possuir uma esposa, e tudo isso impunemente, porém nenhum lar estava<br />

suficientemente seguro das lascívias dos sacerdotes. Mesmo isso<br />

era consi<strong>de</strong>rado uma questão <strong>de</strong> pouca importância, pois ali coisas<br />

monstruosas e ultrajantes vinham à existência, coisas para as quais o<br />

melhor é que sejam mergulhadas em perene olvido do que fazer <strong>de</strong>las<br />

menção à guisa <strong>de</strong> exemplo. 25<br />

8. Digo, porém, aos solteiros. Isso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do que vem antes, e é,<br />

em certo sentido, uma <strong>de</strong>dução <strong>de</strong>le. Porquanto Paulo dissera que os<br />

dons <strong>de</strong> Deus são distribuídos <strong>de</strong> diversas maneiras, que nem todos<br />

possuem o dom da continência e que aqueles que o não possuem <strong>de</strong>vem<br />

buscar seu antídoto no recurso do matrimônio. Agora ele se volve<br />

para os que são castos, a todos os que são solteiros, e às viúvas, e lhes<br />

23 “Comme vn estat indigne et non conuenable à la sanctete <strong>de</strong> l’ordre.” – “Como uma condição<br />

incoveniente e ina<strong>de</strong>quada para a santida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua or<strong>de</strong>m.”<br />

24 “De passions et cupiditez <strong>de</strong>sordonnees.” – “De paixões e luxúrias <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nadas.”<br />

25 O leitor encontrrará o mesmo tema amplamante tratado por nosso autor nas Institutas,<br />

vol. iii, pp. 268-272.


Capítulo 7 • 243<br />

conce<strong>de</strong> a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> cultivarem a aspiração pelo celibato, caso tenham<br />

capacida<strong>de</strong> para tal; mas, que cada um conheça sua capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ação. O que equivale ao seguinte: que o estado <strong>de</strong> solteiro <strong>de</strong>sfruta<br />

<strong>de</strong> muitas vantagens, e que estas não sejam subestimadas, contanto<br />

que cada um viva feliz com sua condição pessoal. 26 Portanto, ainda<br />

que a virginda<strong>de</strong> seja exaltada até ao terceiro céu, não obstante ainda<br />

permanece sendo verda<strong>de</strong>iro que ela não é praticável a todos, senão<br />

apenas aos que a recebem como dom especial <strong>de</strong> Deus.<br />

Os papistas apresentam uma objeção, dizendo que quando somos<br />

batizados também fazemos a Deus uma promessa <strong>de</strong> que viveremos<br />

uma vida <strong>de</strong> pureza, promessa esta que não temos capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cumprir.<br />

Questão fácil <strong>de</strong> resolver, ou, seja: nesse caso não prometemos<br />

mais do que Deus requer <strong>de</strong> todo seu povo, senão que a continência<br />

é <strong>de</strong>veras um dom especial, o qual Deus não conce<strong>de</strong>u a muitos. Portanto,<br />

aqueles que fazem um voto <strong>de</strong> castida<strong>de</strong> agem precisamente<br />

como uma pessoa inculta, ignorante, que afirma ser um profeta, ou um<br />

mestre, ou um intérprete <strong>de</strong> línguas.<br />

É preciso também atentar bem para o termo continuar. Pois é possível<br />

que uma pessoa leve uma vida <strong>de</strong> continência íntegra por algum<br />

tempo, mas que não <strong>de</strong>ve nutrir o pensamento <strong>de</strong> ser isso <strong>de</strong> caráter<br />

perene. Isaque viveu solteiro até os trinta anos, e permaneceu casto<br />

todos aqueles anos, período esse em que o fogo da paixão é mais<br />

ativo; contudo, em seguida foi chamado ao estado conjugal. Jacó é<br />

um exemplo ainda mais notável. O apóstolo, portanto, <strong>de</strong>sejaria que<br />

os que agora estão cultivando a castida<strong>de</strong> prossigam e perseverarem<br />

nela. Visto, porém, que po<strong>de</strong>riam não ter certeza <strong>de</strong> que este é um<br />

dom permanente, então diz a todos que pon<strong>de</strong>rem sobre qual <strong>de</strong> fato<br />

é seu dom.<br />

Não obstante, esta passagem revela que o apóstolo era solteiro<br />

naquele tempo. A <strong>de</strong>dução <strong>de</strong> Erasmo, <strong>de</strong> que ele era casado, visto<br />

fazer menção <strong>de</strong> si mesmo em conexão com os casados, é frívola e ab-<br />

26 “Se mesure a son aulne (comme on dit) c’est à dire, selon sa faculté.” – “Messam-se por<br />

sua própria vara (como dizem), isto é, segundo sua capacida<strong>de</strong>.”


244 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

surda; po<strong>de</strong>r-se-ia <strong>de</strong>duzir também, usando um raciocínio similar, que<br />

ele era viúvo, 27 visto falar <strong>de</strong> si mesmo em conexão com as viúvas. 28<br />

Não obstante, todo o teor das palavras revela que ele era então solteiro,<br />

pois não consigo aceitar a conjetura <strong>de</strong> que ele se livrara <strong>de</strong> sua<br />

esposa em algum ponto <strong>de</strong> sua história, e que voluntariamente se privara<br />

do leito do matrimônio. Que direito, pois, diria ele aos casados: 29<br />

“e vos ajunteis novamente”? Certamente seria absurdo não obe<strong>de</strong>cer<br />

ele suas próprias diretrizes, não observando a lei que ele mesmo impusera<br />

a outros. Paulo, porém, é um exemplo notável <strong>de</strong> modéstia;<br />

pois enquanto ele mesmo é dotado com o dom da castida<strong>de</strong>, não constrange<br />

outros a seguirem seu procedimento, senão que lhes autoriza o<br />

uso do remédio contra a fraqueza, do qual ele mesmo se privara. Seja<br />

ele um exemplo para nós, <strong>de</strong> modo que, se formos po<strong>de</strong>rosamente<br />

abençoados com algum dom específico, não sejamos excessivamente<br />

severos, requerendo <strong>de</strong> outros a posse do mesmo dom que não tiveram<br />

a bênção <strong>de</strong> possuir.<br />

9. Mas, se não exercem a continência. Embora Paulo os aconselhe<br />

a abster-se do matrimônio, ele sempre se expressa em termos<br />

condicionais: “se possível”, “se forem capazes”. Mas quando a fraqueza<br />

da carne se põe no caminho da liberda<strong>de</strong>, ele novamente os<br />

direciona rumo ao matrimônio, como se este fosse uma questão sobre<br />

a qual não houvesse dúvida alguma. Por isso ele diz: “à guisa <strong>de</strong><br />

mandamento”, para que ninguém viesse a concluir que tal não passava<br />

<strong>de</strong> um conselho; e ele não está simplesmente impondo restrições<br />

aos fornicadores, e, sim, aos que são completamente corrompidos<br />

aos olhos <strong>de</strong> Deus por paixões secretas. Pois não há dúvida <strong>de</strong> que<br />

a pessoa que não é casta tenta a Deus negligenciando o reverso do<br />

matrimônio. Esta é uma questão que requer não <strong>de</strong> conselho, mas <strong>de</strong><br />

estrita proibição.<br />

27 “Qu’il estoit sans femme.” – “Que ele era solteiro.”<br />

28 “Entre ceux qui n’estoyent point mariez.” – “Entre os que eram solteiros.”<br />

29 “Car comment se fust-il donc acquitté <strong>de</strong> ce qu’il comman<strong>de</strong> yci aux gens mariez?” – “Ora<br />

essa, nesse caso ele teria <strong>de</strong>scartado o <strong>de</strong>ver que ele or<strong>de</strong>na às pessoas casadas?”


Capítulo 7 • 245<br />

Porque é melhor. Não há aqui uma comparação estrita, visto que,<br />

como matrimônio lícito, ele é honroso entre todos [Hb 13.4], ao passo que<br />

abrasar-se é algo excessivamente danoso. Entretanto, o apóstolo está seguindo<br />

a forma costumeira <strong>de</strong> expressar-se, ainda que não estritamente<br />

preciso, como costumamos dizer: “É melhor renunciarmos este mundo<br />

para que possamos obter a herança do reino do céu junto a Cristo, do<br />

que perecermos miseravelmente nos prazeres da carne.” Faço tal menção<br />

em razão <strong>de</strong> Jerônimo construir nesta passagem um sofisma pueril: 30<br />

o matrimônio é bom, porque é um mal menor do que viver abrasado.<br />

Diria que, se ele dissera isso com o intuito <strong>de</strong> provocar hilarida<strong>de</strong>, então<br />

não teria conseguido muito; visto, porém, que esta é uma questão muito<br />

séria e importante, ela é um motivo <strong>de</strong> escárnio, e não o que se esperaria<br />

<strong>de</strong> um homem <strong>de</strong> bom senso. Portanto, <strong>de</strong>ve ficar bem explícito que o<br />

matrimônio como antídoto é bom e produz bem-estar, já que abrasar-se<br />

é algo muito mais repugnante e <strong>de</strong>testável aos olhos <strong>de</strong> Deus.<br />

Todavia, abrasar-se precisa ser <strong>de</strong>finido, porquanto muitos são<br />

atingidos pelos <strong>de</strong>sejos da carne, dos quais, não obstante, não se po<strong>de</strong><br />

requerer que busquem imediatamente refúgio no matrimônio. E, conservando<br />

a metáfora <strong>de</strong> Paulo, uma coisa é abrasar-se; e outra, sentir<br />

calor. Conseqüentemente, o que Paulo aqui chama abrasar-se não é <strong>de</strong><br />

modo algum uma leve sensação, mas significa sentir-se tão inflamado<br />

pelo <strong>de</strong>sejo sexual que não se consegue resisti-lo. No entanto, há<br />

aqueles que se ilu<strong>de</strong>m em vão, acreditando que serão absolvidos <strong>de</strong><br />

toda culpa se não se entregarem à concupiscência; por isso <strong>de</strong>vemos<br />

atentar bem para três graus <strong>de</strong> tentação.<br />

(1) Às vezes os assaltos da luxúria são tão fortes, que a vonta<strong>de</strong> é<br />

subjugada; porque o pior tipo <strong>de</strong> excitamento é aquele que faz o coração<br />

queimar-se <strong>de</strong> paixão.<br />

(2) Às vezes somos tão molestados pelos aguilhões da carne, que<br />

relutamos vigorosamente, e não permitimos que o genuíno apreço pela<br />

castida<strong>de</strong> seja expulso <strong>de</strong> nós, senão que, ao contrário, repugnamos<br />

30 “Vn sophisme plus que puerile.” – “Algo pior que um sofisma pueril.”


246 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

todos os <strong>de</strong>sejos inconvenientes e impuros. Portanto, todos precisam<br />

<strong>de</strong> advertência, especialmente os jovens, no sentido que, à medida<br />

em que são assaltados pela paixão sexual, <strong>de</strong>vem opor-se a tais tentações<br />

no temor do Senhor, sem propiciar qualquer oportunida<strong>de</strong> aos<br />

pensamentos impuros, rogando ao Senhor que lhes dê firmeza para<br />

resistirem, empregando todos seus esforços para apagar as chamas<br />

da luxúria. Se fizerem progresso nesta batalha, então que dêem graças<br />

a Deus. Pois quantas pessoas conhecemos cuja carne não lhes causou<br />

sofrimento em alguma medida? Mas se conseguirmos reprimir o pleno<br />

vigor <strong>de</strong> seu ataque antes que possa triunfar sobre nós, faremos bem;<br />

porque, assim não estaremos nos abrasando, ainda que nos sintamos<br />

incomodados pelo calor. Não significa que não haja nada <strong>de</strong> errôneo<br />

na sensação do calor, mas quando reconhecemos nossas fraquezas<br />

diante do Senhor, com humilda<strong>de</strong> e quebrantamento, 31 então po<strong>de</strong>mos,<br />

a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> tudo, ter bom ânimo nos momentos críticos. Em<br />

suma, enquanto, pela graça do Senhor, estivermos obtendo vantagem<br />

na batalha, e os dardos <strong>de</strong> Satanás não estiverem penetrando fundo<br />

em nosso ser, ao contrário estiverem sendo vigorosamente <strong>de</strong>sviados<br />

<strong>de</strong> nós, não fiquemos <strong>de</strong>sanimados em meio ao conflito.<br />

(3) Entre estas duas há um gênero intermediário <strong>de</strong> tentação, 32 a<br />

saber: quando uma pessoa está ainda em sua mente plenamente <strong>de</strong>terminada<br />

a não dar entrada às paixões, contudo se acha inflamada por<br />

alguma cega paixão, e fica tão perturbada que não consegue clamar<br />

a Deus com paz <strong>de</strong> consciência. Portanto, esse gênero <strong>de</strong> tentação, o<br />

qual impe<strong>de</strong> que a oração seja feita espontaneamente a Deus, e interfere<br />

na paz da consciência, é tão abrasante que só po<strong>de</strong> ser extinto<br />

por meio do matrimônio. Agora vemos que, ao <strong>de</strong>liberar sobre isso,<br />

alguém não <strong>de</strong>ve meramente consi<strong>de</strong>rar se po<strong>de</strong> manter seu corpo<br />

incontaminado, mas também <strong>de</strong>ve preocupar-se com sua mente, como<br />

veremos mais adiante.<br />

31 “Auec pleurs et humilité.” – “Com lágrimas e humilda<strong>de</strong>.”<br />

32 “Il y a vne autre espece <strong>de</strong> tentation moyenne entre les <strong>de</strong>ux que i’ay dites.” – “Há outro<br />

gênero <strong>de</strong> tentação intermediária entre as duas que já mencionamos.”


Capítulo 7 • 247<br />

10. Todavia, aos casados or<strong>de</strong>no, não<br />

eu, mas o Senhor, que a esposa não<br />

se separe <strong>de</strong> seu esposo;<br />

11. mas, se ela separar-se, que permaneça<br />

sozinha, ou que se reconcilie<br />

com seu esposo; e que o esposo não<br />

<strong>de</strong>ixe sua esposa.<br />

12. Mas, aos <strong>de</strong>mais digo eu, não o<br />

Senhor: Se algum irmão tem uma esposa<br />

<strong>de</strong>scrente, e ela consente em<br />

viver com ele, não a <strong>de</strong>ixe.<br />

13. E a mulher que tem um esposo <strong>de</strong>scrente,<br />

e ele consente em viver com<br />

ela, não <strong>de</strong>ixe seu esposo.<br />

14. Porque o esposo <strong>de</strong>scrente é santificado<br />

pela esposa, e a esposa<br />

<strong>de</strong>scrente é santificada pelo esposo;<br />

senão seus filhos seriam impuros;<br />

mas agora são santos.<br />

15. No entanto, se o <strong>de</strong>scrente quer<br />

separar-se, que se separe; o irmão<br />

ou irmã, em tais casos, não está sujeito<br />

à servidão; Deus, porém, nos<br />

chamou à paz.<br />

16. Porque, como sabes, ó esposa, se salvarás<br />

teu esposo? Ou, como sabes, ó<br />

esposo, se salvarás tua esposa?<br />

17. E assim, que cada um an<strong>de</strong> <strong>de</strong> acordo<br />

com o que Deus lhe distribuiu,<br />

cada um <strong>de</strong> acordo com a vocação<br />

do Senhor. E assim eu or<strong>de</strong>no em<br />

todas as igrejas.<br />

10. Coniugibus <strong>de</strong>nuntio, non ego, sed<br />

Dominus: Uxor a marito ne discedat.<br />

11. Quodsi discesserit, maneat innupta,<br />

aut viro reconcilietur: et vir<br />

uxorem ne dimittat.<br />

12. Reliquis ego dico, non Dominus: Si<br />

quis frater uxorem habet infi<strong>de</strong>lem,<br />

et ipsa consentit cum eo habitare,<br />

ne dimittat eam:<br />

13. Et mulier si maritum habet infi<strong>de</strong>lem,<br />

et ipse consentit cum ea<br />

habitare, ne relinquat eum.<br />

14. Sanctificatus est enim vir infi<strong>de</strong>lis<br />

in uxore: et sanctificata est uxor incredula<br />

in viro: alioque liberi vestri<br />

immundi essent: nunc autem sancti<br />

sunt.<br />

15. Quod si infi<strong>de</strong>lis discedit, discedat:<br />

non enim subiectus est servituti<br />

frater aut soror in talibus, in pace<br />

autem vocavit nos Deus.<br />

16. Quid enim scis, mulier, an maritum<br />

servatura sis? aut quid scis, O vir,<br />

an uxorem sis servaturus?<br />

17. Nisi unusquisque ut ei gratiam divisit<br />

Dominus, sic ambulet: et sic in<br />

Ecclesiis omnibus præcipio.<br />

10. Aos casados or<strong>de</strong>no. Paulo agora discute outro princípio do<br />

matrimônio, a saber: que ele é um contrato indissolúvel. Portanto, ele<br />

con<strong>de</strong>na todo e qualquer gênero <strong>de</strong> divórcio, o qual era uma ocorrência<br />

diária entre os pagãos, e, no que dizia respeito aos ju<strong>de</strong>us, não era<br />

punido pela Lei Mosaica. Diz ele: “Que o esposo não man<strong>de</strong> embora<br />

sua esposa, e que a esposa não se separe <strong>de</strong> seu esposo.” Por quê?<br />

Porque se acham ligados simultaneamente por um vínculo indissolú-


248 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

vel [individuo nexo coniuncti]. Não obstante, é surpreen<strong>de</strong>nte que ele<br />

não faça uma exceção ao menos no caso <strong>de</strong> adultério, pois é provável<br />

que quisesse con<strong>de</strong>nsar um pouco a doutrina <strong>de</strong> Cristo. Estou plenamente<br />

certo, porém, <strong>de</strong> que ele não fez menção <strong>de</strong>ste ponto em razão<br />

<strong>de</strong> referir-se brevemente a essas questões, e preferiu remeter os coríntios<br />

<strong>de</strong> volta ao que o Senhor permite ou proíbe, em vez <strong>de</strong> passar<br />

revista em tudo, ponto por ponto. Pois quando os mestres planejam<br />

tratar <strong>de</strong> um assunto sucintamente, eles ensinam <strong>de</strong> uma forma geral,<br />

e as exceções são tratadas <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>talhada, bem como <strong>de</strong> forma<br />

mais inclusiva e mesmo com uma abordagem mais precisa.<br />

Ao interpor, porém, “não eu, mas o Senhor”, notifica que, por meio<br />

<strong>de</strong>ssa correção, o que ele ensina aqui é extraído da Lei <strong>de</strong> Deus. Sem<br />

dúvida, ele recebeu também os <strong>de</strong>mais elementos que estava ensinando<br />

através da revelação do Espírito, porém <strong>de</strong>clara que Deus é a fonte <strong>de</strong><br />

tudo isso, diante do fato <strong>de</strong> que tudo tinha sua origem na Lei <strong>de</strong> Deus. Se<br />

o leitor <strong>de</strong>sejar ter uma passagem específica, não a achará em parte alguma<br />

com tantas palavras. Todavia, visto que Moisés <strong>de</strong>clarou no início<br />

que a união <strong>de</strong> esposo e esposa é algo extremamente santo, e que em<br />

razão disso um homem <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>ixar seu pai e sua mãe [Gn 2.24], daqui<br />

po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>duzir facilmente que ela [a união] não po<strong>de</strong> ser pervertida<br />

[inviolabilis]. Porque um filho está naturalmente ligado a seu pai e a sua<br />

mãe, e não há como livrar-se <strong>de</strong>sse jugo. Visto que o laço conjugal é preferível<br />

àquele vínculo, muito menos <strong>de</strong>ve ser ele dissolvido.<br />

11. Mas se ela separar-se. Não se <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar essa afirmação<br />

como uma referência aos que eram separados por adultério. Isso<br />

é evi<strong>de</strong>nte à luz da punição que era aplicada naqueles dias. Porque,<br />

mesmo sob a lei romana, ele era uma ofensa capital, e do mesmo<br />

modo sob a lei comum das nações [ins gentium]. Contudo, visto que<br />

os esposos amiú<strong>de</strong> se divorciavam <strong>de</strong> suas esposas, fosse <strong>de</strong>vido a<br />

que suas atitu<strong>de</strong>s não se ajustavam, ou porque sua aparência pessoal<br />

não lhes agradava, ou <strong>de</strong>vido a qualquer outra forma <strong>de</strong> ofensa; 33 e<br />

33 “Pource qu’elles n’estoyent asez belles, ou pour quelque autre <strong>de</strong>spit ou <strong>de</strong>splaisir.” – “Porque<br />

elas não eram bastante elegantes, ou com base em alguma outra ofensa ou discrepância.”


Capítulo 7 • 249<br />

visto que as esposas às vezes <strong>de</strong>ixavam seus esposos motivadas por<br />

cruelda<strong>de</strong> ou, não seria <strong>de</strong>mais, tratamento grosseiro e inconsi<strong>de</strong>rado,<br />

Paulo nega que o matrimônio seja anulado pelo divórcio ou<br />

diferenças <strong>de</strong>sse gênero. Porquanto ele é um pacto sagrado feito no<br />

nome <strong>de</strong> Deus, o qual não fica <strong>de</strong> pé nem cai segundo o arbítrio humano,<br />

<strong>de</strong> modo a ser invalidado <strong>de</strong> conformida<strong>de</strong> com nosso bel-prazer.<br />

O ponto é este: visto que outros contratos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m simplesmente<br />

do consentimento humano, eles po<strong>de</strong>m ser semelhantemente rescindidos<br />

mediante seu consentimento. Mas, os que foram unidos em<br />

matrimônio e agora se arrepen<strong>de</strong>m do que fizeram, então não são<br />

mais livres para quebrar o compromisso 34 (segundo o adágio) e percorrer<br />

seus próprios caminhos em busca <strong>de</strong> um novo compromisso<br />

com outra pessoa. Porque, se os direitos naturais não po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>struídos,<br />

muito menos este que, como já dissemos, tem precedência<br />

sobre o principal laço da natureza.<br />

Mas ao or<strong>de</strong>nar à esposa, que se acha separada <strong>de</strong> seu esposo,<br />

que permaneça sozinha, ele não quer dizer que a separação é aceitável,<br />

nem permite que a esposa viva separada <strong>de</strong> seu esposo. Mas<br />

se ela foi posta para fora <strong>de</strong> casa, ou se foi rejeitada, então não <strong>de</strong>ve<br />

concluir que mesmo em tais circunstâncias se acha livre da autorida<strong>de</strong><br />

do esposo; pois nenhum esposo tem po<strong>de</strong>res para invalidar um<br />

casamento. Portanto, Paulo não está aqui dando permissão às esposas<br />

<strong>de</strong> se separarem <strong>de</strong> seus esposos, segundo seu próprio arbítrio, nem<br />

<strong>de</strong> viverem longe <strong>de</strong> seu lar comum, como se fossem viúvas. Mas simplesmente<br />

<strong>de</strong>clara que, mesmo aquelas que não são aceitas <strong>de</strong> volta<br />

por seus esposos, permaneçam vinculadas a eles, <strong>de</strong> modo que não<br />

po<strong>de</strong>m unir-se a outros cônjuges.<br />

O que fazer, pois, no caso <strong>de</strong> uma esposa lasciva ou incontinente?<br />

Não é porventura <strong>de</strong>sumano negar-lhe o antídoto do matrimônio,<br />

34 A frase usada pelo autor – frangant tesseram – (quebra <strong>de</strong> compromisso) contém uma<br />

alusão ao costume entre os romanos <strong>de</strong> ter, por ocasião da formação <strong>de</strong> uma aliança<br />

<strong>de</strong> hospitalida<strong>de</strong>, um acordo (tessera) ou peça <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira cortada em duas partes, das<br />

quais cada parte guardava uma. Se ambas as partes agissem inconsistentemente com o<br />

parceiro, <strong>de</strong>le se dizia: confregisse tesseram – ter quebrado o acordo.


250 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

quando vivem constantemente em abrasante <strong>de</strong>sejo? A isso, minha<br />

resposta é que, quando somos atormentados pelas fraquezas da carne,<br />

<strong>de</strong>vemos buscar o antídoto. Além do mais, é o Senhor mesmo quem<br />

<strong>de</strong>ve refrear-nos e restringir-nos por meio <strong>de</strong> seu Espírito, mesmo se<br />

as coisas não vão tão bem quanto gostaríamos. Pois se uma esposa,<br />

por um longo tempo, cai em perene enfermida<strong>de</strong>, nem por isso se justitica<br />

que o esposo busque outra esposa. Semelhantemente, se após<br />

o casamento o esposo começa a sofrer <strong>de</strong> alguma enfermida<strong>de</strong>, a esposa<br />

não po<strong>de</strong>, por esse motivo, fazer repentina transição para outro<br />

estado. Em suma: visto que Deus <strong>de</strong>signou o matrimônio lícito como<br />

o antídoto para nossa incontinência, façamos <strong>de</strong>le uso, para que não<br />

sejamos surpreendidos tentando-o, e venhamos a sofrer a penalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> nossa temerida<strong>de</strong>. Uma vez cumprido esse <strong>de</strong>ver, tenhamos esperanças<br />

<strong>de</strong> que ele nos seja <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> auxílio, se ao contrário as coisas<br />

não correrem <strong>de</strong> acordo com nossas expectativas.<br />

12. Mas, aos <strong>de</strong>mais digo eu. Pela expressão os <strong>de</strong>mais ele tem<br />

em mente aqueles que constituem a exceção, <strong>de</strong> modo que a lei, comum<br />

a outros, não lhes é aplicável. Pois um matrimônio incompatível<br />

está numa base diferente quando as partes que o compõem não têm<br />

a mesma religião. Ele discute esta questão em duas partes. A primeira<br />

é aquela em que a parte crente não <strong>de</strong>ve separar-se da parte <strong>de</strong>scrente,<br />

e não <strong>de</strong>ve recorrer ao divórcio, a menos que ele ou ela se afaste<br />

[repudie tur]. A segunda é esta: se a parte <strong>de</strong>scrente resolve afastar-<br />

-se <strong>de</strong> seu cônjuge por causa <strong>de</strong> questão religiosa, então o irmão ou<br />

irmã fica livre do compromisso conjugal em razão da rejeição do cônjuge.<br />

No entanto, por que Paulo se faz a fonte <strong>de</strong>ssas regras quando as<br />

mesmas parecem conflitar-se em alguma medida com aquelas que ele<br />

mesmo <strong>de</strong>ra anteriormente como sendo do Senhor? Ele não pretendia<br />

que elas fossem oriundas <strong>de</strong>le mesmo <strong>de</strong> tal maneira que o Espírito<br />

<strong>de</strong> Deus não tivesse nada a ver com elas. Mas, já que não houve uma<br />

<strong>de</strong>claração direta e explícita sobre este tema em parte alguma da Lei<br />

e dos Profetas, então ele procurou evitar que os incrédulos viessem<br />

fazer falsas acusações contra ele por assumir a responsabilida<strong>de</strong> pes-


Capítulo 7 • 251<br />

soal pelo que estava para dizer. Todavia, a fim <strong>de</strong> que sua afirmação<br />

não fosse levianamente <strong>de</strong>scartada como sendo produto do cérebro<br />

humano, subseqüentemente dirá que suas afirmações não são meras<br />

fantasias subjetivas. Mas não há nada inconsistente com o que foi<br />

escrito acima, ou, seja: visto que a sacralida<strong>de</strong> do voto conjugal [sanctitas<br />

fi<strong>de</strong>i coniugalis] <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, que mais necessita uma esposa<br />

crente para permanecer com um esposo <strong>de</strong>scrente, <strong>de</strong>pois que ela foi<br />

rejeitada por ele em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> seu ódio a Deus?<br />

14. Porque o esposo <strong>de</strong>scrente é santificado pela esposa. Paulo<br />

resolve uma dificulda<strong>de</strong> que po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar os crentes preocupados. A<br />

intimida<strong>de</strong> conjugal é singular, porque a esposa é a meta<strong>de</strong> do homem<br />

e ambos se tornam uma só carne; e o esposo é a cabeça da esposa e ela<br />

é a companheira do esposo em todas as formas. Assim, aparentemente<br />

é impossível a um homem crente viver com uma esposa <strong>de</strong>scrente,<br />

ou vice-versa, sem que haja contaminação numa relação tão íntima.<br />

Paulo, pois, aqui <strong>de</strong>clara que esse matrimônio não é em nada menos<br />

santo e legítimo, e que não <strong>de</strong>ve pairar qualquer temor <strong>de</strong> haver<br />

contaminação, como se a esposa fosse poluir o esposo. Além disso,<br />

lembremo-nos <strong>de</strong> que ele aqui não está falando <strong>de</strong> novos contraentes<br />

conjugais, e, sim, da manutenção daqueles que já consumaram o contrato.<br />

Porque on<strong>de</strong> se indaga se um homem crente se casaria com uma<br />

mulher <strong>de</strong>scrente, ou se uma mulher crente se casaria com um homem<br />

<strong>de</strong>scrente, então este conselho se faz relevante: “Não vos ponhais em<br />

jugo <strong>de</strong>sigual com os incrédulos, porque não há harmonia entre Cristo<br />

e Belial” [2Co 6.14, 15]. Mas o homem que já está casado não mais tem<br />

a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha; por essa razão se torna distinto o conselho que<br />

ele apresenta.<br />

Embora haja quem interprete a santificação referida aqui em termos<br />

diferentes, eu a consi<strong>de</strong>ro como aplicável simplesmente ao matrimônio.<br />

Meu ponto <strong>de</strong> vista é como segue: Em todos os aspectos, uma esposa<br />

crente parece tornar-se impura no contato com o esposo <strong>de</strong>scrente, <strong>de</strong><br />

modo que a parceria se torna ilícita. Todavia, isso é diferente, porque<br />

a pieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um faz o matrimônio mais santo do que a impieda<strong>de</strong> do


252 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

outro em torná-lo impuro. Conseqüentemente, um crente po<strong>de</strong> viver<br />

com um <strong>de</strong>scrente com sua consciência limpa, porque, no que diz respeito<br />

aos atos sexuais e às relações ordinárias do dia-a-dia, o <strong>de</strong>scrente<br />

é santificado, <strong>de</strong> modo que ele ou ela não contamina o parceiro crente<br />

com sua impureza [pessoal]. Entrementes, esta santificação não é para<br />

o benefício pessoal do parceiro <strong>de</strong>scrente. Seu valor se limita ao fato<br />

<strong>de</strong> que o parceiro crente não é contaminado pelo contato sexual com o<br />

parceiro <strong>de</strong>scrente, e o próprio matrimônio não é profanado.<br />

No entanto, daqui surge uma dúvida. Se a fé <strong>de</strong> um esposo cristão,<br />

ou <strong>de</strong> uma esposa cristã, santifica o matrimônio, segue-se que todos<br />

os matrimônios entre os <strong>de</strong>screntes são impuros e se põem na mesma<br />

categoria da fornicação. A isso respondo: para os <strong>de</strong>screntes nada é<br />

puro, visto que conspurcam, através <strong>de</strong> sua impureza, até mesmo as<br />

mais excelentes e as mais amáveis criações <strong>de</strong> Deus. Assim, é por esse<br />

mesmo prisma que eles também conspurcam o matrimônio, visto que<br />

não reconhecem Deus como a fonte do matrimônio, e por essa razão<br />

não possuem a mínima capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> genuína santificação, e, com<br />

suas consciências culpadas, abusam do matrimônio. Seria ingênuo<br />

concluir disso que o matrimônio, no caso <strong>de</strong>les, está no mesmo nível<br />

da fornicação, visto que, não importa quão impuro seja para eles, não<br />

obstante permanece puro em sua própria natureza, visto que o mesmo<br />

foi or<strong>de</strong>nado por Deus. Ele cumpre as funções <strong>de</strong> preservar a respeitabilida<strong>de</strong><br />

na socieda<strong>de</strong>, e controla os <strong>de</strong>sejos promíscuos. E assim, à<br />

luz <strong>de</strong>sses propósitos, ele é aprovado por Deus, como o são as <strong>de</strong>mais<br />

partes da or<strong>de</strong>m social [ordinis politici]. Portanto, <strong>de</strong>ve-se fazer sempre<br />

uma distinção entre a natureza <strong>de</strong> uma coisa e o uso abusivo <strong>de</strong>la.<br />

Senão seus filhos seriam impuros. Este é um argumento com<br />

base no efeito: “Se vosso matrimônio fosse impuro, então vossos filhos<br />

também nasceriam impuros; no entanto, eles são santos, visto<br />

que vosso matrimônio é também santo. Portanto, assim como a impieda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um dos pais não impe<strong>de</strong> o filho <strong>de</strong> nascer santo, assim ela<br />

não impe<strong>de</strong> o matrimônio <strong>de</strong> ser inerentemente imaculado.” Alguns<br />

gramáticos explicam esta passagem como uma referência à santida<strong>de</strong>


Capítulo 7 • 253<br />

civil [<strong>de</strong> sanctitate civili], ou, seja, os filhos são consi<strong>de</strong>rados legítimos.<br />

Não obstante, precisamente a mesma coisa po<strong>de</strong>-se dizer sobre os filhos<br />

dos <strong>de</strong>screntes. Daí esta explicação cai por terra. Além do mais, é<br />

verda<strong>de</strong> que Paulo <strong>de</strong>sejava aqui mitigar as consciências atribuladas,<br />

<strong>de</strong> modo que ninguém concluísse que ele estivesse restringindo a impureza,<br />

como já ficou expresso. Portanto, esta passagem é mui notável<br />

e se acha fundamentada na mais profunda teologia. Pois ela revela que<br />

os filhos dos crentes são separados dos <strong>de</strong>mais por um privilégio especial,<br />

<strong>de</strong> modo que são consi<strong>de</strong>rados santos na Igreja.<br />

Entretanto, <strong>de</strong> que forma esta <strong>de</strong>claração se harmoniza com o que<br />

Paulo ensina em Efésios 2.3 – que somos todos “por natureza filhos<br />

da ira” –, bem como o clamor <strong>de</strong> Davi: “Eu nasci na iniqüida<strong>de</strong>” etc.<br />

[Sl 51.5]? A isso respondo que há na semente <strong>de</strong> Adão uma propagação<br />

universal tanto do pecado quanto da con<strong>de</strong>nação. Daí, todos<br />

estão incluídos nessa maldição, sejam eles nascidos dos crentes ou<br />

dos ímpios, pois não é na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> regenerados pelo Espírito que<br />

os crentes geram filhos segundo a carne. Conseqüentemente, todos se<br />

acham na mesma condição natural, <strong>de</strong> modo que são vassalos não só<br />

do pecado, mas também da morte eterna. Quanto ao fato <strong>de</strong> o apóstolo<br />

aqui atribuir privilégio especial aos filhos dos crentes, isso emana<br />

da bênção do concerto, por cuja intervenção a maldição da natureza<br />

é <strong>de</strong>struída, e por isso os que por natureza eram impuros, agora são<br />

consagrados a Deus em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> sua graça. Assim Paulo argúi<br />

em Romanos 11.16, dizendo que todos os <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> Abraão são<br />

santos, visto que Deus consumou um concerto <strong>de</strong> vida com ele. “Se<br />

a raiz é santa, então os ramos também o são”, diz ele. E Deus chama<br />

meus filhos a todos os que <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ram <strong>de</strong> Israel. Agora que o muro<br />

divisório foi <strong>de</strong>rrubado, o mesmo concerto <strong>de</strong> salvação, o qual teve<br />

seu início na semente <strong>de</strong> Abraão, 35 nos é comunicado. À luz do fato <strong>de</strong><br />

que os filhos dos crentes são feitos exemplos da comum condição da<br />

humanida<strong>de</strong>, para que sejam separados para o Senhor, por que <strong>de</strong>ve-<br />

35 “Auec Abraham, et auec la semence.” – “Com Abraão e com sua semente.”


254 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

ríamos subtrair <strong>de</strong>les o sinal [do concerto]? Se o Senhor os admite em<br />

sua Igreja, através <strong>de</strong> sua Palavra, por que <strong>de</strong>veríamos negar-lhes o<br />

sinal? Não obstante, precisamente como os filhos dos crentes são santos,<br />

e como muitos <strong>de</strong>les, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> tudo, se tornam <strong>de</strong>generados,<br />

o leitor encontrará o tema explicado nos capítulos 10 e 11 <strong>de</strong> Romanos,<br />

on<strong>de</strong> trato <strong>de</strong>ste assunto ao comentar estes capítulos.<br />

15. Entretanto, se o <strong>de</strong>scrente quer separar-se. Chegamos então<br />

à segunda parte <strong>de</strong> sua discussão do problema do casamento misto.<br />

Neste versículo, Paulo <strong>de</strong>sobriga um esposo fiel que se prontifica a<br />

viver com a esposa <strong>de</strong>scrente, mas que é rejeitado por ela; e, semelhantemente,<br />

<strong>de</strong>sobriga uma esposa que é rejeitada por seu esposo,<br />

embora não haja falta em sua conduta. Pois em tais circunstâncias o<br />

<strong>de</strong>scrente ofen<strong>de</strong> mais a Deus do que mesmo a seu cônjuge. Aqui se<br />

nos <strong>de</strong>para uma razão especial, por que o vínculo [vinculum] primário<br />

e principal não é meramente <strong>de</strong>sfeito, mas totalmente interrompido.<br />

Embora haja quem pense que estamos hoje em quase similar relação<br />

com os papistas, 36 <strong>de</strong>vemos, contudo, consi<strong>de</strong>rar cuidadosamente<br />

qual a diferença entre as duas situações, para que não lancemos precipitadamente<br />

tudo abaixo.<br />

À paz. Os intérpretes também diferem aqui. Pois alguns o interpretam<br />

assim: “Somos chamados à paz, por isso evitemos tudo o que<br />

venha provocar disputas.” Eu o vejo <strong>de</strong> forma mais simples: “Quanto<br />

estiver em nosso po<strong>de</strong>r, cultivemos a paz com todos, porque foi para<br />

isso que fomos chamados [por Deus]. Não <strong>de</strong>vemos, pois, separar-<br />

-nos dos <strong>de</strong>screntes <strong>de</strong> maneira arbitrária, a não ser que eles mesmos<br />

tomem a iniciativa e causem o rompimento. Deus, portanto, nos tem<br />

chamado à paz, a fim <strong>de</strong> que possamos cultivar relações pacíficas com<br />

todos, tratando bem a cada um individualmente.” Assim, isso pertence<br />

à primeira parte <strong>de</strong> sua discussão do problema, ou, seja: os crentes<br />

<strong>de</strong>vem permanecer unidos aos <strong>de</strong>screntes, caso estes concor<strong>de</strong>m etc.;<br />

pois o anseio pelo divórcio é inconsistente com nossa profissão <strong>de</strong> fé.<br />

36 “Que nous auons auiourd’huy semblable cause <strong>de</strong> nous <strong>de</strong>partir d’avec les Papistes.” –<br />

“Que temos nestes dias motivo semelhante para nos separarmos dos papistas.”


Capítulo 7 • 255<br />

16. Porque, como sabes, ó mulher? Os que acreditam que esta<br />

alocução confirma a segunda parte, explicam-na <strong>de</strong>sta forma: “A vacilação<br />

da esperança não <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>ter-vos; porque, como sabeis etc.”<br />

Segundo minha opinião, porém, o benefício a ser alcançado inspira<br />

esta palavra <strong>de</strong> encorajamento, porque é uma gran<strong>de</strong> e maravilhosa<br />

bênção po<strong>de</strong>r a esposa conquistar seu esposo. De fato, os <strong>de</strong>screntes<br />

não se acham numa condição tão extremada que não possam ser<br />

movidos a crer. Certamente que estão mortos; Deus, porém, po<strong>de</strong> ressuscitá-los<br />

<strong>de</strong>ntre os mortos. Portanto, quando a esposa crente nutre<br />

alguma esperança <strong>de</strong> ser eficiente, e não po<strong>de</strong> falar mais do que <strong>de</strong>ve,<br />

senão que por meio <strong>de</strong> sua conduta afetiva <strong>de</strong> vida po<strong>de</strong> reconduzir<br />

seu esposo ao caminho, 37 então ela <strong>de</strong>ve tentar todos os meios antes<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixá-lo. Porque, visto que paira dúvida sobre a salvação <strong>de</strong> uma<br />

pessoa, <strong>de</strong>vemos estar preparados e antes esperar o melhor.<br />

Sua afirmação, porém, <strong>de</strong> que “o esposo po<strong>de</strong> ser salvo através <strong>de</strong><br />

sua esposa”, na verda<strong>de</strong> não é estritamente correta, visto que Paulo<br />

induz o homem a fazer somente o que Deus po<strong>de</strong> fazer. Todavia, não<br />

há nada incongruente nisso. Porque, visto que Deus age visando a um<br />

fim proveitoso através do uso <strong>de</strong> seus instrumentos, ele lhes comunica<br />

seu po<strong>de</strong>r em alguma medida, ou, pelo menos, o associa <strong>de</strong> tal<br />

forma ao serviço <strong>de</strong>les, que diz: o que eu faço é como se eles fizessem.<br />

E assim ele às vezes atribui ao ser humano a honra que é <strong>de</strong>vida exclusivamente<br />

a ele [Deus]. Lembremo-nos, contudo, que não somos<br />

capazes <strong>de</strong> fazer coisa alguma por nós mesmos, mas só até ao ponto<br />

em que formos dirigidos por ele, como seus instrumentos.<br />

17. E assim cada um an<strong>de</strong> <strong>de</strong> acordo com o que Deus lhe dispensou<br />

etc. Isto é o que consta o texto. Entretanto, tenho usado o nominativo 38<br />

(cada um) para que o sentido flua mais naturalmente. O significado é o<br />

seguinte: “A única solução é que cada um leve uma vida em consonância<br />

37 “Au bon chemin.” – “No bom caminho.”<br />

38 Nosso autor se refere à palavra ἑκαστος (cada um), que ocorre na primeira cláusula do<br />

verso no caso dativo, e na segunda cláusula no acusativo, e em ambos os casos traduzida<br />

no nominativo unusquisque (cada um).


256 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

com a graça que lhe foi dada e com a vocação [divina]. Que cada um,<br />

pois, se esforce nesta direção e procure com todo seu empenho servir a<br />

seu próximo, especialmente quando ele <strong>de</strong>ve ser levado a agir assim em<br />

<strong>de</strong>corrência da função específica para a qual foi chamado.” Paulo menciona<br />

duas coisas: “a vocação” e “a medida da graça”, e ele nos concita<br />

a prestarmos atenção nelas quando pon<strong>de</strong>rarmos sobre este assunto.<br />

Deveria ser-nos um gran<strong>de</strong> estímulo, impelindo-nos ao serviço, o fato <strong>de</strong><br />

Deus nos consi<strong>de</strong>rar dignos <strong>de</strong> sermos <strong>de</strong>signados servos <strong>de</strong> sua graça<br />

para a salvação <strong>de</strong> nossos irmãos; em contrapartida, nossa vocação<br />

<strong>de</strong>ve nos manter, por assim dizer, sob o jugo <strong>de</strong> Deus, mesmo quando<br />

alguém se encontre em circunstâncias em extremo <strong>de</strong>sagradáveis.<br />

E isto é o que or<strong>de</strong>no em todas as igrejas. Minha opinião é que<br />

Paulo acrescentou isto a fim <strong>de</strong> refutar as más interpretações <strong>de</strong> alguns<br />

que alegavam atribuir ele a si próprio mais autorida<strong>de</strong> sobre os<br />

coríntios do que ele tinham coragem <strong>de</strong> fazer sobre outros. Todavia,<br />

ele po<strong>de</strong>ria ter também outros propósitos em mente, a saber, que este<br />

ensino podia ter mais peso quando os coríntios enten<strong>de</strong>ssem que o<br />

mesmo já fora disseminado por todas as igrejas. Porquanto abraçamos<br />

mais prontamente o que cremos ter em comum com todos os santos.<br />

Entretanto, os coríntios <strong>de</strong>vem ter ficado aborrecidos por sentirem<br />

sua ré<strong>de</strong>a segurada com mais vigor do que a dos outros.<br />

18. Foi alguém chamado, estando<br />

circuncidado? que permaneça circuncidado.<br />

Foi alguém chamado,<br />

sendo incircunciso? que não se faça<br />

circuncidar.<br />

19. A circuncisão não é nada, e a incircuncisão<br />

nada é; mas, sim, a observância<br />

dos mandamentos <strong>de</strong> Deus.<br />

20. Cada um permaneça na mesma vocação<br />

em que foi chamado.<br />

21. Foste chamado sendo servo? não te<br />

preocupes; mas se ainda po<strong>de</strong>s ser<br />

livre, aproveita a ocasião.<br />

18. Circumcisus aliquis vocatus est? ne<br />

arcessat præputium: in præputio<br />

aliquis vocatus est? ne circumcidatur.<br />

19. Circumcisio nihil est, et præputium<br />

nihil est, sed observatio mandatorum<br />

Dei.<br />

20. Unusquisque in qua vocatione fuit<br />

vocatus, maneat.<br />

21. Servus vocatus es? ne sit tibi curæ:<br />

at si etiam possis liber fieri, magis<br />

utere.


Capítulo 7 • 257<br />

22. Porque, o que foi chamado no<br />

Senhor, sendo servo, é livre no Senhor;<br />

e, da mesma maneira, aquele<br />

que foi chamado, sendo livre, é servo<br />

<strong>de</strong> Cristo.<br />

23. Fostes comprados por preço; não<br />

sejais servos dos homens.<br />

24. Irmãos, que cada um <strong>de</strong> vós permaneça<br />

diante <strong>de</strong> Deus no estado em<br />

que foi chamado.<br />

22. Etenim qui in Domino vocatus est<br />

servus, libertus Domini est: similiter<br />

et qui liber vocatus est, servus<br />

est Christi.<br />

23. Pretio empti estis: nolite fieri servi<br />

hominum.<br />

24. Unusquisque in eo, in quo vocatus<br />

est, fratres, maneat apud Deum.<br />

18. Foi alguém chamado, estando circuncidado? Visto que fizera<br />

referência à vocação, Paulo aproveita a oportunida<strong>de</strong>, como faz com<br />

freqüência, para uma curta digressão, partindo <strong>de</strong> um aspecto particular<br />

ou específico, para uma exortação geral acerca da vocação. Ao<br />

mesmo tempo confirma, fazendo uso <strong>de</strong> diferentes exemplos, o que<br />

dissera acerca do matrimônio. Sua intenção é a seguinte: tendo uma<br />

vez recebido vosso chamamento pelo exercício da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus,<br />

não <strong>de</strong>veis fugir <strong>de</strong>la temerariamente por causa <strong>de</strong> circunstâncias externas.<br />

Seu ponto <strong>de</strong> partida é a circuncisão, pois ela se constituiu num<br />

tema <strong>de</strong> muita disputa entre muitos <strong>de</strong> seu tempo. Contudo ele diz que<br />

ela não faz diferença alguma para Deus, quer para o ju<strong>de</strong>u, quer para o<br />

gentio; e então ele exorta a cada um a viver contente com sua própria<br />

sorte. Devemos sempre lembrar que ele está simplesmente tratando<br />

dos hábitos legítimos da vida, os quais Deus instituiu e controla.<br />

19. A circuncisão é nada. Afora o fato <strong>de</strong> que esta comparação era<br />

a<strong>de</strong>quada para o tema em disputa, Paulo parece tê-lo usado, contudo,<br />

propositadamente, com o fim <strong>de</strong> criticar, <strong>de</strong> passagem, a escrupulosida<strong>de</strong><br />

[superstitionem] dos ju<strong>de</strong>us e a arrogância que <strong>de</strong>monstravam<br />

em relação a ela [a circuncisão]. Porque, já que os ju<strong>de</strong>us se orgulhavam<br />

tanto da circuncisão, era possível que muitos <strong>de</strong>les se sentissem<br />

preocupados com o fato <strong>de</strong> que eles mesmos não eram circuncidados,<br />

imaginando que este fato os pusesse em condição <strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong>. Paulo,<br />

pois, coloca ambas as condições no mesmo nível, para que a aversão


258 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

por uma não conduzisse a um <strong>de</strong>sejo irracional pela outra. Mas o que<br />

ele expressa aqui <strong>de</strong>ve ser entendido como uma referência ao tempo<br />

em que a circuncisão já havia sido abolida; pois se o concerto e o mandamento<br />

<strong>de</strong> Deus estivessem em sua mente, sem dúvida ele teria dado<br />

maior valor à circuncisão. É verda<strong>de</strong> que em Romanos 2.27-29 ele <strong>de</strong>precia<br />

a circuncisão segundo a letra da lei, e assevera que ela não significa<br />

nada aos olhos <strong>de</strong> Deus. Mas, neste ponto, on<strong>de</strong> ele simplesmente põe<br />

a circuncisão e a incircuncisão frente a frente, e então põe ambas no<br />

mesmo nível, é plenamente evi<strong>de</strong>nte que ele fala <strong>de</strong>la como uma questão<br />

<strong>de</strong> indiferença, e <strong>de</strong> nenhuma relevância. Pois sua anulação significa<br />

que o mistério [mysterium] que fora antecipadamente comunicado sob<br />

ela agora não mais lhe pertence; ainda mais, significa que ela não é mais<br />

um sinal, e, sim, algo sem qualquer utilida<strong>de</strong>. Pois, com base nesse<br />

princípio, o batismo assumiu o lugar do símbolo legal, <strong>de</strong> modo que é<br />

suficiente que sejamos circuncidados pelo Espírito <strong>de</strong> Cristo, enquanto<br />

nosso velho homem é sepultado com Cristo.<br />

Mas, sim, a observância dos mandamentos. Visto que este foi<br />

um dos mandamentos enquanto a Igreja se via ainda atrelada às cerimônias<br />

legais, percebemos ser uma questão axiomática o fato <strong>de</strong> a<br />

circuncisão ser abolida com o advento <strong>de</strong> Cristo, <strong>de</strong> modo que, enquanto<br />

aos ignorantes e fracos se permitia fazer uso <strong>de</strong>la, todavia isso<br />

não lhes trouxe benefício algum. Pois aqui Paulo fala <strong>de</strong>la como algo<br />

insignificante. É como se quisesse dizer: “Visto que essas são coisas<br />

meramente externas, não gastemos nosso tempo com elas; mas, antes,<br />

tenhamos nossa atenção posta na pieda<strong>de</strong> e nos <strong>de</strong>veres requeridos<br />

por Deus, os quais são as únicas coisas valiosas a seus olhos.”<br />

No entanto, é uma infantilida<strong>de</strong> os papistas citarem este versículo<br />

com o intuito <strong>de</strong> <strong>de</strong>molir a doutrina da justificação pela fé;<br />

porquanto aqui Paulo não está discutindo a fonte da justiça, ou como<br />

obtê-la. Tudo o que lhe interessa agora é que os crentes dirijam seus<br />

esforços na direção certa. É como se dissesse: “Não gasteis vossas<br />

energias em coisas fúteis; ao contrário, que vos ocupeis com os <strong>de</strong>veres<br />

que agradam a Deus.”


Capítulo 7 • 259<br />

20. Cada um permaneça na vocação. Esta é a fonte da qual outras<br />

coisas se <strong>de</strong>rivam, a saber: cada um <strong>de</strong>ve viver contente com sua vocação,<br />

e persistir nela, e não viver ansioso nem recorrer a algo mais.<br />

Vocação nas Escrituras é uma forma legítima <strong>de</strong> vida, pois se acha relacionada<br />

com o Deus que realmente nos chama 39 – para que ninguém<br />

use mal esta afirmação 40 com o fim <strong>de</strong> justificar os hábitos da vida que<br />

são evi<strong>de</strong>ntemente profanos e pecaminosos.<br />

Aqui, porém, alguém po<strong>de</strong>rá perguntar se Paulo <strong>de</strong>sejava impor<br />

alguma obrigação 41 sobre o povo, pois o que ele diz parece sugerir<br />

que cada um se acha atado a sua vocação, e não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>scartá-la<br />

[por outra]. Ora, seria pedir <strong>de</strong>mais que a um alfaiate 42 se permitisse<br />

apren<strong>de</strong>r outro ofício, ou a um mercador mudar para a agricultura. A<br />

isso respondo que essa não foi a intenção do apóstolo, pois ele apenas<br />

<strong>de</strong>seja corrigir a irrefletida avi<strong>de</strong>z que impele alguns a mudar sua<br />

condição sem qualquer razão plausível, quer sejam impelidos por<br />

alguma superstição ou por algum outro motivo. Além do mais, ele<br />

<strong>de</strong>sperta a cada um também para esta regra – que tenham em mente<br />

o que se a<strong>de</strong>qua a sua vocação. Portanto, ele não estabelece que<br />

cada um <strong>de</strong>va manter <strong>de</strong>terminado hábito <strong>de</strong> vida, uma vez o tenha<br />

adotado; mas, por outro lado, con<strong>de</strong>na o <strong>de</strong>sassossego [<strong>de</strong> espírito] 43<br />

que impe<strong>de</strong> os indivíduos <strong>de</strong> permanecerem satisfeitos como estão,<br />

e aconselha: “Que cada um se aferre a sua ocupação, como expressa<br />

o antigo provérbio.”<br />

21. Foste chamado na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> servo? Vejamos aqui que<br />

Paulo almeja 44 acalmar as consciências dos coríntios, pois insiste que<br />

39 “Car d’autant que ce nom vient d’vn mot qui signifie Appeler, il ha vne correspondance<br />

mutuelle à Diu, qui nous appelle a ceci ou à cela.” – “Pois como este termo provém <strong>de</strong> uma<br />

palavra que significa chamar, ele tem uma mútua relação com Deus, que nos chama para<br />

isto ou aquilo.”<br />

40 “Ceque ie di, afinque nul n’abuse ceste sentence.” – “Coisa essa, digo eu, para que ninguém<br />

use mal esta afirmação.”<br />

41 “Vne obligation et necessite.” – “Uma obrigação e necessida<strong>de</strong>.”<br />

42 “Vn cordonnier.” – “Um sapateiro.”<br />

43 “Paisiblement et en repos <strong>de</strong> conscience.” – “Pacificamente e com a consciêncai tranqüila.”<br />

44 “Tout le but a quoy tend Sainct Paul.” – “Todo o objetivo a que Paulo almeja.”


260 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

os escravos sejam otimistas, e não <strong>de</strong>rrotistas, imaginando que a escravidão<br />

os impediria <strong>de</strong> servir a Deus. Portanto, ele diz: “não vos<br />

preocupeis”; em outros termos: “não vos <strong>de</strong>ixeis dominar pela ansieda<strong>de</strong><br />

sobre como quebrareis vosso jugo, como se ele não fosse uma<br />

condição a<strong>de</strong>quada para se ser cristão; ao contrário disso, manten<strong>de</strong><br />

vossa mente em repouso.” E daqui inferimos não só que há, pela<br />

providência <strong>de</strong> Deus, posições e classes distintas na socieda<strong>de</strong>, mas<br />

também que sua Palavra nos ensina a não ignorá-las.<br />

Mas se ainda po<strong>de</strong>is ser livres. Em minha opinião, a palavra ainda<br />

simplesmente tem esta função: “Se em vez <strong>de</strong> seres servo, ainda<br />

po<strong>de</strong>s tornar-te livre, isso ser-te-ia mais conveniente.” Mas é duvidoso<br />

se Paulo ainda está falando a servos, ou se agora se volta para os que<br />

são livres. No último caso, tornar-se (γενέσθαι) teria sido simplesmente<br />

usado aqui pelo verbo ser. Um e outro significados se ajustam muito<br />

bem, e ambos se convergem para a mesma coisa. Paulo preten<strong>de</strong><br />

mostrar não só que a liberda<strong>de</strong> é boa, mas também que oferece mais<br />

oportunida<strong>de</strong> do que a servidão. Se ele está se dirigindo a servos, então<br />

o sentido será: “Quando te digo que serás livre <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong>, não<br />

te privo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfrutares a liberda<strong>de</strong>, se ela se puser em teu caminho.”<br />

Se ele está falando aos que são livres, será à guisa <strong>de</strong> concessão, em<br />

palavras mais ou menos assim: “Meu conselho aos servos é que sejam<br />

otimistas; embora ser livre seja melhor e mais <strong>de</strong>sejável, 45 uma pessoa<br />

<strong>de</strong>ve po<strong>de</strong>r escolher entre ambas as condições.”<br />

22. Porque, o que foi chamado no Senhor, sendo servo. Ser chamado<br />

no Senhor, na condição <strong>de</strong> servo, significa ser escolhido <strong>de</strong>ntre a<br />

classe escrava, e tornar-se um participante da graça <strong>de</strong> Cristo. Ora, esta<br />

afirmação tem sido usada para injetar ânimo nos servos e, ao mesmo<br />

tempo, refrear o orgulho dos livres <strong>de</strong> nascença. Visto que os escravos<br />

acham sua condição humilhante, porquanto aos olhos do mundo<br />

são indignos e <strong>de</strong>sprezíveis, é-lhes algo precioso que a amargura <strong>de</strong><br />

sua servidão seja aliviada por algum conforto. Aqueles que são livres,<br />

45 “Soit beaucoup meilleur.” – “É muito melhor.”


Capítulo 7 • 261<br />

por outro lado, precisam ser mantidos sob controle, para que não pensem<br />

<strong>de</strong> si mesmos <strong>de</strong> forma por <strong>de</strong>mais altaneira e se expandam em<br />

seu orgulho em razão <strong>de</strong> usufruírem <strong>de</strong> uma posição mais honrosa. O<br />

apóstolo faz ambas as coisas. Porque, visto que a liberda<strong>de</strong> do espírito<br />

é mais preferível que a liberda<strong>de</strong> do corpo, ele sugere que os servos<br />

sejam capazes <strong>de</strong> elevar-se da amargura <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> sua situação,<br />

se ao menos pu<strong>de</strong>rem refletir sobre o inestimável dom que foi <strong>de</strong>rramado<br />

sobre eles. Paulo ainda diz que os que <strong>de</strong>sfrutam <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> não<br />

<strong>de</strong>vem vangloriar-se, uma vez que se acham em pé <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> com<br />

os servos naquilo que mais importa. Naturalmente que não <strong>de</strong>vemos<br />

concluir <strong>de</strong>sse fato que os homens livres <strong>de</strong>vam assumir uma posição<br />

inferior à <strong>de</strong> um servo, o que poria a or<strong>de</strong>m social [politicum ordinem]<br />

<strong>de</strong> ponta cabeça. O apóstolo estava consciente <strong>de</strong> que ambas eram necessárias.<br />

Os que <strong>de</strong>sfrutavam <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> tinham <strong>de</strong> ser refreados,<br />

como já disse, para não per<strong>de</strong>rem o controle <strong>de</strong> si próprios e passarem<br />

a insultar os servos. Aliás, algum ânimo tinha <strong>de</strong> ser injetado nos servos<br />

para que não se <strong>de</strong>ixassem dominar pelo <strong>de</strong>sânimo. Ambas estas coisas<br />

têm muita importância na estabilida<strong>de</strong> da or<strong>de</strong>m social, ao ensinar ele<br />

que a <strong>de</strong>svantagem física é compensada pelo benefício espiritual.<br />

23. Fostes comprados por preço. Encontramos estas palavras<br />

no capítulo anterior [1Co 6.20], porém com um propósito distinto. Ali<br />

apresentei minha explicação do termo preço. Aqui neste versículo seu<br />

objetivo é certamente que os servos não têm que viver ansiosos com<br />

sua situação, mas <strong>de</strong>seja que tomem cuidado para não se entregarem<br />

aos ímpios ou viciosos <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> seus senhores. “Pois somos consagrados<br />

ao Senhor, visto que ele nos redimiu; portanto, não sejamos<br />

impuros com o fim <strong>de</strong> agradar aos homens, e é precisamente o que<br />

fazemos quando nos submetemos às coisas nocivas que eles impõem.”<br />

Esta advertência era muitíssimo necessária naquele tempo, quando os<br />

servos eram forçados, por meio <strong>de</strong> ameaças e açoites, e até mesmo<br />

pelo medo da morte, a submeter-se a todo gênero <strong>de</strong> exigências, sem<br />

qualquer po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> escolha ou exceção, <strong>de</strong> modo que os homens consi<strong>de</strong>ravam<br />

a procura <strong>de</strong> prostitutas, e outras práticas <strong>de</strong>primentes da


262 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

mesma espécie, como sendo <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> escravos, no mesmo nível do<br />

trabalho honesto. Portanto, Paulo é justificado em fazer esta acepção,<br />

ou, seja, que não obe<strong>de</strong>cessem nem se entregassem a práticas in<strong>de</strong>centes<br />

e ímpias. Gostaria que todos tivessem uma ampla e completa<br />

noção disto em sua mente, e assim tantos não se prostituiriam para<br />

satisfazer às inclinações dos homens, como se estivessem à venda.<br />

Mas, quanto a nós, lembremo-nos <strong>de</strong> que pertencemos ao Senhor, que<br />

nos redimiu.<br />

24. Permaneça diante <strong>de</strong> Deus. Tenho proposto que nesta passagem<br />

os homens aqui não são obrigados por uma necessida<strong>de</strong> perpétua,<br />

<strong>de</strong> forma que nunca lhes é permitido mudar sua condição, ainda que<br />

naquele tempo as chances fossem mínimas para se conseguir isso.<br />

Paulo está apenas procurando refrear esses impulsos, <strong>de</strong>sencontrados<br />

pela razão que empurra muitos para lá e para cá, <strong>de</strong> modo a se<br />

sentirem confusos por seu constante <strong>de</strong>sassossego. Paulo, pois, diz<br />

que para Deus não faz diferença quais os meios <strong>de</strong> sobrevivência <strong>de</strong><br />

uma pessoa neste mundo, uma vez que essa diversida<strong>de</strong> não impe<strong>de</strong> a<br />

concordância na prática da pieda<strong>de</strong>.<br />

25. Ora, quanto às virgens, não tenho<br />

mandamento do Senhor; dou, porém,<br />

meu veredito, como alguém<br />

que obteve do Senhor a misericórdia<br />

para ser fiel.<br />

26. Suponho, pois, que isso é bom por<br />

causa do presente sofrimento, a saber,<br />

que seria bom para o homem<br />

permanecer como está.<br />

27. Estás ligado a uma esposa? não<br />

procures separação. Estás livre <strong>de</strong><br />

esposa? não busques uma esposa.<br />

28. Mas, se te casares, não estarás pecando;<br />

e se uma virgem casar-se,<br />

não estará pecando. Todavia, os<br />

mesmos sofrerão tribulação na carne;<br />

e eu gostaria <strong>de</strong> poupar-vos.<br />

25. De virginibus autem præceptum<br />

Domini non habeo: sed consilium<br />

do, tanquam misericordiam consequutus<br />

a Domino, ut sim fi<strong>de</strong>lis.<br />

26. Arbitror igitur hoc bonum esse<br />

propter instantem necessitatem,<br />

quod bonum sit homini sic esse.<br />

27. Alligatus es uxori? ne quæras solutionem.<br />

Solutus es ab uxore? ne<br />

quæras uxorem.<br />

28. Quodsi etiam duxeris uxorem, non<br />

peccasti: et si nupserit virgo, non<br />

peccavit: attamen afflictionem in<br />

carne habebunt eiusmodi. Ego autem<br />

vobis parco.


Capítulo 7 • 263<br />

25. Quanto às virgens. Paulo agora volta à discussão sobre o<br />

matrimônio, assunto que estivera discutindo na primeira parte do capítulo.<br />

Ora, ele já fizera menção do tema que está para introduzir, mas<br />

<strong>de</strong> forma abreviada e não muito explícita. Portanto, ele propõe apresentar<br />

uma explicação mais nítida do que pensa sobre a virginda<strong>de</strong>.<br />

Mas, visto que este tema se acha cercado <strong>de</strong> malentendido e dificulda<strong>de</strong>s,<br />

ele sempre se expressa em termos cordiais, como veremos. Ele<br />

aqui consi<strong>de</strong>ra o termo virgens no sentido <strong>de</strong> o próprio estado <strong>de</strong> virginda<strong>de</strong>.<br />

Ele diz que “não tem mandamento do Senhor” sobre o assunto,<br />

visto que em parte alguma das Escrituras Deus diz exatamente quem<br />

<strong>de</strong>ve permanecer perenemente solteiro. Mas, em contrapartida, visto<br />

que a Escritura diz que homem e mulher foram criados concomitantemente<br />

[Gn 2.21], parece tratar todos, no tocante ao matrimônio, em<br />

termos <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> e sem qualquer exceção. 46 Pelo menos o celibato<br />

nunca foi estabelecido nem or<strong>de</strong>nado a alguém.<br />

Ele diz que ministra um conselho, não como se houvesse nele alguma<br />

dúvida, com pouca ou nenhuma estabilida<strong>de</strong>, mas como sendo<br />

certo e merecedor <strong>de</strong> ser mantido sem qualquer controvérsia. E a palavra<br />

que usa, γνώμη, não só significa conselho, mas também veredito<br />

<strong>de</strong>cisivo. 47 Além do mais, os papistas <strong>de</strong>duzem erroneamente disto<br />

que é permitido ir além dos limites da Palavra <strong>de</strong> Deus. Pois se alguém<br />

observar mais <strong>de</strong> perto verá que Paulo não introduz nada aqui que<br />

Cristo não tenha incluído em suas palavras, em Mateus 5.32 e 19.5-12.<br />

Paulo, porém, antecipando uma objeção, reconhece que não tem um<br />

preceito expresso na lei, ressaltando quem <strong>de</strong>ve ou quem não <strong>de</strong>ve<br />

casar -se.<br />

Como alguém que obteve a misericórdia do Senhor para ser fiel.<br />

Ele reivindica autorida<strong>de</strong> para seu veredito, no caso <strong>de</strong> alguém concluir<br />

que po<strong>de</strong>ria rejeitá-la se quisesse. Pois ele <strong>de</strong>clara que não está<br />

46 “Appelle indifferemment et sans exception tous hommes et femmes à se marier.” –<br />

“Chama ao consórcio nupcial todos os homens e mulheres indiscriminadamente e sem<br />

exceção.”<br />

47 Esse é o ponto <strong>de</strong> vista que Beza assume do significado do termo aqui – “Sententiam in<br />

hac re meam dico.” – “Eu lhe dou minha <strong>de</strong>cisão autoritativa quanto a esta questão.”


264 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

falando como mero homem, mas como fiel mestre da Igreja e apóstolo<br />

<strong>de</strong> Cristo. Segundo seu costume, ele se <strong>de</strong>clara em dívida para com<br />

a misericórdia <strong>de</strong> Deus, 48 porquanto esta não é uma honra ordinária,<br />

senão que exce<strong>de</strong> a todos os méritos humanos. Daqui se faz evi<strong>de</strong>nte<br />

que, seja o que for que tenha sido introduzido na Igreja pela autorida<strong>de</strong><br />

humana, 49 não tem nada em comum com este conselho <strong>de</strong> Paulo.<br />

Além do mais, fiel aqui significa alguém que é leal à verda<strong>de</strong>, ou, seja,<br />

não apenas que cumpre piedosamente os <strong>de</strong>veres a ele impostos, mas<br />

também que se acha equipado com conhecimento para ensinar com<br />

pureza e fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>. Pois não basta que um mestre seja consciencioso,<br />

se ele também não for pru<strong>de</strong>nte e familiarizado com a verda<strong>de</strong>.<br />

26. Suponho, pois, que isto é bom. Embora eu traduza esta passagem<br />

<strong>de</strong> Paulo <strong>de</strong> forma diferenciada <strong>de</strong> Erasmo ou da Vulgata, não<br />

obstante o significado que dou é o mesmo <strong>de</strong>les. Eles divi<strong>de</strong>m as palavras<br />

<strong>de</strong> Paulo <strong>de</strong> tal forma que a mesma coisa se repete duas vezes.<br />

Em contrapartida, formo uma única proposição, e não <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong><br />

autorida<strong>de</strong>, pois estou seguindo manuscritos antigos e confiáveis que<br />

trazem uma única proposição, com a divisão feita unicamente por uma<br />

vírgula. Assim, o significado é o seguinte: “Em via das ‘dificulda<strong>de</strong>s’<br />

[propter necessitatem] que sempre esmagam os santos nesta vida,<br />

acredito que a melhor solução é que todos usufruam da liberda<strong>de</strong> e<br />

vantagens do celibato, enquanto isso lhes for vantajoso.” Entretanto,<br />

alguns consi<strong>de</strong>ram dificulda<strong>de</strong>s [necessitatem] como um conceito<br />

aplicável especificamente aos próprios dias e geração do apóstolo,<br />

quando os crentes se vissem inevitavelmente envolvidos num gran<strong>de</strong><br />

volume <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s; mas, parece-me que em vez disso ele está se<br />

referindo às coisas preocupantes nas quais os crentes estão constan-<br />

48 A palavra original, ἠλεημένος, a qual tem ocasionado não poucas dificulda<strong>de</strong>s aos<br />

intérpretes, é engenhosamente entendida por Granville Penn, sem seu Supplemental Annotaations,<br />

como sendo uma variação dialética <strong>de</strong> ηλημενος, para ειλημενος, obrigado (<strong>de</strong><br />

ειλεω, obrigar), em cujo caso o significado seria este: “como alguém obrigado pelo Senhor<br />

a ser fiel.” Tomando a palavra neste prisma, a expressão é muito semelhante à que encontramos<br />

empregada pelo apóstolo num capítulo subseqüente <strong>de</strong>sta Epístola (1Co 9.16).<br />

49 “Du cerueau <strong>de</strong>s hommes.” – “Do cérebro humano.”


Capítulo 7 • 265<br />

temente se envolvendo nesta presente vida. Portanto, vejo-a como se<br />

esten<strong>de</strong>ndo a todas as gerações, e o tomo neste sentido: no mundo, os<br />

santos são freqüentemente empurradas <strong>de</strong> um lado para outro e expostos<br />

a muitos e diferentes tipos <strong>de</strong> tormentos, 50 a tal ponto que sua<br />

condição parece ser ainda mais <strong>de</strong>sfavorável no matrimônio. A frase<br />

“permanecer como está” [sic esse] significa “permanecer solteiro” ou<br />

“abster-se do matrimônio”.<br />

27. Estás ligado a uma esposa? Tendo <strong>de</strong>clarado qual seria mais<br />

vantajoso, ele acrescenta que não <strong>de</strong>vemos <strong>de</strong>ixar-nos influenciar <strong>de</strong>masiadamente<br />

pelas vantagens do celibato, ao ponto que os que se<br />

acham unidos pelos laços conjugais queiram se ver livres <strong>de</strong>les. Portanto,<br />

isso modifica a sentença anterior, <strong>de</strong> modo que alguém que se<br />

<strong>de</strong>ixasse impressionar pela recomendação <strong>de</strong> Paulo, não daria ao celibato<br />

tanto valor em <strong>de</strong>trimento do matrimônio, sem atentar bem para<br />

sua própria necessida<strong>de</strong> e vocação. Além disso, com estas palavras<br />

ele não está meramente proibindo o rompimento dos laços conjugais,<br />

mas também procura reprimir os <strong>de</strong>sentendimentos que geralmente<br />

rastejam no âmbito conjugal, <strong>de</strong> modo que alguém possa continuar<br />

vivendo com sua esposa espontânea e alegremente.<br />

Estás livre <strong>de</strong> esposa? Esta segunda sentença <strong>de</strong>ve ser tomada<br />

com certa reserva, como se manifesta em todo o contexto. Daí, ele<br />

não conce<strong>de</strong> a todos a escolha do celibato perpétuo, mas somente<br />

àqueles a quem é ele concedido. Portanto, que ninguém que não se<br />

vê constrangido por alguma necessida<strong>de</strong> comupulsiva, se precipite<br />

pren<strong>de</strong>ndo-se com ca<strong>de</strong>ias; pois a liberda<strong>de</strong> não <strong>de</strong>ve ser lançada fora<br />

levianamente. 51<br />

28. Mas, se te casares. Visto que havia o risco <strong>de</strong> alguém tomar a<br />

última afirmação no sentido em que o mesmo estava tentando a Deus,<br />

caso se dispusesse a unir-se a uma esposa, sábia e premeditadamente<br />

(pois isso significaria renunciar sua liberda<strong>de</strong>), Paulo remove essa<br />

50 “Diuerses affictions et orages.” – “Várias aflições e tempesta<strong>de</strong>s.”<br />

51 “Car il ne faut pas quitter legerement sa liberté sans y bien penser.” – “Pois ele não <strong>de</strong>ve<br />

abandonar sua liberda<strong>de</strong> levianamente, sem muita pon<strong>de</strong>ração.”


266 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

dúvida; pois ele permite às viúvas [viduis] a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> casar-se,<br />

e afirma que aqueles que se casam não estão pecando. A palavra se<br />

parece enfática aqui, pois realça que, embora nenhuma necessida<strong>de</strong><br />

importuna seja imperativa, aqueles que são solteiros não são barrados<br />

<strong>de</strong> contrair os laços conjugais, caso o queiram.<br />

E se uma virgem casar-se. Seja esta frase um acréscimo ao que<br />

já dissera, ou simplesmente um exemplo, po<strong>de</strong>mos dizer prontamente<br />

que não há a menor sombra <strong>de</strong> dúvida <strong>de</strong> que Paulo esteja<br />

querendo esten<strong>de</strong>r a todos a liberda<strong>de</strong> para o ato conjugal. Os que<br />

pensam ser ela uma ampliação são levados a pensar assim porque<br />

ela parece aproximar-se mais <strong>de</strong> uma ofensa, ou é mais passível à<br />

repreensão, ou, pelo menos, é mais uma ocasião <strong>de</strong> vergonha soltar<br />

a cintura das virgens (como os antigos costumavam dizer), do que<br />

contrair segundas núpcias após a morte <strong>de</strong> um dos cônjuges. O argumento,<br />

portanto, seria: “Se é lícito para uma virgem casar-se, uma<br />

viúva está em situação muito melhor.” Pessoalmente me sinto mais<br />

inclinado a crer que ele as colocou em pé <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>; por exemplo:<br />

“Permite-se a uma virgem casar-se, e da mesma forma a uma<br />

viúva.” Porque, na antiga socieda<strong>de</strong>, algum <strong>de</strong>sditoso estigma estava<br />

associado à segunda núpcia, em razão do fato <strong>de</strong> que também<br />

costumavam conce<strong>de</strong>r às matronas um dia<strong>de</strong>ma <strong>de</strong> castida<strong>de</strong>, 52<br />

àquelas que vivessem felizes com uma só núpcia durante sua vida;<br />

e tal honra tinha o efeito <strong>de</strong> pôr em situação <strong>de</strong>sfavorável aos que<br />

tivessem mais <strong>de</strong> uma experiência conjugal. Além do mais, existe<br />

um adágio <strong>de</strong> Valério 53 bem notório, que diz: “É um presságio <strong>de</strong><br />

legítimo excesso 54 [intemperantia] quando explo<strong>de</strong> um forte <strong>de</strong>sejo<br />

por segundas núpcias.” Conseqüentemente, o apóstolo não faz<br />

nenhuma diferença entre virgens e viúvas no que diz respeito à liberda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> contrair núpcias.<br />

52 Em concordância com isso, Univira (a esposa <strong>de</strong> um só marido) é amiú<strong>de</strong> encontrado nas<br />

inscrições antigas como um epíteto <strong>de</strong> honra.<br />

53 “Autheur ancien.” – “Um antigo escritor.”<br />

54 “C’est à dire, colorée et reglée par les lois.” – “Equivale dizer, colorido e regulado pelas<br />

leis.”


Capítulo 7 • 267<br />

Todavia, os mesmos sofrerão tribulação na carne. Amiú<strong>de</strong> Paulo<br />

reitera a razão por que ele ten<strong>de</strong> a favorecer o celibato em suas exortações,<br />

<strong>de</strong> modo a ficar evi<strong>de</strong>nte que prefere um estado ao outro, não<br />

por uma razão pessoal, mas pela que ora ele lutava. Ele diz que muitos<br />

problemas são inseparáveis da vida conjugal, e por isso <strong>de</strong>sejava<br />

<strong>de</strong> todas as formas evitar problemas no matrimônio. Quando diz que<br />

sofrerão “tribulações [tribulationem] da carne”, ou “na carne”, sua intenção<br />

é dizer que as responsabilida<strong>de</strong>s e dificulda<strong>de</strong>s, nas quais os<br />

cônjuges estão envolvidos, surgem dos negócios do mundo. Portanto,<br />

carne aqui significa o homem em suas relações com outros [homo externus].<br />

Poupar significa “ter consi<strong>de</strong>ração por eles”, ou <strong>de</strong>sejar que pairem<br />

acima dos problemas que estão associados ao matrimônio. É como se<br />

dissesse: “Desejo dar a <strong>de</strong>vida consi<strong>de</strong>ração a vossas fraquezas, e não<br />

gostaria que vossas vidas sejam arruinadas pelos problemas. O matrimônio,<br />

porém, traz consigo muitos problemas. A razão por que gostaria<br />

que não ambicionásseis o matrimônio é para que sejais intocáveis por<br />

todos seus males.” Contudo não <strong>de</strong>vemos concluir <strong>de</strong>sse fato que Paulo<br />

esteja encarando o matrimônio como um mal necessário; porque as tribulações<br />

<strong>de</strong> que fala não nascem tanto do matrimônio em si, mas <strong>de</strong> sua<br />

corrupção; porquanto tais sofrimentos são frutos do pecado original.<br />

29. Isto, porém, vos digo, irmãos, que o<br />

tempo se abrevia; doravante, os que<br />

têm esposas sejam como se não as<br />

tivessem;<br />

30. e os que choram, como se não chorassem;<br />

e os que se alegram, como<br />

se não se alegrassem; e os que compram,<br />

como se nada possuíssem;<br />

31. e os que usam <strong>de</strong>ste mundo, como<br />

se <strong>de</strong>le não abusassem, porque a<br />

aparência <strong>de</strong>ste mundo possa.<br />

29. Hoc autem dico, fratres, quia 55 tempus<br />

contractum est: reliquum est,<br />

ut qui uxores habent, sint tanquam<br />

non habentes:<br />

30. Et qui flent, tanquam non flentes:<br />

et qui gau<strong>de</strong>nt, tanquam non gau<strong>de</strong>ntes:<br />

et qui emunt, tanquam non<br />

possi<strong>de</strong>ntes:<br />

31. Et qui utuntur hoc mundo, tanquam<br />

non utentes: præterit enim<br />

figura mundi hujus.<br />

55 “Ou, Mais ie vous di ceci, mês freres, que le temps.” – “Ou, Mas eu vos digo isto, meus<br />

irmãos, que o tempo.”


268 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

32. Mas gostaria que fôsseis livres <strong>de</strong><br />

preocupações. Aquele que não é<br />

casado cuida das coisas do Senhor,<br />

em como agradar ao Senhor;<br />

33. mas aquele que é casado cuida das<br />

coisas do mundo, em como agradar<br />

sua esposa.<br />

34. E há diferença também entre a mulher<br />

casada e a virgem. Aquela que é<br />

solteira cuida das coisas do Senhor,<br />

em como ser santa, tanto no corpo<br />

como no espírito; aquela, porém, que<br />

é casada cuida das coisas do mundo,<br />

em como agradar seu esposo.<br />

35. E isto digo em vosso próprio proveito;<br />

não que eu pretenda lançar-vos<br />

em dificulda<strong>de</strong>, mas visando à <strong>de</strong>cência,<br />

e para que sirvais ao Senhor<br />

sem distração alguma.<br />

32. Velim autem vos absque solicitudine<br />

esse. Qui cœlebs est, curat ea<br />

quæ sunt Domini, quomodo placiturus<br />

sit Domino:<br />

33. Coniugatus curat ea quæ sunt mundi,<br />

qualiter uxori placiturus sit, et<br />

divisus est.<br />

34. Et mulier cælebs, et virgo curat<br />

ea quæ sunt Domini, ut sancta sit<br />

corpore et spiritu: at quæ maritum<br />

habet, curat ea quæ sunt mundi,<br />

quomodo placitura sit marito.<br />

35. Hoc autem ad utilitatem vestram<br />

dico, non ut laqueum vobis iniiciam,<br />

sed ad honestatem ac <strong>de</strong>corum, ut<br />

Domino adhaereatis absque ulla<br />

distractione.<br />

29. Porque o tempo se abrevia. Uma vez mais Paulo discute o<br />

tema matrimônio como algo sagrado, a fim <strong>de</strong> restringir a paixão lasciva<br />

daqueles que, quando são casados, não pensam em nada mais<br />

senão no prazer físico, não dando a Deus satisfação alguma. Portanto,<br />

Paulo insta com os crentes a não soltarem as ré<strong>de</strong>as da paixão para<br />

que o matrimônio não os precipitasse nas veredas do mundanismo. O<br />

matrimônio é o antídoto para a incontinência. Isto é verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que sua utilização seja governada pela temperança. Portanto, ele diz<br />

aos que são casados que vivam juntos <strong>de</strong> maneira casta, no temor do<br />

Senhor. Tal coisa só po<strong>de</strong> ser alcançada pela utilização do matrimônio<br />

da mesma forma como se utilizam das <strong>de</strong>mais coisas que se incluem<br />

na assistência da presente vida terrena, e elevem seus corações em<br />

contemplação da vida celestial.<br />

Ora, ele baseia seu argumento na brevida<strong>de</strong> da vida humana. Diz<br />

ele: “A vida que vivemos aqui é breve e momentânea; por isso, não a<br />

transformemos em obsessão. Portanto, os que têm esposa, sejam como


Capítulo 7 • 269<br />

se não as tivessem. Todos têm, naturalmente, esta porção <strong>de</strong> sabedoria<br />

em seus lábios; poucos a têm genuína e sinceramente esculpida<br />

em seus corações. Em minha primeira tradução, segui um manuscrito<br />

existente em Paris, o qual, como vim <strong>de</strong>scobrir <strong>de</strong>pois, não encontra<br />

qualquer apoio em muitos outros que consultei. (Erasmo junta a frase<br />

τὸ λοιπόν ao que segue. Mas esta redação é mais autêntica.) Eu, portanto,<br />

<strong>de</strong>cidi acertadamente inserir porque [quia] para fazer o significado<br />

mais claro, e isso concorda com a redação <strong>de</strong> muitos dos antigos manuscritos.<br />

Diante do fato <strong>de</strong> que, quando fazemos séria reflexão sobre<br />

algo, voltamos nossa atenção mais para o futuro do que para o passado,<br />

Paulo nos adverte sobre a brevida<strong>de</strong> do tempo por vir.<br />

Como se não as tivessem. Todas as coisas que contribuem para<br />

o enriquecimento <strong>de</strong>sta presente vida são santos dons <strong>de</strong> Deus, mas<br />

as contaminamos com nosso mau uso <strong>de</strong>las. Se quisermos saber por<br />

que razão, a resposta é porque estamos sempre entretendo as ilusões<br />

que continuarão perenemente neste mundo. O resultado é que as mesmas<br />

coisas que nos <strong>de</strong>vem ser assistenciais em nossa peregrinação ao<br />

longo da vida, se transformam em ca<strong>de</strong>ias que nos escravizam. A fim<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar-nos <strong>de</strong> nosso torpor, o apóstolo corretamente nos convida<br />

a fazer uma retrospectiva sobre a brevida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta vida. Disto ele<br />

<strong>de</strong>duz que a maneira pela qual <strong>de</strong>vemos fazer uso <strong>de</strong> [uti] todas as coisas<br />

<strong>de</strong>ste mundo é em razão da consciência <strong>de</strong> que não as possuímos<br />

[utamur]. Pois aquele que pensa <strong>de</strong> si próprio como sendo um estranho<br />

que atravessa este mundo, usa as coisas pertencentes ao mesmo<br />

como se elas pertencessem a outro; em outras palavras, as coisas que<br />

são em caráter <strong>de</strong> empréstimo por apenas um dia. A questão é que a<br />

mente do cristão não <strong>de</strong>ve entulhar-se <strong>de</strong> imagens das coisas terrenas,<br />

ou encontrar satisfação nelas, porquanto <strong>de</strong>vemos viver a vida como<br />

se fôssemos <strong>de</strong>ixar este mundo a qualquer momento.<br />

Pelo termo chorar Paulo quer dizer quando as coisas vão mal; e<br />

pelo termo regozijar, quando elas vão bem; pois é algo plenamente<br />

normal <strong>de</strong>screver as causas por seus efeitos. 56<br />

56 “Or <strong>de</strong> prosperite s’ensuit ioye, comme d’aduersitez pleurs.” – “Agora a alegria acompanha<br />

a prosperida<strong>de</strong>, como as lágrimas acompanham as adversida<strong>de</strong>s.”


270 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Finalmente, aqui o apóstolo naturalmente não está aconselhando<br />

os cristãos a livrar-se <strong>de</strong> seus pertences. Tudo o que ele pe<strong>de</strong> é que o<br />

espírito <strong>de</strong> posse não os absorva completamente. 57<br />

31. E os que usam <strong>de</strong>ste mundo, como se <strong>de</strong>le não abusassem.<br />

O particípio χρώμενοι (usando) é usado na primeira frase, enquanto o<br />

composto καταχρώμενοι (abusando, usando mal) é usado na segunda.<br />

Mas a preposição κατα, numa afirmação composta, geralmente é tomada<br />

em sentido negativo, ou, pelo menos, <strong>de</strong>nota intensida<strong>de</strong>. 58 Paulo,<br />

pois, sugere o uso das coisas <strong>de</strong> uma maneira mo<strong>de</strong>rada e disciplinada,<br />

<strong>de</strong> modo a não nos atrapalharem ou a nos atrasarem em nossa<br />

jornada; ao contrário, que sejamos aprressados rumo ao alvo.<br />

Porque a aparência <strong>de</strong>ste mundo passa. Paulo, com estas palavras,<br />

apresenta uma <strong>de</strong>scrição a<strong>de</strong>quada da futilida<strong>de</strong> do mundo. Diz<br />

ele: “Não existe nada estável e sólido; 59 pois, como se diz, o mundo<br />

não passa <strong>de</strong> fachada, <strong>de</strong> aparência visual. Mas as cortinas caem, as<br />

cenas são interrompidas e o que estava diante dos olhos do auditório<br />

é imediatamente arrebatado <strong>de</strong> sua vista. Não entendo por que<br />

Erasmo preferiu o termo condição [habitus]. Como o entendo, ele está<br />

<strong>de</strong>finitivamente obscurecendo o ensino <strong>de</strong> Paulo; porquanto aparência<br />

[figura] se põe em tácito contraste com substância [substantia]. 60<br />

32. Mas eu gostaria que fôsseis livres <strong>de</strong> preocupações. Ele volta<br />

ao mesmo parecer que já havia externado, mas que não fora ainda<br />

plenamente explanado; e, segundo seu costume, ele começa recomendando<br />

o celibato, e prossegue permitindo a liberda<strong>de</strong> individual<br />

<strong>de</strong> escolherem o que acreditam ser-lhes a<strong>de</strong>quado. Além disso, ele<br />

tem boas razões para reiterar a recomendação do celibato, porque<br />

percebia que as responsabilida<strong>de</strong>s matrimoniais estão longe do dis-<br />

57 “Enterrez en icelles.” –“Sepultado neles.”<br />

58 “Tellement que le mot signifie yci, Abusans, ou Vsans trop.” – “De modo que a palavra<br />

significa aqui abusando, ou usando <strong>de</strong>masiadamente.” O verbo χράομαι é usado com freqüência<br />

pelos escritores clássicos no sentido <strong>de</strong> usar ao máximo, consumir ou usar mal.<br />

59 “En ce mon<strong>de</strong>.” – “Neste mundo.”<br />

60 “Comme s’il disoit, que ce mon<strong>de</strong> n’há point vn estre, mais seulement vne monstre et vaine<br />

apparence.” – “Como se ele dissesse que este mundo não tem existência, mas apenas<br />

uma exibição e mera aparência.”


Capítulo 7 • 271<br />

cernimento. Se alguém po<strong>de</strong> livrar-se <strong>de</strong>las, o tal não <strong>de</strong>ve per<strong>de</strong>r<br />

um benefício tão imenso. E é muitíssimo vantajoso para os que estão<br />

preten<strong>de</strong>ndo casar-se que sejam advertidos e aconselhados acerca<br />

<strong>de</strong>sses problemas, a fim <strong>de</strong> que, se os mesmos vierem inesperadamente<br />

a seu encontro, não venha ele a sucumbir-se em <strong>de</strong>sespero.<br />

Vemos muitos enfrentando tal situação. Prometeram a si mesmos o<br />

mais excelente mel, mas quando essa esperança não se concretiza na<br />

prática, o mais leve infortúnio é bastante para sucumbi-los. 61 Portanto,<br />

procurem saber antecipadamente o que os espera, e assim estejam<br />

preparados para enfrentar o previsto e o imprevisto. O significado,<br />

pois, é o seguinte: “O matrimônio traz consigo muitos obstáculos, dos<br />

quais gostaria que estivésseis livres, com toda isenção.”<br />

Mas, visto que ele falou <strong>de</strong> tribulações, e agora faz menção <strong>de</strong> preocupações<br />

ou ansieda<strong>de</strong>s [v. 28], alguém com razão po<strong>de</strong>ria perguntar<br />

se há ou não algumas diferença entre ambas. Segundo meu ponto <strong>de</strong><br />

vista, a tribulação tem sua fonte ou causa em ocasiões ou circunstâncias<br />

ruins, tais como a morte <strong>de</strong> um filho ou <strong>de</strong> um cônjuge; as disputas<br />

e pequenas diferenças (como são chamadas pelos jurisconsultos) 62<br />

que resultam sendo mui fastidiosas, tais como os malfeitos dos filhos;<br />

as dificulda<strong>de</strong>s na condução da família; e coisas afins. Ansieda<strong>de</strong>s,<br />

penso eu, se relacionam com circunstâncias prazenteiras, tais como<br />

as frivolida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma recepção <strong>de</strong> núpcias, os momentos <strong>de</strong> diversões<br />

e outras coisas que a vida conjugal tem <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r. 63<br />

Aquele que é solteiro cuida das coisas do Senhor. Daqui se<br />

faz evi<strong>de</strong>nte que Paulo <strong>de</strong>seja que os cristãos se <strong>de</strong>svencilhem das<br />

ansieda<strong>de</strong>s para que tenham condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>votar todos seus pensamentos<br />

e esforços ao Senhor. Ele afirma que o celibato permite isso; e<br />

então <strong>de</strong>seja que todos <strong>de</strong>sfrutem <strong>de</strong>ssa liberda<strong>de</strong>. Não obstante, ele<br />

não preten<strong>de</strong> que os solteiros sejam sempre assim; pois sabemos <strong>de</strong><br />

61 Qu’ils puissent rencontrer” – “Para que encontrem.”<br />

62 “Qui sour<strong>de</strong>nt entre le mari et la femme.” – “Que surge entre esposo e esposa.”<br />

63 A intenção <strong>de</strong> nosso autor é esta: enquanto θλιψις (tribulação) invariavelmente se relaciona<br />

com o que é <strong>de</strong> uma natureza estressante, μεριμνα (cuidado) se aplica a tudo o que<br />

eleva a atenção da mente.


272 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

experiência própria que os casos dos sacerdotes, dos monges e monjas<br />

apresentam algo bem diferente, pois não conseguem ver nada mais<br />

que se relacione com Deus além <strong>de</strong> seu celibato. Acrescente-se a isto<br />

também nosso conhecimento <strong>de</strong> tantos fornicadores aversivos que<br />

usam o matrimônio para entregar-se às práticas concupiscentes até<br />

ao fastio, e com o fim <strong>de</strong> manter seus vícios em segredo. On<strong>de</strong> o caso<br />

da paixão se faz presente, não po<strong>de</strong> haver nenhuma <strong>de</strong>voção a Deus.<br />

Mas o que Paulo está realçando aqui é que o solteiro é livre, e nada se<br />

antepõe no caminho <strong>de</strong> suas reflexões acerca das coisas <strong>de</strong> Deus. Os<br />

crentes fazem uso <strong>de</strong>sta liberda<strong>de</strong>; os <strong>de</strong>mais não fazem outra coisa<br />

senão servir a sua própria ruína.<br />

33. Mas aquele que é casado se preocupa com as coisas do<br />

mundo. “As coisas do mundo” <strong>de</strong>vem ser entendidas como sendo “as<br />

coisas que pertencem a esta presente vida”, pois aqui o termo mundo<br />

<strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado como que incluindo as circunstâncias <strong>de</strong>sta vida<br />

terrena. Mas corre-se o risco <strong>de</strong> alguém concluir daqui que todos os<br />

casados se acham excluídos do reino <strong>de</strong> Deus, 64 uma vez que estão envolvidos<br />

somente com este mundo. A isso respondo: o apóstolo está<br />

expondo apenas uma parte <strong>de</strong> seu pensamento. Ele po<strong>de</strong>ria ter dito: “É<br />

como se eles estivessem olhando para Deus com apenas um olho, mas,<br />

ao mesmo tempo, mantendo o outro voltado para sua esposa. Além<br />

disso, a vida conjugal é como um fardo mui pesado sobre os ombros<br />

do cristão, a toldar <strong>de</strong> tal forma a mente que não consegue dar sequer<br />

um passo sem dificulda<strong>de</strong> em sua trajetória para Deus.” Tenhamos,<br />

contudo, sempre em mente que tais males não são inerentes ao próprio<br />

matrimônio, mas, sim, são oriundos do pecado humano. Isso foi<br />

o que motivou as interpretações equivocados em que caiu Jerônimo.<br />

Porquanto ele reúne todos estes fatores com o fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprestigiar o<br />

matrimônio. Sendo assim, <strong>de</strong>ver-se-ia con<strong>de</strong>nar também a agricultura,<br />

o comércio e outros meios <strong>de</strong> sobrevivência, visto que nenhuma<br />

<strong>de</strong>ssas áreas se vê livre <strong>de</strong> algum aspecto nocivo; e embora estejam<br />

64 “Forclos du royaume <strong>de</strong> Dieu.” – “Excluídos do reino <strong>de</strong> Deus.”


Capítulo 7 • 273<br />

tão saturados pelas corrupções <strong>de</strong>ste mundo, ninguém <strong>de</strong> bom senso<br />

os <strong>de</strong>scartaria com escárnio! Notemos bem, pois, que todos os males<br />

existentes no matrimônio vêm <strong>de</strong> outra fonte. Pois nos dias atuais um<br />

homem não estaria se afastando <strong>de</strong> Deus por viver com sua esposa;<br />

estaria permanecendo num estado <strong>de</strong> pureza e não poluiria a sagrada<br />

instituição divina; e a esposa estaria sendo sua auxiliadora em tudo<br />

o que é bom, como <strong>de</strong> fato foi esse o propósito para o qual foi essa<br />

instituição criada [Gn 2.18].<br />

Mas alguém dirá: “Se as ansieda<strong>de</strong>s, que constituem uma falha e<br />

merecem censura, estão conectadas à vida conjugal, como po<strong>de</strong>m os<br />

casados invocar a Deus e servi-lo em sã consciência? Minha resposta<br />

é que existem três gêneros <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong>: (1) Há aquelas que são inerentemente<br />

nocivas e pecaminosas, porque nascem da ausência <strong>de</strong><br />

confiança. Cristo fala <strong>de</strong>las em Mateus 6.25. (2) Há aquelas que são<br />

necessárias e não provocam o <strong>de</strong>sagrado <strong>de</strong> Deus, ou, seja: o chefe <strong>de</strong><br />

família <strong>de</strong>ve viver solicitamente para sua esposa e filhos. E Deus não<br />

quer que sejamos cepos <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, incapazes <strong>de</strong> raciocinar por nós<br />

mesmos. (3) O terceiro tipo é uma combinação <strong>de</strong>stes dois, ou, seja:<br />

quando nos vemos preocupados acerca <strong>de</strong>ssas coisas, as quais <strong>de</strong> fato<br />

<strong>de</strong>spertam nossa solicitu<strong>de</strong>, mas as levamos longe <strong>de</strong>mais em razão<br />

<strong>de</strong> nossa natural <strong>de</strong>mência <strong>de</strong> querer avançar para além dos limites<br />

<strong>de</strong> tudo. Portanto, tais ansieda<strong>de</strong>s não são <strong>de</strong> forma alguma nocivas<br />

em si mesmas, senão que são ruins em resultado <strong>de</strong> αταξια, ou, seja, os<br />

excessos in<strong>de</strong>vidos. O apóstolo não pretendia con<strong>de</strong>nar meramente<br />

tais vícios pelos quais contraímos culpa aos olhos <strong>de</strong> Deus; mas em<br />

termos gerais <strong>de</strong>seja que nos livremos <strong>de</strong> todos os impedimentos, <strong>de</strong><br />

modo que estejamos totalmente livres para o serviço <strong>de</strong> Deus.<br />

E está dividida. É surpreen<strong>de</strong>nte como tantos pontos <strong>de</strong> vista divergentes<br />

tenham surgido concernentes a estas palavras. Pois a versão<br />

grega comum não tem qualquer similarida<strong>de</strong> com a versão Vulgata, <strong>de</strong><br />

modo que a diferença não po<strong>de</strong> ser atribuída a algum equívoco ou<br />

inadvertência, na forma em que um equívoco às vezes ocorre numa<br />

única carta ou numa única palavra. Ora, as versões gregas geralmente


274 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

a tomam literalmente; por exemplo: “O homem casado tem sua mente<br />

posta nas coisas <strong>de</strong>ste mundo, em como agradar sua esposa. A mulher<br />

casada e a virgem estão divididas. A que é solteira se preocupa com as<br />

coisas do Senhor” etc. E consi<strong>de</strong>ram “estando divididas” no sentido <strong>de</strong><br />

‘diferindo’, como se quisesse dizer: “Há uma gran<strong>de</strong> diferença entre a<br />

casada e a virgem. Uma é livre para ocupar-se exclusivamente das coisas<br />

<strong>de</strong> Deus, enquanto a outra está <strong>de</strong>finitivamente fora <strong>de</strong>ste caminho<br />

e absorvida por questões variadas.” Visto, porém, que esta interpretação<br />

não concorda muito com o sentido literal da palavra, não me sinto<br />

<strong>de</strong> todo satisfeito com ela, ainda mais porque o significado da outra<br />

redação é mais consonante e menos forçada (e também porque essa<br />

redação se encontra em alguns manuscritos gregos). Portanto, nosso<br />

raciocínio é o seguinte: um homem casado está dividido 65 em seus interesses,<br />

visto que se vê constrangido a dar uma parte <strong>de</strong> si a Deus e<br />

uma parte a sua esposa, e sente não viver exclusiva e plenamente para<br />

Deus.<br />

34. A solteira e a virgem. O que ele ensinou sobre os homens, agora<br />

repete em relação às mulheres, ou, seja, que as virgens e as viúvas<br />

não estão impedidas pelos afazeres <strong>de</strong>ste mundo <strong>de</strong> dar sua sincera<br />

atenção e afetos a Deus. Naturalmente que nem todos fazem isso, mas<br />

a oportunida<strong>de</strong> está aí, contanto que tenham sua mente voltada para a<br />

mesma. A o dizer “que sejam santas no corpo e no espírito”, Paulo <strong>de</strong>ixa<br />

claro que o gênero <strong>de</strong> castida<strong>de</strong> genuína e aceitável a Deus é aquela<br />

que leva a pessoa a ter a mente imaculada para Deus. Gostaria que se<br />

<strong>de</strong>sse mais atenção a este aspecto. No que diz respeito ao corpo, vemos<br />

que tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>votamento ao Senhor comumente há por parte das<br />

freiras, monges e toda a ralé <strong>de</strong> clérigos papistas. Não há nada imaginável<br />

que possa ser mais repulsivo do que seu celibato! Mas, para não<br />

falar agora da castida<strong>de</strong> do corpo, on<strong>de</strong> se encontrará alguém entre os<br />

65 Kypke (em seu Observationes Sacræ) traduz a palavra original μεμέρισται como faz Calvino<br />

– dividido ou perplexo, e apresenta uma passagem <strong>de</strong> Aquiles Tácito, na qual εμεμεριστο<br />

é usada em um sentido afim. Na versão Siríaca, por outro lado, a redação é como segue:<br />

Discrimen autem est inter mulierem et virginem – Há uma diferença entre uma esposa e uma<br />

virgem.


Capítulo 7 • 275<br />

que são tidos em admiração em <strong>de</strong>corrência da reputação <strong>de</strong> sua continência,<br />

que não viva inflamado com abomináveis paixões obscenas?<br />

À luz <strong>de</strong>sta expressão <strong>de</strong> Paulo, po<strong>de</strong>mos concluir que a castida<strong>de</strong><br />

só é agradável a Deus se ela abrange a alma e o corpo. Gostaria que<br />

todos os que estão sempre enaltecendo a castida<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>ssem enten<strong>de</strong>r<br />

que terão que tratar é com Deus pessoalmente; daí não teriam<br />

tanta confiança em terçar armas conosco. Entretanto, nos dias atuais,<br />

aqueles que falam com grandiloqüência acerca da continência são os<br />

mesmos que pública e <strong>de</strong>scaradamente se utilizam <strong>de</strong> prostitutas. Mas<br />

ainda que vivessem a mais respeitável das vidas aos olhos humanos,<br />

tal coisa não significaria absolutamente nada, se não mantiverem suas<br />

mentes puras e intocáveis por impurezas <strong>de</strong> toda espécie.<br />

35. Digo isto para vosso benefício. Prestemos atenção na<br />

mo<strong>de</strong>ração do apóstolo. Ainda que estivesse bem consciente dos aborrecimentos,<br />

problemas e dificulda<strong>de</strong>s da vida conjugal e, por outro<br />

lado, das vantagens do celibato, todavia não consi<strong>de</strong>ra isso como algo<br />

pessoal para <strong>de</strong>itar tudo abaixo. Ao contrário, tendo recomendado<br />

o celibato, e temendo que seus leitores viessem a sentir-se impressionados<br />

ouvindo-o falar <strong>de</strong>le como algo excelente, imediatamente<br />

<strong>de</strong>clara-lhes o que os apóstolos disseram em resposta a Cristo [Mt<br />

19.10]: “Se essa é a condição do homem relativamente à mulher, então<br />

não é bom que se case”, sem consi<strong>de</strong>rar se eram ou não capazes <strong>de</strong> tal<br />

façanha, Paulo nos leva a enten<strong>de</strong>r claramente que, enquanto realça<br />

o que é mais vantajoso, ele não preten<strong>de</strong> com isso obrigar a ninguém.<br />

Aqui há duas coisa dignas <strong>de</strong> observação. A primeira é esta: com<br />

que propósito o celibato <strong>de</strong>ve ser almejado: não por sua própria causa;<br />

não porque este estado fora posto num nível mais excelente; mas para<br />

vivermos mais apegados a Deus, não tendo nada se interpondo entre<br />

nós e ele. Ora, esta é a única coisa que mais <strong>de</strong>ve preocupar um cristão<br />

ao longo <strong>de</strong> toda sua vida. A segunda coisa é esta: que não se <strong>de</strong>ve<br />

impor nenhuma restrição à consciência do ser humano, com o funesto<br />

resultado que alguém venha a esquivar-se do matrimônio; ao contrário<br />

disso, a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>ve ser respeitada. Sabe-se muito


276 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

bem quantos equívocos têm-se engendrado em relação a estas duas<br />

questões. Certamente que, em relação ao segundo princípio, aqueles<br />

que não hesitaram em criar uma lei para o celibato, proibindo a todo o<br />

clero <strong>de</strong> contrair o matrimônio, eram muito mais pretensiosos do que<br />

Paulo. O mesmo se aplica aos que fazem votos <strong>de</strong> perpétua continência.<br />

Um número sem conta <strong>de</strong> pessoas tem sido arrastado a eternas<br />

ruínas por essas ca<strong>de</strong>ias. Ora, se o Espírito Santo falou pelos lábios <strong>de</strong><br />

Paulo, então os papistas não conseguirão redimir-se da acusação <strong>de</strong><br />

lutarem contra Deus [At 5.39] quando escravizam a consciência dos<br />

homens, numa questão sobre a qual Deus quer que permaneçam livres.<br />

Nesse caso, po<strong>de</strong> ser que ele 66 tenha formulado um novo plano<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, preten<strong>de</strong>ndo usar as mesmas ca<strong>de</strong>ias que outrora havia<br />

reprovado.<br />

36. Mas se alguém julga que trata indignamente<br />

sua filha virgem, se ela<br />

tiver passado a flor da ida<strong>de</strong>, e se a<br />

necessida<strong>de</strong> assim o requeira, que<br />

faça o que quiser; ele não peca; que<br />

se casem.<br />

37. Mas o que ele tem firme em seu<br />

coração, não tendo necessida<strong>de</strong>,<br />

mas tem po<strong>de</strong>r sobre sua própria<br />

vonta<strong>de</strong>, e <strong>de</strong>terminou isso em seu<br />

próprio coração, ou, seja, conservar<br />

virgem sua própria filha, fará bem.<br />

38. De sorte que, aquele que dá sua<br />

própria filha em casamento, faz<br />

bem; e aquele que não a dá em casamento,<br />

faz melhor.<br />

36. Si quis autem virgini suæ in<strong>de</strong>corum<br />

indicat, si excedat florem<br />

ætatis, et ita fieri <strong>de</strong>bet: quod voluerit<br />

faciat, non peccat: nubant.<br />

37. Qui autem stat firmus in cor<strong>de</strong>, necessitatem<br />

non habens, potestatem<br />

vero habens supra sua voluntate, et<br />

hoc <strong>de</strong>crevit in cor<strong>de</strong> suo, servare<br />

suam virginem, bene facit.<br />

38. Itaque et qui nuptum collocat, bene<br />

facit; et qui non collocat, melius facit.<br />

36. Mas se alguém julga que trata indignamente sua filha. Paulo<br />

agora se volta para os pais que tinham filhos sob seu domínio. Pois<br />

tendo ouvido os louvores entoados ao celibato, e tendo ouvido também<br />

acerca das dificulda<strong>de</strong>s que cercam o matrimônio, po<strong>de</strong>riam<br />

66 “Le Sainct Esprit.” – “O Espírito Santo.”


Capítulo 7 • 277<br />

perguntar-se se era humano permitir que suas filhas se envolvessem<br />

em tanta infelicida<strong>de</strong>, uma vez que po<strong>de</strong>ria parecer que eram os responsáveis<br />

pelo infortúnio <strong>de</strong>las. Pois quanto mais profunda fosse sua<br />

afeição por suas filhas, mais ansiosos <strong>de</strong>veriam viver por sua sorte<br />

quanto a qualquer coisa que lhes viesse suce<strong>de</strong>r. 67 Paulo, pois, a fim<br />

<strong>de</strong> poupá-los <strong>de</strong>ssas dificulda<strong>de</strong>s, ensina que o <strong>de</strong>ver dos pais é cuidar<br />

dos interesses <strong>de</strong> suas filhas, precisamente como alguém que se sente<br />

responsável por si próprio se vê obrigado a correr após seus próprios<br />

interesses. 68 Ele, porém, conserva a distinção que vem fazendo durante<br />

todo o tempo. De um lado, ele recomenda o celibato; do outro,<br />

porém, permite que o matrimônio seja uma matéria <strong>de</strong> livre escolha.<br />

Além do mais, ele consi<strong>de</strong>ra o matrimônio como um antídoto contra a<br />

incontinência, e é um erro negá-lo a alguém que <strong>de</strong>le carece. Na primeira<br />

parte <strong>de</strong>sta seção, Paulo fala em dar as filhas em casamento. Nela<br />

ele assevera que os pais que chegam à conclusão <strong>de</strong> que a vida solteira<br />

não é a<strong>de</strong>quada a suas filhas, não pecam em dá-las em casamento.<br />

Seu uso do termo ἀσχημονει̑ν (ser inconveniente) <strong>de</strong>ve ser entendido<br />

como uma referência a uma proprieda<strong>de</strong> especial <strong>de</strong> aptidão, a<br />

qual <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do que é natural a cada pessoa. Porquanto existe uma<br />

proprieda<strong>de</strong> geral que os filósofos consi<strong>de</strong>ram como sendo um aspecto<br />

da temperança. Esse fator pertence igualmente a todos. Existe outra<br />

que é especial, visto que o que é a<strong>de</strong>quado a uma pessoa po<strong>de</strong> não<br />

ser conveniente a outra. Portanto, cada indivíduo precisa saber (como<br />

diz Cícero) qual é a parte [quam personam] que a natureza lhe <strong>de</strong>signou.<br />

69 O celibato po<strong>de</strong>rá ser conveniente a uma pessoa, porém não se<br />

<strong>de</strong>ve usar o mesmo critério com outras. 70 Além do mais, outros não<br />

67 “Tant plus ils craignent qu’il ne leur adviene quelque inconvenient, et tanto plus sont ils<br />

diligens à se donner gar<strong>de</strong> pour eux.” – “Tanto mais <strong>de</strong>veriam temer que não se <strong>de</strong>parassem<br />

com qualquer inconveniência, e tanto mais cuidadosos <strong>de</strong>veriam ser sobre seu<br />

bem-estar.”<br />

68 “Quand il n’est point sous la puissance d’autruy.” – “Quando ele não está <strong>de</strong>baixo do<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> outro.”<br />

69 “La condition et propriete que nature luy a donnee.” – “A condição e a proprieda<strong>de</strong> que a<br />

natureza lhe <strong>de</strong>signou.” Ver Cic. <strong>de</strong> Off. I.28.<br />

70 “Comme on dit.” – “Como dizem.”


278 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

<strong>de</strong>vem seguir o exemplo <strong>de</strong>ste sem inquirir se estão habilitados para<br />

tal; pois proce<strong>de</strong>r assim é comportar-se como símios; e certamente<br />

não estamos dispostos a tal papel. Portanto o pai, após haver avaliado<br />

a disposição <strong>de</strong> sua filha e constatado que ela não tem o dom para a<br />

vida celibatária, então que a dê em casamento. 71<br />

O que Paulo preten<strong>de</strong> dizer com “flor da ida<strong>de</strong>” é a ida<strong>de</strong> própria<br />

para a vida conjugal. Os jurisconsultos <strong>de</strong>finem a expressão como<br />

equivalendo dos doze aos vinte anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Paulo realça, <strong>de</strong> passagem,<br />

quão compreensivos e complacentes <strong>de</strong>vem ser os pais ao<br />

fazerem uso do antídoto nesses tenros e <strong>de</strong>licados anos, quando o<br />

rigor da ansieda<strong>de</strong> o requeira.<br />

E se a necessida<strong>de</strong> assim o requeira. Ele toma esta frase como<br />

uma alusão às <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>s femininas, ou, seja, no caso <strong>de</strong> a moça<br />

não ter o dom da continência; porque em tais circunstâncias ela se<br />

vê obrigada a contrair matrimônio. Jerônimo toma as palavras “não<br />

peca” com o intuito <strong>de</strong> levar o matrimônio ao <strong>de</strong>scrédito, e o <strong>de</strong>precia<br />

como se entregar uma filha à vida conjugal não fosse algo louvável.<br />

Não obstante, seus conceitos são pueris. 72 Porquanto Paulo consi<strong>de</strong>ra<br />

suficiente isentar os pais do opróbrio, para que não viessem julgar ser<br />

algo cruel sujeitar suas filhas às tribulações da vida conjugal.<br />

37. Mas aquele que tem firme em seu coração. Chegamos agora<br />

à segunda parte da <strong>de</strong>claração, e nela Paulo trata das jovens que possuem<br />

o dom <strong>de</strong> abster-se do matrimônio. Ele, pois, louva os pais que<br />

se preocupam em ver se suas filhas jovens não estão enfrentando alguma<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m pessoal. Mas é necessário que entendamos o que Paulo<br />

aqui requer. Sua primeira condição é a força <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong>: “Se alguém<br />

mantém sua mente em plena harmonia com seu propósito.” Todavia,<br />

71 Calvino parece ter entendido o verbo ἀσχημονει̑ν aqui no sentido <strong>de</strong> ser inconveniente. O<br />

significado ordinário da palavra é agir <strong>de</strong> uma maneira inconveniente. Neste sentido, ela<br />

ocorre em 1 Coríntios 13.5 e em vários casos nos clássicos (ver Eur. Hec. 407), e a construção<br />

da passagem parece requerer que seja entendida no sentido em que o pai crê estar<br />

agindo impropriamente em relação a sua filha virgem, ou concorrendo para a infelicida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>la.<br />

72 “C’est vne cauillation puerile.” – “É uma cavilação pueril.”


Capítulo 7 • 279<br />

não <strong>de</strong>vemos permitir que isso sofra o mesmo gênero <strong>de</strong> solução que<br />

os monges inventaram, ou, seja, obrigar-se voluntariamente a uma<br />

servidão vitalícia. (Pois esse é o gênero <strong>de</strong> voto que ele faz.) Paulo,<br />

porém, faz particular menção <strong>de</strong>sta firme <strong>de</strong>terminação, visto que os<br />

homens amiú<strong>de</strong> esboçam planos precipitadamente, <strong>de</strong> modo que no<br />

dia seguinte estão pesarosos <strong>de</strong> havê-los feito. Visto que esta é uma<br />

questão <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> magnitu<strong>de</strong>, ela <strong>de</strong>manda um propósito totalmente<br />

amadurecido.<br />

Em segundo plano, ele fala da pessoa como não tendo nenhuma<br />

necessida<strong>de</strong>; porquanto muitos, quando chegam a <strong>de</strong>liberar, são mais<br />

obstinados do que razoáveis. E nas circunstâncias que estamos consi<strong>de</strong>rando<br />

aqui, 73 renunciam o matrimônio, estando em po<strong>de</strong>r fazê-lo,<br />

sem prestar a mínima atenção se estão preparados para isso, porém<br />

julgam ser bastante dizer: “Isso é precisamente o que quero.” Paulo<br />

requer <strong>de</strong>les que tenham aptidão, a fim <strong>de</strong> não tomarem uma <strong>de</strong>cisão<br />

precipitadamente, mas que seja segundo a medida da graça que<br />

lhes foi dada. A ausência <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> no caso, ele apropriadamente<br />

o expressa na sentença seguinte, quando diz que tenham “domínio<br />

sobre sua própria vonta<strong>de</strong>”. Pois é como se ele quisesse dizer: “Não<br />

quero que resolvam antes que estejam certos <strong>de</strong> que lhes foi dado o<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> cumpri-lo; porque é algo temerário, <strong>de</strong>veras fatal, 74 achar-se<br />

lutando contra a <strong>de</strong>signação divina.” Mas alguém dirá: “À luz <strong>de</strong>ste<br />

sistema, os votos <strong>de</strong>vem ser con<strong>de</strong>nados, uma vez que a atenção é<br />

voltada para as condições anexas.” A isso respondo que não temos<br />

nenhuma certeza em relação à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus quanto ao futuro; portanto,<br />

no que diz respeito ao dom da abstinência, não <strong>de</strong>vemos tomar<br />

uma <strong>de</strong>cisão que nos escravize ao longo <strong>de</strong> toda nossa vida. Façamos<br />

uso do dom <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que nos sintamos livres para fazê-lo. Entrementes,<br />

confiemo-nos ao Senhor, prontos a segui-lo para on<strong>de</strong> ele queira nos<br />

chamar [Ap 14.4].<br />

73 “Et mesme quand il est question du propos dont il est yci fait mention.” – “E ainda quando<br />

haja dúvida sobre o tema, do qual ele aqui fez menção.”<br />

74 “Vne arrogance pernicieuse.” – “Uma arrogância perniciosa.”


280 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

E <strong>de</strong>terminou isso em seu próprio coração. É provável que Paulo<br />

tenha adicionado esta expressão com o fim <strong>de</strong> tornar mais claro que<br />

os pais <strong>de</strong>vem avaliar bem os vários aspectos antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>scartar suas<br />

preocupações e intenções quanto a liberar suas filhas ao matrimônio.<br />

Pois elas às vezes se recusam a casar-se, seja em virtu<strong>de</strong> do pudor ou<br />

por ignorarem sua própria natureza, enquanto que, ao mesmo tempo,<br />

continuam sensuais como sempre e sujeitas a se <strong>de</strong>sviarem. 75 Nesta<br />

conexão, os pais <strong>de</strong>vem consi<strong>de</strong>rar o que é melhor para suas filhas,<br />

<strong>de</strong> modo que sua própria prudência venha corrigir a ignorância ou os<br />

<strong>de</strong>sejos irracionais <strong>de</strong> suas filhas.<br />

Ora, esta passagem ajuda a estabelecer a autorida<strong>de</strong> dos pais, a<br />

qual <strong>de</strong>ve ser mantida inviolável, uma vez que ela <strong>de</strong>ve sua origem à lei<br />

universal da natureza [ex communi naturae inre]. Se aos filhos não se<br />

permite fazer outras coisas – aquelas <strong>de</strong> somenos importância – sem a<br />

aprovação <strong>de</strong> seus pais, seria obviamente mui incongruente que lhes<br />

fosse dada a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> contrair seus próprios matrimônios. E isso<br />

tem sido sancionado pela lei civil [civili lege], mas mui especialmente<br />

pela Lei <strong>de</strong> Deus [Lege Dei]. Eis a razão por que é extremamente <strong>de</strong>testável<br />

a perversida<strong>de</strong> do papa, porque, ignorando o respeito <strong>de</strong>vido à<br />

lei <strong>de</strong> Deus, bem como à lei dos homens, sua ousadia tem chegado ao<br />

ponto <strong>de</strong> fazer os filhos isentos do jugo da sujeição <strong>de</strong>vida a seus pais.<br />

Entretanto, não vale a pena <strong>de</strong>terminar aqui a razão. Diz ele: “Isso se<br />

<strong>de</strong>ve à dignida<strong>de</strong> do sacramento.” (Prefiro ignorar sua ignorância em<br />

converter o matrimônio em sacramento!) Não obstante, que gênero <strong>de</strong><br />

honra<strong>de</strong>z e dignida<strong>de</strong> há nisso, pergunto eu, quando, contrariando o<br />

padrão comum da <strong>de</strong>cência entre todas as nações, bem como a eterna<br />

or<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> Deus, os jovens se entregam com extrema liberda<strong>de</strong> a<br />

suas paixões lascivas, ao ponto <strong>de</strong> correrem <strong>de</strong>senfreadamente sem<br />

qualquer senso <strong>de</strong> pundonor, 76 só porque contam com a escusa <strong>de</strong><br />

75 “Elles ne sont <strong>de</strong> rien moins suiettes à affections <strong>de</strong>sordonnees, ou à estre seduites et<br />

abusees.” – “Não são <strong>de</strong> modo algum menos suscetíveis às afeições <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nadas, ou a<br />

serem seduzidas ou enganadas.”<br />

76 “S’esgayent et <strong>de</strong>sbauchent.” – “Divertindo-se e <strong>de</strong>bochando-se.”


Capítulo 7 • 281<br />

que esse é um sacramento. Portanto, lembremo-nos <strong>de</strong> que, com respeito<br />

à liberação <strong>de</strong> suas filhas à vida conjugal, a autorida<strong>de</strong> dos pais<br />

é mais importante, contanto que não abusem <strong>de</strong>la <strong>de</strong> forma tirânica;<br />

pois, para prevenir tal possibilida<strong>de</strong>, a lei civil também lhe impõe restrições.<br />

77 O apóstolo, ao requerer a isenção da necessida<strong>de</strong>, 78 também<br />

notificou que as <strong>de</strong>liberações dos pais <strong>de</strong>vem ser reguladas com vistas<br />

ao que é melhor para os filhos. Portanto, tenhamos em mente que este<br />

perfeito equilíbrio entre as partes é um guia justo, ou, seja: que os<br />

filhos se <strong>de</strong>ixem governar por seus pais; e que os pais, em contrapartida,<br />

não forcem seus filhos a agirem contra sua vonta<strong>de</strong>, senão que<br />

usem sua autorida<strong>de</strong> unicamente no sentido <strong>de</strong> promover o bem-estar<br />

<strong>de</strong> seus filhos.<br />

38. De sorte que, aquele que dá sua filha em casamento faz bem.<br />

Aqui temos a conclusão <strong>de</strong> ambas as partes da <strong>de</strong>claração, na qual<br />

ele expressa, em poucas palavras, que os pais estão livres <strong>de</strong> qualquer<br />

constrangimento caso liberem suas filhas à vida conjugal; todavia<br />

lhes assevera que fariam melhor se as conservassem em casa, solteiras.<br />

Entretanto, aqui ele uma vez mais não consi<strong>de</strong>ra o celibato como<br />

sendo preferível ao matrimônio. Isso só é possível na única exceção<br />

a nós imposta um pouco antes. Pois quando a jovem não é capaz <strong>de</strong><br />

abster-se do matrimônio, o pai que tenta subtraí-la 79 <strong>de</strong>le está agindo<br />

irrefletidamente. Na verda<strong>de</strong>, tal nem mesmo é pai, mas um cruel tirano.<br />

A discussão toda equivale a isto: (1) O celibato é preferível ao<br />

matrimônio, visto que ele nos mantém livres e, em conseqüência, nos<br />

propicia melhor oportunida<strong>de</strong> para o serviço <strong>de</strong> Deus. (2) Todavia,<br />

não se <strong>de</strong>ve usar qualquer atitu<strong>de</strong> compulsiva com o fim <strong>de</strong> impedir os<br />

indivíduos <strong>de</strong> contrairem o matrimônio, caso queiram fazê-lo. (3) Além<br />

77 “Comme aussi à ceste fin les loix ciuiles restraignent l’authorite d’iceux.” – “Como também<br />

para este fim as leis civis restringem sua autorida<strong>de</strong>.”<br />

78 “En requirant yci que les enfans sentent en eux ceste liberte et exemption <strong>de</strong> la necessite<br />

du mariage.” – “Ao requerer aqui que os filhos sintam em si esta liberda<strong>de</strong> e isenção da<br />

necessida<strong>de</strong> do casamento.”<br />

79 “Car quand la puissance <strong>de</strong>faudra à la fille <strong>de</strong> s’abstenir <strong>de</strong> mariage.” – “Pois quando a<br />

filha não tem po<strong>de</strong>r para abster-se do matrimônio.”


282 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

do mais, o matrimônio, intrinsecamente, é o antídoto que o Senhor<br />

provi<strong>de</strong>nciou para nossas fraquezas; 80 e todo aquele que não é abençoado<br />

com o dom da continência <strong>de</strong>ve se valer <strong>de</strong>le. Toda pessoa <strong>de</strong> são<br />

juízo concordará comigo em dizer que todo o ensino <strong>de</strong> Paulo acerca<br />

do matrimônio se resume nesses três pontos.<br />

39. A esposa está comprometida durante<br />

todo o tempo que seu esposo<br />

viver; mas, se o esposo morrer, ela<br />

fica livre para casar-se com quem<br />

quiser; contanto que seja no Senhor.<br />

40. Mas ela será mais feliz se permanecer<br />

como está, segundo meu<br />

parecer; e também julgo que tenho<br />

o Espírito <strong>de</strong> Deus.<br />

39. Mulier alligata est Legi, quamdiu<br />

maritus ejus vivit: si autem dormierit<br />

maritus ejus, libera est, ut cui<br />

vult nubat, modo in Domino.<br />

40. Beatior vero est, si sic maneat,<br />

secundum meam sententiam: existimo<br />

autem, me quoque Spiritum<br />

Dei habere.<br />

39. A esposa está comprometida [pela lei]. O que ele dissera<br />

previamente se aplicava igualmente aos homens e às mulheres; visto,<br />

porém, que as viúvas aparentemente tinham menos liberda<strong>de</strong>, em<br />

razão da modéstia <strong>de</strong> seu caráter feminino, Paulo viu-se impelido a ministrar<br />

algumas diretrizes especiais também a elas. Portanto, ele agora<br />

ensina que as mulheres, tanto quanto os homens, estão livres para<br />

contrair segundas núpcias, 81 após a morte <strong>de</strong> seu primeiro cônjuge. Já<br />

mencionamos que aquelas que eram solícitas por segundos cônjuges<br />

eram marcadas com o estigma da falta <strong>de</strong> autodomínio, e era como se<br />

lhes dirigissem insultos, quando as que se sentiam contentes com um<br />

só esposo costumavam receber uma “coroa <strong>de</strong> castida<strong>de</strong>”. Ainda mais,<br />

esta primeira perspectiva granjeou uma boa porção <strong>de</strong> espaço entre<br />

os cristãos a um só tempo, pois sobre suas segundas núpcias não era<br />

pronunciada nenhuma bênção, e em alguns concílios não se permi-<br />

80 “Pour subuenir à nostre infirmite.” – “Para auxiliar nossa enfermida<strong>de</strong>.”<br />

81 “Apres auoir perdu leurs premiers maris.” – “Depois <strong>de</strong> haver perdido seu primeiro cônjuge.”


Capítulo 7 • 283<br />

tia que os ministros tomassem parte nelas. O apóstolo aqui con<strong>de</strong>na<br />

qualquer sorte <strong>de</strong> arbitrarieda<strong>de</strong>, e diz que não se <strong>de</strong>ve pôr qualquer<br />

impedimento no caminho das viúvas com o fim <strong>de</strong> obstruir o matrimônio,<br />

caso elas assim o queiram.<br />

Certamente que não faz qualquer diferença para o significado, se<br />

dissermos que a esposa está ligada à lei ou pela lei. Pois a lei certamente<br />

afirma que a união <strong>de</strong> esposo e esposa é indissolúvel. Contudo,<br />

se o leitor preferir o dativo, então significará a autorida<strong>de</strong> da lei e sua<br />

obrigação 82 para com ela. Ora, Paulo está argumentando através <strong>de</strong><br />

antítese; pois se a esposa é ligada a seu esposo durante a vida <strong>de</strong>ste,<br />

então estará livre com a morte <strong>de</strong>le. Após ver-se livre, ela po<strong>de</strong>rá<br />

“casar-se com quem quiser”.<br />

Quando se usa o verbo dormir no sentido <strong>de</strong> morrer, 83 a referência<br />

não é à alma, mas ao corpo. Isso é óbvio à luz do constante uso<br />

da palavra na Escritura. 84 Contudo, certas cabeças quentes não fazem<br />

outra coisa senão <strong>de</strong>mostrar sua ignorância, quando manipulam esta<br />

pequena palavra a fim <strong>de</strong> provar que, após nossas almas se separarem<br />

<strong>de</strong> seus corpos, se privam <strong>de</strong> sentimento e entendimento; em outros<br />

termos, <strong>de</strong> sua vida.<br />

Somente no Senhor. Há quem consi<strong>de</strong>re isto como sendo <strong>de</strong> caráter<br />

axiomático, ou, seja, que foi adicionado à guisa <strong>de</strong> advertência da<br />

parte <strong>de</strong> Paulo, no sentido em que os cristãos não <strong>de</strong>vem sujeitar-se<br />

ao jugo dos incrédulos, nem <strong>de</strong>vem cobiçar sua socieda<strong>de</strong>. Embora<br />

eu reconheça a veracida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste ponto <strong>de</strong> vista, minha opinião é que<br />

estas palavras escon<strong>de</strong>m mais que isso, ou, seja, que <strong>de</strong>vem fazer isso<br />

<strong>de</strong> uma maneira religiosa e no temor do Senhor. 85 Pois esta é a forma<br />

pela qual se <strong>de</strong>ve começar favoravelmente a vida conjugal.<br />

82 “Autorite ou puissance et suiection.” – “Autorida<strong>de</strong> ou po<strong>de</strong>r e sujeição.”<br />

83 “Comme en ce passage.” – “Como nesta passagem.”<br />

84 A expressão original é ἐὰν δὲ κοιμηθῃ ὁ ἀνὴρ αὐτη̑ς: “Se seu esposo caiu em sono.” A metáfora<br />

não é peculiar às Escrituras, mas <strong>de</strong>la se fazem uso também escritores pagãos, do<br />

quê temos um belo exemplo em Calímaco: Ele dorme um sono sagrado – não se <strong>de</strong>ve dizer<br />

que os homens bons morrem.<br />

85 “Auec reuerence, sagement, et en la crainte du Seigneur.” – “Com reverência, sabiamente<br />

e no temor do Senhor.”


284 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

40. Mas ela será mais feliz se permanecer como está. Por quê?<br />

Seria porque a viuvez <strong>de</strong>sfrute <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong> inerente? Não, porque significa<br />

menos distrações e mais liberda<strong>de</strong> contra as preocupações<br />

mundanas. Além disso, “segundo meu parecer” não expressa outra<br />

coisa senão que Paulo não <strong>de</strong>sejava que houvesse alguma dúvida sobre<br />

sua opinião. Mas é como se ele dissesse que isso era o que ele<br />

<strong>de</strong>cidira sobre a matéria; pois imediatamente acrescenta que possuía<br />

o Espírito <strong>de</strong> Deus; e que é suficiente para dar prova <strong>de</strong> plena e perfeita<br />

autorida<strong>de</strong>. Ao usar o termo julgo, ele insinua uma nota irônica.<br />

Porque, visto que os falsos apóstolos estavam reiteradamente falando<br />

em termos megalomaníacos acerca do Espírito <strong>de</strong> Deus, com o fim <strong>de</strong><br />

reivindicar para si autorida<strong>de</strong>, e tentando, ao mesmo tempo, <strong>de</strong>negrir<br />

a imagem <strong>de</strong> Paulo, ele diz que acredita ser também participante do<br />

Espírito não menos que eles.


Capítulo 8<br />

1. Ora, no tocante às coisas oferecidas<br />

aos ídolos, sabemos que todos nós<br />

temos conhecimento. O conhecimento<br />

ensoberbece, porém o amor<br />

edifica.<br />

2. E se alguém julga que conhece alguma<br />

coisa, esse ainda não sabe o que<br />

<strong>de</strong>ve saber.<br />

3. Mas se alguém ama a Deus, o mesmo<br />

é conhecido <strong>de</strong>le.<br />

4. Portanto, no tocante ao comer<br />

das coisas oferecidas aos ídolos,<br />

sabemos que um ídolo nada é no<br />

mundo, e que não há outro Deus<br />

senão um só.<br />

5. Porque, ainda que haja alguns que se<br />

chamem <strong>de</strong>uses, quer no céu quer<br />

na terra (como há muitos <strong>de</strong>uses e<br />

muitos senhores),<br />

6. todavia, para nós, só há um Deus, o<br />

Pai, <strong>de</strong> quem são todas as coisas,<br />

e nós nele, e um só Senhor, Jesus<br />

Cristo, por meio <strong>de</strong> quem todas<br />

as coisas existem, e nós por meio<br />

<strong>de</strong>le.<br />

7. Seja como for, esse conhecimento<br />

não está presente em todos; pois<br />

alguns, com a consciência [da existência]<br />

dos ídolos, comem algo<br />

como oferecido aos ídolos; e sua<br />

consciência, sendo fraca, fica contaminada.<br />

1. De iis porro quæ idolis immolantur,<br />

scimus, quod omnes scientiam<br />

habemus: scientia inflat, caritas autem<br />

ædificat.<br />

2. Si quis autem vi<strong>de</strong>tur sibi aliquid scire,<br />

nondum quicquam scit, qualiter<br />

scire oportet.<br />

3. At si quis diligit Deum, hic cognitus<br />

est ab illo.<br />

4. De esu ergo eorum quæ idolis immolantur,<br />

novimus, quod idolum nihil<br />

est in mundo, et quod non est alius<br />

Deus nisi unus.<br />

5. Nam etsi sunt qui vocentur dii, sive<br />

in cœlo sive super terram, quemadmodum<br />

sunt dii multi et domini<br />

multi:<br />

6. Nobis tamen unus Deus Pater, ex<br />

quo omnia, et nos in ipso: et unus<br />

Dominus Iesus Christus, per quem<br />

omnia, et nos per ipsum.<br />

7. At non est in omnibus scientia: quidam<br />

autem cum idoli conscientia<br />

nunc quoque tanquam idolo immolatum<br />

edunt, et conscientia eorum,<br />

infirma quum sit, polluitur.


286 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Paulo então se move em direção a outra questão, à qual simplesmente<br />

tocara no capítulo 6 sem <strong>de</strong>senvolvê-la plenamente. Pois<br />

quando falara sobre a ganância dos coríntios, e concluiu essa parte<br />

<strong>de</strong> sua discussão <strong>de</strong>ntro do capítulo com a seguinte afirmação: “Os<br />

cobiçosos, os extorsores, os fornicadores etc. não herdarão o reino <strong>de</strong><br />

Deus”, ele partiu <strong>de</strong>ste ponto para falar da liberda<strong>de</strong> cristã: “todas as<br />

coisas me são lícitas.” Ele aproveitou a oportunida<strong>de</strong> para passar <strong>de</strong>ste<br />

ponto para o assunto da fornicação, e <strong>de</strong>sta para o matrimônio. E<br />

então, finalmente, segue em frente <strong>de</strong>ixando a referência que fizera às<br />

coisas conflitantes para realçar agora como nossa liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser<br />

modificada até on<strong>de</strong> as coisas intermediárias se relacionam. Por “coisas<br />

intermediárias” quero dizer aquelas coisas que em si mesmas nem<br />

são boas nem más, mas neutras, as quais Deus <strong>de</strong>ixou a nosso critério,<br />

mas em cujo uso <strong>de</strong>vemos observar mo<strong>de</strong>ração, para que não haja<br />

distinção entre liberda<strong>de</strong> e libertinagem. Ele, antes <strong>de</strong> tudo, seleciona<br />

um tipo particular em preferência aos outros, pois neste os coríntios<br />

estavam indo <strong>de</strong> mal a pior. Estavam freqüentando as festas religiosas<br />

que os adoradores <strong>de</strong> ídolos promoviam em honra <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>uses,<br />

quando comiam indiscriminadamente das carnes que eram sacrificadas<br />

a esses <strong>de</strong>uses. Uma vez que tal prática levava muitas pessoas<br />

a erguerem suas mãos num gesto <strong>de</strong> louvor, o apóstolo ensina que<br />

estavam errados em tirar vantagem pessoal da liberda<strong>de</strong> que o Senhor<br />

lhes conce<strong>de</strong>ra.<br />

1. No tocante às coisas sacrificadas aos ídolos. Ele começa fazendo-lhes<br />

uma concessão, na qual voluntariamente lhes conce<strong>de</strong> e<br />

admite tudo o que estavam a exigir ou a objetar. Ele po<strong>de</strong>ria ter dito:<br />

“Estou consciente do modo como vos justificais; fazeis uso da liberda<strong>de</strong><br />

cristã como escusa. Alegais que ten<strong>de</strong>s conhecimento, e que<br />

nenhum <strong>de</strong> vosso rol é tão <strong>de</strong>sorientado que não tenha consciência do<br />

fato <strong>de</strong> que existe unicamente um Deus. Admito ser tudo verda<strong>de</strong>, mas<br />

que utilida<strong>de</strong> tem um conhecimento que leva um irmão à bancarrota?”<br />

E assim ele concorda com a asseveração <strong>de</strong>les, mas, ao mesmo tempo,<br />

esclarece que as escusas <strong>de</strong>les eram fúteis e levianas.


Capítulo 8 • 287<br />

O conhecimento ensoberbece. Ele mostra, a partir dos efeitos,<br />

quão estúpido é gloriar-se no conhecimento quando o amor [caritas]<br />

está ausente. Ele po<strong>de</strong>ria ter-se expresso assim: “Que utilida<strong>de</strong> tem<br />

o conhecimento quando tudo o que ele faz é <strong>de</strong>ixar-vos convencidos<br />

e arrogantes, enquanto que a edificação é própria da essência do<br />

amor?” Esta passagem, que <strong>de</strong> outra forma seria obscura por causa <strong>de</strong><br />

sua concisão, po<strong>de</strong> ser facilmente compreendida da seguinte forma:<br />

“Qualquer coisa que careça no mínimo <strong>de</strong> um vislumbre <strong>de</strong> amor é<br />

indigno aos olhos <strong>de</strong> Deus; mais ainda, lhe causa <strong>de</strong>sprazer – quanto<br />

mais aquilo que se põe francamente em batalha contra o amor! Mas<br />

este conhecimento, do qual os coríntios se orgulhavam tanto, está<br />

<strong>de</strong>finitivamente do lado oposto do amor, pois satura os homens com<br />

arrogância e os leva a mirar com <strong>de</strong>sprezo a seus irmãos. O amor, em<br />

contrapartida, nos move a preocupar-nos com a sorte <strong>de</strong> nossos irmãos,<br />

e nos encoraja a buscar sua edificação. Não admira <strong>de</strong> eu dizer<br />

que maldito, pois, seja o conhecimento que produz seres arrogantes e<br />

insensíveis para com o bem-estar <strong>de</strong> outras pessoas!”<br />

Paulo, contudo, não pretendia que tal erro fosse creditado na<br />

conta da erudição, no sentido em que pessoas instruídas são mui freqüentemente<br />

não só bem apessoadas, mas, ao mesmo tempo, também<br />

menosprezam os <strong>de</strong>mais. Além disso, ele não pretendia dizer que a<br />

cultura, por si só, produza arrogância. Ele simplesmente queria mostrar<br />

o efeito que o conhecimento produz nos homens, quando o temor<br />

<strong>de</strong> Deus e o amor [dilectio] aos irmãos se acham ausentes. Porque<br />

os <strong>de</strong>screntes tiram vantagem <strong>de</strong> todos os dons divinos a fim <strong>de</strong> se<br />

exaltarem. É assim que riquezas, honras, posições oficiais, nobre nascimento,<br />

boa aparência e coisas semelhantes sobem à cabeça do ser<br />

humano; pois são arrebatados por uma equivocada confiança nessas<br />

coisas, tornando-se tão insolentes 1 quanto po<strong>de</strong>m. Naturalmente que<br />

nem sempre é assim, pois cruzamos sempre com pessoas que possuem<br />

riquezas, são bem apessoadas, envergam-se sob o peso das<br />

1 “Et intraittables.” – “E intoleráveis.”


288 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

honras, <strong>de</strong>sfrutam <strong>de</strong> posição oficial, têm sangue nobre a correr em<br />

suas veias, no entanto permanecem, ao mesmo tempo, humil<strong>de</strong>s, e<br />

que não levam em si sequer um laivo <strong>de</strong> orgulho. Mas sempre que a<br />

situação a que venho <strong>de</strong>screvendo entra em cena, não <strong>de</strong>vemos pôr a<br />

culpa na cultura, e, sim, naquelas coisas que, todos concordam, são<br />

dons <strong>de</strong> Deus. Em primeiro lugar, tal comportamento seria injusto e<br />

estúpido. Em segundo lugar, ao transferir a culpa para as coisas, que<br />

na verda<strong>de</strong> são neutras, estaríamos isentando o próprio ser humano,<br />

o único que <strong>de</strong>ve levar a culpa. O que estou dizendo é o seguinte: se a<br />

proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> riquezas é que torna os homens orgulhosos, então, se<br />

um homem rico é orgulhoso, nenhuma culpa se po<strong>de</strong> assacar contra<br />

ele, porquanto o mal tem sua origem nas riquezas.<br />

Portanto, <strong>de</strong>vemos aceitar como um princípio estabelecido que o<br />

conhecimento em si mesmo é bom; mas, visto que a pieda<strong>de</strong> é seu único<br />

fundamento, 2 ele se torna fútil e inútil nos perversos, porquanto o amor<br />

é seu condimento essencial, e sem este aquele se torna ineficaz. De fato,<br />

on<strong>de</strong> este conhecimento <strong>de</strong> Deus não se faz presente, o qual nos humilha<br />

e nos ensina a nos preocuparmos com a sorte <strong>de</strong> nossos irmãos, o<br />

que se <strong>de</strong>scobre é algo que se imagina ser conhecimento, o qual <strong>de</strong> forma<br />

alguma é conhecimento, mesmo naqueles que se consi<strong>de</strong>ram como<br />

os mais instruídos. Tal conhecimento, porém, não <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong> forma<br />

alguma culpado <strong>de</strong> ser uma espada que é posta nas mãos <strong>de</strong> um louco.<br />

Tal po<strong>de</strong>r-se-ia dizer 3 <strong>de</strong> certos fanáticos que furiosamente protestam<br />

contra todas as artes e ciências liberais, como se sua única função fosse<br />

animar os orgulhosos, sem nenhuma contribuição valiosa a oferecer a<br />

nossa vida cotidiana. 4 Mas, as mesmas pessoas que as vituperam são<br />

tão vociferantes em seu orgulho que se tornam vivos exemplos do antigo<br />

provérbio: “Nada é tão arrogante quanto a ignorância.”<br />

2 “La crainte <strong>de</strong> Dieu est le seul et vray fon<strong>de</strong>ment d’icelle.” – “O temor <strong>de</strong> Dues é seu único<br />

fundamento.”<br />

3 “J’ai bien voulu dire ceci.” – “Sinto-me preparado para dizer isso.”<br />

4 “Moyens et instrumens tres-vtiles, tant à la cognoissance <strong>de</strong> Dieu, qu’à la conduite <strong>de</strong><br />

la vie commune.” – “Os meios e instrumentos mais úteis, tanto para o conhecimento <strong>de</strong><br />

Deus, quanto para a conduta da vida comum.”


Capítulo 8 • 289<br />

2. Se alguém julga. Aquele que julga saber alguma coisa é uma<br />

pessoa que <strong>de</strong>posita um alto valor no conhecimento que julga ter, e,<br />

<strong>de</strong> maneira arrogante, olha com <strong>de</strong>sdém para os <strong>de</strong>mais. Portanto,<br />

Paulo aqui está con<strong>de</strong>nando não o conhecimento propriamente dito,<br />

mas aquele egoísmo e arrogância que são seu produto no tocante<br />

aos incrédulos. Em contrapartida, ele não nos exorta a nos portarmos<br />

como céticos, sempre incertos e dominados pela dúvida. Ele não<br />

aprova qualquer parcela <strong>de</strong> modéstia falsa e simulada, como se fosse<br />

uma atitu<strong>de</strong> positiva fingirmos ignorância quando realmente temos<br />

conhecimento. Aquele homem, pois, que pensa conhecer algo, ou, em<br />

outros termos, que é insolente com base em noção vazia <strong>de</strong> seu próprio<br />

conhecimento, <strong>de</strong> modo que prefira a si mesmo antes que outros,<br />

e que nutre um alto conceito <strong>de</strong> si mesmo, nada sabe além do que<br />

<strong>de</strong>veria saber. Porque o fundamento do genuíno conhecimento [verae<br />

scientiae] é o conhecimento [cognitio] pessoal <strong>de</strong> Deus, o qual produz<br />

humilda<strong>de</strong> e submissão; mais que isso: em vez <strong>de</strong> nos exaltar, ele nos<br />

lança totalmente no pó terra. Mas on<strong>de</strong> o orgulho se faz presente não<br />

há nenhum conhecimento <strong>de</strong> Deus. 5 Esta é uma passagem mui preciosa,<br />

e meu <strong>de</strong>sejo é que todos a aprendam sinceramente, para que<br />

possam conservar o domínio do sólido conhecimento [ritesciendi regulam<br />

tenerent].<br />

3. E se alguém ama a Deus. Aqui temos a conclusão, na qual ele<br />

mostra o que é especialmente recomendável nos cristãos e inclusive se<br />

converte em conhecimento, e todos os <strong>de</strong>mais dotes se tornam dignos<br />

<strong>de</strong> enaltecimento, se amamos a Deus. Pois, neste caso, nele amaremos<br />

também a nosso próximo. Assim, tudo o que fizermos será sempre feito<br />

<strong>de</strong>ntro dos limites da mo<strong>de</strong>ração, e receberá a aprovação <strong>de</strong> Deus.<br />

Paulo ensina, pois, à luz das conseqüências, que nenhum ensino po<strong>de</strong><br />

ser aprovado sem antes ser ‘batizado’ no amor <strong>de</strong> Deus [amore Dei intincta],<br />

pois somente este fato po<strong>de</strong> assegurar que os dons que temos<br />

contam com o endosso divino. A condição é encontrada na segunda<br />

5 “Là regne ignorance et faute <strong>de</strong> cognoissance <strong>de</strong> Dieu.” – “Ali reina a ignorância e a <strong>de</strong>ficiência<br />

na familiarida<strong>de</strong> com Deus.”


290 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

epístola [5.17], ou, seja: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura<br />

[criação]” [2Co 5.17]. Com isso Paulo quer dizer que, sem o Espírito <strong>de</strong><br />

regeneração, tudo mais, não importa quão excelente aparentemente<br />

seja, é sem valor. “Ser conhecido <strong>de</strong> Deus” significa simplesmente estar<br />

<strong>de</strong> posse <strong>de</strong> certa condição, ou, seja, achar-se incluído no número<br />

<strong>de</strong> seus filhos. E assim ele exclui todos os orgulhosos do livro da vida<br />

[Fp 4.3] e do rol dos piedosos.<br />

4. No tocante, pois, ao comer das coisas sacrificadas aos ídolos.<br />

Ele agora volta à afirmação com a qual começara o capítulo, e expõe<br />

<strong>de</strong> maneira mais explícita a justificativa que os coríntios apresentavam.<br />

Pois como toda a conturbação tinha sua origem no fato <strong>de</strong> que eles<br />

agradavam a si mesmos e miravam com <strong>de</strong>sdém os <strong>de</strong>mais, Paulo con<strong>de</strong>nou,<br />

em termos gerais, aquele conhecimento que é <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhoso e não<br />

sazonado com amor. Entretanto, agora ele chega ao ponto, explicando<br />

especificamente o gênero <strong>de</strong> conhecimento que era a motivação do<br />

envai<strong>de</strong>cimento <strong>de</strong>les. Eis o argumento <strong>de</strong>les: “Um ídolo não passa <strong>de</strong><br />

mera invenção da mente humana, e, por essa razão, <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado<br />

como não existente. Segue-se ser absurda, imaginária e irracional a<br />

consagração efetuada no nome <strong>de</strong> um ídolo. Portanto, o cristão que não<br />

nutre nenhum respeito pelo ídolo, e ainda come da comida a ele oferecida,<br />

não se torna impuro.” Esta é a suma da justificativa <strong>de</strong>les, e Paulo<br />

não <strong>de</strong>scarta o que dizem como se fosse falso, pois <strong>de</strong> fato há aqui um<br />

valioso ensino, porém o rejeita porque estavam fazendo mau uso <strong>de</strong>le,<br />

ou, seja, viviam em oposição ao amor [fraternal].<br />

Quanto às palavras, eis a tradução <strong>de</strong> Erasmo: “Um ídolo que<br />

não tem existência” [nullum est simulacrum]. Quanto a mim, prefiro<br />

a tradução da Vulgata: Um ídolo não é nada [nihil]. Pois o raciocínio<br />

é o seguinte: um ídolo não é nada, visto não existir senão um único<br />

Deus. Pois uma coisa <strong>de</strong>duz-se inevitavelmente da outra: se não existe<br />

nenhum outro Deus além <strong>de</strong> nosso Deus, então um ídolo não passa<br />

<strong>de</strong> uma fútil fantasia e uma mera inexistência. Quando Paulo diz: “e<br />

não existe senão um só Deus”, ele toma causalmente a partícula ‘e’<br />

no sentido <strong>de</strong> ‘porque’. Pois a razão por que um ídolo não significa


Capítulo 8 • 291<br />

nada é que não se <strong>de</strong>ve atribuir-lhe o valor que ele simula ter. Ora,<br />

o propósito do ídolo é ser uma representação <strong>de</strong> Deus; mais ainda:<br />

com o propósito <strong>de</strong> representar falsos <strong>de</strong>uses, já que não existe senão<br />

um único Deus, que é invisível e incompreensível. Deve-se dar também<br />

cuidadosa atenção à seguinte razão: “Um ídolo nada é porque<br />

não existe senão um único Deus”, pois ele é o Deus invisível e não<br />

po<strong>de</strong> ser representado por nehum sinal visível, e portanto tal coisa<br />

não po<strong>de</strong> ser usada como objeto <strong>de</strong> adoração a Deus. Portanto, se os<br />

ídolos são estabelecidos como representação do genuíno Deus, ou <strong>de</strong><br />

falsos <strong>de</strong>uses, em qualquer caso significa a criação <strong>de</strong> algo perversivo.<br />

Esta é a razão por que Habacuque <strong>de</strong>nomina os ídolos <strong>de</strong> “mestres <strong>de</strong><br />

mentiras” [2.18]; pois sua função é ludibriar o ser humano, primeiro<br />

por retratarem a figura ou imagem <strong>de</strong> Deus; e segundo porque seu<br />

nome serve como <strong>de</strong>sorientação. Portanto, ούδεν (nada) não se refere<br />

à substância do ídolo, mas a seu caráter, pois, afinal, um ídolo é fabricado<br />

<strong>de</strong> alguma matéria, seja ouro, ma<strong>de</strong>ira ou pedra. Visto, porém,<br />

que Deus não preten<strong>de</strong> ser representado <strong>de</strong>sta forma, o ídolo é algo<br />

fútil e consi<strong>de</strong>rado como sendo uma nulida<strong>de</strong> no tocante a possuir<br />

alguma importância ou valor.<br />

5. Porque, ainda que haja alguns que se chamem <strong>de</strong>uses. Eis<br />

o que ele preten<strong>de</strong> dizer: “Eles possuem um nome, porém não existe<br />

qualquer realida<strong>de</strong> por trás <strong>de</strong>le.” Pois aqui “ser chamado” significa<br />

ser divinamente consi<strong>de</strong>rado pelos homens. Ele igualmente faz uso da<br />

<strong>de</strong>signação geral, quando diz: “no céu ou na terra.” Os <strong>de</strong>uses <strong>de</strong>scritos<br />

como sendo proce<strong>de</strong>ntes do céu são as hostes celestiais, como a<br />

Bíblia os chama <strong>de</strong> sol, lua e <strong>de</strong>mais astros. Moisés, porém, mostra<br />

quão longe estão <strong>de</strong> posuir honras divinas, pelo fato <strong>de</strong> terem sido<br />

criados para nosso uso. O sol é nosso servo; a lua é nossa serva. Quão<br />

absurdo, pois, que lhes prestemos nossas honras divinas! Pela expressão<br />

<strong>de</strong>uses que estão na terra, em minha opinião são propriamente dito<br />

os homens e mulheres por quem os ritos religiosos foram instituídos. 6<br />

6 “Ausquels on a attribue diuinite, et en leur honnerur dressé quelque seruice diuin.” – “A<br />

quem têm atribuído divinda<strong>de</strong>, e têm <strong>de</strong>signado algum serviço divino em sua honra.”


292 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Porque, segundo Plínio, os que prestavam gran<strong>de</strong> serviço à raça humana<br />

foram imortalizados pelas cerimônias religiosas, <strong>de</strong> modo a serem<br />

cultuados como <strong>de</strong>uses. Por exemplo, Júpiter, Marte, Saturno, Mercúrio<br />

e Apolo foram mortais, porém, após sua morte, foram trasladados<br />

para a companhia dos <strong>de</strong>uses. Em seguida, o mesmo suce<strong>de</strong>u a Hércules,<br />

Rômulo e, finalmente, aos Césares, como se os homens realmente<br />

possuíssem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> se fazerem <strong>de</strong>uses, segundo seu beneplácito,<br />

quando, <strong>de</strong> fato, não po<strong>de</strong>m conferir a si próprios nem vida nem imortalida<strong>de</strong>!<br />

Na verda<strong>de</strong>, há outros <strong>de</strong>uses na terra, ou, seja, os animais e<br />

outras coisas inanimadas, quer sejam o boi, a serpente, o gato, a cebola<br />

e o alho, entre os egípcios; e entre os romanos, a pedra Terminus 7<br />

e a pedra Verta. Estes, pois, são os <strong>de</strong>uses meramente nominais. Paulo,<br />

porém, diz que não preten<strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdiçar tempo com divinizações<br />

<strong>de</strong>sse gênero. 8<br />

6. Todavia, para nós só há um Deus, o Pai. Ainda que Paulo<br />

viesse a dizer estas coisas à guisa <strong>de</strong> antecipação pelo que pu<strong>de</strong>ssem<br />

alegar, não obstante ele faz alusão à justificativa dos coríntios, <strong>de</strong> tal<br />

forma que, ao mesmo tempo, lhes ministra instrução. Porque, partindo<br />

do que constitui a maior característica <strong>de</strong> Deus, ele prova que este<br />

é o único Deus: “Tudo quanto tem sua origem em algum outro ou em<br />

algo mais, fora <strong>de</strong> si mesmo, não po<strong>de</strong> ser eterno, e portanto não po<strong>de</strong><br />

ser Deus. Tudo se origina <strong>de</strong> um Ser, portanto somente tal Ser é Deus.”<br />

Repetindo: “eis aqui o único que realmente é Deus, aquele que comunica<br />

existência a tudo e <strong>de</strong> quem tudo emana como <strong>de</strong> uma única e<br />

suprema fonte; mas só existe um Ser <strong>de</strong> quem todas as coisas emanam;<br />

portanto, não existe senão um único Deus.”<br />

Ao adicionar: e nós nele (εἰς αὐτόν), ele quis dizer que subsistimos<br />

em Deus, visto que foi ele que uma vez nos criou. Esta sentença parece<br />

propor algo mais, ou, seja, já que confessamos que nossa origem se<br />

encontra nele, <strong>de</strong>vemos, pois, <strong>de</strong>volver-lhe nossa vida para que ela al-<br />

7 A alusão é a Terminus, o <strong>de</strong>us das fronteiras, <strong>de</strong> quem Levy faz menção (i.10 e v. 54).<br />

8 “Telles consecrations faites à l’appetit <strong>de</strong>s hommes.” – “Tais consagrações feitas ao sabor<br />

do humor humano.”


Capítulo 8 • 293<br />

cance seu verda<strong>de</strong>iro propósito. Este é o significado <strong>de</strong> εἰς αὐτόν usado<br />

em Romanos 11.36. Aqui, entretanto, é usado em lugar do ablativo ἐν<br />

αυτ, que é bastante comum nos escritos dos apóstolos. Portanto, ele<br />

quer dizer que, em nossas atuais circunstâncias, <strong>de</strong>vemos repousar<br />

no po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus, já que uma vez fomos criados por ele. Esta interpretação<br />

é endossada pela afirmação que ele faz imediatamente a seguir<br />

sobre Cristo: que existimos por meio <strong>de</strong>le. Pois ele <strong>de</strong>sejava atribuir<br />

uma ativida<strong>de</strong> comum ao Pai e ao Filho, adicionando, contudo, uma<br />

distinção, a qual é apropriada às Pessoas. Portanto, ele diz que subsistimos<br />

no Pai, e isso se dá através do Filhos; visto, porém, que o Pai<br />

é realmente a fonte <strong>de</strong> toda existência, mas que estamos unidos a ele<br />

através do Filho, por isso ele nos comunica, através <strong>de</strong>le, a realida<strong>de</strong><br />

da existência.<br />

Um só Senhor. Estas coisas são afirmadas em relação à Pessoa <strong>de</strong><br />

Cristo; em outros termos, isso se refere à relação que ele mantém com<br />

o Pai. Pois tudo o que se aplica a Deus é também aplicado a Cristo,<br />

quando não se faz nenhuma menção específica a Pessoas. Mas, nesta<br />

passagem, on<strong>de</strong> a Pessoa do Pai é consi<strong>de</strong>rada juntamente com a Pessoa<br />

do Filho, o apóstolo está plenamente certo ao fazer distinção entre<br />

suas funções peculiares.<br />

Ora, o Filho <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se manifestar na carne, recebeu<br />

do Pai o senhorio e po<strong>de</strong>r sobre todas as coisas, para que pu<strong>de</strong>sse<br />

reinar sozinho no céu e na terra; e para que o Pai pu<strong>de</strong>sse exerce sua<br />

autorida<strong>de</strong> através <strong>de</strong> suas mãos. Eis a razão por que nosso Senhor é<br />

referido como o Único. 9 Mas o fato <strong>de</strong> o Senhorio ser atribuído a ele só<br />

não <strong>de</strong>ve ser tomado como se significasse que são abolidas todas as<br />

distinções 10 terrenas [mundi ordines]. Pois a referência <strong>de</strong> Paulo aqui é<br />

ao domínio espiritual, enquanto os governos <strong>de</strong>ste mundo são <strong>de</strong> caráter<br />

‘político’ [dominia mundi politica]. Isto correspon<strong>de</strong> ao que dissera<br />

9 “Pour ceste raison quando il est parlé <strong>de</strong> nostre Seigneur, il est dit que nous n’en auons<br />

qu’vn, assauoir Christ.” – “Por esta razão, quando se faz menção <strong>de</strong> nosso Senhor, <strong>de</strong>clara-se<br />

que temos somente um, isto é, Cristo.”<br />

10 “Les <strong>de</strong>sgrez, estats, et gouuernemens du mon<strong>de</strong>.” – “Posições, condições e governos do<br />

mundo.”


294 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

um pouco antes, ou, seja: “há muitos que se chamam senhores” [v. 5],<br />

porém não pretendia dizer que eram reis, ou outros que usufruíam <strong>de</strong><br />

posição e autorida<strong>de</strong> superiores, mas <strong>de</strong> ídolos ou <strong>de</strong>mônios, a quem<br />

os homens estúpidos, sem quaisquer justificativas, atribuíam preeminência<br />

e governo. Portanto, embora nossa religião reconheça um só<br />

Senhor, tal fato não impe<strong>de</strong> que o Estado tenha muitos senhores, a<br />

quem se <strong>de</strong>va honra e respeito neste Único Senhor.<br />

7. Mas esse conhecimento não está em todos. De uma só vez ele<br />

refuta tudo o que introduzira previamente como se fosse produto <strong>de</strong><br />

seus lábios, mostrando que não é suficiente que saibam que o que fazem<br />

é correto, se ao mesmo tempo não nutrem nenhum respeito para<br />

com seus irmãos. Ao dizer previamente: “Sabemos que todos temos<br />

conhecimento” [v. 1], sua referência é àqueles em quem ele reprovava<br />

por abusarem <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong>. Por outro lado, ele agora os convida<br />

a consi<strong>de</strong>rar que há muitas pessoas fracas e ignorantes a eles associadas,<br />

a quem <strong>de</strong>veriam acomodar-se. É como se dissesse: “Aos olhos <strong>de</strong><br />

Deus, vosso ponto <strong>de</strong> vista é perfeitamente correto, e se fôsseis uma<br />

única pessoa no mundo, po<strong>de</strong>ríeis sentir-vos livres para comer carne<br />

sacrificada aos ídolos como se fosse qualquer outra comida. É preciso,<br />

porém, que vossos irmãos sejam levados em consi<strong>de</strong>ração, a quem<br />

<strong>de</strong>veis alguma coisa. Vós ten<strong>de</strong>s conhecimento; eles são ignorantes.<br />

O que fazeis <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>terminado não por vosso conhecimento, mas<br />

também por sua ignorância.” Esta réplica merece especial atenção:<br />

pois não há nada a que estamos mais inclinados 11 do que isto: que<br />

cada um <strong>de</strong> nós busca seu próprio interesse negligenciando os <strong>de</strong>mais.<br />

Por esta razão nos sentimos dispostos a dar atenção a nosso<br />

próprio juízo, e a não consi<strong>de</strong>rar que a proprieda<strong>de</strong> daquelas obras<br />

que fazemos aos olhos dos homens <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> não meramente <strong>de</strong> nossa<br />

própria consciência, mas também da <strong>de</strong> nossos irmãos.<br />

Alguns, com a consciência dos ídolos. Esta é sua ignorância:<br />

viviam ainda sob a influência <strong>de</strong> algumas crenças supersticiosas,<br />

11 “Il n’y a rien plus commun et ordinaire que ce vice.” – “Não há nada que seja mais comum<br />

e ordinário do que esta falta.”


Capítulo 8 • 295<br />

como se houvesse alguma virtu<strong>de</strong> no ídolo, ou alguma virtu<strong>de</strong> na<br />

consagração ímpia e idolátrica [<strong>de</strong> carnes]. Paulo, porém, não está<br />

referindo-se aos adoradores <strong>de</strong> ídolos, os quais eram estranhos à<br />

verda<strong>de</strong>ira religião, mas a pessoas ignorantes, as quais não estavam<br />

suficientemente informadas para enten<strong>de</strong>rem que um ídolo nada é,<br />

e que, conseqüentemente, a consagração, que era feita em nome do<br />

ídolo, não tinha a menor importância. Eles pensavam mais ou menos<br />

assim: “Visto que o ídolo é algo real, a consagração, que é feita<br />

em seu nome, não é, portanto, <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> sentido. Além do mais,<br />

as carnes, uma vez oferecidas aos ídolos, não são mais puras.” Daí,<br />

pensavam que, se comiam <strong>de</strong>ssas carnes, contraíam algum grau <strong>de</strong><br />

contaminação, e que <strong>de</strong> alguma forma se tornavam participantes do<br />

ídolo. Esse é o tipo <strong>de</strong> ofensa que Paulo reprova nos coríntios: quando,<br />

por meio <strong>de</strong> nosso exemplo, induzimos nossos irmãos a viverem<br />

em suas fraquezas, e a agirem contra sua consciência, estamos erigindo<br />

a mesma pedra <strong>de</strong> tropeço.<br />

E sua consciência, sendo fraca, fica contaminada. Deus não quer<br />

que nossa mão toque qualquer coisa sem que antes estejamos plenamente<br />

certos <strong>de</strong> que isso lhe é aceitável. Portanto, quem quer que<br />

seja, com uma consciência hesitante em razão <strong>de</strong>ssa mesma incerteza,<br />

está pecando aos olhos <strong>de</strong> Deus. Isso é precisamente o que Paulo afirma<br />

em Romanos 14.23: “Mas aquele que tem dúvidas, se come, está<br />

con<strong>de</strong>nado, porque não come pela fé; e tudo o que não é pela fé é<br />

pecado.” Portanto, há verda<strong>de</strong> no provérbio popular, que diz: “Constrói<br />

para o inferno quem constrói contra a consciência.” Portanto, em<br />

contrapartida, não importa quão boa uma ação pareça ser, se há algo<br />

errado com a atitu<strong>de</strong> mental por trás <strong>de</strong>la, então tal ação é contaminada.<br />

Pois quem quer que ousadamente planeje algo que se põe contra<br />

sua consciência, está revelando certo <strong>de</strong>scaso em relação a Deus. Pois<br />

quando respeitamos a vonta<strong>de</strong> divina em todas as coisas, é assim que<br />

provamos que tememos a Deus. Por isso, o leitor estará mostrando<br />

<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração para com Deus sempre que, por exemplo, mover<br />

um <strong>de</strong>do, se houver dúvida em sua mente, se o que faz está ou não


296 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

em harmonia com a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>le. Há algo mais a ser lembrado sobre<br />

comidas, a saber: elas só são santificadas para nosso uso através da<br />

Palavra [1Tm 4.5]. Se esta Palavra está ausente, ali nada resta senão<br />

contaminação; não porque as coisas criadas por Deus sejam impuras,<br />

mas porque o homem as usa <strong>de</strong> uma maneira impura. Em suma, os<br />

corações humanos são purificados pela fé; por isso, fora da fé nada é<br />

puro aos olhos <strong>de</strong> Deus.<br />

8. Mas a comida não nos recomendará<br />

a Deus; porque, se não comemos,<br />

não ficamos melhores; ou, se comemos,<br />

não ficamos piores.<br />

9. Mas tomai cuidado para que, <strong>de</strong> alguma<br />

forma, essa vossa liberda<strong>de</strong><br />

não se transforme em tropeço para<br />

os fracos.<br />

10. Porque, se alguém vir a ti, que tens<br />

conhecimento, sentado à mesa no<br />

templo dos ídolos, não será a consciência<br />

do que é fraco induzida a<br />

comer das coisas sacrificadas aos<br />

ídolos?<br />

11. Pois através <strong>de</strong> teu conhecimento<br />

o irmão fraco perecerá, por quem<br />

Cristo morreu.<br />

12. E assim, pecando contra os irmãos,<br />

e ferindo sua consciência que é fraca,<br />

vós pecais contra Cristo.<br />

13. Por isso, se a comida leva meu irmão<br />

a tropeçar, nunca mais comerei<br />

carne, para que meu irmão não se<br />

escandalize.<br />

8. Atqui esca nos non commendat Deo:<br />

neque si comedamus, abundamus,<br />

neque si non comedamus, <strong>de</strong>ficimur<br />

aliquo.<br />

9. Sed vi<strong>de</strong>te, ne quo modo facultas<br />

hæc vestra offendiculo sit infirmis.<br />

10. Si quis enim vi<strong>de</strong>at te, utcunque<br />

scientiam habeas, in epulo simulacrorum<br />

accumbentem; nonne<br />

conscientia ejus, quum tamen infirmus<br />

sit, ædificabitur ad e<strong>de</strong>ndum<br />

quæ sunt idolis immolata?<br />

11. Et peribit frater, qui infirmus est, in<br />

tua scientia, propter quem Christus<br />

mortuus est?<br />

12. Sic autem peccantes in fratres, et<br />

vuluerantes conscientiam illorum<br />

infirmam, in Christum peccatis.<br />

13. Quapropter si esca offendit fratrem<br />

meum, nequaquam vescar carnibus<br />

in æeternum, ne fratri meo sim<br />

offendiculo.<br />

8. A comida não nos recomendará a Deus. Este foi, ou po<strong>de</strong>ria ter<br />

sido, outro pretexto que os coríntios costumavam usar, ou, seja: que<br />

o culto divino não consiste <strong>de</strong> alimentos, como Paulo mesmo ensina<br />

em sua Epístola aos Romanos 14.17: “O reino <strong>de</strong> Deus não é comida


Capítulo 8 • 297<br />

nem bebida.” Ele respon<strong>de</strong>: “Entretanto, é preciso tomar cuidado para<br />

que o uso <strong>de</strong> nossa liberda<strong>de</strong> não cause dano a nosso próximo.” Aqui<br />

ele tacitamente reconhece que, aos olhos <strong>de</strong> Deus, não importa o que<br />

comamos, porque ele nos permite servir-nos do alimento livremente,<br />

sem qualquer problema <strong>de</strong> consciência; essa liberda<strong>de</strong>, porém, precisa<br />

ser temperada com o amor, sempre que nos envolvermos com<br />

outras pessoas. Portanto, o argumento dos coríntios era <strong>de</strong>ficitário,<br />

visto que julgavam toda a situação pelo prisma <strong>de</strong> apenas uma parte<br />

<strong>de</strong>la, porque, quando entram em cena os afazeres práticos da vida, as<br />

reivindicações do amor <strong>de</strong>vem receber especial consi<strong>de</strong>ração. Não há<br />

dúvida, pois, <strong>de</strong> que o alimento não nos recomenda a Deus, e Paulo<br />

reconhece esse fato; mas ele o modifica ao dizer que o amor nos é recomendado<br />

por Deus, e que seria pecaminoso negligenciá-lo.<br />

Porque, se comemos não ficamos melhores. Ele aqui não está<br />

se referindo aos estômagos bem alimentados, porque a pessoa que<br />

recebe seu alimento tem obviamente seu estômago melhor nutrido do<br />

que a pessoa que está faminta. Ele, porém, tem em mente que nada<br />

ganhamos nem per<strong>de</strong>mos, no tocante à justiça, se comemos ou não.<br />

Além do mais, ele não está se referindo a todo gênero <strong>de</strong> abstinência,<br />

nem a todo gênero <strong>de</strong> alimento, sem qualquer discriminação. Pois a indulgência<br />

e a extravagância excessivas, em si mesmas, não granjeiam<br />

a aprovação <strong>de</strong> Deus, enquanto que a sobrieda<strong>de</strong> e a mo<strong>de</strong>ração o<br />

agradam. Tenhamos, porém, bem firme em nossa mente que o reino <strong>de</strong><br />

Deus, que é espiritual, não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas práticas externas; portanto,<br />

essas coisas neutras [resmedias], em si mesmas, não são <strong>de</strong> nenhum<br />

valor aos olhos <strong>de</strong> Deus. Embora ele ponha isso nos lábios <strong>de</strong> outrem,<br />

quando antecipa seus argumentos, não obstante admite que tal coisa<br />

é verda<strong>de</strong>ira, pois ela se <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> seu próprio ensino, o que mencionamos<br />

brevemente no último parágrafo.<br />

9. Tomai cuidado para que vossa liberda<strong>de</strong>. Ele <strong>de</strong>ixa a liberda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>les intata, porém lhe impõe restrições, contanto que seu uso não<br />

perturbe os que são fracos. E ele é bem explícito em seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> que<br />

os fracos sejam tratados com consi<strong>de</strong>ração, ou, seja, aqueles que não


298 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

estão ainda bem fundamentados na pieda<strong>de</strong>. Visto que em geral são<br />

vistos com menosprezo por todos, o Senhor <strong>de</strong>seja, na verda<strong>de</strong> or<strong>de</strong>na,<br />

que nos preocupemos com eles. Paulo, ao mesmo tempo, propõe<br />

que os gigantes obstinados, que procuram agir com tirania e manter<br />

nossa liberda<strong>de</strong> sob seu controle, po<strong>de</strong>m ser seguramente ignorados; 12<br />

porque ninguém precisa ter receio <strong>de</strong> ofen<strong>de</strong>r aos que não se <strong>de</strong>ixam<br />

induzir a pecar pela fraqueza, mas que, ao mesmo tempo, vivem ansiosamente<br />

<strong>de</strong> espreita a fim <strong>de</strong> encontrar algo para censurar. Em breve<br />

veremos o que ele tinha em mente sobre pedras <strong>de</strong> tropeço.<br />

10. Se alguém te vir. À luz <strong>de</strong>sta afirmação surge mais claramente<br />

até on<strong>de</strong> foi a liberda<strong>de</strong> que os coríntios <strong>de</strong>ram a si mesmos, ou, seja,<br />

quando os incrédulos preparavam alguma sorte <strong>de</strong> festa sagrada em<br />

louvor dos ídolos, não hesitavam 13 um mínimo sequer em participar<br />

e comer dos sacrifícios com eles. Paulo agora mostra quais foram os<br />

maus resultados <strong>de</strong>ssa prática.<br />

Substitui “que tens conhecimento” por “aquele que tem conhecimento”.<br />

Na segunda parte, on<strong>de</strong> se lê, “o que é fraco”, adicionei “não<br />

obstante”. Em minha opinião, tal coisa era necessária a fim <strong>de</strong> clarificar<br />

o pensamento <strong>de</strong> Paulo. Porque ele faz uma concessão, como se<br />

quisesse dizer: “Admita-se que <strong>de</strong> fato tens conhecimento; mas alguém<br />

que olha para ti, e que não se acha equipado com [o mesmo] conhecimento,<br />

é estimulado por teu exemplo a aventurar-se a fazer o mesmo<br />

que estás fazendo, quando, na verda<strong>de</strong>, ele jamais teria feito um movimento<br />

sequer se antes não lhe tivesses estimulado. Agora, porém,<br />

que está tentando imitar alguém, ele acredita que o exemplo <strong>de</strong>sse<br />

alguém o mune <strong>de</strong> todo e qualquer pretexto, quando a verda<strong>de</strong> é que<br />

em todo o tempo ele esteve sob o domínio <strong>de</strong> uma má consciência<br />

acerca do que fazia.” Porquanto ‘fraqueza’, aqui, significa ignorância,<br />

ou uma consciência oscilante. Estou bem ciente da forma como outros<br />

o explicam. Consi<strong>de</strong>ram esta ‘pedra <strong>de</strong> tropeço’ [escândalo] no senti-<br />

12 “Nous ne nous en <strong>de</strong>vons point soucier, mais les laisser là.” – “Não <strong>de</strong>vemos preocupar-<br />

-nos com eles, mas <strong>de</strong>ixá-los para lá.”<br />

13 “Les Corinthiens n’auoyent point <strong>de</strong> honte.” – “Os coríntios não se envergonhavam.”


Capítulo 8 • 299<br />

do <strong>de</strong> pessoas ignorantes, as quais se <strong>de</strong>ixam influenciar pelo exemplo<br />

<strong>de</strong> outros, supondo que, agindo assim, estão oferecendo algum gênero<br />

<strong>de</strong> culto a Deus. Todavia, tal noção está completamente fora <strong>de</strong> sintonia<br />

com a intenção <strong>de</strong> Paulo. Pois ele achou falta neles (como já disse),<br />

visto que estavam incitando o ignorante a agir contra sua consciência,<br />

o qual se precipitava contra algo sobre o qual não tinha a menor idéia<br />

se era certo ou não. Induzir significa aqui encorajar – ser confirmado. 14<br />

Mas o encorajamento que não tem por fundamentado a sã doutrina é<br />

realmente algo nocivo.<br />

11. E teu irmão perecerá. Notemos bem que, se o leitor fizer alguma<br />

coisa nutrindo dúvida ou contra sua consciência, estará pecando<br />

seriamente, mesmo que os homens tentem convencê-lo <strong>de</strong> que tal coisa<br />

é algo sem importância. Todo nosso esforço, ao longo <strong>de</strong> toda nossa<br />

vida, <strong>de</strong>ve ser para satisfazermos à vonta<strong>de</strong> divina. E estar contra essa<br />

divina vonta<strong>de</strong> é não só uma questão que envolve nossas ações externas,<br />

mas também nossos pensamentos, quando nos permitimos agir<br />

contra nossa consciência, mesmo que tal atitu<strong>de</strong> não seja em si mesma<br />

errada. 15 É só nos lembrarmos <strong>de</strong> que estamos nos precipitando <strong>de</strong><br />

ponta cabeça rumo a uma hecatombe, toda vez que persistirmos em<br />

nosso próprio caminho, em franca oposição a nossa consciência.<br />

Fora este fato, leio esta afirmação na forma interrogativa: perecerá<br />

ele através <strong>de</strong> teu conhecimento? É como se ele dissesse: “É provável<br />

que teu conhecimento conduza teu irmão à ruína? Tens conhecimento<br />

do que é certo simplesmente com o objetivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir alguém?” Ele<br />

usou o termo irmão com o fim <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nar os coríntios em seu orgulho<br />

e cruel indiferença para com aqueles <strong>de</strong> sua consciência. Eis o que<br />

14 A palavra original, οικοδομηθήσεται, será edificado, é usada aqui, na opinião <strong>de</strong> alguns críticos<br />

eruditos, no sentido <strong>de</strong> encorajado ou animar, e uma passagem paralela é Malaquias<br />

3.15, on<strong>de</strong> a palavra hebraica, wbbk, é traduzida na Seputaginta ἀνοικοδομου̑νται, edificar<br />

ou animar. Merece nota, contudo, que o apóstolo no começo do capítulo falou <strong>de</strong> amor<br />

como edificação, enquanto o conhecimento ensoberbece, e não é provável que ele fizesse<br />

uso da mesma palavra ironicamente, como diríamos: “Esta edificação não seria um caminho<br />

errado?”<br />

15 “Quand nous entreprenons quelque chose contre ceste saincte volonte.” – “Quando tentamos<br />

algo em oposição a essa santa vonta<strong>de</strong>.”


300 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

pretendia dizer: “Aquele a quem menosprezas é <strong>de</strong>veras fraco, mas ele<br />

ao mesmo tempo é teu irmão, porque Deus o adotou. Daí, teu coração<br />

se revela impiedoso quando não <strong>de</strong>monstra qualquer consi<strong>de</strong>ração<br />

por teu irmão.” Mas existe ainda mais força na afirmação subseqüente,<br />

ou, seja, que o ignorante ou fraco também foi redimido pelo sangue<br />

<strong>de</strong> Cristo. Pois não se po<strong>de</strong> imaginar nada mais mesquinho do que isto:<br />

enquanto Cristo não hesitou em morrer para que o fraco não viesse a<br />

perecer, nós, <strong>de</strong> outro lado, não nos importamos um mínimo sequer<br />

pela salvação dos homens e mulheres que foram redimidos por tal<br />

preço. Eis um fato memorável, do qual <strong>de</strong>scobrimos quão preciosa a<br />

salvação <strong>de</strong> nossos irmãos <strong>de</strong>ve ser a nossos olhos, não só a <strong>de</strong> todos<br />

eles em conjunto, mas também a <strong>de</strong> cada indivíduo, diante do fato <strong>de</strong><br />

que o sangue <strong>de</strong> Cristo foi vertido por cada um individualmente.<br />

12. E assim, pecando contra os irmãos etc. Pois se a alma <strong>de</strong> cada<br />

pessoa fraca custa o preço do sangue <strong>de</strong> Cristo, então aquele que, por<br />

causa <strong>de</strong> uma porção insignificante <strong>de</strong> comida, se faz responsável pelo<br />

rápido regresso à morte <strong>de</strong> um irmão redimido por Cristo, mostra<br />

quão <strong>de</strong>sprezível, a seus olhos, é o sangue <strong>de</strong> Cristo. Daí, um <strong>de</strong>scaso<br />

como este é um franco insulto a Cristo. Já dissemos como uma consciência<br />

fraca po<strong>de</strong> ser injuriada, a saber, quando é ela estimulada a<br />

proce<strong>de</strong>r erroneamente [v. 10], <strong>de</strong> modo que tal pessoa é indiferente e<br />

tola <strong>de</strong>mais indo além do direito que ela pensa ter.<br />

13. Por isso, se a comida leva meu irmão a tropeçar. Com vistas<br />

a reprovar mais severamente sua <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhosa liberda<strong>de</strong>, ele assevera<br />

que não <strong>de</strong>vemos meramente nos afastar <strong>de</strong> uma festa em particular,<br />

mas, para não ofen<strong>de</strong>r um irmão, <strong>de</strong>vemos, inclusive, <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />

comer carne para o resto da vida. Ele não prescreve meramente o<br />

que <strong>de</strong>ve ser feito, mas afirma que ele mesmo dará o exemplo. Naturalmente,<br />

a expressão é hiperbólica, pois dificilmente seria possível<br />

que alguém se abstenha <strong>de</strong> carne durante toda sua vida se continua<br />

a levar vida normal entre outras pessoas. 16 Mesmo assim, ele está<br />

16 “S’il <strong>de</strong>meure en la conuersation et communication auec les autres?” – “Se ele mantém<br />

comunicação e comunhão com outros.”


Capítulo 8 • 301<br />

dizendo que jamais se valerá da liberda<strong>de</strong> que possui, se esta levar o<br />

fraco a tropeçar. Porquanto a liberda<strong>de</strong> só será útil se for controlada<br />

pela regra do amor. Gostaria que uma cuidadosa atenção fosse dada<br />

a este ponto por aqueles que se esforçam por reverter tudo em seu<br />

próprio benefício, <strong>de</strong> maneira que não permitem que vigore sequer<br />

a menor parcela <strong>de</strong> seus direitos, caso seja para o bem <strong>de</strong> um irmão.<br />

Também <strong>de</strong>sejo que atentem bem não só para o que Paulo ensina,<br />

mas também para o que ele põe diante <strong>de</strong> nós através <strong>de</strong> seu próprio<br />

exemplo. Quão superior a nós é Paulo! Quando ele, pois, não hesita a<br />

sujeitar-se a esse ponto por amor <strong>de</strong> seus irmãos, qual <strong>de</strong> nós não se<br />

submeteria às mesmas condições?<br />

Não obstante, por mais difícil que este ensino seja na prática,<br />

contudo, até on<strong>de</strong> vai seu significado, não existe qualquer dificulda<strong>de</strong><br />

exceto on<strong>de</strong> ele foi corrompido por alguns com glosas irrelevantes, e<br />

por outros com distorções nocivas. Ambos os grupos erram ao interpretar<br />

o termo ofen<strong>de</strong>r. Pois tomam ofen<strong>de</strong>r no sentido <strong>de</strong> “incorrer<br />

no ódio ou <strong>de</strong>sprazer dos homens”; ou, o que é quase a mesma coisa,<br />

“fazer o que lhes <strong>de</strong>sagrada, ou não lhes é totalmente agradável”. O<br />

contexto, porém, é suficientemente claro, a saber: que simplesmente<br />

significa obstruir o caminho <strong>de</strong> um irmão através <strong>de</strong> um mau exemplo<br />

(como um obstáculo que lhe é posto no caminho) para <strong>de</strong>sviar seu<br />

curso, ou propiciar-lhe ocasião para cair. Portanto, Paulo não está tratando<br />

aqui <strong>de</strong> conservar o favor dos homens, mas <strong>de</strong> dar assistência<br />

ao fraco para evitar que fracasse, bem como lhe fornecer diretrizes<br />

sábias para que se mantenha na vereda certa. Mas (como eu já disse),<br />

no tocante à primeira classe, ela é constituída <strong>de</strong> tolos; enquanto que<br />

a segunda classe é constituída <strong>de</strong> perversos impu<strong>de</strong>ntes.<br />

Os primeiros são néscios, os quais raramente permitem que os cristãos<br />

usem algumas das coisas indiferentes, com receio <strong>de</strong> que venham<br />

a escandalizar aos que são supersticiosos. Dizem eles: “Paulo, nesta passagem,<br />

está proibindo tudo quanto se presta a suscitar escândalo. Ora,<br />

comer carne na sexta-feira é uma maneira segura <strong>de</strong> provocar escândalo.<br />

Portanto, <strong>de</strong>vemos abster-nos <strong>de</strong> fazê-lo, não só quando estamos na


302 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

presença <strong>de</strong> pessoas fracas, mas em toda e qualquer semana, sem exceção,<br />

visto que nunca sabemos quando as teremos por perto enquanto<br />

comemos.” Prefiro ignorar a forma errônea como enten<strong>de</strong>m o verbo escandalizar<br />

[Scandalizandi]. Mas estão completamente equivocados em<br />

não dar atenção ao fato <strong>de</strong> Paulo aqui estar <strong>de</strong>nunciando aos que fazem<br />

uso ina<strong>de</strong>quado <strong>de</strong> seu conhecimento, quando não <strong>de</strong>veriam proce<strong>de</strong>r<br />

assim diante dos fracos, as mesmas pessoas a quem não se preocupam<br />

em instruir. Portanto, as causas da reprovação serão removidas se <strong>de</strong><br />

antemão o ensino foi ministrado. Além disso, Paulo não nos or<strong>de</strong>na a<br />

calcular se po<strong>de</strong> haver ocasião <strong>de</strong> escândalo naquilo que fazemos, exceto<br />

quando o perigo estiver diante <strong>de</strong> nossos olhos.<br />

E agora passamos a analisar os componentes do outro grupo. São<br />

os supostos seguidores <strong>de</strong> Nico<strong>de</strong>mos, 17 os quais sob tal pretexto se<br />

conformam aos perversos, participando <strong>de</strong> sua idolatria, e não contentes<br />

em justificar o que fazem incorretamente, <strong>de</strong>sejam também cegar<br />

os <strong>de</strong>mais para que não vejam a mesma necessida<strong>de</strong>. A con<strong>de</strong>nação<br />

<strong>de</strong> sua ímpia hipocrisia não po<strong>de</strong>ria ser melhor expressa do que Paulo<br />

faz aqui, pois ele mostra claramente que, por meio <strong>de</strong> seu exemplo,<br />

estavam estimulando os fracos a tomarem parte nos cultos idolátricos,<br />

causando sérias ofensas tanto a Deus quanto aos homens. Entretanto,<br />

energicamente se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>núncia, diligiciando-se em mostrar<br />

que as superstições <strong>de</strong>vem ser acalentadas nos corações dos ignorantes,<br />

e que <strong>de</strong>vemos pôr-nos em seu caminho como guias à idolatria, para<br />

que uma franca con<strong>de</strong>nação por idolatria não os escandalize. À luz <strong>de</strong><br />

tal fato, não lhes darei a honra <strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdiçar tempo em refutar suas<br />

impu<strong>de</strong>ntes sugestões! Simplesmente aconselharia a meus leitores que<br />

façam comparação dos dias <strong>de</strong> Paulo com os nossos, e <strong>de</strong>cididam por<br />

si mesmos se é permissível estar presentes às missas e outras abominações,<br />

dando assim tanta ocasião <strong>de</strong> escândalo para os fracos.<br />

17 Nosso autor fala da mesma classe <strong>de</strong> pessoas quando comenta João 7.50.


Capítulo 9<br />

1. Não sou apóstolo? Não sou livre?<br />

Não vi a Jesus Cristo nosso Senhor?<br />

Não sois vós minha obra no Senhor?<br />

2. Se não sou apóstolo para outrem, ao<br />

menos o sou para vós; porque vós<br />

sois o selo <strong>de</strong> meu apostolado no<br />

Senhor.<br />

3. Esta é minha resposta aos que me<br />

julgam:<br />

4. Não temos o direito <strong>de</strong> comer e beber?<br />

5. Não temos o direito <strong>de</strong> levar conosco<br />

uma irmã como esposa, como<br />

fazem os <strong>de</strong>mais apóstolos, e como<br />

os irmãos do Senhor e Cefas?<br />

6. Ou somente eu e Barnabé não temos<br />

o direito <strong>de</strong> abster-nos <strong>de</strong> trabalhar?<br />

7. Quem em qualquer tempo vai à guerra<br />

a suas próprias custas? Quem<br />

planta uma vinha e não come <strong>de</strong>la?<br />

Ou quem apassenta um rebanho e<br />

não come do leite do rebanho?<br />

8. Digo estas coisas como homem? Ou<br />

não diz a lei também o mesmo?<br />

1. Non sum liber? non sum Apostolus? 1<br />

nonne Iesum Christum Dominum<br />

nostrum vidi? nonne opus meum<br />

vos estis in Domino?<br />

2. Si aliis non sum Apostolus, vobis<br />

tamen sum: sigillum enim Apostolatus<br />

mei vos estis in Domino.<br />

3. Hæc mea <strong>de</strong>fensio est apud eos, qui<br />

in me inquirunt.<br />

4. Numquid non habemus poestatem<br />

e<strong>de</strong>ndi et bibendi?<br />

5. Numquid potestatem non habemus<br />

circumducendæ uxoris sororis,<br />

quemadmodum et reliqui Apostoli,<br />

et fratres Domini, et Cephas?<br />

6. An ego solus et Barnabas non habemus<br />

potestatem hoc agendi? 2<br />

7.Quis militavit suo sumptu unquam?<br />

quis plantat vitem, et ex fructu ejus<br />

non comedit? quis pascit gregem,<br />

et lacte gregis non vescitur?<br />

8. Num secundum hominem hæc dico?<br />

1 “Ne suis-ie point Apostre? ne suis-ie point en liberte.” – “Não sou eu um apóstolo? Não<br />

sou eu livre?” “A or<strong>de</strong>m das palavras na versão latina <strong>de</strong> Calvino é a or<strong>de</strong>m na qual são lidas<br />

na Vulgata, Alex e em alguns manuscritos e versões antigas, e nos quais estão citadas<br />

por Orígines, Tertuliano e Agostinho. ... O latim retém a or<strong>de</strong>m primitiva; lemos, pois, na<br />

versão <strong>de</strong> Wiclif: ‘Se eu não sou livre? eu não apóstolo?’” – Penn.<br />

2 “De ne trauailler point.” – “Restringir <strong>de</strong> trabalhar.”


304 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

9. Porque está escrito na lei <strong>de</strong> Moisés:<br />

Não amordaces a boca do boi que<br />

<strong>de</strong>bulha o grão. Porventura é <strong>de</strong><br />

bois que Deus se preocupa?<br />

10. Ou não diz ele estas coias por nossa<br />

causa? Sim, é por nossa causa que<br />

está escrito: aquele que lavra <strong>de</strong>ve<br />

lavrar com esperança; e aquele que<br />

<strong>de</strong>bulha com esperança <strong>de</strong>ve ser<br />

participante <strong>de</strong> sua esperança.<br />

11. Se vos semeamos as coisas espirituais,<br />

será <strong>de</strong>mais que <strong>de</strong> vós<br />

colhamos vossas coisas carnais?<br />

12. Se outros participam <strong>de</strong>ste direito<br />

sobre vós, e não temos nós muito<br />

mais? Não obstante, não usamos <strong>de</strong>ste<br />

direito; antes suportamos todas as<br />

coisas, para não pormos qualquer<br />

obstáculo ao evangelho <strong>de</strong> Cristo.<br />

9. Numquid lex quoque ea<strong>de</strong>m non dicit?<br />

in lege enim Mosis (Deut. xxv.4)<br />

scriptum est: non obligabis os bovi<br />

trituranti: numquid boves curæ<br />

sunt Deo,<br />

10. Vel propter nos omnino dicit? Et<br />

sane propter nos scriptum est: quoniam<br />

<strong>de</strong>bet sub spe, qui arat, arare,<br />

et qui triturat, sub spe participandi.<br />

(Alias: quia <strong>de</strong>beat sub spe qui arat,<br />

arare, et qui triturat sub spe, spei<br />

suæ particeps esse <strong>de</strong>beat.)<br />

11. Si nos vobis spiritualia seminavimus,<br />

magnum, si carnalia vestra<br />

metamus?<br />

12. Si alii hanc in vos sumunt potestatem,<br />

an non magis nos? atqui non<br />

usi sumus facultate hac: sed omnia<br />

sufferimus, ut ne quam ofrensionem<br />

<strong>de</strong>mus Evangelio Christi.<br />

1. Não sou livre? Ele ratifica por vias <strong>de</strong> fato o que dissera imediatamente<br />

antes, ou, seja, que jamais provaria carne em toda sua vida<br />

se isso trouxesse escândalo a um irmão. Ao mesmo tempo <strong>de</strong>ixa bem<br />

claro que não po<strong>de</strong>ria exigir coisa alguma <strong>de</strong>les o que ele mesmo não<br />

tivesse posto em prática. E não há dúvida <strong>de</strong> que a justiça natural requer<br />

que todo aquele que impõe alguma obrigação sobre outrem, <strong>de</strong>ve<br />

antes sujeitar-se a ela. Todavia, o mestre cristão <strong>de</strong>ve, acima <strong>de</strong> todos,<br />

disciplinar-se <strong>de</strong> tal forma que todos sempre vejam seu ensino ratificado<br />

pelo exemplo <strong>de</strong> sua própria vida [prática]. Sabemos <strong>de</strong> nossa<br />

própria experiência que o que Paulo estava pedindo dos coríntios é<br />

algo excessivamente difícil, a saber, que por amor a seus irmãos <strong>de</strong>veriam<br />

restringir o uso da liberda<strong>de</strong> [potestas] que lhes fora concedida.<br />

Ele não teria ido muito longe com isso caso não tivesse, ele mesmo,<br />

sido <strong>de</strong> todos o primeiro a dar o exemplo. E <strong>de</strong>veras ele se empenhava<br />

a agir assim, mas, visto que todos eles não confiaram na força <strong>de</strong> uma


Capítulo 9 • 305<br />

mera promessa <strong>de</strong>le sobre o futuro, então lhes narra o que já havia feito.<br />

Ele cita um notável exemplo <strong>de</strong> sua renúncia da liberda<strong>de</strong>, da qual<br />

em outras circunstâncias teria usufruído, e ao proce<strong>de</strong>r assim tira dos<br />

falsos apóstolos a chance <strong>de</strong> criticá-lo. Isso se <strong>de</strong>u quando ele preferiu<br />

ganhar sua própria subsistência por meio <strong>de</strong> seus próprios esforços,<br />

em vez <strong>de</strong> buscar apoio às custas dos coríntios, aos quais oferecera o<br />

evangelho.<br />

E agora prossegue discutindo com mais <strong>de</strong>talhes sobre os direitos<br />

que pertenciam aos apóstolos, ou, seja, <strong>de</strong> receber alimentos e<br />

vestimentas. Uma das razões por que agia assim foi para que tivessem<br />

maior incentivo <strong>de</strong> seguir seu exemplo, ao resumir muitas coisas por<br />

amor <strong>de</strong> seus irmãos; pois na verda<strong>de</strong> continuavam injustamente irredutíveis<br />

sobre as condições <strong>de</strong> seus direitos. A outra razão que levou<br />

Paulo a abordar esta matéria foi para pôr a <strong>de</strong>scoberto a injustiça dos<br />

que queriam vê-lo em situação embaraçosa, pois se aproveitavam <strong>de</strong><br />

algo que jazia além da crítica como justificativa para <strong>de</strong>smerecê-lo. Ele<br />

faz uso <strong>de</strong> perguntas retóricas com o fim <strong>de</strong> imprimir maior força a<br />

seu argumento. A pergunta “Não sou livre?” é <strong>de</strong> caráter geral. Quando<br />

aduz: “Não sou apóstolo?”, ele restringe a pergunta a uma espécie <strong>de</strong><br />

liberda<strong>de</strong> particular, como se quisesse dizer: “Se sou um apóstolo <strong>de</strong><br />

Cristo, por que minha situação <strong>de</strong>ve ser pior que a dos outros?” Assim<br />

ele prova sua liberda<strong>de</strong> com base no fato <strong>de</strong> ser apóstolo.<br />

Não vi a Jesus Cristo nosso Senhor? Ele cuida em acrescentar<br />

este ponto para que não viesse a ser <strong>de</strong> alguma forma consi<strong>de</strong>rado<br />

inferior ao restante dos apóstolos. Pois aqueles que eram hostis e invejosos<br />

eram altissonantes em suas reiteradas asseverações da idéia:<br />

tudo o que Paulo possuía do evangelho ele o recebera das mãos <strong>de</strong><br />

homens [segunda mão], pois jamais vira a Cristo pessoalmente. É verda<strong>de</strong><br />

que ele jamais estivera na companhia <strong>de</strong> Cristo enquanto este<br />

esteve no mundo; mas Cristo lhe aparecera após sua ressurreição. Ver<br />

Cristo em sua glória imortal, porém, é um maior privilégio do que vê-<br />

-lo vestido da humilda<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua carne mortal. Paulo está se referindo<br />

a sua visão mencionada no capítulo 15.8 <strong>de</strong>sta epístola, e a menciona


306 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

em Atos [caps. 22 e 26]. Nsta questão particular, portanto, ele procura<br />

situar sua vocação além <strong>de</strong> qualquer disputa, porque, mesmo que não<br />

tenha sido classificado como um dos doze, a escolha que Cristo fez<br />

conhecida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o céu não era menos autoritativa.<br />

Não sois vós minha obra no Senhor? Em seguida ele assenta seu<br />

apostolado sobre as bases <strong>de</strong> seu efeito, ou, seja, por meio <strong>de</strong> sua<br />

pregação do evangelho ele conquista os coríntios para o Senhor. Ora,<br />

Paulo apresenta uma forte <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> si mesmo ao qualificar a conversão<br />

dos coríntios como sendo obra <strong>de</strong>le, porquanto ela envolve uma<br />

espécie <strong>de</strong> nova criação da alma.<br />

Todavia, como isso se a<strong>de</strong>qua ao que afirmou em 1 Coríntios 3.7,<br />

ou, seja: “o que planta não é nada, e o que rega nada é”? Minha resposta<br />

é como segue: visto que Deus é a causa eficiente, enquanto que<br />

o homem, com sua proclamação, é apenas o instrumento, o qual por<br />

si só nada é, <strong>de</strong>vemos sempre referir-nos à eficácia do ministério <strong>de</strong><br />

tal maneira que todo o louvor da obra permaneça exclusivamente em<br />

Deus. Mas, às vezes, quando se faz referência ao ministério, o homem<br />

é comparado a Deus, e então se torna um fato que “o que planta não<br />

é nada, e o que rega nada é”. Pois o que po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>ixado ao homem<br />

se ele é, com Deus, participante da obra? Assim a Escritura reduz os<br />

ministros a nada, ao compará-los com Deus; mas quando se trata apenas<br />

do ministério, e não se faz nenhuma comparação com Deus, sua<br />

eficácia é exaltada em termos can<strong>de</strong>ntes, como se faz aqui. Pois, em<br />

tais circunstâncias, a questão não é o que o homem po<strong>de</strong> fazer por si<br />

próprio à parte <strong>de</strong> Deus, mas, antes, que Deus mesmo, que é o agente,<br />

se junta ao instrumento, e o po<strong>de</strong>r do Espírito é adicionado ao labor<br />

do homem. Em outros termos, a questão não é o que o homem por si<br />

só executa com o uso <strong>de</strong> seus próprios recursos, mas o que Deus faz<br />

através do homem.<br />

2. Se não sou apóstolo para outrem. A essência <strong>de</strong>sta afirmação é<br />

que Paulo <strong>de</strong>seja estabelecer a autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu apostolado entre os<br />

coríntios, <strong>de</strong> modo que o mesmo seja posto acima <strong>de</strong> qualquer disputa.<br />

Diz ele: “Se há alguém que nutre dúvidas acerca <strong>de</strong> meu apostolado,


Capítulo 9 • 307<br />

que este não seja vosso caso, porque, visto que plantei vossa igreja<br />

por intermédio <strong>de</strong> meu ministério, ou não sois crentes, ou sois obrigados<br />

a reconhecer-me como apóstolo.” E para que não viesse a dar a<br />

impressão <strong>de</strong> escudar-se meramente em palavras, ele os lembra que<br />

os fatos falam por si mesmos, pois Deus pusera seu selo em seu apostolado<br />

na forma <strong>de</strong> fé dos próprios coríntios. Mas se alguém alega que<br />

isso se aplica também aos falsos apóstolos, os quais ajuntam seguidores<br />

a seu redor, respondo que a genuína doutrina está acima <strong>de</strong> todas<br />

as coisas requeridas, a fim <strong>de</strong> que alguém tenha uma confirmação <strong>de</strong><br />

seu ministério à vista <strong>de</strong> Deus a partir <strong>de</strong> seus efeitos. Portanto, se os<br />

impostores conseguem enganar algumas das pessoas comuns, e até<br />

mesmo nações e reinos, com suas mentiras, não há nada aqui que lhes<br />

propicie base com que atiçar seu orgulho. Mas ainda que as pessoas<br />

que não proclamam o evangelho “com sincerida<strong>de</strong>” (como temos em<br />

Fp 1.17) são às vezes os meios usados para a expansão do reino <strong>de</strong><br />

Cristo, Paulo é plenamente justificado em <strong>de</strong>duzir dos resultados <strong>de</strong><br />

sua obra que realmente ele fora enviado por Deus; pois as estruturas<br />

da Igreja <strong>de</strong> Corinto eram <strong>de</strong> tal soli<strong>de</strong>z que as bênçãos divinas eram<br />

nitidamente visíveis nela; e tal fato <strong>de</strong>ve ter servido para produzir a<br />

confirmação do ofício <strong>de</strong> Paulo.<br />

3. Minha <strong>de</strong>fesa. Além do tema principal que ora discute, ele<br />

parece ter tido o propósito subsidiário aqui <strong>de</strong> pôr um fim nas más<br />

interpretações dos que protestam contra sua vocação, como se ele<br />

pertencesse a uma classe ordinária <strong>de</strong> ministros. Diz ele: “Estou acostumado<br />

a valer-me <strong>de</strong> vós como minha <strong>de</strong>fesa, sempre que alguém<br />

procura <strong>de</strong>negrir a honra <strong>de</strong> meu apostolado.” O resultado disso é que<br />

os coríntios estão prejudicando-se e agindo contra seus próprios interesses,<br />

sempre que <strong>de</strong>ixem <strong>de</strong> reconhecê-lo como apóstolo. Porque,<br />

se sua fé fosse solene evidência do apostolado <strong>de</strong> Paulo, e sua <strong>de</strong>fesa<br />

contra os caluniadores, uma coisa não podia ser subvertida sem que a<br />

outra se <strong>de</strong>smoronasse juntamente.<br />

Enquanto alguns lêem “aqueles que me questionam”, eu traduzi<br />

“aqueles que inquirem sobre minha situação”; porque ele visa aos que


308 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

faziam <strong>de</strong> seu apostolado 3 uma questão contestável. Concordo com os<br />

escritores latinos que falam <strong>de</strong> o acusado ser interrogado 4 legalmente;<br />

mas o significado da palavra ἀνακρίνειν, que Paulo usa aqui, parece-me<br />

ser melhor realçada por minha expressão.<br />

4. Não temos o direito <strong>de</strong> comer ou beber? À luz do que acabara<br />

<strong>de</strong> dizer, ele conclui que tinha direito <strong>de</strong> receber <strong>de</strong>les alimento<br />

e vestuário, 5 pois comia e bebia, porém não às custas da Igreja. Portanto,<br />

esta foi uma das maneiras pelas quais ele então renunciara sua<br />

liberda<strong>de</strong>; a outra era o fato <strong>de</strong> não ter esposa, cuja manutenção seria<br />

um peso sobre todos eles. Eusébio infere <strong>de</strong>stas palavras que Paulo<br />

era casado, mas que <strong>de</strong>ixara sua esposa em algum lugar particular,<br />

<strong>de</strong> modo que ela não constituísse qualquer ônus às igrejas; mas esta<br />

é uma falsa conjetura, pois isso po<strong>de</strong>ria ser facilmente <strong>de</strong>clarado por<br />

uma pessoa solteira.<br />

Ao chamar uma esposa cristã <strong>de</strong> irmã, Paulo mostra, antes <strong>de</strong><br />

tudo, quão forte e amorável [amabilis] <strong>de</strong>ve ser a união entre um esposo<br />

e uma esposa crentes, pois a mesma é mantida por um duplo<br />

compromisso. Em seguida propõe que sejam muito mo<strong>de</strong>stos e pon<strong>de</strong>rados<br />

em seu trato recíproco. É também oportuno inferir daqui que o<br />

matrimônio é tudo, menos algo ina<strong>de</strong>quado para os ministros da Igreja.<br />

Não menciono agora o fato <strong>de</strong> os apóstolos fazerem uso <strong>de</strong>le, pois<br />

logo faremos referência ao exemplo <strong>de</strong>les. Paulo, porém, está mostrando<br />

aqui, <strong>de</strong> forma geral, o que a todos era permitido fazer.<br />

5. Como fazem os <strong>de</strong>mais apóstolos. Em adição à comissão do<br />

Senhor, ele faz referência ao que os outros estavam habituados a fazer.<br />

E a fim <strong>de</strong> expressar a renúncia <strong>de</strong> seus direitos <strong>de</strong> maneira ainda mais<br />

clara, avança passo a passo. Antes <strong>de</strong> tudo cita o exemplo dos apóstolos.<br />

Então acrescenta: “Mais que isto, os próprios irmãos do Senhor<br />

3 “Ceux qui vouloyent mettre en <strong>de</strong>bat son Apostolat, et le contreroller, commer on dit.”<br />

– “Os que eram <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong> levar seu apostolado à controvérsia, e à bancarrota, como<br />

dizem.”<br />

4 A expressão é usada por Suetônio (Aug. 33). Reum ita fertur interrogâsse: Ele informa que<br />

o criminoso era interrogado <strong>de</strong>ssa maneira.<br />

5 “Combien qu’il n’en ait pas usé.” – “Ainda que ele não tivesse feito uso <strong>de</strong>le.”


Capítulo 9 • 309<br />

não tiveram qualquer dificulda<strong>de</strong> em ter esposa; sim, e o que é mais<br />

[comprobatório], o próprio Pedro, a quem, <strong>de</strong> comum acordo, é dado<br />

o primeiro lugar, admite para si o mesmo direito.”<br />

Por “irmãos do Senhor” ele quer dizer João e Tiago, que “era<br />

reputados como colunas”, segundo expressou em Gálatas 2.9. E em<br />

harmonia com o costume usual da Escritura, ele chama irmãos aos que<br />

estavam relacionados a ele pelo nascimento.<br />

Quem quer que se proponha encontrar nesta passagem apoio<br />

para o papado estará se fazendo <strong>de</strong> tolo. Concordamos plenamente<br />

que Pedro era <strong>de</strong> fato reconhecido como o primeiro entre os apóstolos,<br />

pois em toda companhia <strong>de</strong> pessoas é sempre necessário que<br />

haja alguém que assuma a li<strong>de</strong>rança sobre os <strong>de</strong>mais. E eles mesmos<br />

estavam prontos a respeitar Pedro, por causa da riqueza <strong>de</strong> seus excelentes<br />

dons; pois é justo que todo aquele que se sobressaia a outros<br />

nos dons da graça <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong>ve ser tido em elevada consi<strong>de</strong>ração e<br />

honra. A primazia <strong>de</strong> Pedro, porém, não era senhorio; aliás, não havia<br />

qualquer comparação entre esta e a autorida<strong>de</strong> absoluta <strong>de</strong> um senhor<br />

[dominatio]. Porque, ainda que se distinguisse entre os <strong>de</strong>mais, ele era<br />

refutável em relação a seus colegas. Além disso, uma coisa é ser particularmente<br />

o primeiro na Igreja; e completamente outra é reivindicar<br />

para si a sabedoria ou preeminência sobre o mundo inteiro. Ainda que<br />

concordássemos com tudo isso no tocante a Pedro, o que teria isso a<br />

ver com o papa? Pois assim como Matias suce<strong>de</strong>u a Judas [At 1.26], também<br />

algum Judas po<strong>de</strong> muito bem assumir o lugar <strong>de</strong> Pedro. Sim, e agora<br />

vemos, após um período <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 900 anos entre seis sucessores,<br />

ou, pelo menos, os que se vangloriaram <strong>de</strong> ser seus sucessores, que<br />

nenhum <strong>de</strong>les é em nada mais elevado do que Judas. Mas este não é<br />

o lugar apropriado para se discutirem essas coisas (vejam-se minhas<br />

Institutas, 4.6).<br />

Devemos notar um último ponto aqui, a saber: que os apóstolos<br />

não se abstinham do matrimônio, como o fazem os clérigos papais<br />

que tanto o <strong>de</strong>testam, visto que o mesmo não convém à santida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

sua or<strong>de</strong>m. Mas foi <strong>de</strong>pois dos apóstolos que os homens elucidaram


310 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

o notável exemplo <strong>de</strong> sabedoria, crendo que os sacerdotes do Senhor<br />

são contaminados caso tenham ato sexual com suas legítimas esposas.<br />

Finalmente, foi assim que o papa Sirício não hesitou em chamar<br />

o matrimônio “uma impureza da carne, na qual ninguém po<strong>de</strong> agradar<br />

a Deus”. O que, pois, acontecerá aos <strong>de</strong>safortunados apóstolos,<br />

que persistiram nesta impureza até sua morte? Mas aqui os papistas<br />

procuram evadir-se do problema com um laivo sutil <strong>de</strong> ladino raciocínio<br />

<strong>de</strong> sua própria maquinação. Pois afirmam que os apóstolos se<br />

privaram do ato sexual, mas que levavam suas esposas para os assistirem,<br />

<strong>de</strong> modo que pu<strong>de</strong>ssem colher os frutos do evangelho; em outros<br />

termos, sua manutenção à expensa <strong>de</strong> outras pessoas. Como se eles,<br />

na verda<strong>de</strong>, não pu<strong>de</strong>ssem ser sustentados pelas igrejas, senão que<br />

vagassem <strong>de</strong> um lugar a outro! E ainda como se fosse possível crer que<br />

aquelas esposas percorressem todos os lugares espontaneamente, e,<br />

quando não houvesse mais necessida<strong>de</strong>, simplesmente com o fim <strong>de</strong><br />

viverem na ociosida<strong>de</strong> à expensa pública! A explicação <strong>de</strong> Ambrósio,<br />

<strong>de</strong> que a referência é a esposas <strong>de</strong> outros homens, os quais seguiam<br />

solicitamente os apóstolos para ouvir o que tinham a ensinar, é excessivamente<br />

forçada.<br />

7. Quem vai à guerra a suas próprias custas? Usa-se aqui o presente<br />

do indicativo do verbo usado 6 neste sentido: “costuma-se ir à guerra.”<br />

Contudo o pus no pretérito <strong>de</strong> modo a emitir um som mais abrupto.<br />

Ao fazer a transição, com o uso <strong>de</strong> três comparações, todas elas extraídas<br />

da vida cotidiana dos homens, Paulo agora afirma que estava<br />

plenamente disposto a viver às custas da Igreja; e faz isso para mostrar<br />

que está reivindicando para si não mais do que requer a consi<strong>de</strong>ração<br />

humana (humanitas) ordinária. A primeira é tirada da lei militar, pois os<br />

soldados são geralmente assalariados dos erários públicos. A segunda<br />

é <strong>de</strong>rivada do viticultor, pois este planta uma vinha, não como entretenimento,<br />

mas para colher <strong>de</strong>la seus frutos. A terceira é extraída da<br />

pecuária, pois o pecuarista não trabalha por nada, senão para <strong>de</strong>sfrutar<br />

6 O verbo é στρατεύεται, ir a uma guerra, ou servir como soldado.


Capítulo 9 • 311<br />

do leite do rebanho, ou, seja, o produto provê sua manutenção. Quando<br />

a justiça natural estabelece isso como sendo a maneira mais justa<br />

<strong>de</strong> se proce<strong>de</strong>r, alguém seria tão injusto ao ponto <strong>de</strong> negar ao pastor<br />

da igreja o suprimento <strong>de</strong> suas necessida<strong>de</strong>s? Embora pu<strong>de</strong>sse suce<strong>de</strong>r<br />

que alguns servissem como soldados a suas próprias custas, como, por<br />

exemplo, os romanos dos tempos antigos, quando nenhum tributo era<br />

ainda pago e não havia nenhuma taxa, 7 isso não milita contra o que Paulo<br />

está dizendo, pois ele está simplesmente tomando seu argumento do<br />

costume comum e universalmente praticado.<br />

8, 9. Digo estas coisas como homem? No caso <strong>de</strong> alguém recusar-se<br />

a ser convencido, dizendo que é uma questão completamente<br />

diferente no que se refere às coisas <strong>de</strong> Deus, e por isso Paulo <strong>de</strong>sperdiçou<br />

seu tempo introduzindo tantos símiles, ele agora acrescenta que a<br />

mesma coisa é estabelecida pelo Senhor. Falar segundo o costume dos<br />

homens às vezes significa falar segundo o entendimento pervertido<br />

da carne, como em Romanos 3.5. Aqui, porém, significa lidar somente<br />

com aquelas coisas com as quais os homens estão familiarizados, e<br />

as quais só são válidas nos negócios humanos (como se diz). Mas o<br />

fato é que Deus mesmo queria que os homens recebessem salários<br />

como recompensa <strong>de</strong> seus labores. Paulo prova isso à luz da proibição<br />

divina <strong>de</strong> amordaçar o boi quando se <strong>de</strong>bulha o grão; e ao aplicá-lo às<br />

circunstâncias como está fazendo, ele diz que Deus não estava preocupado<br />

com bois, e, sim, estava pensando nos homens.<br />

Primeiro, po<strong>de</strong>-se perguntar por que Paulo faz uma escolha específica<br />

<strong>de</strong>ste texto-prova, quando ilustrações muito mais claras lhe<br />

estavam disponíveis na lei; por exemplo, Deuteronômio 24.15: “Em<br />

seu dia lhe darás seu salário, antes do pôr-do-sol.” Mas, quem prestar<br />

mais <strong>de</strong>tida atenção a esse fato compreen<strong>de</strong>rá que há mais força<br />

neste texto, no qual o Senhor nos pe<strong>de</strong> que cui<strong>de</strong>mos do gado, porque<br />

disso po<strong>de</strong>-se ver, ao inferir do menor para o maior, que quando<br />

<strong>de</strong>seja que os animais mudos sejam bem tratados, ele requer que<br />

7 Os solados romanos não recebiam nenhum pagamento (stipendium) do erário público até<br />

347 anos após a fundação <strong>de</strong> Roma (veja-se Liv. iv.59 e v.7).


312 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

muito maior eqüida<strong>de</strong> seja <strong>de</strong>monstrada pelos homens em seu trato<br />

recíproco. Quando ele diz que “Deus não se preocupa com bois”, não<br />

<strong>de</strong>vemos entendê-lo mal, como se sua intenção fosse <strong>de</strong>ixar os bois<br />

fora da providência divina, quando Deus não negligencia nem mesmo<br />

o mais insignificante pardal [Mt 6.26; 10.29]. Além disso, não <strong>de</strong>vemos<br />

cometer o equívoco <strong>de</strong> imaginar que Paulo pretenda explicar<br />

este mandamento alegoricamente; pois alguns espíritos <strong>de</strong> cabeça<br />

oca fazem disto uma escusa para transformar tudo em alegoria, <strong>de</strong><br />

modo que convertem cães em homens, árvores em anjos, e convertem<br />

toda a Escritura num divertido jogo.<br />

Mas o que Paulo realmente preten<strong>de</strong> é muito simples: ainda que<br />

o Senhor or<strong>de</strong>ne consi<strong>de</strong>ração para com os bois, ele assim o faz não<br />

por amor aos bois, mas, antes, em consi<strong>de</strong>ração para com os homens,<br />

em favor <strong>de</strong> quem os próprios bois foram criados. Portanto,<br />

esse tratamento humano dispensado aos bois <strong>de</strong>ve ser um incentivo,<br />

nos sensibilizando a tratar uns aos outros com consi<strong>de</strong>ração e justiça,<br />

como Salomão o expressa em Provérbios 12.10: “O justo atenta<br />

para a vida <strong>de</strong> seus animais, mas o coração dos perversos é cruel.”<br />

O leitor <strong>de</strong>ve enten<strong>de</strong>r, pois, que Deus não se preocupa com bois, no<br />

sentido em que os bois eram as únicas criaturas em sua mente quando<br />

promulgou a lei, pois ele estava pensando nos homens e queria<br />

que se habituassem a ser atenciosos em seu modo <strong>de</strong> agir, <strong>de</strong> modo<br />

a não <strong>de</strong>fraudar o trabalhador <strong>de</strong> seu salário. Porque não é o boi que<br />

li<strong>de</strong>ra a aradura e a <strong>de</strong>bulha, e, sim, o homem; e é pelos esforços do<br />

homem que o próprio boi se põe a trabalhar. Portanto, o que adiciona<br />

em seguida – “o que lavra <strong>de</strong>ve lavrar com esperança” etc. – é uma<br />

interpretação do mandamento, como se dissesse que ele se esten<strong>de</strong>,<br />

em termos gerais, envolvendo qualquer gênero <strong>de</strong> recompensa pelo<br />

trabalho.<br />

10. Porque o que lavra <strong>de</strong>ve lavrar com esperança. Há duas redações<br />

neste versículo, mesmo nos manuscritos gregos, porém a que<br />

tenho adotado é mais geralmente aceita: “Aquele que <strong>de</strong>bulha na esperança<br />

<strong>de</strong> compartilhar <strong>de</strong> sua esperança.” Ao mesmo tempo, a redação


Capítulo 9 • 313<br />

que não repete esperança duas vezes na segunda sentença parece<br />

mais simples e mais natural. 8 Portanto, senti-me livre para escolher, e<br />

po<strong>de</strong>ria ter preferência pela redação nestes termos: “Aquele que lavra<br />

<strong>de</strong>ve lavrar com esperança; e aquele que <strong>de</strong>bulha, com esperança <strong>de</strong><br />

participar.” Não obstante, visto que quase todos os manuscritos concordam<br />

em seguir a primeira redação, e o significado não é afetado,<br />

não pretendi separar-me <strong>de</strong>la.<br />

Entretanto, Paulo se põe a explicar o mandamento citado no versículo<br />

9, e nesta conexão diz que seria injusto que o lavrador exerça<br />

seu trabalho <strong>de</strong> aradura e <strong>de</strong> <strong>de</strong>bulha infrutiferamente, senão que todo<br />

o objetivo <strong>de</strong> seu labor é sua esperança <strong>de</strong> recolher os frutos. Nesse<br />

caso, é correto inferir que isso se aplica igualmente aos bois; mas a intenção<br />

<strong>de</strong> Paulo é esten<strong>de</strong>r-se mais e fazê-lo aplicável particularmente<br />

aos homens. Ora, diz-se que o lavrador “participa <strong>de</strong> sua esperança”<br />

quando <strong>de</strong>sfruta do que produz, do produto <strong>de</strong> sua colheita, o qual<br />

certamente esperava enquanto lavrava [a terra].<br />

11. Se vos semeamos as coisa espirituais. Restava ainda uma área<br />

para a cavilação. Pois alguém po<strong>de</strong>ria alegar que toda obra relativa à<br />

vida, neste mundo, será <strong>de</strong>finitivamente recompensada com alimento e<br />

vestuário; que a aradura e a <strong>de</strong>bulha produzem retorno do qual participam<br />

os que realmente trabalham; mas que o evangelho faz parte <strong>de</strong> uma<br />

categoria completamente distinta, pois seu fruto é espiritual; e assim o<br />

ministro da Palavra, caso queira receber o fruto que corresponda a seu<br />

labor, não <strong>de</strong>ve receber coisa alguma material. Assim, na hipótese <strong>de</strong><br />

surgir alguém com tal cavilação, o argumento <strong>de</strong> Paulo é do maior para<br />

o menor. Po<strong>de</strong>ria ter expresso assim: “Embora o alimento e o vestuário<br />

pertençam a uma categoria distinta da obra que o ministro realiza, não<br />

obstante, qual é o problema se tu estás pagando por algo que está acima<br />

8 A redação comum é καί ὁ ἀλοω̑ν τη̑ς ἐλπίδος αὐτου̑ μετέχειν επ ̓ ελπίδι: e aquele que <strong>de</strong>bulha<br />

em esperança seria um participante <strong>de</strong> sua esperança. Na outra redação, as palavras επ ̓<br />

ελπίδι (em esperança) são omitidas. A última é a redação em cinco manuscritos antigos,<br />

e a última, em três. A redação comum é construída por Bloomfield, como segue: καὶ ὁ<br />

ἀλοω̑ν (ὀφείλει ἀλον) επ ̓ ἐλπίδι (του̑) μετέχειν τη̑ς ελπίδος αὐτου̑. “E aquele que <strong>de</strong>bulha <strong>de</strong>ve<br />

<strong>de</strong>bulhar na esperança <strong>de</strong> participar <strong>de</strong> (os frutos <strong>de</strong>) sua esperança.”


314 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

<strong>de</strong> qualquer preço, com algo muito barato e <strong>de</strong>sprezível? Pois assim<br />

como a alma é, em natureza, muito superior ao corpo, também a Palavra<br />

<strong>de</strong> Deus pertence a uma classe muito mais elevada do que o alimento<br />

material, 9 uma vez que ela é o alimento da alma.”<br />

12. Se outros participam <strong>de</strong>sse direito sobre vós, não temos muito<br />

mais? Uma vez mais ele apresenta <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> seu próprio direito,<br />

referindo-se ao exemplo <strong>de</strong> outrem. Pois, por que unicamente a ele se<br />

negaria o que outros reivindicavam como lhes sendo <strong>de</strong> pleno direito?<br />

Porque, visto que ninguém trabalhara mais intensamente do que ele<br />

entre os coríntios, ninguém era merecedor <strong>de</strong> uma recompensa maior.<br />

Entretanto, ele não narra o que fizera, e, sim, o que teria feito em virtu<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> seu direito, se não se abstivera voluntariamente <strong>de</strong> usá-lo.<br />

Não obstante, não temos usado <strong>de</strong>sse direito. Ele agora se volve<br />

diretamente para o cerne do assunto, ou, seja, que espontaneamente<br />

renunciara a esse direito, o qual ninguém po<strong>de</strong>ria negar-lhe; e que preferiu<br />

suportar tudo em vez <strong>de</strong> fazer uso <strong>de</strong>sta liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> maneira<br />

a não impedir o progresso do evangelho. Portanto, ele <strong>de</strong>seja que os<br />

coríntios sigam seu exemplo e conservem esta meta diante <strong>de</strong> seus<br />

olhos: não colocar nenhum obstáculo no caminho do evangelho, nem<br />

retardar seu progresso; porquanto eles, <strong>de</strong> sua parte, tinham feito exatamente<br />

a mesma coisa que afirmavam ser ele quem fazia. E aqui ele<br />

confirma o que já havia dito, a saber: que <strong>de</strong>vemos atentar bem para o<br />

que é mais proveitoso.<br />

13. Não sabeis vós que os que ministram<br />

as coisas sagradas comem das<br />

coisas do templo, e os que vivem<br />

junto do altar recebem sua porção<br />

do altar?<br />

14. Assim também or<strong>de</strong>nou o Senhor<br />

aos que proclamam o evangelho,<br />

que vivam do evangelho.<br />

13. Nescitis, quod qui sacris operantur,<br />

ex sacrario 10 edunt? et qui altari ministrant<br />

(ad verbum: adstant) altaris<br />

sunt participes?<br />

14. Sic et Dominus ordinavit, ut qui<br />

Evangelium annuntiant, vivant ex<br />

Evangelio.<br />

9 “Et le vestement.” – “E vestindo.”<br />

10 “Des choses qui sont sacrifiees.” – “Das coisas que são sacrificadas.”


Capítulo 9 • 315<br />

15. Mas <strong>de</strong> nenhuma <strong>de</strong>ssas coisas tenho<br />

usado, e não escrevi isto para<br />

que se faça assim comigo; porque<br />

melhor me fora morrer do que alguém<br />

me privar <strong>de</strong>sta glória.<br />

16. Porque, se eu prego o evangelho,<br />

não tenho <strong>de</strong> que me gloriar, pois<br />

me é imposta esta obrigação; pois ai<br />

<strong>de</strong> mim se não pregar o evangelho.<br />

17. Portanto, se o faço <strong>de</strong> livre vonta<strong>de</strong>,<br />

tenho galardão; porém, se não<br />

o faço <strong>de</strong> livre vonta<strong>de</strong>, é a responsabilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>spenseiro que me<br />

está confiada.<br />

18. Então, qual é meu galardão? Que ao<br />

pregar o evangelho, que o faça sem<br />

remuneração, para não fazer pleno<br />

uso <strong>de</strong> meu direito no evangelho.<br />

19. Porque, embora estivesse livre <strong>de</strong><br />

todos os homens, eu trouxe a mim<br />

mesmo sob a servidão <strong>de</strong> todos,<br />

para lucrar muito mais.<br />

20. E para com os ju<strong>de</strong>us me tornei um<br />

ju<strong>de</strong>u, a fim <strong>de</strong> ganhar os ju<strong>de</strong>us;<br />

para com aqueles que se acham <strong>de</strong>baixo<br />

da lei,<br />

21. como se vivesse <strong>de</strong>baixo da lei, não<br />

estando eu <strong>de</strong>baixo da lei; para com<br />

os que vivem sem lei, como se vivesse<br />

também sem lei, não estando<br />

eu sem lei para com Deus. Mas <strong>de</strong>baixo<br />

da lei <strong>de</strong> Cristo, para ganhar<br />

os que vivem sem lei.<br />

22. Fiz-me fraco para com os fracos,<br />

para ganhar os fracos. Fiz-me <strong>de</strong><br />

tudo para com todos, a fim <strong>de</strong>, por<br />

todos os meios, salvar alguns.<br />

15. Ego autem nullo horum usus sum:<br />

neque vero hæc scripsi, ut ita mihi<br />

fiat: mihi enim satius est mori,<br />

quam ut gloriam meam quis exinaniat.<br />

16. Nam si evangelizavero, non est<br />

quod glorier: quandoqui<strong>de</strong>m necessitas<br />

mihi incumbit, ut vae sit mihi,<br />

si non evangelizem.<br />

17. Si enim volens hoc facio, merce<strong>de</strong>m<br />

habeo: si autem invitus, dispensatio<br />

mihi est credita.<br />

18. Quæ igitur mihi merces? ut quum<br />

evangelizo, gratuitum impendam<br />

Evangelium Christi, ut non abutar<br />

potestate mea in Evangelio.<br />

19. Liber enim quum essem ab omnigus,<br />

servum me omnibus feci, ut<br />

plures lucrifaciam.<br />

20. Itaque factus sum Iudæis tanquam<br />

Iudæus, ut Iudæos lucrifaciam: iis<br />

qui sub Lege erant, tanquam Legi<br />

subiectus, ut eos qui erant sub Lege<br />

Iucrifaciam;<br />

21. Iis qui sine Lege erant, tanquam exlex,<br />

(tametsi non absque Lege, Deo,<br />

sed subiectus Legi Christi,) ut eos<br />

qui sine Lege erant lucrifaciam.<br />

22. Factus sum infirmis tanquam infirmus,<br />

ut infirmos lucrifaciam:<br />

omnibus omnia factus sum, ut omnino<br />

aliquos servem.<br />

13. Não sabeis vós? À parte do tema principal que ora ele discute,<br />

Paulo parece ter gasto muito tempo na discussão <strong>de</strong>ste ponto, visando


316 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

a repreen<strong>de</strong>r indiretamente os coríntios por sua ignóbil atitu<strong>de</strong> em<br />

permitir que os ministros <strong>de</strong> Cristo fossem injuriados em relação ao<br />

que têm justo direito <strong>de</strong> receber. Porque, se Paulo não se abstivesse<br />

voluntariamente do uso <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong>, corria-se o risco <strong>de</strong> ser obstruído<br />

o caminho para o evangelho. Os falsos apóstolos jamais teriam<br />

vencido essa batalha, se a ingratidão, à qual os coríntios já se inclinavam,<br />

não tivesse aberto o caminho para suas más interpretações. Por<br />

certo que os coríntios <strong>de</strong>veriam tê-los repelido vigorosamente, porém<br />

o que fizeram foi <strong>de</strong>monstrar sua extrema credulida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> modo que já<br />

teriam se prontificado a rejeitar o evangelho, se Paulo tivesse feito uso<br />

<strong>de</strong> seu direito. Tal <strong>de</strong>sdém pelo evangelho, bem como tal cruelda<strong>de</strong><br />

para com seu apóstolo, merecia uma reprovação ainda mais severa do<br />

que esta; Paulo, porém, encontrou outra ocasião <strong>de</strong> tocar no assunto<br />

indireta e brandamente, com sua costumeira modéstia, para que pu<strong>de</strong>sse<br />

admoestá-los sem afrontá-los.<br />

Uma vez mais ele faz uso <strong>de</strong> um símile diferente para provar que<br />

não tirara vantagem <strong>de</strong> um direito que o Senhor lhe outorgara. E não<br />

mais lança mão <strong>de</strong> exemplos <strong>de</strong> outras fontes, porém mostra que o Senhor<br />

or<strong>de</strong>nou que as igrejas supram seus ministros com os meios <strong>de</strong><br />

subsistência. Há aqueles que crêem que realmente há duas comparações<br />

neste versículo: sendo a primeira uma referência aos sacerdotes<br />

do Senhor; a outra, porém, sendo aqueles que ofereciam sacrifícios aos<br />

<strong>de</strong>uses pagãos. Não obstante, sinto-me inclinado a crer que Paulo, como<br />

usualmente faz, usou <strong>de</strong> diferentes termos para <strong>de</strong>screver a mesma coisa.<br />

Um argumento <strong>de</strong>rivado do costume dos pagãos certamente teria<br />

sido muito <strong>de</strong>ficitário, pois os proventos dos sacerdotes não eram <strong>de</strong>stinados<br />

às necessida<strong>de</strong>s tais como alimentos e vestuário, mas a mobílias<br />

dispendiosas, a esplendor régio e luxo extravagante. Estas coisas não<br />

teriam nenhum suporte no tema em questão. Entretanto, não me oponho<br />

ao ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> que Paulo estava fazendo alusão a diferentes<br />

tipos <strong>de</strong> ministros, pois havia sacerdotes <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m mais elevada<br />

(maioris ordinis), e posteriormente houve os levitas, que eram seus inferiores,<br />

como se sabe muito bem. Mas dificilmente seria este o ponto.


Capítulo 9 • 317<br />

O ponto é o seguinte: os sacerdotes levitas eram os ministros<br />

da igreja <strong>de</strong> Israel; e o Senhor or<strong>de</strong>nara que fossem supridos <strong>de</strong> seu<br />

próprio ministério com o necessário para a vida. Portanto, o mesmo<br />

princípio <strong>de</strong> justiça <strong>de</strong>veria ser observado hoje no caso dos ministros<br />

da Igreja Cristã; não obstante, os ministros da Igreja <strong>de</strong> Cristã são<br />

aqueles que pregam o evangelho. Este versículo é citado pelos romanistas<br />

quando querem provar que aqueles que têm o estômago vazio<br />

<strong>de</strong>vem ser saciados, para que tenham como efetuar seus sacrifícios;<br />

mas prefiro <strong>de</strong>ixar que as próprias crianças <strong>de</strong>cidam quão ridículo é<br />

este raciocínio. Estes homens lançam mão avidamente <strong>de</strong> tudo o que a<br />

Escritura diz sobre os meios <strong>de</strong> subsistência que <strong>de</strong>vem ser atribuídos<br />

aos ministros, ou sobre o respeito que se <strong>de</strong>ve ter por eles, e torcem<br />

tudo para que se adéqüe a eles mesmos. Tudo o que tenho a fazer,<br />

portanto, é instar com meus leitores a que prestem atenção no que<br />

Paulo está realmente dizendo. Seu argumento é que os pastores, cujo<br />

trabalho é a pregação do evangelho, <strong>de</strong>vem ser sustentados, visto que<br />

outrora o Senhor prescreveu certa assistência às necessida<strong>de</strong>s dos sacerdotes,<br />

diante do fato <strong>de</strong> que empregavam seus serviços em prol da<br />

Igreja. Conseqüentemente, <strong>de</strong>vemos nós manter uma distinção entre<br />

o sacerdócio dos tempos <strong>de</strong> outrora e o <strong>de</strong> nossos próprios dias. Sob<br />

a lei, os sacerdotes eram <strong>de</strong>signados para o encargo dos sacrifícios,<br />

para servirem ao altar e cuidarem do tabernáculo e <strong>de</strong>pois do templo;<br />

em nossos dias, eles são <strong>de</strong>signados para a proclamação da Palavra e<br />

a ministração dos sacramentos. O Senhor não <strong>de</strong>signou os santos ministros<br />

para se ocuparem <strong>de</strong> quaisquer sacrifícios; não há altares para<br />

que se ponham a oferecer sacrifícios.<br />

Os que aplicam esta analogia (anagoge), <strong>de</strong>rivada dos sacrifícios,<br />

a alguma outra coisa que não seja a pregação do evangelho, são patentemente<br />

ridículos. E mais que isso, é fácil <strong>de</strong> inferir <strong>de</strong>ste versículo que<br />

todos os sacerdotes papistas, do principal <strong>de</strong>les ao membro menos<br />

importante, são roubadores <strong>de</strong> templos (sacrilegos), pois vorazmente<br />

<strong>de</strong>voram os proventos <strong>de</strong>stinados aos legítimos ministros, sem executarem<br />

qualquer dos <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> sua responsabilida<strong>de</strong>. Pois a quais


318 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

ministros o apóstolo manda que sustentem? Devem sustentar os que<br />

se <strong>de</strong>votam à pregação do evangelho. Que direito têm os sacerdotes<br />

papistas <strong>de</strong> reivindicar para si a remuneração dos sacerdotes? 11 Sua<br />

resposta é que entoam [os cânticos] e oferecem sacrifícios. 12 Todavia,<br />

Deus não requereu <strong>de</strong>les nenhuma <strong>de</strong>ssas coisas; portanto, faz-se evi<strong>de</strong>nte<br />

que se apropriam dos proventos que pertencem a outrem.<br />

Finalmente, quando Paulo diz que os sacerdotes levitas eram<br />

“participantes do altar”, e “comiam das coisas do templo”, ele tem<br />

em mente, pelo uso <strong>de</strong> metonímia, as oferendas que eram apresentadas<br />

a Deus. Pois requeriam todos para si os sacrifícios <strong>de</strong> animais<br />

consagrados; e no caso dos sacrifícios menos importantes, o pernil<br />

dianteiro direito, os rins e a cauda, bem como os dízimos, as ofertas e<br />

as primícias dos frutos. Portanto, a palavra ἱερόν, no segundo caso, 13 é<br />

consi<strong>de</strong>rada como que significando o templo.<br />

15. E não escrevi estas coisas. Uma vez que po<strong>de</strong>ria ficar a impressão<br />

<strong>de</strong> estar solícito a que os coríntios o remunerasse no futuro,<br />

ele remove essa possível suposição e assevera que, longe <strong>de</strong> preten<strong>de</strong>r<br />

alguma coisa, preferiria morrer do que per<strong>de</strong>r essa glória, ou, seja,<br />

que ele prestara seus serviços aos coríntios gratuitamente. E não há<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong> ante o fato <strong>de</strong> ele pôr tal valor neste motivo<br />

<strong>de</strong> gloriar-se, porquanto estava consciente <strong>de</strong> que a autorida<strong>de</strong><br />

do evangelho, em certa medida, <strong>de</strong>pendia <strong>de</strong>le. Porque, nesse caso,<br />

teria dado aos falsos apóstolos uma chance <strong>de</strong> se vangloriarem contra<br />

ele. Daí, havia o risco <strong>de</strong>, para que os coríntios não o tratassem<br />

com <strong>de</strong>sdém, o recebessem com ruidosos aplausos. Por essa causa,<br />

ele preferiu aproveitar a chance para divulgar o evangelho, e não sua<br />

própria vida.<br />

11 “De quel droict s’usurpent ces ventres paresseux le reuenu <strong>de</strong>s benefices, qu’ils appelent?”<br />

– “Por qual direito esses ventres preguiçosos reivindicam para si o provento dos<br />

benefícios, como o chamam?”<br />

12 “Pource qu’ils gringotent <strong>de</strong>s messes et anniuersaires.” – “Porque cantarolam uma música<br />

nas missas e nos aniversários.”<br />

13 No original, as palavras τα ἱερὰ e του̑ ἱερου̑ ocorrem na mesma sentença, e a intenção <strong>de</strong><br />

nosso autor é que, no segundo caso, o substantivo ἱερον <strong>de</strong>nota o templo.


Capítulo 9 • 319<br />

16. Porque, se prego o evangelho. Para mostrar quão importante<br />

era que não fosse privado da razão <strong>de</strong> gloriar-se, Paulo realça o que<br />

teria sucedido caso não fizesse nada mais do que cumprir fielmente<br />

seu ministério, ou, seja, que ele não teria feito mais do que aquilo que<br />

o Senhor lhe impusera como uma necessida<strong>de</strong> imprecindível. Ao realçar<br />

esse fato, ele está dizendo que não tinha, nesse aspecto, nenhuma<br />

razão para gloriar-se, já que isto era algo em que não tomara parte. 14<br />

Mas alguém po<strong>de</strong>ria perguntar a que gênero <strong>de</strong> glória Paulo se refere<br />

aqui, pois em 2 Timóteo 1.3 ele <strong>de</strong>clara orgulhar-se na execução <strong>de</strong><br />

seus <strong>de</strong>veres como mestre “com consciência pura”. Minha resposta é<br />

que ele fala <strong>de</strong> um motivo para gloriar-se com o qual possa <strong>de</strong>safiar os<br />

falsos apóstolos, quando se punham no posto <strong>de</strong> observação com o<br />

fim <strong>de</strong> caluniá-lo, como veremos a seguir, <strong>de</strong> forma mais clara.<br />

Todavia, esta é uma afirmação notável. Apren<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>la, em primeiro<br />

lugar, a natureza da vocação que os ministros recebem, e quão<br />

fortemente se acham unidos a Deus; e, em segundo lugar, o que o ofício<br />

<strong>de</strong> pastor envolve e o que intrinsecamente inclui. O homem, uma<br />

vez chamado, <strong>de</strong>ve pôr in<strong>de</strong>levelmente em sua cabeça que ele não é<br />

mais livre para retroce<strong>de</strong>r, quando bem lhe convir, se porventura as<br />

frustrações arrebatarem seu coração, ou as tribulações o esmagarem;<br />

porquanto ele está <strong>de</strong>dicado ao Senhor e à Igreja, e se acha firmemente<br />

amarrado por um laço sagrado, o qual lhe seria pecaminoso <strong>de</strong>samarrar.<br />

No tocante ao segundo ponto, 15 Paulo diz que uma ameaça <strong>de</strong> maldição<br />

paira sobre sua cabeça, caso ele não pregasse o evangelho. Por<br />

quê? Porque fora chamado para tal mister, e por essa mesma razão<br />

ele é dominado por uma compulsão que o impele. Como, pois, po<strong>de</strong>ria<br />

alguém que assume a mesma responsabilida<strong>de</strong> evitar tal constrangimento?<br />

Que gênero <strong>de</strong> “sucessão apostólica” é esse, no caso do papa<br />

e dos bispos mitrados, os quais <strong>de</strong>monstram que nada há mais incompatível<br />

com seu papel do que a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ensinar?<br />

14 “Veu qu’il y estoit contraint, et ne pouuoit euiter telle necessite.” – “Ainda que fosse constrangido<br />

a isto, e não pu<strong>de</strong>sse evitar tal necessida<strong>de</strong>.”<br />

15 Isto é, o <strong>de</strong>ver que envolve o ofício pastoral.


320 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

17. Se o faço <strong>de</strong> livre vonta<strong>de</strong>. O galardão, a que me refiro aqui,<br />

é o que o latim chama operae premium, “o prêmio do esforço”, 16 e do<br />

qual falei antes como sendo a base da glória. Há quem o explique <strong>de</strong><br />

outra forma: que um prêmio é oferecido a todos quantos levam a bom<br />

termo seu trabalho fiel e sinceramente. Eu pessoalmente entendo “o<br />

homem que age <strong>de</strong> sua livre vonta<strong>de</strong>” como sendo aquele que sente<br />

tanto entusiasmo e transparência em seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> instruir a outrem,<br />

que nada mais lhe interessa que não vise ao serviço da Igreja. Da mesma<br />

forma, ele preten<strong>de</strong> com “<strong>de</strong> má vonta<strong>de</strong>”, por outro lado, os que<br />

agem por necessida<strong>de</strong> premente, mas que o fazem <strong>de</strong> má vonta<strong>de</strong> visto<br />

que isso conflita-se com o que realmente <strong>de</strong>sejava. Pois sempre suce<strong>de</strong><br />

que o homem que assume alguma tarefa com zelo e está também<br />

disposto a submeter-se a qualquer situação, a negligência significaria<br />

obstruir a concretização da obra. Assim Paulo, que fazia as coisas<br />

espontaneamente, que não tinha o hábito <strong>de</strong> ensinar meramente <strong>de</strong><br />

maneira formal, fazia uso <strong>de</strong> tudo que imaginasse ser a<strong>de</strong>quado para<br />

corroborar e promover seu ensino. Este, pois, era seu “prêmio pelo<br />

trabalho” e seu motivo <strong>de</strong> gloriar-se, ou, seja, que prontamente se privara<br />

<strong>de</strong> seu direito, pois <strong>de</strong>votava ao que fazia com espontaneida<strong>de</strong> e<br />

real solicitu<strong>de</strong>.<br />

Mas se o fizer <strong>de</strong> má vonta<strong>de</strong>, uma dispensação me está confiada.<br />

Seja como for que outros expliquem estas palavras, o verda<strong>de</strong>iro<br />

significado, a meu ver, é que o serviço <strong>de</strong> um homem, que é feito <strong>de</strong><br />

mau grado e, por assim dizer, contra sua vonta<strong>de</strong>, é totalmente inacei-<br />

16 “Ce que nous appelons chef-d’œuure.” – “O que chamamos uma obra-prima.” A frase<br />

idiomática, operæ pretium, é extraordinariamente empregada pelos escritores clássicos<br />

no sentido <strong>de</strong> algo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância ou vale a pena. Assim, Livy, em seu Prefácio,<br />

diz: “facturusne operæ pretium sim.” – “Se estou para fazer uma obra <strong>de</strong> importância”; e<br />

Cícero (Cat. iv.8) diz: “Operæ pretium est.” – “Vale a pena.” Calvino, contudo, parece fazer<br />

uso da frase aqui num sentido mais perto <strong>de</strong> sua significação original e literal – recompensa<br />

pelo labor –, o que amplamente recompensava a renúncia que ele tinha exercido<br />

– consistindo na satisfação peculiar propiciando sua mente a refletir sobre a parte que<br />

ele tomara. O termo usado por ele em sua tradução francesa – chef-d’œjuure [obra-prima]<br />

correspon<strong>de</strong> à frase latina, operæ pretium, neste aspecto, que uma obra-prima é uma obra<br />

que o artista ou operário bem sucedido avalia, e na qual ele sente satisfação, como amplamente<br />

recompensando as dores suportadas.


Capítulo 9 • 321<br />

tável a Deus. Portanto, sempre que Deus exigir <strong>de</strong> nós alguma coisa,<br />

enganamo-nos a nós mesmos se imaginamos que o cumprimos satisfatoriamente,<br />

quando o fazemos <strong>de</strong> mau grado. Pois o Senhor espera<br />

que seus servos sejam solícitos e prazerosos em obe<strong>de</strong>cê-lo, em <strong>de</strong>monstrar<br />

alegria e agindo sem qualquer hesitação. Em suma, Paulo<br />

quer dizer que a única maneira em que faria justiça a sua vocação<br />

seria <strong>de</strong>sempenhando sua função com um coração voluntário e uma<br />

solicitu<strong>de</strong> sem embaraço.<br />

18. Então, qual é meu galardão? Ele infere do prece<strong>de</strong>nte que sua<br />

base para gloriar-se é esta: que trabalhou gratuitamente em favor dos<br />

coríntios porque <strong>de</strong>sse fato vem a lume que ele se <strong>de</strong>votara espontaneamente<br />

à tarefa <strong>de</strong> ensinar, visto que, como vigorosamente se pusera<br />

à remoção <strong>de</strong> todos os obstáculos postos no caminho do evangelho,<br />

e, não se sentindo satisfeito com meramente ensinar, usava todos os<br />

métodos para que a doutrina <strong>de</strong>le [o evangelho] não fosse obstada.<br />

Portanto, eis um sumário do que ele diz: “Tenho me esforçado por<br />

pregar o evangelho. Se não o faço, quando está em mim po<strong>de</strong>r fazê-lo,<br />

estou resistindo à vocação divina. Mas não me basta pregar, a menos<br />

que o faça espontaneamente, porque aquele que se <strong>de</strong>sincumbe da<br />

or<strong>de</strong>m divina com um coração constrangido não está à altura do <strong>de</strong>sempenho<br />

<strong>de</strong> seu ofício como <strong>de</strong>veria estar. Ora, se obe<strong>de</strong>ço a Deus<br />

<strong>de</strong> bom grado, então tenho o direito <strong>de</strong> gloriar-me. Portanto, era-me<br />

forçoso proclamar o evangelho sem remuneração, para que minha ostentação<br />

fosse justificada.”<br />

Os papistas tentam encontrar neste versículo apoio para as obras<br />

<strong>de</strong> supererrogação, 17 as quais foram inventadas por eles. Dizem: “Paulo<br />

cumpriu os <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> seu ofício, a saber, proclamando o evangelho,<br />

mas também adicionam algo mais. Portanto ele faz algo além do qual<br />

era obrigado a fazer. E fazem distinção entre o que alguém faz voluntariamente<br />

e o que ele <strong>de</strong>ve fazer.” Minha resposta a tudo isso é que<br />

Paulo <strong>de</strong> fato foi além do que normalmente era requerido dos pasto-<br />

17 “C’est à dire, d’abondant.” – “Equivale dizer, além do mais.”


322 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

res em sua vocação, visto que não recebeu salário, o qual o Senhor<br />

permite que os pastores recebam. Mas, como era parte <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>ver<br />

tomar medidas contra toda possível ocasião <strong>de</strong> escândalo, tudo o que<br />

ele previa e como o via, para que o curso do evangelho não fosse obstruído<br />

caso ele usasse <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong>, embora isso estivesse fora<br />

do curso ordinário, afirma que mesmo nesse caso ele retribuía a Deus<br />

nada mais que o <strong>de</strong>vido. Pois pergunto: “Não é <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> um bom pastor<br />

suprimir aquilo que po<strong>de</strong> trazer escândalo, até on<strong>de</strong> isso está em<br />

seu po<strong>de</strong>r?” E novamente pergunto: “O que Paulo faz senão precisamente<br />

isso?” Portanto, não temos o direito <strong>de</strong> supor que ele dava a<br />

Deus algo que não lhe era <strong>de</strong>vido, visto que só fez o que a exigência<br />

<strong>de</strong> seu ofício <strong>de</strong>mandava – mesmo que fosse exigência incomum. Não<br />

<strong>de</strong>mos mais ouvidos, pois, a esta perversa fantasia, 18 ou, seja, que fazemos<br />

reparação por nossos pecados aos olhos <strong>de</strong> Deus mediante as<br />

obras <strong>de</strong> supererrogação. 19 E ainda mais, que haja um fim ao próprio<br />

uso do termo, pois o mesmo se acha carregado <strong>de</strong> um orgulho diabólico.<br />

20 Não há dúvida <strong>de</strong> que este versículo é erroneamente torcido com<br />

o fim <strong>de</strong> produzir tal interpretação.<br />

Ora, o erro dos papistas é refutado, <strong>de</strong> maneira geral, no que<br />

segue: Sejam quais forem as obras compreendidas sob a lei, são falsamente<br />

<strong>de</strong>nominadas supererrogação, como se manifesta nas palavras<br />

<strong>de</strong> Cristo: “Assim também vós, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> haver<strong>de</strong>s feito tudo quanto<br />

vos foi or<strong>de</strong>nado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas<br />

o que <strong>de</strong>veríamos fazer” [Lc 17.10]. Ora, concordamos que não há<br />

obra alguma boa ou aceitável a Deus que não esteja incluída na lei<br />

<strong>de</strong> Deus. Ponho esta segunda afirmação da seguinte maneira: Não há<br />

duas classes <strong>de</strong> boas obras, pois todas elas po<strong>de</strong>m ser reduzidas ou<br />

ao serviço <strong>de</strong> Deus, ou ao amor. Mas nada pertence ao serviço <strong>de</strong> Deus<br />

que não esteja incluído neste neste sumário: “Amarás, pois, o Senhor<br />

18 “Ceste pervedrse et mal-heureuse imagination.” – “Essa perversa e miserável fantasia.”<br />

19 “C’est à dire, lesquelles nous faisons <strong>de</strong> superabondant.” – “Equivale dizer, o que fazemos<br />

como extra.”<br />

20 Nosso autor se expressa em termos semelhantes em outra parte quanto à palavra mérito.


Capítulo 9 • 323<br />

teu Deus <strong>de</strong> todo teu coração, <strong>de</strong> toda tua alma, <strong>de</strong> todo teu entendimento<br />

e <strong>de</strong> toda tua força.” E não há também nenhum <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> amor<br />

que não esteja requerido neste preceito: “Amarás teu próximo como<br />

a ti mesmo” [Mc 12.30, 31]. Mas quanto à objeção que é apresentada<br />

pelos papistas, <strong>de</strong> que não é possível que alguém seja aceitável a Deus<br />

sem que pague os <strong>de</strong>z por cento <strong>de</strong> sua renda; e disto inferem que, se<br />

o tal vai além e dá o equivalente à quinta parte, ele está fazendo uma<br />

obra <strong>de</strong> supererrogação. Não é difícil <strong>de</strong>struir tal sofisma. Pois o fato <strong>de</strong><br />

as obras dos crentes serem aceitas, não é porque são <strong>de</strong> alguma forma<br />

perfeitas, mas é porque sua imperfeição e ina<strong>de</strong>quabilida<strong>de</strong> não são<br />

levadas em conta contra eles. Portanto, se fizerem um cêntuplo além<br />

do <strong>de</strong>vido, ainda assim não estariam indo além dos limites do <strong>de</strong>ver<br />

que <strong>de</strong>vem [a Deus].<br />

Para não fazer pleno uso <strong>de</strong> meu direito. Deste fato se torna<br />

óbvio que tirar vantagem <strong>de</strong> nossa liberda<strong>de</strong> com o fim <strong>de</strong> criar escândalo<br />

equivale a licenciosida<strong>de</strong> irresponsável e abuso da liberda<strong>de</strong>.<br />

Portanto, <strong>de</strong>vemos a<strong>de</strong>rir à regra <strong>de</strong> não dar nenhum motivo <strong>de</strong> escândalo.<br />

Este versículo enfatiza o que mencionei supra, a saber: que<br />

Paulo não foi além das exigências impostas pela própria natureza <strong>de</strong><br />

seu ofício, porque a liberda<strong>de</strong> que Deus lhe conce<strong>de</strong>ra não seria <strong>de</strong><br />

forma alguma mal utilizada.<br />

19, 20. Porque, ainda que estivesse livre <strong>de</strong> todos. Εκ πάντων,<br />

isto é, <strong>de</strong> todos, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado ou como neutro ou como masculino;<br />

como neutro, sua referência será a coisas; e como masculino, a<br />

pessoas. Prefiro o masculino. Entretanto, ele mostrou apenas por um<br />

exemplo particular quão pru<strong>de</strong>nte lhe fora acomodar-se aos fracos.<br />

Agora ele adiciona uma afirmação geral e conclusiva, prosseguindo<br />

com exemplos particulares. A afirmação geral é que, embora ninguém<br />

tivesse nenhuma autorida<strong>de</strong> sobre ele, no entanto vivia como se estivesse<br />

sob o po<strong>de</strong>r do mundo inteiro; e voluntariamente sujeitou-se<br />

aos fracos, a quem ele não <strong>de</strong>via nenhuma submissão. Os exemplos<br />

particulares são estes: entre os gentios ele vivia como se fosse gentio;<br />

e entre os ju<strong>de</strong>us se portava como um ju<strong>de</strong>u. Em outros termos: vis-


324 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

to que era zeloso na observação das cerimônias religiosas judaicas,<br />

quando vivia entre os ju<strong>de</strong>us ele procurava não ofen<strong>de</strong>r os gentios<br />

com a observância <strong>de</strong>las.<br />

Ele usa a partícula como para notificar que sua liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma<br />

alguma era prejudicada por essa conta, pois não importa o quanto ele<br />

tivesse que acomodar-se aos homens, uma vez que, aos olhos <strong>de</strong> Deus,<br />

interiormente ainda permanecia o mesmo. “Fiz <strong>de</strong> tudo” significa adotar<br />

toda sorte <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> segundo a exigência da situação, ou assumir<br />

diferentes papéis em consonância com as diferentes maneiras entre os<br />

indivíduos. Quando diz que procedia como se vivesse sem lei e como<br />

se estivesse <strong>de</strong>baixo da lei, <strong>de</strong>vemos compreen<strong>de</strong>r que ele está se referindo<br />

somente à lei cerimonial, porquanto a lei moral era comum tanto<br />

a gentios quanto a ju<strong>de</strong>us; e Paulo não pretendia agradar aos homens<br />

até este ponto. Pois este princípio só se aplica às coisas indiferentes,<br />

como já dissemos previamente.<br />

21. Não estando sem lei em relação a Deus. Por meio <strong>de</strong>ste parêntese<br />

Paulo <strong>de</strong>sejava abrandar a aspereza da expressão; porquanto<br />

po<strong>de</strong> parecer duro, a princípio, ouvi-lo dizer que vivia sem lei. Daí,<br />

para que isso não viesse a assumir um sentido errôneo, ele adiciona,<br />

à guisa <strong>de</strong> correção, que sempre guardava em sua mente uma lei, a<br />

saber: ele era sujeito a Cristo. Com isso também dá a enten<strong>de</strong>r que<br />

contra ele se fomentava o ódio, sem fundamento e <strong>de</strong> forma irracional,<br />

porque era como se convidasse os homens a viverem vidas <strong>de</strong>sregradas,<br />

ao ensinar o livramento da servidão à lei mosaica. Ele a <strong>de</strong>screve<br />

explicitamente como verda<strong>de</strong>iramente “a lei <strong>de</strong> Cristo” com o fim <strong>de</strong><br />

erradicar a injusta reprovação com que os falsos apóstolos estavam<br />

caracterizando o evangelho; pois ele tem em mente que na doutrina<br />

nada é omitido, que po<strong>de</strong> servir para dar-nos uma norma perfeita do<br />

viver justo.<br />

22. Fiz-me fraco para com os fracos. Agora ele emprega uma vez<br />

mais uma afirmação geral, na qual <strong>de</strong>screve o gênero <strong>de</strong> pessoas a<br />

quem se acomodara, e com que propósito. Ele assumiu a forma judaica<br />

<strong>de</strong> vida na presença <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us, porém não diante <strong>de</strong> todos eles; pois


Capítulo 9 • 325<br />

muitos <strong>de</strong>les eram obstinados, os quais, sob a influência do farisaísmo<br />

orgulhoso e malicioso, gostariam muito <strong>de</strong> ver a liberda<strong>de</strong> cristã completamente<br />

suprimida. A tais pessoas ele jamais se submeteria, pois<br />

Cristo não quer que nos preocupemos com pessoas <strong>de</strong>sse gênero.<br />

Nosso Senhor disse: “Deixai-os; são cegos, guias cegos” [Mt 15.14]. Por<br />

isso <strong>de</strong>vemos acomodar-nos aos fracos, porém não aos obstinados. 21<br />

Seu propósito era levá-los a Cristo, não para promover seus próprios<br />

interesses, nem granjear a boa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>les. A estes dois pontos<br />

adiciona-se um terceiro, ou, seja, que somente nas coisas indiferentes,<br />

as quais sob outros aspectos influem em nossa escolha, ele não se acomodava<br />

aos fracos. Ora, se consi<strong>de</strong>rarmos quão gran<strong>de</strong> homem era<br />

Paulo, cuja con<strong>de</strong>scendência chegava a tal ponto, <strong>de</strong>vemos sentir-nos<br />

envergonhados, nós que somos pouco mais que nada em comparação a<br />

ele, pois vivemos tão preocupados conosco mesmos que olhamos para<br />

os fracos com <strong>de</strong>sdém, e não nos dignamos em dar-lhes coisa alguma.<br />

Visto, porém, ser justo que ponhamos a or<strong>de</strong>m do apóstolo em ação,<br />

acomodando-nos aos fracos, e agir assim em consonância com as coisas<br />

indiferentes e com vistas à edificação <strong>de</strong>les, os que agem <strong>de</strong> maneira<br />

imprópria, cuja principal preocupação é conservar suas vidas livres<br />

<strong>de</strong> problemas, e que, por essa razão, também tomam cuidado em não<br />

ofen<strong>de</strong>r os outros, os ímpios, obviamente, e não os fracos. A<strong>de</strong>mais, os<br />

que não distinguem entre as coisas que são indiferentes e as que são<br />

proibidas estão indubitavelmente errados. Visto que não fazem essa<br />

distinção, não hesitam em fazer coisas que Deus tem proibido com o fim<br />

<strong>de</strong> agradar aos homens. Mas ao premiar o pecado estão fazendo mau<br />

uso do pensamento <strong>de</strong> Paulo a fim <strong>de</strong> dissimular sua própria ímpia hipocrisia.<br />

Entretanto, se alguém se lembra <strong>de</strong>stes três pontos, nos quais<br />

toquei <strong>de</strong> passagem, estará pronto a refutar tais pessoas.<br />

Devemos igualmente prestar atenção à frase que Paulo usa na conclusão.<br />

22 Pois mostra que, ao tentar conquistar a todos, ele almejava<br />

21 O leitor encontrará esta afirmação mais plenamente elaborada na Harmonia vol. ii. p. 258.<br />

22 “Afin que totalement i’en sauue quelques uns.” – “Para que por todos os meios alguns se<br />

salvem.”


326 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

a salvação <strong>de</strong>les. Entretanto, ele encerra aqui abordando a afirmação<br />

geral (a não ser que o leitor prefira a redação da Vulgata: “para que eu<br />

salve a todos”, que é também encontrada em alguns manuscritos gregos<br />

23 ); pois nesta passagem ele ainda se restringe: “para que por todos<br />

os meios eu possa salvar alguns.” 24 Mas, por causa <strong>de</strong> a consi<strong>de</strong>ração<br />

pelos outros, sobre o quê Paulo fala, ser às vezes menosprezada, até<br />

on<strong>de</strong> os resultados interessam, esta suavização é muito a<strong>de</strong>quada, ou,<br />

seja: embora não estivesse a serviço <strong>de</strong> todos, não obstante não renuncia<br />

sua preocupação pelo bem-estar <strong>de</strong> pelo menos uns poucos. 25<br />

23. E eu faço isso em prol do evangelho,<br />

para ser também participante <strong>de</strong>le.<br />

24. Não sabeis vós que os que correm<br />

numa competição, todos correm, mas<br />

só um recebe o prêmio? Assim correi<br />

também vós para que o alcanceis.<br />

25. E todo aquele que se esforça nos<br />

jogos se domina em todas as coisas.<br />

Ora, eles o fazem para receber uma<br />

coroa corruptível; nós, porém, uma<br />

incorruptível.<br />

26. Pois eu assim corro, não com incerteza;<br />

assim luto, não dando golpes no ar.<br />

27. Mas golpeio meu corpo, e o trago<br />

em sujeição, para que, tendo pregado<br />

aos outros, eu mesmo não venha,<br />

<strong>de</strong> alguma maneira, a ser reprovado.<br />

23. Hoc autem facio propter Evangelium,<br />

ut particeps eius fiam.<br />

24. An nescitis, quod qui in stadium<br />

currunt, omnes qui<strong>de</strong>m currunt,<br />

sed unus accipit præmium? Sic currite,<br />

ut comprehendatis.<br />

25. Porro quicunque certat, per omnia<br />

temperans est: 26 illi qui<strong>de</strong>m igitur,<br />

ut perituram coronam accipiant,<br />

nos autem, ut æternam.<br />

26. Ego itaque sic curro, ut non in incertum:<br />

sic pugilem ago, non velut<br />

aërem feriens:<br />

27. Verum subigo corpus meum, et in<br />

servitutem redigo, ne quo modo<br />

fiat, ut, quum aliis prædicaverim,<br />

ipse reprobus 27 efficiar.<br />

23 A tradução da Vulgata, indicada por Calvino, é: Ut omnes servarem (Para que eu possa<br />

salvar a todos). Quatro manuscritos gregos antigos trazem ἵνα παντας σώσω – Para que eu<br />

possa salvar a todos. A mesma tradução é dada na versão Siríaca, e é adotada por Mill,<br />

Benzelius e Pearce. Na versão <strong>de</strong> Wiclif (1380), a tradução é: “Em favor <strong>de</strong> todos os homens<br />

tudo tenho feito para salvar a todos.” Na versão Rheims (1582), a tradução é: “Para<br />

que eu possa salvar a todos.”<br />

24 “Afin que ie seuue tous.” – “Para que eu possa salvar a todos.”<br />

25 “Le profit et salut pour le moins <strong>de</strong> quelques uns.” – “O proveito e o bem-estar <strong>de</strong> pelo<br />

menos alguns indivíduos.”<br />

26 “Il s’abstient en toutes choses, ou – vit entierement par regime.” – “Ele se abstém em<br />

todas as coisas, ou ele vive inteiramente <strong>de</strong> acordo com a norma prescrita.”<br />

27 “Reprouué, ou, trouué non receuable.” – “Réprobos, ou não achado admissível.”


Capítulo 9 • 327<br />

23. Para ser também participante <strong>de</strong>le. Visto que os coríntios<br />

po<strong>de</strong>riam ter em mente que o que Paulo fez era algo que só se aplicava<br />

a ele, em razão do ofício que mantinha, ele argumenta, à luz do<br />

que o evangelho visa, que todos os coríntios são participantes. Pois<br />

quando <strong>de</strong>clara que <strong>de</strong>sejava “tornar-se participante do evangelho”,<br />

ele está sugerindo que os que não proce<strong>de</strong>m como ele são indignos da<br />

comunhão do evangelho. Tornar-se participante do evangelho é receber<br />

seus frutos.<br />

24. Não sabeis vós que os que correm numa competição. Ele lançou<br />

a doutrina, e agora, querendo imprimi-la nas mentes dos coríntios,<br />

adiciona uma exortação. Em suma, ele afirma que o que alcançaram<br />

até aqui não seria nada, a menos que perseverassem firmes, visto não<br />

ser suficiente que, uma vez iniciados no caminho do Senhor, não envidarem<br />

todo esforço para atingir a meta. Isto correspon<strong>de</strong> à palavra <strong>de</strong><br />

Cristo em Mateus 10.22: “Aquele que perseverar até o fim, esse mesmo<br />

será salvo.”<br />

E <strong>de</strong>veras ele toma por empréstimo um símile da pista <strong>de</strong> corrida.<br />

28 Pois assim como muitos na verda<strong>de</strong> entram na arena, mas apenas<br />

aquele que primeiro alcança o alvo recebe o louro da vitória, assim<br />

aquele que uma vez se incluiu na competição a que o evangelho nos<br />

convoca, não tem motivo para estar satisfeito consigo mesmo, a menos<br />

que prossiga até a morte. Nossa luta, porém, não é como a do corredor:<br />

em sua corrida só um – aquele que corre mais velozmente que<br />

os <strong>de</strong>mais – é o vencedor e recebe o prêmio; 29 nossa condição, porém,<br />

é superior neste aspecto: po<strong>de</strong> haver muitos ao mesmo tempo. 30 Pois<br />

tudo o que Deus requer <strong>de</strong> nós é que prossigamos incansavelmente ao<br />

longo <strong>de</strong> todo o caminho em direção ao alvo. 31 Assim, uma pessoa não<br />

28 “De ceux qui courent à la lice pour quelque pris.” – “Daqueles que correm na pista <strong>de</strong><br />

corrida em busca <strong>de</strong> algum prêmio.”<br />

29 “Qui a mieux couru que les autres, et est le premier venu au but.” – “Quem correu melhor<br />

que os <strong>de</strong>mais e chegou primeiro ao alvo.”<br />

30 “Il y en peut auoir plusieurs <strong>de</strong> nous qui soyent couronnez.” – “Po<strong>de</strong> haver muitos <strong>de</strong> nós<br />

que são coroados.”<br />

31 “Que nous ne perdions point courage, mais que perseuerions constamment justques à la<br />

fin.” – “Cujo coração não <strong>de</strong>sfalece, mas persevera com toda firmeza até o fim.”


328 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

inva<strong>de</strong> o caminho da outra, mas, antes, os que tomam parte na corrida<br />

cristã fazem tudo a seu alcance para esten<strong>de</strong>r a mão <strong>de</strong> forma recíproca.<br />

Paulo apresenta a mesma idéia, <strong>de</strong> maneira distinta, em 2 Timóteo<br />

2.5: “Um atleta não é coroado se não competir segundo as normas.”<br />

Assim correi também vós. Aqui temos a aplicação da comparação.<br />

Não é bastante que tenhamos iniciado a corrida, se não continuarmos<br />

a correr ao longo <strong>de</strong> toda nossa vida. Porquanto nossa vida é semelhante<br />

a uma pista <strong>de</strong> corrida. Daí, <strong>de</strong> nada nos adiantará se pararmos<br />

cansados <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum tempo; por exemplo, meia jornada, porque<br />

nada mais senão a morte marca o final da competição.<br />

A partícula ὅυτω, assim, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada <strong>de</strong> duas formas: Crisóstomo<br />

a junta ao que vem antes, ou, seja: “Como os corredores não<br />

param <strong>de</strong> correr até que tenham alcançado a linha <strong>de</strong> chegada, assim<br />

<strong>de</strong>veis perseverar, e não <strong>de</strong>veis parar <strong>de</strong> correr durante vossa vida.”<br />

Entretanto, a correspondência se aplica bem ao que vem a seguir: “Deveis<br />

correr, não <strong>de</strong> maneira que interrompais em meio à competição,<br />

mas <strong>de</strong> tal maneira que obtenhais o prêmio.”<br />

Não tenho nada a dizer sobre o termo estádio (pista <strong>de</strong> corrida)<br />

e sobre os diferentes tipos <strong>de</strong> corridas, 32 visto que informação sobre<br />

eles po<strong>de</strong>m ser encontrada nos dicionários; e comumente se sabe que<br />

algumas corridas eram em montarias e outras, a pé. Além do mais,<br />

não há muita necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se enten<strong>de</strong>r o que Paulo quis dizer sobre<br />

essas coisas.<br />

25. E todo aquele que se esforça nos jogos. À luz do fato <strong>de</strong> que<br />

estivera a encorajá-los a perseverarem, ele tinha que fazer ainda mais<br />

claro sobre como perseverariam. Ele agora proce<strong>de</strong> usando o símile<br />

<strong>de</strong> pugilistas, não <strong>de</strong> uma forma radical, 33 mas só até on<strong>de</strong> o problema<br />

com que ele está a tratar o exigia, a saber, o problema <strong>de</strong> até que ponto<br />

<strong>de</strong>vem penetrar nas fraqueza <strong>de</strong> seus irmãos. Paulo mesmo se restringe<br />

a isso. Mas ele argúi do menor para o maior, dizendo que <strong>de</strong>vemos<br />

32 “Qui estoyent anciennement en vsage.” – “Que antigamente estavam em uso.”<br />

33 “Non pas qu’il vuerille appliquer la similitu<strong>de</strong> en tout et par tout.” – “Não que ele preten<strong>de</strong>sse<br />

aplicar a similitu<strong>de</strong> completamente.”


Capítulo 9 • 329<br />

envergonhar-nos <strong>de</strong> nós mesmos se nos achamos relutantes em resumir<br />

nosso direito, quando os pugilistas, comendo seu coliphium 34 e<br />

uma pequena porção <strong>de</strong>le, certamente não com excesso, se dispõem<br />

a renunciar todas e quaisquer iguarias, <strong>de</strong> modo a po<strong>de</strong>rem sentir-se<br />

<strong>de</strong> todo preparados para a luta. E fazem isso por amor a uma coroa<br />

corruptível. Não obstante, se dão tanta importância a uma coroa <strong>de</strong><br />

ramos, que murcha quase que instantaneamente, não <strong>de</strong>veríamos nós<br />

pôr todo nosso mais intenso apreço numa coroa eterna? Portanto, não<br />

sintamos nenhuma dificulda<strong>de</strong> em renunciar alguma parcela <strong>de</strong> nossos<br />

direitos. Sabe-se muito bem que os atletas viviam tão satisfeitos<br />

com a mais frugal dieta, que seu modo <strong>de</strong> vida se tornara proverbial.<br />

26. Por isso eu assim corro. Paulo se volta para si mesmo a fim <strong>de</strong>,<br />

ao chamar a atenção para seu próprio exemplo, dar mais peso a sua<br />

doutrina. Há quem pense que o que ele diz aqui se refere à plena segurança<br />

da esperança, como se dissesse: “Não corro em vão, nem estou<br />

correndo o risco <strong>de</strong> ser visto como insensato no tocante à minha obra,<br />

porque tenho a promessa do Senhor, e esta nunca falha.” No entanto,<br />

sou inclinado a crer que ele <strong>de</strong>sejava orientar os crentes em seu caminho,<br />

rumo a seu <strong>de</strong>stino, para que não perambulassem a esmo. Ele<br />

po<strong>de</strong>ria ter dito assim: “O Senhor nos mantém ocupados aqui a correr<br />

e a lutar, mas ele coloca um alvo diante <strong>de</strong> nós rumo ao qual <strong>de</strong>vemos<br />

correr; e estabelece normas confiáveis para o pugilismo a fim <strong>de</strong> não<br />

nos cansarmos sem nenhum objetivo.” Porque ele combina ambas as<br />

comparações que já usou. Diz: “Eu sei para on<strong>de</strong> estou correndo, e<br />

estou ansioso como um pugilista experiente que não quer errar seu<br />

golpe.” Estas coisas <strong>de</strong>vem incitar o coração do cristão, injetando-lhe<br />

coragem para tomar posse, com o maior entusiasmo, <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>-<br />

34 “C’estoit vne sorte <strong>de</strong> pain propre pour entretenir et augmenter la force, duquel vsoyent<br />

ordinairement les lutteurs et telles gens. Les Grecs le nommoyent coliphium.” – “Esse era<br />

um tipo <strong>de</strong> pão apropriado para manter e aumentar as forças, cujo uso comumente era<br />

feito pelos lutadores e pessoas <strong>de</strong>sse gênero. Os gregos o chamam coliphium.” O termo<br />

coliphium é mantido por ser composto <strong>de</strong> κω̑λον, um membro, e ιφι, fortemente – um meio<br />

<strong>de</strong> fortalecer os membros. É <strong>de</strong>finido por Tymme, em sua tradução <strong>de</strong> Calvino sobre os<br />

Coríntios, como sendo “um tipo <strong>de</strong> pão que os lutadores usavam outrora para comer e<br />

sentir-se mais fortes.”


330 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

veres da fé cristã; 35 pois é algo imensurável não nos <strong>de</strong>ixarmos distrair,<br />

na ignorância, por coisas que não nos levam a parte alguma.<br />

27. Mas golpeio meu corpo. 36 Budæus traduz: Observo (mantenho-me<br />

sob vigilância). Eu, porém, entendo que aqui o apóstolo faz<br />

uso do verbo ὑπωπιάζειν. 37 no sentido <strong>de</strong> “persistir no trabalho como<br />

um escravo”. 38 Pois ele está nos contando que não tem sido indulgente<br />

consigo mesmo, mas que tem reprimido seus <strong>de</strong>sejos. Isso não é possível<br />

a menos que se tenha o corpo sob controle, e que mantenha seus<br />

<strong>de</strong>sejos refreados, <strong>de</strong> modo que, como se faz a um corcel selvagem e<br />

indomável, seja ele reprimido e acostumado a obe<strong>de</strong>cer. Os monges<br />

<strong>de</strong> outrora, querendo sujeitar-se a esta norma, engendraram muitos<br />

exercícios disciplinares; pois costumavam dormir em bancos; obrigavam-se<br />

a manter excessivamente longas noites <strong>de</strong> vigília; e em seu<br />

modo <strong>de</strong> vida, guardavam-se limpos <strong>de</strong> toda luxúria. Todavia, omitiam<br />

o ponto principal, e não compreendiam a razão por que o apóstolo nos<br />

diz que fizéssemos isso, visto que tinham outro preceito em mente: “e<br />

nada disponhais para a carne, no tocante a suas concupiscências” [Rm<br />

13.14]. Porquanto o que Paulo diz em 1 Timóteo 4.8 sempre resulta<br />

bem, a saber: que “o exercício físico para pouco é proveitoso”. Não<br />

obstante, tratemos nosso corpo como se ele fosse um escravo, sim, a<br />

fim <strong>de</strong> não nos subtrairmos dos <strong>de</strong>veres da religião em razão <strong>de</strong> sua<br />

inerente concupiscência, porém façamos isso por uma outra razão ainda<br />

mais forte, ou, seja, não provocarmos sofrimento nem escândalos a<br />

outrem, ce<strong>de</strong>ndo a seus impulsos.<br />

Para que, tendo pregado a outros. Há quem explique estas palavras<br />

da seguinte maneira: “A fim <strong>de</strong> que, tendo ensinado a outrem<br />

35 “Toutes choses concernantes la piete et crainte <strong>de</strong> Dieu.” – “Todas as coisas que se relacionam<br />

com a pieda<strong>de</strong> e o temor <strong>de</strong> Deus.”<br />

36 Mais ie matte et reduy en seruitu<strong>de</strong> mon corps.” – “Mas eu mortifico meu corpo, e o trago<br />

em servidão.”<br />

37 Seu sentido original é golpear embaixo do olho, sendo composto <strong>de</strong> ὑπό (<strong>de</strong>baixo <strong>de</strong>) e<br />

ὤψ (o olho), <strong>de</strong>ixar roxo <strong>de</strong> pancada, como os lutadores costumavam fazer com a antiga<br />

manopla dos atletas. (Ver Arist. Pac. 541.)<br />

38 “Manier ru<strong>de</strong>ment et d’une façon seruile.” – “Manejar abruptamente e <strong>de</strong> uma maneira<br />

servil.”


Capítulo 9 • 331<br />

fielmente e bem, não incorra eu na con<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> Deus por levar uma<br />

vida nociva.” Mas a leitura será melhor se se consi<strong>de</strong>rar esta frase<br />

como uma referência a sua relação com outrem, da seguinte forma:<br />

“Minha vida <strong>de</strong>ve gerar alguma sorte <strong>de</strong> exemplo para outrem. Portanto,<br />

esforço-me para viver <strong>de</strong> tal maneira que meu caráter e conduta<br />

não contradigam ao que eu ensino, e que, portanto, não venha eu a<br />

negligenciar as próprias coisas que exijo dos outros, e com isso envolvendo-me<br />

em gran<strong>de</strong> infortúnio e trazendo graves ofensas a meus<br />

irmãos. Esta frase po<strong>de</strong> também ser acrescida àquela que ele expressou<br />

numa afirmação prévia, com este resultado: “Para que não venha<br />

eu a ser privado do evangelho, do qual outros vieram a participar através<br />

<strong>de</strong> meu trabalho.


Capítulo 10<br />

1. Além do mais, irmãos, não gostaria<br />

que fôsseis ignorantes quanto<br />

ao fato <strong>de</strong> que todos nossos pais<br />

estiveram sob a nuvem, e todos passaram<br />

pelo mar;<br />

2. e foram todos batizados em Moisés,<br />

na nuvem e no mar;<br />

3. e todos comeram do mesmo alimento<br />

espiritual;<br />

4. e todos beberam da mesma água<br />

espiritual; porque bebiam daquela<br />

Rocha espiritual que os seguia; e<br />

aquela Rocha era Cristo.<br />

5.Mas Deus não se agradou <strong>de</strong> muitos<br />

<strong>de</strong>les; por isso foram <strong>de</strong>rrotados no<br />

<strong>de</strong>serto.<br />

1. Nolo autem vos ignorare, fratres,<br />

quod patres nostri omnes sub nube<br />

fuerunt, et omnes mare transierunt.<br />

2. Et omnes in Mose fuerunt baptizati<br />

in nube et in mari,<br />

3. Et omnes ean<strong>de</strong>m escam spiritualem<br />

manducarunt,<br />

4. Et omnes eun<strong>de</strong>m biberunt spiritualem<br />

potum: bibebant autem e<br />

sprituali, quae eos consequebatur,<br />

petra. Petra, autem, erat Christus.<br />

5. Verum complures eorum grati non<br />

fuerant Deo: prostrati enim fuerunt<br />

in <strong>de</strong>serto.<br />

O que ele previamente ensinou pelo uso <strong>de</strong> duas similitu<strong>de</strong>s,<br />

agora confirma pelo uso <strong>de</strong> dois exemplos. Os coríntios se mostraram<br />

dissolutos, e se vangloriavam, como se fossem veteranos 1 ou,<br />

pelo menos, tivessem concluído sua trajetória, quando tinham apenas<br />

se afastado do ponto <strong>de</strong> partida. Ele reprime essa fútil exultação<br />

e confiança da seguinte maneira: “Vendo eu que estais tranqüilamen-<br />

1 “Comme feroyent <strong>de</strong>s gendarmes, qui ont <strong>de</strong>sia fidlement serui si long temps, que pour<br />

leur faire honneur on lesd enuoye se reposer le reste <strong>de</strong> leur vie.” – “Segundo a maneira<br />

dos soldados que já serviram com fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> por tanto tempo, que, com vistas a vestir-<br />

-lhes com honras, eram <strong>de</strong>sobrigados, <strong>de</strong> modo que eram isentados do trabalho durante<br />

o resto <strong>de</strong> sua vida.”


334 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

te tomando vosso caso no próprio nascedouro <strong>de</strong> vosso curso, não<br />

gostaria que fôsseis ignorantes acerca do que sobreveio ao povo<br />

<strong>de</strong> Israel em <strong>de</strong>corrência disso mesmo, para que seu exemplo vos<br />

<strong>de</strong>sperte.” Não obstante, como, em exemplos que são aduzidos, qualquer<br />

ponto <strong>de</strong> diferença <strong>de</strong>strói a força da comparação, Paulo afirma<br />

que não há tal similarida<strong>de</strong> entre nós e os israelitas, ao ponto <strong>de</strong><br />

fazer nossa condição diferente da <strong>de</strong>les. Portanto, tendo em vista<br />

ameaçar os coríntios com a mesma vingança que haviam enfrentado,<br />

ele começa nestes termos: “Não vos vanglorieis <strong>de</strong> algum privilégio<br />

especial, como se vossa situação em relação a Deus fosse melhor do<br />

que a <strong>de</strong>les.” Pois eles <strong>de</strong>sfrutavam dos mesmos benefícios que <strong>de</strong>sfrutamos<br />

hoje. A Igreja <strong>de</strong> Deus subsistia em seu seio, como é nosso<br />

caso hoje. Eles tinham os mesmos sacramentos que lhes testemunhavam<br />

da graça <strong>de</strong> Deus. 2 Mas, ao usarem mal seus dons, então não<br />

pu<strong>de</strong>ram escapar do juízo divino. 3 Portanto, <strong>de</strong>veis encher-vos <strong>de</strong><br />

temor, porquanto a mesma ameaça paira sobre vós. Judas se utilizou<br />

do mesmo argumento em sua carta [Jd 5].<br />

1. Estiveram todos sob a nuvem. A intenção do apóstolo é <strong>de</strong>monstrar<br />

que os israelitas eram o povo <strong>de</strong> Deus, justamente como nós<br />

o somos, com o fim <strong>de</strong> levar-nos a compreen<strong>de</strong>r que não escaparemos<br />

impunemente das mãos divinas, as mesmas que os castigaram 4 com<br />

dura severida<strong>de</strong>. A questão é a seguinte: se Deus não os poupou, então<br />

também não nos poupará, porquanto nossa situação e a <strong>de</strong>les são<br />

uma e a mesma. Paulo prova esta similarida<strong>de</strong> partindo do fato <strong>de</strong><br />

que haviam sido assistidos com os mesmos sinais da graça <strong>de</strong> Deus.<br />

Porquanto os Sacramentos são emblemas por meio dos quais a Igreja<br />

<strong>de</strong> Deus é distinguida. Ele trata primeiro do batismo, e ensina que a<br />

nuvem, que protegia os israelitas do calor do sol no <strong>de</strong>serto, e os guiava<br />

em sua marcha, assim como o fizera na travessia do mar, realmente<br />

2 “Aussi bien qu’à nous.” – “Tanto quanto a nós.”<br />

3 “Ils ont senti le jugement <strong>de</strong> Dieu, et ne l’ont peu euiter.” – “Eles têm sentido o juízo <strong>de</strong><br />

Deus, e não têm sido capazes <strong>de</strong> escapar <strong>de</strong>le.”<br />

4 Eux, qui estoyent son peuple.” – “Os que eram seu povo.”


Capítulo 10 • 335<br />

era como se fosse um batismo em relação a eles. Ele diz que um sacramento<br />

se fazia presente no maná e na água que fluiu da rocha, o qual<br />

correspondia à Santa Ceia.<br />

Foram, diz ele, batizados em Moisés, isto é, sob o ministério ou<br />

diretriz <strong>de</strong> Moisés. Pois tomo a partícula εἰς como sendo usada no<br />

lugar <strong>de</strong> ἐν, concordando com o uso comum da Escritura, porque somos<br />

certamente batizados no nome <strong>de</strong> Cristo, e não <strong>de</strong> algum mero<br />

homem, como ele já expressou em 1 Coríntios 1.13, e isso por duas<br />

razões. São elas: primeiro, porque pelo batismo somos iniciados 5 na<br />

doutrina unicamente <strong>de</strong> Cristo; e, segundo, porque somente seu nome<br />

é invocado, visto que o batismo está fundamentado somente em sua<br />

influência. Foram, portanto, batizados em Moisés, isto é, sob sua li<strong>de</strong>rança<br />

ou ministério, como já foi afirmado. Como? Na nuvem e no mar.<br />

“Foram, pois, batizados duas vezes”, alguém dirá. Respondo que há<br />

dois sinais mencionados, os quais, contudo, equivalem um só batismo,<br />

correspon<strong>de</strong>nte ao nosso.<br />

Aqui, entretanto, suscita-se uma questão ainda mais difícil. Porque<br />

não há dúvida <strong>de</strong> que os benefícios <strong>de</strong>stes dons, sobre os quais<br />

Paulo faz referência, foram temporários. 6 Pois a nuvem os protegia do<br />

calor do sol e mostrava-lhes o curso a seguir, e estes são benefícios físicos,<br />

tendo a ver com esta presente vida. Da mesma sorte, a travessia<br />

do mar significava seu escape da cruelda<strong>de</strong> <strong>de</strong> faraó e seu livramento<br />

do iminente perigo <strong>de</strong> morte. No entanto, o benefício <strong>de</strong> nosso batismo<br />

é espiritual. Por que, pois, Paulo recorre a sacramentos <strong>de</strong> benefícios<br />

terrenos e busca neles algum mistério 7 espiritual? Minha resposta é<br />

que ele tinha boas razões para buscar algo além das vantagens físicas<br />

nos milagres <strong>de</strong>sse gênero. Porque, ainda que Deus estivesse disposto<br />

a socorrer seu povo relativamente à vida neste mundo, contudo<br />

seu principal propósito era dar testemunho <strong>de</strong> si mesmo e revelar-se<br />

como seu Deus, e a salvação eterna estava implícita neste fato.<br />

5 “Nous nous assuietissons et faisons serment.” – “Submetemo-nos e juramos.”<br />

6 “Et terrien.” – “E terrenos.”<br />

7 “Mystere et secret.” – “Mistério e segredo.”


336 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

A nuvem, em vários exemplos, 8 é chamada o símbolo <strong>de</strong> sua presença.<br />

Daí, ao <strong>de</strong>clarar que, por meio da nuvem, Deus estava presente<br />

com eles, na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu povo eleito, não resta dúvida alguma <strong>de</strong><br />

que eles tinham na nuvem não só uma bênção terrena, mas também<br />

um emblema <strong>de</strong> vida espiritual. Assim, a nuvem constituía um duplo<br />

propósito; e o mesmo se <strong>de</strong>u em relação à travessia do mar. Visto<br />

que um caminho se lhes abriu pelo meio do mar, <strong>de</strong> modo que escaparam<br />

das mãos <strong>de</strong> faraó, a única razão para isso foi o fato <strong>de</strong> que o<br />

Senhor, tendo-os uma vez tomado sob seu cuidado e proteção, <strong>de</strong>terminou<br />

guardá-los <strong>de</strong> todas as formas. Portanto, <strong>de</strong>duziram <strong>de</strong>sse fato<br />

que eles se tornaram objetos do cuidado divino, e que Deus estava<br />

preocupado com a salvação <strong>de</strong>les. Esta é também a razão da Páscoa,<br />

a qual foi instituída para conservar a memória <strong>de</strong> seu livramento, e<br />

que, concomitantemente, era, não obstante, um sacramento <strong>de</strong> Cristo.<br />

Como assim? Porque Deus, sob um benefício temporário, se revelara<br />

como Salvador. Aquele que atentar bem para estas coisas não verá<br />

absurdo algum no que Paulo diz. Não só isso, mas perceberá, tanto na<br />

substância quanto na forma visível, a mais estreita harmonia entre o<br />

batismo dos ju<strong>de</strong>us e o nosso.<br />

Entretanto, alguém po<strong>de</strong>ria apresentar mais uma objeção,<br />

dizendo que não há sequer uma palavra sobre isso em todas as<br />

Escrituras. 9 Admito tal fato, porém não há dúvida <strong>de</strong> que, agindo<br />

por intermédio <strong>de</strong> seu Espírito, Deus costuma ser mo<strong>de</strong>rado nas<br />

referências explícitas. Por exemplo, percebemos tal fato no caso da<br />

serpente <strong>de</strong> bronze. E Cristo mesmo testifica que este fato constituía<br />

um sacramento espiritual [Jo 3.14]. Todavia, não encontramos<br />

nenhuma outra menção disso. 10 Mas, a seu próprio modo, o Senhor<br />

revelou o segredo que, <strong>de</strong> outra forma, permaneceria oculto dos<br />

crentes <strong>de</strong> todas as épocas.<br />

8 “Par toute l’Escriture.” – “Ao longo <strong>de</strong> toda a Escritura.”<br />

9 “Es Escrituras.” – “Nas Escrituras.”<br />

10 “Nous n’en auons maintenant pas un seul mot en toute l’Escriture.” – “Não temos nenhuma<br />

palavra sobre ele em toda a Escritura.”


Capítulo 10 • 337<br />

3. O mesmo alimento espiritual. Ele agora faz menção do outro<br />

sacramento, o qual correspon<strong>de</strong> à Santa Ceia do Senhor. “O maná”,<br />

diz ele, “e a água que fluiu da rocha, serviram não meramente para o<br />

alimento dos corpos, mas também para a nutrição das almas.” É verda<strong>de</strong><br />

que ambos foram meios para a subsistência do corpo, mas isso<br />

não impe<strong>de</strong> que sirvam também a outro propósito. Portanto, embora<br />

o Senhor aliviasse as necessida<strong>de</strong>s corporais, ele ao mesmo tempo fez<br />

provisão para o eterno bem-estar das almas. Estes dois aspectos são<br />

facilmente conciliados, não suscitassem dificulda<strong>de</strong> alguma nas palavras<br />

<strong>de</strong> Cristo em João 6.31-65, on<strong>de</strong> ele discute sobre o maná como<br />

alimento perecível para o estômago, e o contrasta com o genuíno alimento<br />

da alma. Suas palavras parecem diferir um bocado do que diz<br />

Paulo aqui. Este problema po<strong>de</strong> ser facilmente solucionado. Quando<br />

os escritores da Escritura tratam dos Sacramentos, ou <strong>de</strong> outros elementos<br />

neste mesmo sentido, às vezes eles falam <strong>de</strong> acordo com a<br />

capacida<strong>de</strong> dos ouvintes, e nesse caso diz respeito não à natureza da<br />

coisa em si, mas à idéia equivocada dos ouvintes. Assim, Paulo nem<br />

sempre fala da circuncisão da mesma forma, pois quando tem em vista<br />

a <strong>de</strong>signação divina nela, ele diz que ela era um selo da justiça da fé<br />

[Rm 4.11]; mas quando está discutindo com aqueles que se gloriavam<br />

no mero sinal externo, e <strong>de</strong>positavam nela uma equivocada confiança<br />

para a salvação, ele diz que ela é um emblema <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nação, porque<br />

por meio <strong>de</strong>la os homens se obrigam a guardar toda a lei [Gl 5.2, 3].<br />

Ele está tratando apenas do que os falsos apóstolos pensavam <strong>de</strong>la,<br />

pois ele não se preocupa em argumentar contra a instituição inalterável<br />

<strong>de</strong> Deus, mas contra a perversão que eles fizeram da verda<strong>de</strong>.<br />

Assim, quando a multidão carnal preferiu Moisés a Cristo, em razão <strong>de</strong><br />

haver ele alimentado o povo no <strong>de</strong>serto ao longo <strong>de</strong> quarenta anos, e<br />

estimavam o maná meramente como alimento para o estômago, não<br />

visualizando nada mais além disso. Cristo, em sua réplica dirigida a<br />

eles, não explica o significado do maná, senão que, ignorando tudo<br />

mais, faz com que aquilo que tem a dizer se a<strong>de</strong>qúe à mentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

seus ouvintes. Ele po<strong>de</strong>ria ter dito mais ou menos assim: “Vós ten<strong>de</strong>s


338 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Moisés em elevado conceito, ao ponto <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rá-lo como o mais renomado<br />

dos profetas, só porque ele saciou o estômago <strong>de</strong> vossos pais<br />

no <strong>de</strong>serto. Por isso ten<strong>de</strong>s esta única objeção contra mim, a saber:<br />

nada sou a vossos olhos, só porque não vos supri com abundância <strong>de</strong><br />

alimento para vosso estômago. Não obstante, se consi<strong>de</strong>rais o alimento<br />

perecível como algo tão valioso, o que ten<strong>de</strong>s, pois, a dizer sobre<br />

o pão que produz vida e nutre vossas almas para a vida eterna?” Vemos,<br />

pois, que o Senhor fala ali não segundo a natureza da coisa em<br />

si, mas, antes, segundo a compreensão <strong>de</strong> seus ouvintes. 11 Paulo, em<br />

contrapartida, aqui visualiza não a or<strong>de</strong>nança <strong>de</strong> Deus, mas o abuso<br />

<strong>de</strong>la pelos ímpios.<br />

Além do mais, quando diz que os pais comeram do mesmo pão<br />

espiritual, ele mostra, primeiramente, qual é a virtu<strong>de</strong> e a eficácia dos<br />

Sacramentos; e, em segundo lugar, <strong>de</strong>clara que os antigos sacramentos<br />

da lei tinham a mesma virtu<strong>de</strong> que os nossos hoje têm. Porque, se<br />

o maná fosse alimento espiritual, segue-se que o que nos é exibido nos<br />

Sacramentos não são meras formas externas [figuras nudas], senão<br />

que a realida<strong>de</strong> figurada é genuína e concomitantemente apresentada<br />

[rem figuratam simul vere dari]. Pois Deus não praticaria tamanha<br />

fraudulência ao ponto <strong>de</strong> nutrir-nos com vãs aparências [figmentis]. 12<br />

Um sinal [signum] é realmente um sinal, e retém sua própria substância<br />

[substantiam]. Mas, como os papistas, por um lado, são ridículos<br />

sonhadores <strong>de</strong> alguma sorte <strong>de</strong> transformação, assim também, por<br />

outro lado, não temos o direito <strong>de</strong> separar da figura a realida<strong>de</strong> [veritatem<br />

et figuram], as quais foi Deus quem uniu. Os papistas confun<strong>de</strong>m<br />

a realida<strong>de</strong> com o sinal externo [rem et signum]; os incrédulos, tais<br />

como Schwenkfeld e homens <strong>de</strong> sua estirpe, separam os sinais das realida<strong>de</strong>s<br />

[signa a rebus]. Preservemos uma posição mediana, 13 ou, seja:<br />

mantenhamos a conexão <strong>de</strong>signada pelo Senhor, porém, ao mesmo<br />

11 Veja-se a discussão <strong>de</strong> Calvino <strong>de</strong>ste tema no próprio comentário ao Evangelho <strong>de</strong> João,<br />

nesta passagem (João 6).<br />

12 “Choses qui ayent apparence sans effet.” – “Coisas que têm uma aparência <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong><br />

realida<strong>de</strong>.<br />

13 “Entre ces <strong>de</strong>ux extremitez.” – “Entre estes dois extremos.”


Capítulo 10 • 339<br />

tempo, não ignoremos a distinção existente entre elas, não cometendo<br />

o erro <strong>de</strong> transferir para uma o que pertence à outra.<br />

Temos ainda que tratar do segundo ponto, a saber: a semelhança<br />

existente entre os antigos sinais e os nossos. É notório o dogma dos<br />

escolásticos, ou, seja, que os “sacramentos da antiga lei simplesmente<br />

figuravam [figurasse] a graça, enquanto que os nossos a conferem<br />

[conferre]”. Esta passagem se presta mais para refutar tal erro. Pois ela<br />

prova que a realida<strong>de</strong> do Sacramento [rem sacramenti exhibitam] era<br />

comunicada tanto ao antigo povo [<strong>de</strong> Deus] quanto o é a nós agora.<br />

Portanto, é uma inominável perversida<strong>de</strong> presumirem os homens da<br />

Sorbone que os santos pais, sob a lei, possuíam os sinais <strong>de</strong>stituídos<br />

<strong>de</strong> realida<strong>de</strong>. Francamente, estou disposto a concordar em que a eficácia<br />

dos sinais nos é imediatamente mais rica e mais abundante, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

a encarnação <strong>de</strong> Cristo, do que o era para os pais sob a lei. Assim, a<br />

diferença entre nós e eles é apenas <strong>de</strong> grau, ou, segundo a expressão<br />

popular, um “mais ou menos”, porque, o que eles possuíam em pequena<br />

medida, nós o possuímos mais plenamente [plenius]. Mas a questão<br />

não é propriamente que possuíam meros emblemas, enquanto nós<br />

<strong>de</strong>sfrutamos da realida<strong>de</strong>. 14<br />

Há quem explique estas palavras como se eles, 15 reunidos, comessem<br />

o mesmo pão, e não significam que eles <strong>de</strong>vam ser comparados a<br />

nós. Tais intérpretes, porém, não prestam a <strong>de</strong>vida atenção no intuito<br />

do apóstolo. Pois a alusão que ele está fazendo aqui é justamente esta:<br />

o antigo povo era sustentado com os mesmos benefícios que nós, e<br />

participava dos mesmos Sacramentos, <strong>de</strong> modo que não <strong>de</strong>vemos concluir<br />

que, confiando em algum gênero <strong>de</strong> privilégio especial, venhamos<br />

a menosprezar o castigo que eles tiveram que suportar. Não obstante,<br />

não pretendo questionar com alguém sobre isso; estou simplesmente<br />

<strong>de</strong>clarando meu ponto <strong>de</strong> vista pessoal. Contudo estou bem ciente do<br />

14 Nosso autor, tendo ocasião <strong>de</strong> referir-se ao mesmo “dogma escolástico” quanto aos Sacramentos<br />

do Velho e do Novo Testamentos (quando comenta Rm 4.12), diz: “Illis enim<br />

vim justificandi adimunt, his attribuunt.” – “Eles negam ao primeiro o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> justificar,<br />

enquanto validam o segundo.”<br />

15 “Les Issraelites.” – “Os israelitas.”


340 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

atraente raciocínio apresentado por alguns que aceitam a explicação<br />

oposta, a qual concorda muito bem com o símile que foi assim usado, a<br />

saber: que a mesma pista <strong>de</strong> corrida foi estabelecida para todos os israelitas;<br />

que todos eles participam do mesmo ponto <strong>de</strong> partida; que todos<br />

eles percorreram a mesma trajetória; que todos participaram da mesma<br />

esperança, porém muitos <strong>de</strong>les foram impedidos <strong>de</strong> receber o prêmio.<br />

Entretanto, quando examino tudo <strong>de</strong>tidamente, não me <strong>de</strong>ixo induzir,<br />

por essas razões, a renunciar meu ponto <strong>de</strong> vista, porquanto o apóstolo<br />

tem boas razões para fazer menção apenas <strong>de</strong> dois Sacramentos, e<br />

do batismo em particular. Por que ele fez isso senão para contrastá-los<br />

conosco? Inquestionavelmente, se ele tivesse restringido sua comparação<br />

à corporação daquele povo, então teria citado a circuncisão e<br />

outros sacramentos mais notórios e mais importantes. Preferiu, porém,<br />

consi<strong>de</strong>rar aqueles que não foram tão notórios, visto que eram mais eficientes<br />

em realçar o contraste entre nós e eles. De forma semelhante, a<br />

lição que ele adiciona não seria muito apropriada, ou, seja: “todas essas<br />

coisas lhes suce<strong>de</strong>ram para nos servir <strong>de</strong> exemplo [in figuram], porque<br />

vemos os juízos divinos caindo sobre eles, os quais também nos ameaçam<br />

caso nos <strong>de</strong>ixemos envolver nos mesmos <strong>de</strong>litos.”<br />

4. E a rocha era Cristo. Algumas pessoas são tão estúpidas que<br />

chegam a torcer estas palavras <strong>de</strong> Paulo, ao ponto <strong>de</strong> fazê-lo dizer que<br />

Cristo era a rocha espiritual, sem ter nada a dizer sobre aquela rocha<br />

que era um emblema visível; pois sabemos muito bem que Paulo está<br />

tratando <strong>de</strong> sinais externos. A objeção <strong>de</strong>les, <strong>de</strong> que a rocha é realmente<br />

<strong>de</strong>scrita como sendo <strong>de</strong> caráter espiritual não passa <strong>de</strong> uma<br />

rematada futilida<strong>de</strong>, visto que este epíteto só se aplica a ela, para que<br />

saibamos que a mesma era emblema <strong>de</strong> um mistério espiritual. Não<br />

obstante, não há dúvida <strong>de</strong> que Paulo está comparando nossos Sacramentos<br />

com aqueles dos israelitas.<br />

Sua segunda objeção é muito mais tola e pueril. Perguntam eles:<br />

“Como po<strong>de</strong>ria uma rocha, que permanecia fixa em algum ponto, seguir<br />

os israelitas?” Formulam esta pergunta como se não fosse bastante<br />

evi<strong>de</strong>nte que a palavra rocha <strong>de</strong>nota o manancial <strong>de</strong> água que jamais


Capítulo 10 • 341<br />

abandona o povo. Porquanto Paulo enaltece 16 a graça <strong>de</strong> Deus, visto que<br />

ele or<strong>de</strong>nou à água que fluía da rocha a jorrar enquanto o povo peregrinava,<br />

como se a própria rocha os acompanhasse. Ora, se ele tencionasse<br />

dizer que Cristo é o fundamento espiritual da Igreja, por que então usou<br />

o verbo ser no pretérito 17 [imperfeito] – era? É suficientemente claro que<br />

ele está se referindo a algo que só afetava os pais. Portanto, não <strong>de</strong>mos<br />

mais ouvidos a esta ficção pueril, a qual propicia aos homens amantes<br />

<strong>de</strong> disputa a chance <strong>de</strong> mostrar-se o quanto são impu<strong>de</strong>ntes, em vez <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ixarem que as formas sacramentais se expressem. 18<br />

Não obstante, já afirmei que nos antigos sacramentos a realida<strong>de</strong><br />

estava anexada aos sinais e [era] comunicada ao povo. Portanto, visto<br />

que eram emblemas [figuræ] <strong>de</strong> Cristo, segue-se que este se achava<br />

unido aos mesmos, com certeza não localmente, e nem numa união <strong>de</strong><br />

natureza ou substância, mas sacramentalmente. Esta é a razão por que<br />

o apóstolo diz que a rocha era Cristo, pois quando se fala dos sacramentos,<br />

comumente se faz uso <strong>de</strong> metonímia. Por isso, aqui o nome da<br />

realida<strong>de</strong> é transferido para o sinal externo, porque aquela é aplicada<br />

a este, não literalmente, mas figuradamente, em virtu<strong>de</strong> da união sobre<br />

a qual já me reportei. Visto, porém, que isso será discutido mais <strong>de</strong>talhadamente<br />

no capítulo onze, faço aqui uma mera alusão ao assunto.<br />

Permanece aí outra questão. “Visto que agora na Ceia comemos o<br />

corpo <strong>de</strong> Cristo e bebemos seu sangue, como podiam os ju<strong>de</strong>us ser participantes<br />

da mesma comida e bebida espirituais, sendo que a carne <strong>de</strong><br />

Cristo ainda não existia para que pu<strong>de</strong>ssem comê-la?” Minha resposta é<br />

que, embora sua carne ainda não existisse, não obstante ela era alimento<br />

para eles. Tampouco é isto uma sutileza fútil e sofística, pois sua salvação<br />

<strong>de</strong>pendia do benefício <strong>de</strong> sua morte e ressurreição. Daí, eles requeriam<br />

receber a carne e o sangue <strong>de</strong> Cristo, para que pu<strong>de</strong>ssem ser participantes<br />

dos benefícios da re<strong>de</strong>nção. Esta recepção <strong>de</strong>la [re<strong>de</strong>nção] era obra<br />

16 “Celebre et magnifie.” – “Celebra e enaltece.”<br />

17 “Estoit.” – “Era.”<br />

18 “C’est à dire lesquelles il ne faut prendre cruëment, et à la lettre, comme on dit.” – “Equivale<br />

dizer: que não <strong>de</strong>ve ser tomado estritamente ou segundo a letra, como dizem.” O<br />

leitor encontrará este tema discutido em alguma extensão na Harmonia dos Evangelhos.


342 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

secreta do Espírito Santo, o qual operava neles <strong>de</strong> tal maneira que a carne<br />

<strong>de</strong> Cristo, embora ainda não criada, tornou-se eficaz neles. Não obstante,<br />

sua intenção é dizer que comeram a sua própria maneira, que era diferente<br />

da nossa, 19 e, como já disse, que Cristo nos é agora comunicado mais<br />

plenamente em virtu<strong>de</strong> do maior grau <strong>de</strong> revelação. Porque, em nosso<br />

tempo, o comer é substancial [substantialis est manducatio], o que não era<br />

possível no tempo <strong>de</strong>les. Em outros termos, Cristo nos alimenta com sua<br />

carne, a qual foi sacrificada por nós, e que foi <strong>de</strong>stinada para ser nosso<br />

alimento, do qual extraímos nossa vida.<br />

5. Deus, porém, não se agradou <strong>de</strong> muitos <strong>de</strong>les. Agora percebemos<br />

a razão por que o apóstolo começa como faz, a saber: que não<br />

pretendamos ser, <strong>de</strong> alguma forma, inferiores ou superiores a eles,<br />

senão que procuremos andar em humilda<strong>de</strong> e temor. Porque esta é a<br />

única forma <strong>de</strong> assegurarmos a luz da verda<strong>de</strong>, no que respeita a nós,<br />

e uma infinita gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> graciosos favores não seja menosprezada.<br />

Diz Paulo: “Deus escolheu a todos eles como seu povo, porém muitos<br />

<strong>de</strong>les apostataram da graça. Portanto, estejamos em guarda para que o<br />

mesmo não nos suceda, quando temos aqui o procedimento <strong>de</strong>les apontando<br />

para nós; pois assim como Deus os puniu com terrível severida<strong>de</strong>,<br />

ele não nos <strong>de</strong>ixará impunes por termos o mesmo procedimento.”<br />

Aqui vem a lume outra objeção. “Se é verda<strong>de</strong> que os hipócritas<br />

e perversos, naquele tempo, comeram o pão espiritual, os incrédulos<br />

da atualida<strong>de</strong> participam da realida<strong>de</strong> nos sacramentos?” Alguns, temendo<br />

que os <strong>de</strong>screntes venham a afastar-se da verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus,<br />

ensinam que a realida<strong>de</strong> é recebida pelos ímpios juntamente com o<br />

sinal. Seu temor, porém, é completamente infundado, porquanto o Senhor<br />

oferece o que o sinal representa [figurat] ao digno e ao indigno<br />

igualmente, porém nem todos são capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfrutar da realida<strong>de</strong>.<br />

Ao mesmo tempo, não se muda a natureza do sacramento, nem se per<strong>de</strong><br />

coisa alguma <strong>de</strong> sua eficácia. No mesmo sentido, o maná, no que<br />

se refere a Deus, era alimento espiritual mesmo para os incrédulos;<br />

19 “D’vne autre façon et mesure que nous ne faisons pas.” – “De uma maneira e medida diferentes<br />

do que fazemos.”


Capítulo 10 • 343<br />

visto, porém, que os mesmos possuíam bocas que eram meramente<br />

[órgãos] carnais, não comiam o que lhes era oferecido. Transfiro a discussão<br />

completa <strong>de</strong>sta questão para o capítulo 11.<br />

Por isso foram subvertidos. A evidência é produzida à guisa <strong>de</strong><br />

prova <strong>de</strong> que não agradaram a Deus, porque este, em sua ira, os tratou<br />

com muita severida<strong>de</strong>, 20 e os castigou por sua ingratidão. Alguns tomam<br />

esse fato como uma referência à totalida<strong>de</strong> do povo que pereceu<br />

no <strong>de</strong>serto, com exceção <strong>de</strong> apenas dois <strong>de</strong>les, a saber: Calebe e Josué<br />

[Nm 14.29]. Entretanto, meu ponto <strong>de</strong> vista consiste em que ele simplesmente<br />

focaliza aqueles <strong>de</strong> quem fará menção em seguida, em suas<br />

diferentes categorias.<br />

6. Ora, estas coisas vieram a ser exemplos<br />

para nós, a fim <strong>de</strong> que não<br />

cobicemos as coisas más, como<br />

eles cobiçaram.<br />

7. Não vos façais idólatras, como alguns<br />

<strong>de</strong>les; como está escrito: O<br />

povo assentou-se para comer e beber,<br />

e levantou-se para divertir-se.<br />

8. E não pratiquemos a fornicação,<br />

como alguns <strong>de</strong>les o fizeram, e caíram<br />

num só dia vinte e três mil.<br />

9. Nem tentemos o Senhor, como alguns<br />

<strong>de</strong>les o fizeram, e pereceram<br />

pelas mor<strong>de</strong>duras das serpentes.<br />

10. Nem murmureis, como alguns <strong>de</strong>les<br />

o fizeram, e foram <strong>de</strong>struídos pelo<br />

exterminador.<br />

11. Ora, estas coisas lhes suce<strong>de</strong>ram<br />

à guisa <strong>de</strong> exemplo; e foram escritas<br />

para nossa admoestação, a nós<br />

sobre quem os fins dos tempos têm<br />

chegado.<br />

12. Por esse motivo, aquele que pensa<br />

estar <strong>de</strong> pé, preste atenção para<br />

que não venha a cair.<br />

6. Hæc autem typi nobis fuerunt, ne<br />

simus concupiscentes malorum, sicut<br />

illi concupiverunt.<br />

7. Neque idololatræ sitis, quemadmodum<br />

quidam eorum: sicut scriptum<br />

est. (Exod. xxxii.6.) Sedit populus<br />

ad e<strong>de</strong>ndum et bibendum, et surrexerunt<br />

ad lu<strong>de</strong>ndum.<br />

8. Neque scortemur, quemadmodum et<br />

quidam eorum scortati sunt, et ceci<strong>de</strong>runt<br />

uno die viginti tria millia.<br />

9. Neque tentemus Christum, quemadmodum<br />

et quidam eorum tentarunt,<br />

et exstincti sunt a serpentibus.<br />

10. Neque murmuretis, quemadmodum<br />

et quidam eorum murmurarant, et<br />

perditi fuerunt a vastatore.<br />

11. Hæc autem omnia typi contigerunt<br />

illis: scripta autem sunt ad nostri<br />

admonitionem, in quos fines sæculorum<br />

inci<strong>de</strong>runt.<br />

12. Proin<strong>de</strong> qui se putat stare, vi<strong>de</strong>at<br />

ne cadat.<br />

20 “Il a fait vne horrible vengence sur eux.” – “Ele infligiu terrível vingança sobre eles.”


344 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

6. Ora, estas coisas vieram a ser exemplos para nós. Ele nos adverte<br />

em termos ainda mais contun<strong>de</strong>ntes, dizendo que os castigos<br />

que foram infligidos sobre eles nos proporcionaram lições relevantes,<br />

a fim <strong>de</strong> que não provoquemos a ira <strong>de</strong> Deus como eles fizeram. Diria<br />

Paulo: “Pela forma como ele os castigou, Deus, por assim dizer, nos<br />

apresentou um quadro vivo [in tabula] <strong>de</strong> sua severida<strong>de</strong>, para que<br />

atentemos bem e sinceramente para ele e aprendamos a temê-lo.”<br />

Mais adiante direi algo sobre o termo exemplo [typus]. Nesse ínterim,<br />

pretendo apenas ressaltar a meus leitores que não me afastei da<br />

redação seja da antiga tradução 21 ou <strong>de</strong> Erasmo [in figura], sem a <strong>de</strong>vida<br />

pon<strong>de</strong>ração. Uma vez que ambas as versões obscurecem ou, para<br />

dizer o mínimo, não realçam claramente a intenção <strong>de</strong> Paulo, a saber:<br />

que na maneira <strong>de</strong> Deus tratar o povo ele nos forneceu um quadro que<br />

<strong>de</strong>ve nos ensinar uma lição objetiva.<br />

A fim <strong>de</strong> que não cobicemos as coisas más. Agora ele nos apresenta<br />

certas instâncias, ou, melhor, <strong>de</strong>fine certos exemplos, <strong>de</strong> modo<br />

que lhe propiciassem a chance <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nar certo número <strong>de</strong> pecados,<br />

que forçosamente servisse para chamar a atenção dos coríntios.<br />

Minha convicção é que o inci<strong>de</strong>nte aqui referido é aquele relatado<br />

em Números 11.4, ainda que outros o relacionem com o que encontramos<br />

em Números 26.64. Quando o povo passou a viver do maná,<br />

por algum tempo, aos poucos foram tomando ojeriza por ele, e começaram<br />

a <strong>de</strong>sejar outros gêneros <strong>de</strong> alimento, tais como aqueles que<br />

costumavam ter no Egito. Ora, eles passaram a pecar <strong>de</strong> duas formas:<br />

rejeitando algo que era uma dádiva especial <strong>de</strong> Deus, e cobiçando <strong>de</strong>svairadamente<br />

uma enorme varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> comidas e iguarias, o que era<br />

contrário à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Tal cobiça ofen<strong>de</strong>u o Senhor, e ele infligiu<br />

sobre o povo uma praga muitíssimo severa. Em conseqüência, aquele<br />

lugar passou a chamar-se “sepulcros da concupiscência” 22 [Quibrote-<br />

-Ataavá, Nm 11.34], porque sepultaram ali os que foram fulminados<br />

21 A tradução da Vulgata é em figura [in figure]. Wiclif (1380) traduz assim a sentença: “Mas<br />

estas coisas são apresentadas em figuras para nós.”<br />

22 Nosso autor dá aqui o sentido literal <strong>de</strong> Kibroth-hatta-avah.


Capítulo 10 • 345<br />

pelo Senhor. Por meio <strong>de</strong>sse exemplo, o Senhor revelou o quanto o<strong>de</strong>ia<br />

os <strong>de</strong>sejos que emanam da aversão que porventura sintamos por suas<br />

dádivas, bem como <strong>de</strong> nossa cobiça; pois tudo quanto ultrapassa os limites<br />

impostos por Deus é corretamente consi<strong>de</strong>rado nocivo e iníquo.<br />

7. Não sejais idólatras. Paulo está fazendo alusão à história registrada<br />

em xodo 32. Pois quando Moisés <strong>de</strong>morou no monte mais<br />

do que o inconsi<strong>de</strong>rado povo podia suportar em sua levianda<strong>de</strong>, Arão<br />

se viu forçado a elaborar um novilho fundido, e o estabeleceu para<br />

o culto. Não significava propriamente que o povo quisesse permutar<br />

seu Deus, mas foi para que tivesse algum sinal visível da presença <strong>de</strong><br />

Deus, e essa atitu<strong>de</strong> estava em consonância com sua mente carnal.<br />

Ao castigá-los <strong>de</strong> forma tão severa, <strong>de</strong>sta vez por essa idolatria, Deus<br />

evi<strong>de</strong>nciou o quanto a idolatria lhe é abominável.<br />

Como está escrito: O povo assentou-se. Poucos interpretam esta<br />

passagem corretamente, pois enten<strong>de</strong>m que a intemperança entre<br />

o povo foi o que <strong>de</strong>u ocasião à concupiscência, 23 em concordância<br />

com o provérbio popular: “A dança é acompanhada <strong>de</strong> um estômago<br />

empanturrado.” 24 Moisés, porém, está falando <strong>de</strong> uma festa sagrada, a<br />

que eles estavam oferecendo em honra <strong>de</strong> um ídolo. Portanto, o festejo<br />

e a diversão eram ambos aspectos da idolatria. Pois ela era como<br />

tantas outras práticas do povo <strong>de</strong> Deus, como, por exemplo, os que se<br />

<strong>de</strong>votavam aos falsos <strong>de</strong>uses, para combinar a festa com o sacrifício,<br />

como parte <strong>de</strong> seu culto divino; e a ninguém, que porventura fosse impuro<br />

ou indigno, se permitia apresentar-se para o mesmo. Os gentios<br />

<strong>de</strong>signavam também diversões sagradas em honra <strong>de</strong> seus ídolos; e há<br />

pouca dúvida se nesta ocasião os israelitas estivessem seguindo seu<br />

exemplo na adoração <strong>de</strong> seu bezerro. 25 Pois os homens são, por natureza,<br />

tão presunçosos que, sem qualquer justificativa, obrigam a Deus<br />

23 “Et esgayement <strong>de</strong>sbordé.” – “E <strong>de</strong>senfreado excesso.”<br />

24 “Apres la panse vient la danse.” – “Depois do jantar vem a dança.”<br />

25 “Et ne faut point douter que les Israelites n’ayent pour lors adoré leur veau auec telle ceremonie<br />

et obseruation que les Gentils faisoyent leurs idoles.” – “E não po<strong>de</strong>mos duvidar<br />

<strong>de</strong> que os israelitas, naquela ocasião, adoraram seu bezerro com a mesma cerimônia e<br />

cuidado que os gentios faziam com seus ídolos.”


346 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

a favorecê-los em tudo o que fazem. Portanto, os gentios chegam a<br />

uma insensatez tal que acreditam estar agradando a seus <strong>de</strong>uses, por<br />

exemplo, com os mais in<strong>de</strong>centes espetáculos, com as mais impudicas<br />

danças, com a mais profana linguagem e com uma infinda diversida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> imoralida<strong>de</strong>. Assim, seguindo após seu exemplo, o povo <strong>de</strong> Israel<br />

realizou sua festa religiosa, e então prosseguiu com suas diversões,<br />

<strong>de</strong> tal modo que nada podia ser <strong>de</strong>ixado fora do culto a seu ídolo. Este<br />

significado é o único que faz justiça ao texto.<br />

Neste ponto, porém, po<strong>de</strong>-se formular a seguinte pergunta: Por<br />

que o apóstolo faz menção da festa e das diversões, e não do culto,<br />

já que este, afinal <strong>de</strong> contas, é a parte central da idolatria, enquanto<br />

que as outras duas não passavam <strong>de</strong> aspectos acessórios? Indubitavelmente,<br />

o apóstolo escolheu aquele aspecto que melhor se a<strong>de</strong>quava à<br />

situação dos coríntios. Pois é pouco provável que tivessem o hábito <strong>de</strong><br />

freqüentar as reuniões dos <strong>de</strong>screntes com o fim <strong>de</strong> prostrar-se diante<br />

<strong>de</strong> seus ídolos, senão que costumavam participar das festas que os<br />

<strong>de</strong>screntes mantinham em honra <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>uses, e não se abstinham<br />

dos <strong>de</strong>gradantes ritos que constituíam a marca registrada da idolatria.<br />

Por isso, não é sem boas razões que o apóstolo <strong>de</strong>clara que a<br />

forma na qual estão pecando é expressamente con<strong>de</strong>nada por Deus.<br />

Em suma, ele <strong>de</strong>ixa claro que não po<strong>de</strong>mos viver em contato com qualquer<br />

aspecto <strong>de</strong> idolatria 26 sem nos tornarmos também impuros, e os<br />

que se corrompem no trato com coisas que levam quaisquer marcas<br />

externas <strong>de</strong> idolatria não escaparão impunemente das mãos <strong>de</strong> Deus.<br />

8. Nem pratiquemos a fornicação. Ele agora fala da fornicação,<br />

a respeito da qual, como transparece dos relatos históricos, gran<strong>de</strong><br />

licenciosida<strong>de</strong> prevalecia entre os coríntios, e prontamente po<strong>de</strong>mos<br />

inferir do que vem antes que os que tinham professado ser <strong>de</strong> Cristo<br />

não estavam ainda completamente livres <strong>de</strong>ste vício. O castigo <strong>de</strong>ste<br />

vício <strong>de</strong>ve também alarmar-nos e levar-nos a pon<strong>de</strong>rar bem quão<br />

odiosas são as paixões torpes e as imundícies <strong>de</strong>sse gênero, pois em<br />

26 “Tant petite soit elle.” – “Seja sempre tão pequeno.”


Capítulo 10 • 347<br />

apenas um dia vinte e três mil – ou, segundo Moisés, vinte e quatro mil<br />

– pereceram. Mas ainda que difiram nos números, é fácil <strong>de</strong> conciliar<br />

suas <strong>de</strong>clarações. Pois não é um fato <strong>de</strong>sconhecido que, quando não<br />

há qualquer intenção <strong>de</strong> se fazer uma conta exata <strong>de</strong> pessoas, 27 existe<br />

o hábito <strong>de</strong> dar um número aproximado. Por exemplo, havia aqueles a<br />

quem os romanos chamavam o Centumviri 28 [Os Cem], quando na verda<strong>de</strong><br />

seu número era cento e dois. Portanto, visto que cerca <strong>de</strong> vinte e<br />

quatro mil foram <strong>de</strong>stituídos pelas mãos do Senhor, em outros termos,<br />

mais <strong>de</strong> vinte e três mil, Moisés dá o número superior, e Paulo, o inferior,<br />

e assim não existe nenhuma discrepância. Esta história po<strong>de</strong> ser<br />

encontrada em Números 25.9.<br />

Não obstante, paira aqui certa dificulda<strong>de</strong>, a saber: por que Paulo<br />

diz que esta matança foi <strong>de</strong>vido à fornicação, quando Moisés nos diz<br />

que a ira <strong>de</strong> Deus recaiu sobre o povo porque este se permitiu fosse<br />

iniciado nos ritos <strong>de</strong> Baal-Peor? 29 A apostasia, porém, <strong>de</strong>u início à fornicação;<br />

e os filhos <strong>de</strong> Israel caíram nessa <strong>de</strong>sobediência, não tanto<br />

porque se <strong>de</strong>ixaram influenciar por alguma <strong>de</strong>voção que acariciassem<br />

pela falsa religião, 30 mas, antes, porque se <strong>de</strong>ixaram cativar pelos afagos<br />

<strong>de</strong> prostitutas. Portanto, todo e qualquer resultado da apostasia<br />

<strong>de</strong>ve ser atribuído à fornicação. Pois Balaão aconselhara os midianitas<br />

a darem aos israelitas suas filhas como prostitutas, com o expresso<br />

propósito <strong>de</strong> aliená-los do genuíno culto divino. Mais que isso, cegueira<br />

tão intensa como a <strong>de</strong>les, <strong>de</strong>ixando-se arrastar à impieda<strong>de</strong> 31<br />

mediante o maneirismo fascinante <strong>de</strong> prostitutas, foi o castigo por sua<br />

27 “De faire vn <strong>de</strong>nombrement entier <strong>de</strong>s personnes par testes, comme on dit.” – “Fazer uma<br />

completa numeração <strong>de</strong> pessoas per capita, como dizem.”<br />

28 “Les juges qui estoyent <strong>de</strong>putez pour cognoistre <strong>de</strong>s matieres ciuiles, estoyent nommez<br />

les cent, et toutes fois il y en auoit <strong>de</strong>ux par <strong>de</strong>ssus.” – “Os juízes que eram <strong>de</strong>signados<br />

para fazer reconhecimento <strong>de</strong> questões civis eram chamados Os Cem, e contudo havia<br />

acima <strong>de</strong> duzentos.” Como o Centumviri era escolhido <strong>de</strong>ntre as trinta e cinco tribos, nas<br />

quais o povo romano era dividido, três <strong>de</strong> cada tribo, consistiam propriamente <strong>de</strong> 105<br />

pessoas.<br />

29 “Auoit sacrifié à Baalpheor.” – “Tinham sacrificado a Baal-Peor.”<br />

30 “Non pas tant pour affection qu’ils eussent à la fausse religion.” – “Não tanto por eles<br />

terem adquirido uma falsa religião.<br />

31 “Vne impiete si vileine.” – “Uma impieda<strong>de</strong> tão vil.”


348 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

concupiscência. Aprendamos, pois, que a fornicação não é um pecado<br />

trivial, visto que, naquela ocasião, Deus lidou com ele tão severamente<br />

e <strong>de</strong>veras <strong>de</strong> formas tão variadas.<br />

9. Nem tentemos o Senhor. Esta parte da exortação se refere à<br />

história que está registrada em Números 21.6. Pois quando o povo<br />

cansou-se da longa jornada, então começou a queixar-se <strong>de</strong> sua sorte<br />

e a falar contra Deus, dizendo: “Por que Deus nos fez <strong>de</strong> tolos” etc.?<br />

Paulo <strong>de</strong>screve este resmungo do povo como sendo tentação [tentationem],<br />

e ele estava certo, porque tentar é incompatível com tolerar. A<br />

razão por que o povo passou a rebelar-se contra Deus, naquele tempo,<br />

foi porque se sentiam impulsionados por um <strong>de</strong>sejo irresistível, 32<br />

e não conseguiam esperar com paciência a chegada do tempo <strong>de</strong>terminado<br />

pelo Senhor. Notemos bem, pois, que a raiz <strong>de</strong>ste mal, sobre<br />

o qual Paulo nos adverte aqui, é a impaciência que se revela quando<br />

queremos antecipar a ação <strong>de</strong> Deus, não nos pondo sob sua diretriz,<br />

mas, ao contrário, esperando que ele concor<strong>de</strong> com nossas <strong>de</strong>cisões<br />

e exigências. Deus infligiu severo castigo sobre os israelitas por conta<br />

<strong>de</strong> tal presunção. Ele, porém, permanece sempre o mesmo – um Juiz<br />

justo. Portanto, a menos que queiramos sofrer o mesmo castigo, não<br />

o ponhamos à prova.<br />

Este versículo produz notável testemunho em prol da eternida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Cristo. A evasiva <strong>de</strong> Erasmo carece <strong>de</strong> peso, a saber: “Nem<br />

tentemos a Cristo como alguns <strong>de</strong>les tentaram a Deus”, pois é <strong>de</strong>masiadamente<br />

forçada 33 para fazer o nome <strong>de</strong> Deus aparecer. Não é <strong>de</strong><br />

forma alguma estranho ser Cristo chamado o Lí<strong>de</strong>r do povo israelita,<br />

pois assim como Deus jamais revelou sua benevolência a seu povo que<br />

não tenha sido através <strong>de</strong> Cristo como Mediador, da mesma forma ele<br />

não conferiu nenhum benefício senão pelas mãos <strong>de</strong>le. Aliás, o Anjo<br />

32 “Vn <strong>de</strong>sir importun et <strong>de</strong>sordonné.” – “Um <strong>de</strong>sejo importuno e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado.”<br />

33 Billroth, em seu comentário sobre as Epístolas aos Coríntios, alega que o conceito que<br />

é aqui assumido por Calvino “só po<strong>de</strong>ria ser sugerido por pessoas <strong>de</strong> um caráter dogmático”.<br />

A objeção assim apresentada, contudo, é satisfatoriamente <strong>de</strong>scartada em uma<br />

valiosa nota formulada pelo Dr. Alexan<strong>de</strong>r, em sua tradução <strong>de</strong> Billroth. Ver Cabinet Biblical,<br />

no. xxi, pp. 246, 247. Ver também Hen<strong>de</strong>rson sobre Inspiração, pp. 553, 554.


Capítulo 10 • 349<br />

que primeiro apareceu a Moisés, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então esteve sempre presente<br />

com o povo em sua peregrinação, é amiú<strong>de</strong> chamado Jehovah 34<br />

[hwhy]. Devemos concluir, pois, que aquele Anjo era o Filho <strong>de</strong> Deus, e<br />

que mesmo naquele tempo ele já era o Guia da Igreja, da qual era o<br />

Cabeça. Visto que a <strong>de</strong>signação Cristo traz um sentido que se a<strong>de</strong>qua<br />

a sua natureza humana, não podia ainda aplicar-se ao Filho <strong>de</strong> Deus<br />

naquele tempo; porém lhe é atribuída aqui através da comunicação<br />

<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s, assim como lemos em outro lugar que “o Filho do<br />

Homem veio do céu” [Jo 3.13].<br />

10. Nem murmureis. Há quem pense que isto se refere à murmuração<br />

suscitada por ocasião em que os doze enviados para espiarem<br />

a terra voltaram e sublevaram o ânimo do povo. Visto, porém, que<br />

aquela murmuração não foi castigada imediatamente por algum flagelo<br />

particular infligido pelo Senhor, sendo que o único castigo infligido<br />

foi sua exclusão da possessão da terra, este versículo precisa ser explicado<br />

<strong>de</strong> outra forma. Certamente que negar a entrada do povo na<br />

terra 35 constituía um severo castigo; mas, ao dizer que foram mortos<br />

pelo exterminador, Paulo tem em mente algum outro tipo <strong>de</strong> retribuição,<br />

obviamente <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte.<br />

Refiro-me, pois, à história que temos em Números 16. Quando<br />

Deus castigou o orgulho <strong>de</strong> Coré e Abirão, o povo moveu um gran<strong>de</strong><br />

tumulto contra Moisés e Arão, como se fossem eles os responsáveis<br />

pela praga que grassou a mando do Senhor. Este castigou a sublevação<br />

do povo com fogo do céu, o qual <strong>de</strong>vorou mais <strong>de</strong> quatorze mil<br />

pessoas. Assim, este fato fornece uma clara e memorável evidência<br />

da ira divina operando contra os rebel<strong>de</strong>s e perturbadores que fazem<br />

ecoar suas vozes contra ele.<br />

É verda<strong>de</strong> que tais pessoas se queixavam <strong>de</strong> Moisés; visto, porém,<br />

que não tinham base alguma para insultá-lo, e que a única razão<br />

que tinham para ar<strong>de</strong>r-se em ira contra ele era o fato <strong>de</strong> fielmente le-<br />

34 “C’est à dire, l’Eternel.” – “Equivale dizer, o Eterno.”<br />

35 “De n’entrer point en la iouissance <strong>de</strong> la terre promise.” – “Não entrar no <strong>de</strong>sfruto da terra<br />

prometida.”


350 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

var a bom termo a tarefa da qual Deus o incumbira, por isso estavam<br />

<strong>de</strong>sferindo um franco ataque contra Deus mesmo, ao murmurarem<br />

contra ele. Lembremo-nos, pois, <strong>de</strong> que é com Deus mesmo que havemos<br />

<strong>de</strong> tratar, e não com os homens, caso nos ponhamos contra<br />

os fiéis ministros <strong>de</strong> Deus. Lembremo-nos ainda <strong>de</strong> que tal audácia<br />

não ficará impune.<br />

O termo exterminador <strong>de</strong>ve ser entendido como equivalente ao<br />

Anjo que executava o juízo <strong>de</strong> Deus. Às vezes, ao punir os homens, ele<br />

ora emprega o ministério <strong>de</strong> anjos maus, ora emprega os anjos bons,<br />

como vemos em diferentes passagens da Escritura. Visto que Paulo<br />

aqui não faz nenhuma distinção entre eles, o leitor se sinta à vonta<strong>de</strong><br />

para <strong>de</strong>cidir a que classe ele se refere.<br />

11. Ora, estas coisas lhes suce<strong>de</strong>ram à guisa <strong>de</strong> exemplo. Uma<br />

vez mais ele reitera que todas as coisas suce<strong>de</strong>ram aos israelitas para<br />

que nos servissem <strong>de</strong> tipos; em outros termos, exemplos pelos quais<br />

Deus põe seus juízos diante <strong>de</strong> nossos olhos. Estou a par <strong>de</strong> que outros<br />

engendram <strong>de</strong>stas palavras teorias por <strong>de</strong>mais engenhosas; mas creio<br />

que consegui reter o que estava na mente do apóstolo quando afirmo<br />

que estes exemplos nos lançam luzes como se fossem quadros pintados<br />

por um bom artista, sobre que sorte <strong>de</strong> juízo ameaça os idólatras,<br />

os fornicadores e outros tantos que <strong>de</strong>sprezam a Deus; pois estes são<br />

vivos quadros que nos revelam Deus em sua ira contra pecados <strong>de</strong>sse<br />

gênero. Esta explicação, além <strong>de</strong> simples e realista, traz também a vantagem<br />

<strong>de</strong> silenciar certos <strong>de</strong>smemoriados 36 que torcem esta passagem<br />

com o fim <strong>de</strong> provar que as únicas coisas que foram sempre praticadas<br />

entre o povo antigo eram aquelas que prefiguravam o que estava por<br />

vir. Antes <strong>de</strong> tudo, tomam por irrefutável que o povo prefigura [esse figuram]<br />

a Igreja. Daqui concluem que tudo quanto Deus lhes prometeu<br />

ou lhes conce<strong>de</strong>u, sejam benefícios ou castigos, 37 prefigurava apenas<br />

o que seria trazido à plena realida<strong>de</strong> com a vinda <strong>de</strong> Cristo. Este é<br />

um exemplo <strong>de</strong> injúria estapafúrdica, visto que lança grave ofensa aos<br />

36 “Elle ferme la bouche à vn tas d’enragez.” – “Fecha a boca <strong>de</strong> um bando <strong>de</strong> <strong>de</strong>mentes.”<br />

37 “Qui leur sont aduenues.” – “Que aconteceu a eles.”


Capítulo 10 • 351<br />

santos pais, e inclusive uma ofensa ainda mais grave dirigida contra<br />

Deus mesmo. Porquanto os israelitas prefiguravam a Igreja Cristã <strong>de</strong><br />

uma forma tal que constituíam, ao mesmo tempo, a Igreja genuína.<br />

Suas circunstâncias são um retrato tão nítido das nossas que as características<br />

essenciais <strong>de</strong> uma igreja já estavam presentes naqueles<br />

dias. As promessas feitas a ela prenunciavam o evangelho <strong>de</strong> tal forma<br />

que o mesmo já se achava incluso nelas. Seus Sacramentos serviram<br />

para prefigurar os nossos, porém <strong>de</strong> uma forma tal que permaneciam<br />

os Sacramentos genuínos com uma aplicação eficaz também para seus<br />

dias. Em suma, os que fizeram uso a<strong>de</strong>quado da Palavra [doctrina] e<br />

dos Sacramentos [signis] naqueles dias eram dotados com o mesmo<br />

Espírito <strong>de</strong> fé como o somos hoje. Estas palavras <strong>de</strong> Paulo, portanto,<br />

não fornecem apoio algum a tais parvoíces, pois elas não significam<br />

que os eventos daquela época eram tipos no sentido em que não comportassem<br />

alguma importância real para aquele tempo, mas que eram<br />

uma espécie <strong>de</strong> exibição vazia. Ao contrário disso, porém, já expliquei<br />

que elas nos ensinam com toda clareza que, como num quadro para<br />

vermos com niti<strong>de</strong>z, há coisas que <strong>de</strong>vem constituir uma advertência.<br />

E foram escritas para nossa admoestação. Esta segunda sentença<br />

realça a primeira. Porque, o fato <strong>de</strong> que estas coisas foram entregues<br />

para que fossem escritas 38 prova que não eram vantajosas para os israelitas,<br />

e, sim, para nós. Não obstante, não se <strong>de</strong>duz disto que aquelas<br />

retribuições não eram castigos divinos reais, que efetivamente os disciplinavam<br />

naquele tempo; Deus, porém, não só exerceu seus juízos<br />

naquela época, mas também quis que houvesse um registro perpétuo<br />

<strong>de</strong>las para nossa admoestação. Pois que utilida<strong>de</strong> seus juízos teriam<br />

se porventura se <strong>de</strong>stinassem aos mortos? E que utilida<strong>de</strong> teriam para<br />

os vivos, se porventura não levassem em conta a advertência provinda<br />

do exemplo <strong>de</strong> outras pessoas e para lhes servir <strong>de</strong> juízo? Paulo, po-<br />

38 “Car quant aux Israelites qui viuoyent lors, il n’estoit point requis que ces choses fussent<br />

enregistrees et misses par escrit, mais seulement pour nous.” – “Para que, no que diz respeito<br />

aos israelitas que viveram naquele tempo, não se requeria que essas coisas fossem<br />

registradas e confiadas à escrita, mas somente a nosso respeito.”


352 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

rém, tem por infalíveis os princípios sobre os quais todos os crentes<br />

<strong>de</strong>vem estar <strong>de</strong> acordo, ou, seja, que nada foi registrado nas Escrituras<br />

que não nos seja vantajoso sabermos.<br />

Sobre quem os fins dos tempos têm chegado. O termo fins<br />

[τέλη] às vezes significa mistérios, 39 e é provável que este significado<br />

se ajuste melhor neste versículo. Não obstante, sigo a interpretação<br />

aceita, visto ser mais simples. Paulo diz, pois, que os fins [terminos]<br />

<strong>de</strong> todas as eras chegou sobre nós, porque a plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> todas as<br />

coisas é congruente com esta presente era, visto que já atingimos<br />

os últimos tempos. Pois o reino <strong>de</strong> Cristo é o alvo especial para o<br />

qual a Lei e todos os Profetas olhavam. Além disso, esta <strong>de</strong>claração<br />

<strong>de</strong> Paulo se põe em conflito com a idéia popular <strong>de</strong> que Deus foi<br />

mais inflexível durante o antigo Concerto, estava sempre em guarda<br />

e pronto a punir as ofensas, mas que agora se tornou mais sensível<br />

e muito mais disposto a perdoar-nos. E, com disposição semelhante,<br />

estabelece que estamos sob a lei da graça, porque temos agora um<br />

Deus que é muito mais facilmente conciliável do que aquele conhecido<br />

dos homens <strong>de</strong> outrora. Entretanto, o que Paulo está realmente<br />

dizendo? Se Deus infligiu castigo aos antigos, ele não nos <strong>de</strong>ixará impunes<br />

em coisa alguma. Longe <strong>de</strong> nós uma visão tão equivocada, ou,<br />

seja, que Deus é agora mais frouxo em punir os pecados! Por certo<br />

que <strong>de</strong>vemos reconhecer que a bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus foi <strong>de</strong>rramada sobre<br />

a humanida<strong>de</strong> muito mais gloriosa e ricamente com a vinda <strong>de</strong><br />

Cristo; mas, que isso tem a ver com a impunida<strong>de</strong> dos dissolutos que<br />

abusam <strong>de</strong> sua graça? 40<br />

A única coisa que se <strong>de</strong>ve observar é esta: que hoje existe um<br />

tipo distinto <strong>de</strong> punição, porque, como Deus galardoou a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

outrora mais com bênção material, com o fim <strong>de</strong> pôr seu amor paterno<br />

39 O termo é aplicado, neste sentido, mais especialmente aos mistérios eleusianos, os quais<br />

eram chamados τὰ μεγάλα τέλη – os gran<strong>de</strong>s mistérios. Platão, República 560 E. Ver também<br />

Eurípe<strong>de</strong>s, Med. 1379.<br />

40 “Dequoy sert cela pour prouuer que les meschans, et ceux qui abusent <strong>de</strong> la grace <strong>de</strong><br />

Dieu <strong>de</strong>meureront impunis?” – “De que uso é este para impedir que os ímpios e os que<br />

abusam da graça <strong>de</strong> Deus sejam punidos?”


Capítulo 10 • 353<br />

em maior evidência para com eles, assim também lhes <strong>de</strong>monstrou<br />

sua ira mais por meio <strong>de</strong> castigos físicos. Em contrapartida, na revelação<br />

mais plena que hoje <strong>de</strong>sfrutamos, ele não inflige castigos externos<br />

com muita freqüência, nem trata os ímpios com freqüentes castigos<br />

físicos. O leitor po<strong>de</strong>rá encontrar mais razões sobre este tema em minhas<br />

Institutas (2.10.3). 41<br />

12. Por esse motivo, aquele que pensa estar em pé. O apóstolo<br />

conclui, à luz do prece<strong>de</strong>nte, que não <strong>de</strong>vemos nos ensoberbecer com<br />

nossos primórdios ou progresso, ao ponto <strong>de</strong> nos tornarmos complacentes<br />

e indolentes. 42 Pois os coríntios nutriam uma vanglória tão<br />

intensa acerca <strong>de</strong> sua própria situação, que se esqueceram <strong>de</strong> quão<br />

fracos eram, e cultivaram muitas práticas vergonhosas e nocivas.<br />

Mergulharam <strong>de</strong> ponta cabeça numa injustificada autoconfiança, semelhante<br />

à que os profetas estavam sempre con<strong>de</strong>nando no povo <strong>de</strong><br />

Israel. Visto, porém, que os papistas torcem este versículo com o fim<br />

<strong>de</strong> estabelecer seu ímpio dogma <strong>de</strong> que <strong>de</strong>vemos viver sempre num<br />

estado <strong>de</strong> incerteza no tocante à fé, 43 notemos bem que existem dois<br />

gêneros <strong>de</strong> confiança.<br />

O primeiro tipo <strong>de</strong> confiança repousa nas promessas divinas, <strong>de</strong><br />

modo que o crente se convence, em seu íntimo, que Deus jamais o <strong>de</strong>ixará;<br />

e, escudado nesta invencível convicção, ele enfrenta Satanás e o<br />

pecado, alegre e <strong>de</strong>stemidamente. Não obstante, ao mesmo tempo, rememorando<br />

suas próprias fraquezas, ele se lança 44 nas mãos <strong>de</strong> Deus,<br />

em temor e humilda<strong>de</strong>; e, em sua angústia, repousa nele <strong>de</strong> bom grado.<br />

Este tipo <strong>de</strong> confiança é muito santo e saudável, e não po<strong>de</strong> alienar-se<br />

da fé, como se faz evi<strong>de</strong>nte à luz <strong>de</strong> muitas passagens da Escritura,<br />

especialmente Romanos 8.33.<br />

41 Nosso autor provavelmente se refere mais particularmente àquela parte das Institutas na<br />

qual ele <strong>de</strong>clara os pontos <strong>de</strong> diferença entre o Velho e o Novo Testamentos.<br />

42 “Que nous-nous endormions comme gens asseurez, et sans grand soin.” – “Que nos resignemos<br />

a dormitar, como pessoas que são confiantes e <strong>de</strong>stituídas da <strong>de</strong>vida prudência.”<br />

43 “Par laquelle ils disent qu’il nous faut tousiours douter <strong>de</strong> la foy.” – “Pela qual dizem que<br />

<strong>de</strong>vemos duvidar sempre no tocante à fé.”<br />

44 “Se remet du tout.” – “Entrega-se totalmente.”


354 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

O segundo tipo <strong>de</strong> confiança tem suas raízes na indiferença,<br />

quando os homens ar<strong>de</strong>m em seu orgulho em virtu<strong>de</strong> dos dons que<br />

possuem, e vivem completamente <strong>de</strong>spreocupados sobre sua própria<br />

situação, senão que, ao contrário, aquiescem nela como se estivessem<br />

fora do alcance <strong>de</strong> qualquer perigo; com o danoso resultado <strong>de</strong> se virem<br />

expostos a todos os ataques <strong>de</strong> Satanás. É este tipo <strong>de</strong> confiança<br />

que Paulo <strong>de</strong>seja que os coríntios renunciem, porquanto ele percebia<br />

que sua presunção repousava numa convicção irracional. Não lhes<br />

diz, porém, que vivessem num estado <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong> e incerteza quanto<br />

à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, ou que nutrissem medo <strong>de</strong> que sua salvação não<br />

fosse algo <strong>de</strong>finido e <strong>de</strong>finitivo, segundo o sonho dos papistas. 45<br />

Em suma, lembremo-nos <strong>de</strong> que Paulo está falando a homens que<br />

viviam convencidos em razão <strong>de</strong> uma equivocada confiança no ser humano,<br />

e ele está procurando pôr cobro a tal fraqueza, a qual teve sua<br />

origem na <strong>de</strong>pendência humana e não na divina. Porque, após louvar<br />

os colossenses por sua soli<strong>de</strong>z ou “firmeza na fé” [Cl 2.5], ele os convida<br />

a permanecerem firmes, radicados em Cristo, e a serem “edificados<br />

nele e estabelecidos na fé” [Cl 2.7].<br />

13. Não vos sobreveio tentação que<br />

não fosse humana; Deus, porém, é<br />

fiel, e não permitirá que sejais tentados<br />

acima <strong>de</strong> vossa capacida<strong>de</strong>; e<br />

com a tentação vos dará a via <strong>de</strong> escape,<br />

para que possais suportá-la.<br />

14. Por esse motivo, meus amados, fugi<br />

da idolatria.<br />

15. Falo como a sábios; julgai o que vos<br />

digo.<br />

16. O cálice <strong>de</strong> bênção que abençoamos<br />

não é a comunhão do sangue<br />

<strong>de</strong> Cristo? O pão que partimos não<br />

é a comunhão do corpo <strong>de</strong> Cristo?<br />

13. Tentatio vos non apprehendit nisi<br />

humana. Fi<strong>de</strong>lis autem Deus, qui<br />

non simet vos tentari supra quam<br />

potestis: sed dabit una cum tentatione<br />

etiam exitum, ut possitis<br />

sustinere.<br />

14. Quapropter, dilecti mei, fugite ab<br />

idololatria.<br />

15. Tanquam pru<strong>de</strong>ntibus loquor: indicate<br />

ipsi quod dico.<br />

16. Calix bendictionis, cui benedicimus,<br />

nonne communicatio est<br />

sanguinis Christi? panis, quem<br />

fragimus, nome communicatio est<br />

corporis Christi?<br />

45 O leitor observará que nosso autor já fez leve menção <strong>de</strong>ste tema, em certa extensão,<br />

quando comenta o capítulo 2.12.


Capítulo 10 • 355<br />

17. Visto que nós, que somos muitos,<br />

somos um só pão, um só corpo;<br />

18. porque todos nós participamos do<br />

mesmo pão. Ve<strong>de</strong> a Israel segundo a<br />

carne; os que comem os sacrifícios<br />

não são participantes do altar?<br />

17. Quoniam unus panis, unum corpus<br />

multi sumus: omnes enim <strong>de</strong> uno<br />

pane participamus.<br />

18. Vi<strong>de</strong>te Israel secundum carnem:<br />

nonne qui edunt hostias, altari<br />

communicant?<br />

13. Não vos sobreveio tentação que não fosse humana. 46 Quem<br />

quiser po<strong>de</strong> contentar-se com suas interpretações pessoais. Quanto<br />

a mim, penso que isto foi escrito para encorajar os coríntios, para<br />

que, após ouvirem acerca <strong>de</strong>sses terríveis exemplos da ira divina,<br />

mencionados por Paulo, não ficassem perturbados, nem assombrados,<br />

nem sucumbidos. Conseqüentemente, a fim <strong>de</strong> que sua<br />

exortação tivesse algum efeito, ele acrescenta que há oportunida<strong>de</strong><br />

para arrependimento. Ele po<strong>de</strong>ria ter posto nestes termos: “Não há<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, e eu mesmo não tive a intenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar-<br />

-vos <strong>de</strong>sanimados. Naturalmente, o que vos sobreveio não vai além<br />

do que usualmente suce<strong>de</strong> aos homens.” Outros são mais inclinados<br />

a crer que aqui ele está recriminando a pusilanimida<strong>de</strong> dos coríntios<br />

em ce<strong>de</strong>r quando uma tentação 47 leve os atingia; e não há dúvida<br />

<strong>de</strong> que o termo humanus, traduzido por humana, às vezes significa<br />

mo<strong>de</strong>rado. 48 Portanto, o significado, segundo eles, é o seguinte: “É<br />

correto que vos <strong>de</strong>ixeis sucumbir diante <strong>de</strong> uma leve tentação?” Visto,<br />

porém, ser mais a<strong>de</strong>quado ao contexto olharmos este versículo<br />

em termos <strong>de</strong> consolação, então sinto-me mais inclinado a adotar<br />

este ponto <strong>de</strong> vista.<br />

46 “Tentation ne vous a point saissis, ou surprins.” – “Nenhuma tentação vos tomou, ou<br />

sobreveio.”<br />

47 “Pour si petites et legeres tentations.” – “Em tão pequenas e leves tentações.”<br />

48 A palavra ανθρώπινος (humano) po<strong>de</strong> ser entendida aqui no sentido <strong>de</strong> proporcionado à<br />

força do homem, ou adaptado à fraqueza do homem. Na tradução <strong>de</strong> Tyndale, bem como<br />

na <strong>de</strong> Crammer, é traduzido assim: “Segundo a natureza do homem.” A maioria dos intérpretes<br />

enten<strong>de</strong> num sentido semelhante uma expressão que ocorre em 2 Samuel 7.14: “a<br />

vara <strong>de</strong> homens e os açoites dos filhos <strong>de</strong> homens.”


356 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Deus, porém, é fiel. Assim como lhes disse que tivessem bom<br />

ânimo com relação ao passado, com o fim <strong>de</strong> movê-los ao arrependimento,<br />

também os encoraja com uma esperança <strong>de</strong>finida para o<br />

futuro, pois Deus não permitirá que fossem tentados além <strong>de</strong> suas forças.<br />

Contudo os adverte a que atentassem bem para o Senhor, porque,<br />

se pusermos nosso coração em nossos próprios recursos, a tentação,<br />

não importa quão suave seja, levará a melhor sobre nós e nos subjugará.<br />

Ele <strong>de</strong>nomina o Senhor <strong>de</strong> fiel. Sua intenção vai além da idéia <strong>de</strong><br />

Deus ser verda<strong>de</strong>iro em suas promessas. Ele po<strong>de</strong>ria ter posto nestes<br />

termos: “O Senhor é o Protetor comprovado <strong>de</strong> seu povo, e em sua<br />

proteção estais seguros, porque jamais <strong>de</strong>ixa os seus entregues a sua<br />

própria sorte. Por isso, tendo-vos uma vez tomado sob sua fi<strong>de</strong>dignida<strong>de</strong><br />

pessoal [in suam fi<strong>de</strong>m], não ten<strong>de</strong>s necessida<strong>de</strong> alguma <strong>de</strong><br />

temer, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>de</strong>pendais inteiramente <strong>de</strong>le. Pois indubitavelmente<br />

estaria proce<strong>de</strong>ndo falsamente em relação a vós caso viesse a revogar<br />

seu apoio no momento em que necessitássemos <strong>de</strong>le; ou, ao nos ver<br />

lutando em meio às fraquezas, arqueados sob pesado fardo, permitisse<br />

se prolongassem nossas lutas [tentações] por tempo in<strong>de</strong>finido.” 49<br />

Ora, Deus nos ajuda <strong>de</strong> duas formas, para que não sejamos vencidos<br />

em meio à tentação: ele nos supre com força e põe limites à tentação.<br />

É da segunda <strong>de</strong>ssas formas que o apóstolo aqui principalmente fala.<br />

Ao mesmo tempo, ele não exclui a primeira, a saber: que Deus alivia as<br />

tentações para que não sucumbamos sob seu peso. Pois ele conhece a<br />

medida <strong>de</strong> nosso po<strong>de</strong>r, o qual ele mesmo conferiu. De acordo com esse<br />

fato, ele regula nossas tentações. O termo tentação aqui tomo como que<br />

<strong>de</strong>notando, <strong>de</strong> uma forma geral, tudo o que nos seduz.<br />

14. Por esse motivo, meus amados, fugi da idolatria. O apóstolo<br />

agora se volve para a pergunta particular, sobre a qual ele já fizera li-<br />

49 Mr. Fuller <strong>de</strong> Kettering, ao comparar 1 Coríntios 10.13 com 2 Coríntios 1.8, com razão<br />

observa: “A capacida<strong>de</strong> na primeira <strong>de</strong>ssas passagens, e a força na última, longe estão <strong>de</strong><br />

ser as mesmas. Uma é a expressão daquele apoio divino que o Senhor prometeu dar a<br />

seus servos em todas as provações; a outra é a expressão das faculda<strong>de</strong>s que possuímos<br />

naturalmente como criaturas. Po<strong>de</strong>mos ser tentados além <strong>de</strong>stas, como todos os mártires<br />

o foram, e contudo não além daquela. O homem externo po<strong>de</strong> perecer; enquanto que<br />

o homem interior é renovado dia a dia.” Obras <strong>de</strong> Fuller, vol. iii, p. 609.


Capítulo 10 • 357<br />

geira observação, porque, temendo que o ensino franco, direto, viesse a<br />

<strong>de</strong>ixá-los <strong>de</strong>sestimulados, ele então introduz as exortações gerais sobre<br />

as quais temos lido. Agora, porém, ele resume o argumento que iniciara,<br />

a saber: que um cristão não po<strong>de</strong> envolver-se ativamente nos ritos religiosos<br />

dos incrédulos. Esta é a razão por que ele adverte: “fugi da idolatria.”<br />

Antes <strong>de</strong> prosseguirmos, é preciso enten<strong>de</strong>r o que ele preten<strong>de</strong><br />

com o termo idolatria. Por certo que não ensinava que os coríntios fossem<br />

tão ignorantes ou tão displicentes 50 que chegasse a imaginar que<br />

praticassem franca adoração a ídolos. Uma vez, porém, que não tinham<br />

escrúpulo <strong>de</strong> freqüentar amiú<strong>de</strong> as reuniões dos incrédulos, e <strong>de</strong> tomar<br />

parte com eles em certos ritos, então con<strong>de</strong>na sua presunção como<br />

uma atitu<strong>de</strong> que se constituía num mal exemplo. Portanto, quando faz<br />

menção da idolatria aqui, sem dúvida alguma ele está se referindo à<br />

idolatria externa, ou, se se preferir, à pública profissão 51 [<strong>de</strong> fé] no culto<br />

idolátrico. Pois assim como se diz ser Deus adorado por genuflexão e<br />

outros sinais externos <strong>de</strong> reverência, consi<strong>de</strong>rando que o modo fundamental<br />

e genuíno <strong>de</strong> adorá-lo está em nossos corações, assim também<br />

se dá no caso dos ídolos, ou, seja: o mesmo princípio <strong>de</strong>ve aplicar-se aos<br />

opostos. Há hoje um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> pessoas gastando seu tempo na<br />

busca <strong>de</strong> justificativa para suas práticas externas, 52 afirmando que não<br />

há perigo algum <strong>de</strong> seus corações se envolverem, ao passo que Paulo,<br />

<strong>de</strong> fato, con<strong>de</strong>na essas mesmas ações <strong>de</strong> forma tão incisiva! Porque,<br />

diante do fato <strong>de</strong> que Deus <strong>de</strong>ve possuir não só o amor íntimo <strong>de</strong> nossos<br />

corações, mas também nossa <strong>de</strong>voção externa, aquele que manifesta<br />

um sinal externa <strong>de</strong> culto [oferecido] a um ídolo está, implicitamente,<br />

<strong>de</strong>spojando Deus do que lhe é <strong>de</strong>vido. O homem po<strong>de</strong> protestar, como<br />

lhe agra<strong>de</strong>, dizendo que seu coração não está posto no ídolo, no entanto<br />

ele não po<strong>de</strong> ocultar a própria ação, transferindo para um ídolo a honra<br />

que é <strong>de</strong> Deus por direito [inalienável].<br />

50 “Tant <strong>de</strong>spourueus <strong>de</strong> sens et cognoissance <strong>de</strong> Dieu.” – “Tão <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> juízo e conhecimento<br />

<strong>de</strong> Deus.”<br />

51 “La profession et <strong>de</strong>monstrance.” – “A profissão e exibição.”<br />

52 “Les actes ou gestes externes d’idolatrie.” – “Os atos ou gestos externos <strong>de</strong> idolatria.”


358 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

15. Falo como a sábios. Visto que Paulo estava preparando-se<br />

para basear seu argumento no mistério da Ceia, ele usa esta pequena<br />

introdução visando a imprimir-lhes algum ânimo, a fim <strong>de</strong> que fossem<br />

capazes <strong>de</strong> atentar mais <strong>de</strong>tidamente para a gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong>ste mistério. 53<br />

Ele po<strong>de</strong>ria ter-se expresso nestes termos: “Não estou falando a neófitos!<br />

Vós estais bem cientes do po<strong>de</strong>r da Santa Ceia, pois nela somos<br />

enxertados no corpo do Senhor. Portanto, quão vergonhoso é vos iniciar<strong>de</strong>s<br />

na comunhão dos incrédulos a fim <strong>de</strong> vos tornar<strong>de</strong>s unidos<br />

num só corpo com eles!” Ele, porém, con<strong>de</strong>na a ausência neles <strong>de</strong> meditação<br />

silenciosa, porque, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> serem instruídos na escola <strong>de</strong><br />

Cristo, ainda envolviam-se irrefletidamente em questões pecaminosas<br />

– e não havia como negá-lo!<br />

16. O cálice <strong>de</strong> bênção. Ainda que a maior parte da sacra Ceia <strong>de</strong><br />

Cristo seja composta <strong>de</strong> dois elementos, pão e vinho, Paulo começa<br />

com o segundo. Ele o chama “o cálice <strong>de</strong> bênção”, visto que estava<br />

<strong>de</strong>stinado a ser uma bênção mística [mysticam eulogiam]. Pois não<br />

concordo com aqueles que enten<strong>de</strong>m bênção [benedictio] aqui como<br />

sendo “ações <strong>de</strong> graças”, e explicam o verbo abençoar no sentido <strong>de</strong><br />

“dar graças”. Com certeza concordo que às vezes ele é usado com este<br />

significado, porém jamais na construção que Paulo adota aqui. A introdução<br />

que Erasmo faz <strong>de</strong> uma preposição 54 é muito forçada. Minha<br />

interpretação pessoal, não obstante, é fácil e direta.<br />

Abençoar o cálice, portanto, significa colocá-lo à parte para este<br />

propósito singular, a saber, para que nos seja um sinal do sangue <strong>de</strong><br />

Cristo. Isto se dá pela Palavra da promessa, quando, <strong>de</strong> acordo com<br />

a diretriz <strong>de</strong> Cristo, os crentes se reúnem para conservar o memorial<br />

<strong>de</strong> sua morte neste sacramento. Em contrapartida, no caso dos papistas,<br />

a consagração é uma espécie <strong>de</strong> mágica, a qual tem suas raízes<br />

no paganismo, 55 pois não conserva nenhuma semelhança com o rito<br />

53 “L’excellence <strong>de</strong> ce mystere.” – “A excelência <strong>de</strong>ste mistério.”<br />

54 “Qu’on supplee Pour.” – “Que se <strong>de</strong>ve suprir por.” As palavras originais, ὅ εὐλογου̑μεν,<br />

são tidas por muitos intérpretes eminentes como tendo sido substituídas por καθ ̓ ὅ<br />

εὐλογου̑μεν τὸν Θεὸν – pelo qual damos graças a Deus.<br />

55 O leitor encontrará este tema mais amplamente <strong>de</strong>senvolvido na Harmonia dos Evangelhos.


Capítulo 10 • 359<br />

integralmente genuíno que os cristãos conservam. É verda<strong>de</strong> que tudo<br />

quanto comemos é igualmente santificado pela Palavra <strong>de</strong> Deus, como<br />

Paulo mesmo nos ensina em 1 Timóteo 4.5. Neste contexto, porém, a<br />

bênção tem um propósito distinto, a saber: para que o uso das dádivas<br />

divinas seja puro e sirva à glória <strong>de</strong> seu Doador e a nosso próprio<br />

bem. Em contrapartida, o objetivo da bênção mística na Ceia é que o<br />

vinho não seja mais uma bebida ordinária, e, sim, seja separado como<br />

o alimento espiritual <strong>de</strong> nossas almas, ao transformar-se num penhor<br />

[tessera] do sangue <strong>de</strong> Cristo.<br />

Ele afirma que o cálice abençoado <strong>de</strong>sta forma é coinonia<br />

[κοινωνίαν], uma comunhão no sangue <strong>de</strong> Cristo. “O que isso significa<br />

exatamente?” – perguntaria alguém. Exclua daqui a controvérsia,<br />

e tudo se fará plenamente claro! É verda<strong>de</strong> que os crentes são estreitados<br />

pelo sangue <strong>de</strong> Cristo, <strong>de</strong> modo a se tornarem um só corpo.<br />

É verda<strong>de</strong> também que tal união é a<strong>de</strong>quadamente <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong><br />

comunhão [κοινωνία]. Dir-se-ia também o mesmo sobre o pão. Além<br />

do mais, estou atento ao que Paulo adiciona logo a seguir, à guisa <strong>de</strong><br />

explicação, ou, seja: “todos nós somos feitos um só corpo, porque participamos,<br />

juntos, do mesmo pão.” Mas, pergunto eu, qual é a fonte<br />

<strong>de</strong>ssa coinonia ou comunhão, que existe entre nós, senão que estamos<br />

unidos a Cristo <strong>de</strong> tal sorte que “somos carne <strong>de</strong> sua carne e osso <strong>de</strong><br />

seus ossos”? [Ef 5.30.] Pois é indispensável que sejamos, igualmente,<br />

unidos uns aos outros. Além disso, Paulo aqui não está discutindo uma<br />

mera comunhão humana [non tantum <strong>de</strong> mutua inter homines communicatione],<br />

e, sim, a união espiritual entre Cristo e os crentes [sed <strong>de</strong><br />

spirituali Christi et fi<strong>de</strong>lium unione], a fim <strong>de</strong> fazer evi<strong>de</strong>nte que é um<br />

intolerável sacrilégio tornarem-se eles contaminados pela comunhão<br />

com os ídolos. À luz do contexto <strong>de</strong>ste versículo po<strong>de</strong>mos, pois, concluir<br />

que coinonia ou comunhão no sangue é a aliança [societatem] que<br />

temos com o sangue <strong>de</strong> Cristo quando este nos enxerta, a todos nós,<br />

em seu corpo, a fim <strong>de</strong> que possa viver em nós e nós nele.<br />

Ora, <strong>de</strong>veras concordo que a referência ao cálice como comunhão<br />

é uma figura <strong>de</strong> linguagem, porém só até on<strong>de</strong> a verda<strong>de</strong> que a figura


360 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

comunica não fique <strong>de</strong>struída; em outros termos, contanto que a realida<strong>de</strong><br />

mesma esteja também presente e a alma receba a comunhão no<br />

sangue, assim como a boca <strong>de</strong>gusta o vinho. Os papistas, porém, não<br />

po<strong>de</strong>m dizer que o cálice <strong>de</strong> bênção é uma comunhão no sangue <strong>de</strong><br />

Cristo, no caso <strong>de</strong>les, porque observam uma forma <strong>de</strong>sfigurada e mutilada<br />

da Ceia – se porventura o nome Ceia ainda po<strong>de</strong> ser usado para<br />

essa estranha cerimônia que não passa <strong>de</strong> um mosaico <strong>de</strong> infindáveis<br />

invenções humanas, e que mal conserva um tenuíssimo traço daquela<br />

Ceia que nosso Senhor instituiu. No entanto, mesmo que tudo mais se<br />

conformasse ao uso correto da Ceia, uma única coisa estaria ainda em<br />

conflito com ela, a saber: que o cálice, que é a meta<strong>de</strong> do sacramento,<br />

é negado a todo o povo.<br />

O pão que partimos. À luz <strong>de</strong>sta expressão dá-se a enten<strong>de</strong>r que,<br />

na Igreja Primitiva, o costume era que cada pessoa quebrava para<br />

si um pedaço <strong>de</strong> um só pão, para que sua união no corpo <strong>de</strong> Cristo<br />

pu<strong>de</strong>sse ser claramente notada por todos os crentes. Partindo das evidências<br />

<strong>de</strong>ixadas por homens que foram eminentes na Igreja dos três<br />

séculos após os apóstolos, faz-se também mui claro que esta prática<br />

foi mantida por longo tempo. Depois, a superstição logrou vitória, com<br />

o danoso resultado <strong>de</strong> que ninguém mais ousou tocar o pão com suas<br />

próprias mãos, senão que os sacerdotes o põem em sua boca.<br />

17. Visto que somos um só pão. Já ressaltei supra que a intenção<br />

<strong>de</strong> Paulo aqui não foi estimular-nos ao amor mútuo, senão menciona<br />

isto <strong>de</strong> passagem para que os coríntios pu<strong>de</strong>ssem enten<strong>de</strong>r que<br />

<strong>de</strong>vemos também cultivar nossa união com Cristo, em nossa pública<br />

profissão <strong>de</strong> fé, diante do fato <strong>de</strong> que nos encontremos todos juntos<br />

com o fim <strong>de</strong> participarmos do símbolo <strong>de</strong>ssa sacra união. Nesta, a<br />

segunda parte <strong>de</strong> sua referência à Ceia, Paulo menciona só o outro<br />

elemento do Sacramento, e é muitíssimo comum o uso que a Escritura<br />

faz <strong>de</strong> sinédoque, 56 ou, seja, <strong>de</strong>screve toda a Ceia como “o partir do<br />

pão”. Que <strong>de</strong>ste fato meus leitores sejam, <strong>de</strong> passagem, precavidos,<br />

56 Figura <strong>de</strong> linguagem em que uma parte é expressa pelo todo.


Capítulo 10 • 361<br />

para que nenhuma pessoa inexperiente se sinta perturbada pelo odioso<br />

sofisma <strong>de</strong> uns poucos, sim, porém po<strong>de</strong>rosos e trapaceiros, ou,<br />

seja: visto que Paulo só menciona o pão, então sua intenção era privar<br />

o povo da meta<strong>de</strong> do Sacramento.<br />

18. Ve<strong>de</strong> Israel segundo a carne. Paulo usa outro exemplo com o<br />

fim <strong>de</strong> provar que a natureza <strong>de</strong> todos os ritos religiosos consiste em<br />

vincular-nos a algum gênero <strong>de</strong> união [societas] com Deus. Pois a lei<br />

mosaica não admitia ninguém à festa sacrificial, a menos que estivesse<br />

a<strong>de</strong>quadamente preparado; e naturalmente não me refiro apenas aos<br />

sacerdotes, mas a todos os que comiam do que era <strong>de</strong>ixado do sacrifício.<br />

Segue-se daqui que todo aquele que comia da carne do animal<br />

sacrificado era participante do altar, ou, seja, da santificação, da qual<br />

Deus consi<strong>de</strong>rava dignos seu templo e todos os ritos efetuados ali.<br />

Esta expressão, segundo a carne, po<strong>de</strong> dar a impressão <strong>de</strong> que foi<br />

inserida para que os coríntios pu<strong>de</strong>ssem comparar os ritos israelitas<br />

e cristãos, e viessem a pon<strong>de</strong>rar da maneira a mais sublime possível<br />

sobre a eficácia <strong>de</strong> nossa Ceia. Ele po<strong>de</strong>ria ter posto nestes termos: “Se<br />

houve tanta virtu<strong>de</strong> nas figuras [figuris] antigas e naqueles rudimentos<br />

da antiga instrução, <strong>de</strong>scobriremos que há muito mais [virtu<strong>de</strong>]<br />

em nossa Ceia, na qual o Senhor se revela muito mais plenamente.”<br />

Não obstante, creio que é mais simples enten<strong>de</strong>r que, ao usar estas<br />

palavras, Paulo só pretendia fazer distinção entre os ju<strong>de</strong>us que eram<br />

obedientes à lei e aqueles que se haviam convertido a Cristo.<br />

Outro contraste tinha ainda que ser traçado, a saber: se os sacrifícios<br />

oferecidos a Deus santificam seus adoradores, <strong>de</strong> outro lado os<br />

sacrifícios oferecidos aos ídolos 57 produzem impureza. Pois é Deus, e<br />

unicamente ele, quem santifica; portanto, todos os <strong>de</strong>mais <strong>de</strong>uses produzem<br />

impureza. 58 Além disso, se os crentes são introduzidos, através<br />

dos mistérios, 59 à comunhão e união com Deus, então os incrédulos<br />

57 “Des sacrifices et autres ceremonies <strong>de</strong>s idoles.” – “Sacrifícios e outras cerimônias oferecidos<br />

aos ídolos.”<br />

58 “Ren<strong>de</strong>nt profanes ceux qui les seruent.” – “Tornar profanos os que os servem.”<br />

59 “Les sacremens.” – “Os sacramentos.”


362 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

são admitidos, através <strong>de</strong> suas práticas supersticiosas, à comunhão 60<br />

com seus ídolos. Mas antes <strong>de</strong> tratar disto, o apóstolo refuta, por antecipação<br />

[per anthypophoram], 61 a pergunta que po<strong>de</strong>ria suscitar-se à<br />

guisa <strong>de</strong> objeção.<br />

19. O que digo eu? Que o ídolo é alguma<br />

coisa? ou o que é oferecido em<br />

sacrifício ao ídolo é alguma coisa?<br />

20. Eu, porém, digo que as coisas que<br />

os gentios sacrificam, eles as sacrificam<br />

aos <strong>de</strong>mônios, e não a Deus;<br />

e não quero que tenhais comunhão<br />

com os <strong>de</strong>mônios.<br />

21. E não quero que bebais o cálice do<br />

Senhor e o cálice dos <strong>de</strong>mônios;<br />

sim, não po<strong>de</strong>is ser participantes<br />

da mesa do Senhor e da mesa dos<br />

<strong>de</strong>mônios.<br />

22. Provocaremos zelos no Senhor? Somos<br />

mais fortes do que ele?<br />

23. Para mim todas as coisas são lícitas,<br />

mas nem todas são convenientes;<br />

para mim todas as coisas são lícitas,<br />

mas nem todas as coisas edificam.<br />

24. Ninguém busque o que é propriamente<br />

seu, mas cada um o bem do<br />

outro.<br />

19. Quid ergo dico? idolum, aliquid<br />

esse? aut idolo immolatum, aliquid<br />

esse?<br />

20. Sed quæ immolant Gentes, dæmoniis<br />

immolant, non Deo: nolo autem<br />

vos participes fieri dæmoniorum.<br />

21. Non potestis calicem Domini bibere,<br />

et calicem dæmoniorum: non<br />

potestis mensæ Domini communicare,<br />

et mensæ dæmoniorum.<br />

22. An provocamus Dominum? numquid<br />

fortiores illo sumus?<br />

23. Omnia mihi licent, sed non omnia<br />

conducunt: omnia mihi licent, at<br />

non omnia ædificant.<br />

24. Nemo quod suum est quærat, sed<br />

quisque quod alterius est.<br />

19. O que digo eu? À primeira vista, po<strong>de</strong> parecer que o argumento<br />

do apóstolo não tem fundamento, ou que está tentando provar que<br />

os ídolos possuem alguma realida<strong>de</strong> e algum po<strong>de</strong>r. Ora, é possível<br />

suscitar-se a seguinte objeção: “Que sorte <strong>de</strong> comparação há entre o<br />

Deus vivo e os ídolos? Deus nos traz à comunhão com ele por meio dos<br />

60 “Vne conionction et union auec leurs idoles.” – “Uma conexão e união com seus ídolos.”<br />

61 Antipófora (ἀνθυποφορα) é uma figura <strong>de</strong> linguagem por meio da qual quem fala antecipa<br />

as objeções <strong>de</strong> seus oponentes, e lhes respon<strong>de</strong>.


Capítulo 10 • 363<br />

Sacramentos. Sim, é verda<strong>de</strong>! Mas o que dizer dos ídolos que nada são,<br />

no entanto se revelam tão po<strong>de</strong>rosos que po<strong>de</strong>m fazer a mesma coisa?<br />

[1Co 8.4]. Ou tu acreditas que os ídolos são tudo ou po<strong>de</strong>m fazer tudo?”<br />

Paulo respon<strong>de</strong> que ele não está visando ao ídolo propriamente dito, 62<br />

mas, ao contrário, tem em vista a intenção dos que sacrificam aos ídolos.<br />

Porquanto esta era a fonte da impureza a que ele se referia implicitamente.<br />

Portanto, ele reconhece que o ídolo nada significa. Igualmente<br />

acusa que os gentios estão simplesmente enganando a si próprios, ao<br />

entregar-se aos solenes ritos <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicação, 63 e que as criaturas <strong>de</strong> Deus<br />

não se corrompem ao pôr-se em contato com essas coisas fúteis. Visto,<br />

porém, que esses ritos visam a algo que vem saturado <strong>de</strong> superstição,<br />

e da mesma forma con<strong>de</strong>nado, e porque todos seus procedimentos são<br />

ímpios, ele chega à conclusão que todo aquele que ativamente se associa<br />

a eles [os ídolos] se fazem contaminados.<br />

20. Mas as coisas 64 que os gentios sacrificam. Para completar<br />

a resposta, ela precisa ser discernida nesta forma negativa: “Eu não<br />

disse que um ídolo é alguma coisa, nem penso que ele possua algum<br />

po<strong>de</strong>r; estou, porém, afirmando que o que os gentios sacrificam, eles o<br />

<strong>de</strong>stinam ao diabo, e não a Deus, e que esta é a razão por que consi<strong>de</strong>ro<br />

o que eles fazem como tendo sua fonte numa superstição perversa e<br />

repulsiva. Mas o que temos a fazer é prestar muita atenção no motivo<br />

que jaz por trás <strong>de</strong> tudo isso. Portanto, uma pessoa que se relaciona<br />

com eles [os ídolos] põe em pública evidência que está tomando parte<br />

na mesma religião falsa que praticam.” O apóstolo, pois, continua<br />

pressionando: Se na prática <strong>de</strong>ssas coisas temos que tratar somente<br />

com Deus, elas seriam <strong>de</strong> nenhum préstimo; mas quando nosso envolvimento<br />

é com pessoas como nós, tais coisas se tornam pecaminosas,<br />

porque todo aquele que toma assento numa festa idolátrica se revela<br />

um autêntico adorador <strong>de</strong> ídolos.<br />

62 “Simplement, et en soy.” – “Simplesmente e em si mesmo.”<br />

63 “Les ceremonies <strong>de</strong>s <strong>de</strong>dicaces et consecrations solennelles <strong>de</strong>squelles les Gentils vsent,<br />

ne sont que vent, et n’emportent rien.” – “As cerimônias <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicações e consagrações<br />

solenes, das quais os gentios fazem uso, são mero vento, e nada significam.”<br />

64 “Mais ie di, que les choses.” – “Digo, porém, que as coisas.”


364 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Há quem consi<strong>de</strong>re <strong>de</strong>mônios [dæmones], neste contexto, como<br />

sendo os <strong>de</strong>uses imaginários dos gentios, visto que estes geralmente<br />

falam <strong>de</strong>les [seus ídolos] neste sentido. Pois quando usavam o<br />

termo <strong>de</strong>mônios, sua referência era aos <strong>de</strong>us menores, tais como os<br />

heróis, 65 e assim para eles o termo produzia um bom sentido. Platão,<br />

numa varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> exemplos, emprega o termo para <strong>de</strong>notar genii<br />

ou anjos. 66 Tal conceito, contudo, se acha em completa discordância<br />

com o que Paulo tinha em mente, pois ele preten<strong>de</strong> mostrar quão<br />

grave pecado é tomar parte em qualquer prática que leve óbvias características<br />

<strong>de</strong> ser culto aos ídolos. Portanto, o que ele pretendia<br />

não era propriamente minimizar, mas realçar o quanto possível a<br />

<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração para com Deus envolvida nele. Quão ina<strong>de</strong>quado,<br />

pois, teria sido usar um termo <strong>de</strong>notando honra com vistas a acobertar<br />

uma perversida<strong>de</strong> da mais elevada categoria! Certamente proce<strong>de</strong><br />

do profeta Baruque [4.7] que todas as coisas que são sacrificadas aos<br />

ídolos, na verda<strong>de</strong> são sacrificadas aos <strong>de</strong>mônios [diabolis, Dt 32.17;<br />

Sl 96.5]. Naquela passagem dos escritos do profeta, a tradução grega,<br />

que naquele tempo era <strong>de</strong> uso comum, traz a palavra δαιμόνια [dæmonia],<br />

e este é seu uso comum na Escritura. É muito mais provável,<br />

pois, que Paulo tivesse emprestado suas palavras do profeta a fim <strong>de</strong><br />

expressar a enormida<strong>de</strong> do mal, em vez <strong>de</strong>, expressando-se segundo<br />

o costume pagão, ele teria externado o que pretendia reforçar com a<br />

mais extrema execração!<br />

Não obstante, tudo isso po<strong>de</strong> parecer conflitante com o que<br />

acabei <strong>de</strong> afirmar, ou, seja, que Paulo tinha em mira a intenção dos<br />

adoradores, porquanto a intenção <strong>de</strong>les não era adorar <strong>de</strong>mônios, e,<br />

sim, divinda<strong>de</strong>s imaginárias, <strong>de</strong> sua própria invenção. Minha resposta<br />

65 “Ils entendoyent ceux qui estans hommes <strong>de</strong> grand renom, auoyent este faits dieux.” –<br />

“Queria significar aqueles que, sendo homens <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> renome, foram convertidos em<br />

<strong>de</strong>uses.”<br />

66 Os seguintes exemplos po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>duzidos <strong>de</strong> Platão: “Todo <strong>de</strong>mônio mantém um lugar<br />

intermédio entre Deus e o homem mortal”; Deus não mantém diálogo direto com o<br />

homem, mas toda comunicação e relação são mantidas entre os <strong>de</strong>uses e os homens por<br />

meio dos <strong>de</strong>mônios”; um <strong>de</strong>mônio é um intérprete e repórter dos homens aos <strong>de</strong>uses e<br />

dos <strong>de</strong>uses aos homens.”


Capítulo 10 • 365<br />

é que as duas coisas estão em plena harmonia, pois quando os homens<br />

se tornam tão fúteis em suas imaginações [Rm 1.21], ao ponto <strong>de</strong><br />

prestar honras divinas a criaturas no lugar do Deus único, este castigo<br />

está suspenso sobre suas cabeças, porquanto servem a Satanás. Na<br />

verda<strong>de</strong> não existe aquela “posição intermédia” 67 entre Deus e Satanás<br />

que tanto buscam, senão que é o próprio Satanás que pessoalmente<br />

se lhes apresenta como um objeto <strong>de</strong> adoração, sempre que voltam as<br />

costas ao verda<strong>de</strong>iro Deus.<br />

E não quero que tenhais comunhão com os <strong>de</strong>mônios. Se o<br />

termo <strong>de</strong>mônio fosse uma referência a coisas indiferentes, quão insípida<br />

seria esta expressão do apóstolo, quando <strong>de</strong> fato ela está em<br />

extremo saturada <strong>de</strong> severida<strong>de</strong> contra os adoradores <strong>de</strong> ídolos. E<br />

apresenta a razão que justifica seu <strong>de</strong>sejo, ou, seja: ninguém po<strong>de</strong><br />

ter comunhão com Deus e com os ídolos concomitantemente. Há,<br />

porém, pessoas que fazem promessa <strong>de</strong> comunhão em todos os ritos<br />

sagrados. Lembremo-nos, pois, que só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> dizermos a<strong>de</strong>us a<br />

tudo quanto é <strong>de</strong> caráter sacrílego, 68 e só então, é que Cristo nos<br />

admite à santa festa <strong>de</strong> seu corpo e <strong>de</strong> seu sangue. Pois aquele que<br />

<strong>de</strong>seja tomar posse <strong>de</strong>sta [festa] <strong>de</strong>ve também renunciar àqueles [ritos<br />

pagãos]. Oh! mui miserável é a sorte daqueles 69 que, com receio<br />

<strong>de</strong> ofen<strong>de</strong>r ao próximo, não hesitam em corromper-se com os ritos<br />

supersticiosos e ilícitos! Visto que insistem nesta vereda, fazem-se<br />

responsáveis por suprimir-se da comunhão <strong>de</strong> Cristo, e por estabelecer<br />

barreiras à via <strong>de</strong> acesso <strong>de</strong> sua própria aproximação à mesa <strong>de</strong><br />

seu bem-estar espiritual.<br />

22. Ou provocaremos o Senhor? Ele ministrara seu ensino; agora<br />

se ergue para falar em termos ainda mais veementes, porque era cons-<br />

67 É bem provável que Calvino esteja <strong>de</strong> olho na posição <strong>de</strong> Platão já citada, a saber, que<br />

“todo <strong>de</strong>mônio mantém um lugar intermédio entre Deus e o homem mortal”.<br />

68 “Quand auant que nous y presenter, nous auons renoncé à tous sacrileges, c’est a dire à<br />

toute impiete et idolatrie.” – “Quando, antes <strong>de</strong> termos acesso a ela [a comunhão], tenhamos<br />

renunciado a tudo quanto é sacrílego, ou, seja, toda impieda<strong>de</strong> e idolatria.”<br />

69 “O plus que miserable la condition <strong>de</strong> ceux.” – “Oh! muito mais miserável é a condição<br />

daqueles.”


366 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

ciente <strong>de</strong> que uma ofensa contra Deus, da mais atroz espécie, estava<br />

sendo reputada por eles como algo sem importância, ou, pelo menos,<br />

era consi<strong>de</strong>rada como simples equívoco sem a menor conseqüência.<br />

Os coríntios imaginavam que sua presunção era <strong>de</strong>sculpável, assim<br />

como nenhum <strong>de</strong> nós po<strong>de</strong> suportar crítica, senão que busca um<br />

subterfúgio 70 após outro a fim <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>r-se. Paulo, porém, está totalmente<br />

certo em dizer que, agindo assim, estamos promovendo guerra<br />

contra Deus; pois ele requer isto <strong>de</strong> nós, e não menos que isto: que façamos<br />

sincera a<strong>de</strong>são a tudo quanto ele faz conhecido em sua Palavra.<br />

Daí, os que se esquivam do problema, imaginando que po<strong>de</strong>rão incólumes<br />

e sem qualquer conseqüência <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cer ao mandamento <strong>de</strong><br />

Deus, não estão porventura abertamente terçando armas com Deus?<br />

E esta é a razão por que o profeta pronuncia maldição sobre todos<br />

quantos chamam ao mal bem, e às trevas luz [Is 5.20].<br />

Somos mais fortes do que ele? O apóstolo adverte quão tremendo<br />

é o risco <strong>de</strong> se provocar a ira divina, visto que ninguém po<strong>de</strong> fazê-lo<br />

sem incorrer em sua própria <strong>de</strong>struição. 71 Como se diz, quando os<br />

homens estão envolvidos, ninguém po<strong>de</strong> prever que rumo tomará o<br />

<strong>de</strong>stino da guerra; mas aquele que luta contra Deus está voluntariamente<br />

acenando para sua própria ruína – nada menos que isso! Portanto,<br />

se tememos ter a Deus por inimigo, então <strong>de</strong>vemos temer muito mais<br />

tentar apresentar justificativas em prol <strong>de</strong> pecados flagrantes, a saber:<br />

tudo aquilo que se põe em conflito com sua Palavra. Devemos ainda<br />

estremecer-nos ante a idéia <strong>de</strong> pôr em dúvida coisas que Deus nos<br />

comunicou, porque isso nada mais é senão escalar o céu como fizeram<br />

os gigantes 72 [Gn 11.4].<br />

23. Para mim todas as coisas são lícitas. Uma vez mais o apóstolo<br />

volta ao princípio da liberda<strong>de</strong> cristã, por meio da qual os coríntios estavam<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo-se, e rebate sua objeção com a mesma explicação<br />

70 “Qui ne veulent point venir au poinct.” – “A quantos não <strong>de</strong>sejam convencer-se.”<br />

71 “Ruine et con<strong>de</strong>mnation.” – “Ruína e con<strong>de</strong>nação.”<br />

72 O leitor encontrará o mesmo inci<strong>de</strong>nte na Sagrada História referida pelo autor, em consi<strong>de</strong>rável<br />

extensão na Harmonia dos Evangelhos.


Capítulo 10 • 367<br />

que <strong>de</strong>ra antes, a saber: estar presente numa festa [pagã] e comer da<br />

carne que fora sacrificada era uma questão física externa, e portanto<br />

em si mesma completamente inócua e permissível. Paulo assevera que<br />

<strong>de</strong> fato não há problema algum, porém refuta sua objeção afirmando<br />

que <strong>de</strong>vemos levar em conta a edificação <strong>de</strong> alguém além <strong>de</strong> nós<br />

mesmos. “Para mim todas as coisas são lícitas”, diz ele, “porém nem<br />

todas as coisas são benéficas”, a saber: a nosso próximo; pois nenhum<br />

<strong>de</strong> nós <strong>de</strong>ve agir visando unicamente a si próprio, como o apóstolo<br />

adiciona no próximo versículo, porém <strong>de</strong>vemos discernir se algo porventura<br />

não seria nocivo a nossos irmãos.<br />

Ele, em seguida, especifica o tipo <strong>de</strong> vantagem: quando há edificação,<br />

pois não <strong>de</strong>vemos atentar meramente para a vantagem da<br />

carne. “O que isso implica?” – perguntará alguém. “Tu estás insinuando<br />

que aquilo que Deus, em outras circunstâncias, permite cessa <strong>de</strong><br />

ser permissível assim que <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser benéfico a nosso próximo? Se<br />

este, pois, é o caso, então nossa liberda<strong>de</strong> estaria sob o controle dos<br />

homens.” Pon<strong>de</strong>ra atentamente nas palavras <strong>de</strong> Paulo, e então perceberás<br />

que a liberda<strong>de</strong>, não obstante, permanece sem prejuízo quando<br />

te adaptas a teu próximo, e que só o uso <strong>de</strong>la é restringido, pois ele<br />

reconhece que ela é lícita, porém diz que não <strong>de</strong>ve ser usada caso não<br />

for para edificação.<br />

24. Ninguém busque o que é propriamente seu. Ele escreve<br />

sobre o mesmo tema em Romanos 14: “Sigamos, pois, as coisas que<br />

servem para a paz e para a edificação mútua” [v. 19]. Este preceito<br />

é muitíssimo necessário, porque nossa natureza é tão corrupta que<br />

cada um <strong>de</strong> nós busca [naturalmente] seus próprios interesses e negligencia<br />

os <strong>de</strong> seus irmãos. Pois assim como a lei do amor requer que<br />

amemos a nosso próximo como amamos a nós mesmos, somos igualmente<br />

intimados a preocupar-nos com seu bem-estar. Finalmente, o<br />

apóstolo não diz explicitamente que as pessoas não <strong>de</strong>vam pensar em<br />

seus próprios interesses – longe <strong>de</strong> nós tal coisa! Mas, o que ele <strong>de</strong>seja<br />

é que não se prendam a eles, nem tampouco renunciem parte <strong>de</strong> seus<br />

direitos toda vez que o bem-estar <strong>de</strong> seus irmãos o exija.


368 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

25. Comei <strong>de</strong> tudo quanto se ven<strong>de</strong> no<br />

mercado, sem perguntar nada, por<br />

causa da consciência;<br />

26. porque do Senhor é a terra, e toda<br />

sua plenitu<strong>de</strong>.<br />

27. E se algum dos incrédulos vos convidar,<br />

e quiser<strong>de</strong>s ir, comei <strong>de</strong> tudo<br />

que se puser diante <strong>de</strong> vós, sem<br />

nada perguntar, por motivo <strong>de</strong> consciência.<br />

28. Mas se alguém vos disser: Isto foi<br />

oferecido em sacrifício, não comais,<br />

por causa daquele que vos adverte<br />

e por motivo <strong>de</strong> consciência.<br />

29. Consciência, digo, não a tua propriamente,<br />

mas a <strong>de</strong> outrem. Pois,<br />

por que seria minha liberda<strong>de</strong> julgada<br />

pela consciência <strong>de</strong> outrem?<br />

30. Se pela graça sou participante, por<br />

que seria eu difamado por aquilo<br />

pelo que dou graças?<br />

31. Portanto, quer comais, quer bebais,<br />

ou façais outra coisa qualquer, fazei<br />

tudo para a glória <strong>de</strong> Deus.<br />

32. Não <strong>de</strong>is ocasião a escândalo, nem<br />

a ju<strong>de</strong>us, nem a gentios, nem à igreja<br />

<strong>de</strong> Deus.<br />

33. Como também agrado a todos em<br />

todas as coisas, não buscando meu<br />

próprio proveito, mas o proveito <strong>de</strong><br />

muitos, para que sejam salvos.<br />

25. Quicquid in macello venditur,<br />

editte, nihil disceptantes propter<br />

conscientiam.<br />

26. Domini enim est terra, et plenitudo<br />

eius. (Ps. xxiv.1.)<br />

27. Si quis autem infi<strong>de</strong>lium vos vocat,<br />

et vultis ire, quicquid vobis apponitur<br />

edite, nihil disceptantes propter<br />

conscientiam.<br />

28. Quodsi quis vobis dixerit, Hoc est<br />

idolo immolatum: ne edatis propter<br />

eum qui indicavit, et propter conscientiam.<br />

29. Consicentiam autem dico, non<br />

tuam, sed alterius: utquid enim<br />

libertas mea indicatur ab alia conscientia?<br />

30. Si ergo per gratiam sum particeps,<br />

quid in eo blasphemor, in quo gratias<br />

ago?<br />

31. Sive ergo editis, sive bibitis, sive<br />

quid aliud facitis, omnia in gloriam<br />

Dei facite.<br />

32. Nullis satis offendiculo, sive Iudæis,<br />

sive Græcis, et Ecclesiæ Dei:<br />

33. Quemadmodum ego quoque per<br />

omnia comnibus placeo, non<br />

quærens quod mihi est utile, sed<br />

quod multis, ut salvi fiant.<br />

25. Tudo quanto se ven<strong>de</strong> no mercado. Ele falou sobre o congregar-se<br />

em conexão com a idolatria, ou, pelo menos, sobre as ativida<strong>de</strong>s<br />

nas quais os coríntios não podiam tomar parte sem evi<strong>de</strong>nciar que estavam<br />

se associando aos ritos supersticiosos dos incrédulos. Ele agora<br />

requer <strong>de</strong>les, não uma mera abstenção <strong>de</strong> toda a a<strong>de</strong>são à idolatria, mas<br />

também o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> evitar cuidadosamente todo e qualquer escândalo,<br />

o que costumava surgir do uso indiscriminado <strong>de</strong> coisas indiferentes.


Capítulo 10 • 369<br />

Porque, embora houvesse apenas um tipo <strong>de</strong> escândalo por parte dos<br />

coríntios, 73 havia ao mesmo tempo diferentes graus <strong>de</strong>le. Ora, no tocante<br />

ao alimento, ele começa fazendo uma afirmação geral, a saber: po<strong>de</strong>mos<br />

comer <strong>de</strong> tudo segundo nosso aprazimento, com consciência pura, porque<br />

o Senhor o permite. Em segundo lugar, ele modifica esta liberda<strong>de</strong><br />

quando ela vem para a esfera da prática, com o fim <strong>de</strong> evitar que fossem<br />

cometidos prejuízos contra pessoas <strong>de</strong> consciência <strong>de</strong>licada. Com isso,<br />

a parte conclusiva da discussão se constitui <strong>de</strong> duas partes: a primeira<br />

tem a ver com a liberda<strong>de</strong> e o po<strong>de</strong>r que temos em relação às coisas<br />

neutras; e a segunda é concernente à modificação <strong>de</strong>sta, <strong>de</strong> modo que o<br />

exercício da liberda<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser controlado pela regra do amor.<br />

Sem nada perguntar. 74 ̕Ανακρίνεσθαι, o termo que Paulo usa, significa<br />

arrazoar <strong>de</strong> ambos os lados, 75 <strong>de</strong> uma forma tal, que a mente da<br />

pessoa vacila, inclinando-se ora para este lado, ora para aquele. 76 Conseqüentemente,<br />

no que diz respeito à distinção <strong>de</strong> alimentos, Paulo<br />

isenta nossas consciências <strong>de</strong> toda preocupação e incerteza, porque<br />

é justo que, quando a evidência nos vem da Palavra do Senhor <strong>de</strong> que<br />

o que fazemos tem sua aprovação, nossas mentes estarão em paz e<br />

livres <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong>.<br />

Por motivo <strong>de</strong> consciência. Em outros termos, diante do tribunal<br />

<strong>de</strong> Deus. Ele po<strong>de</strong>ria ter posto nestes termos: “Visto ser Deus com<br />

quem havemos <strong>de</strong> tratar, não há razão para questionar<strong>de</strong>s convosco<br />

mesmos se isto é ou não permissível. Pois garanto-vos que vos é seguro<br />

comer<strong>de</strong>s o que quiser<strong>de</strong>s, porque o Senhor vos permite ter <strong>de</strong><br />

tudo, sem qualquer exceção.”<br />

73 “Car combien que les Corinthiens faissent en cela plusieurs fautes qui estoyent toutes<br />

compriss sous vne generalite.” – “Pois embora os coríntios, neste caso, cometessem muitas<br />

faltas, as quais estavam todas compreendidas sob uma só <strong>de</strong>scrição geral.”<br />

74 “Sans en enquerir rien.” – “Sem formular qualquer pergunta quanto a isso.”<br />

75 “Debatre en son enten<strong>de</strong>ment pour et contre, comme on dit.” – “A mente <strong>de</strong> alguém a<br />

<strong>de</strong>bater, em prol e contra, por assim dizer.”<br />

76 ̕Ανακρίνω, significa propriamente examinar <strong>de</strong>tidamente. Bloomfield afirma que “os comentaristas<br />

mais recentes consi<strong>de</strong>ram a expressão μηδὲν ἀνακρίνοντες como substituída<br />

por μηδὲν κρέας (isto é, κρέατος γένος) ἀνακρίνοντες, sem examinar o tipo <strong>de</strong> alimento, para<br />

ver se proce<strong>de</strong> ou não do ídolo.” Esta interpretação é natural, e concorda particularmente<br />

bem com a expressão como se acha reiterada no versículo 27.


370 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

26. A terra é do Senhor. Ele estabelece, à luz do testemunho <strong>de</strong><br />

Davi, a liberda<strong>de</strong> que ele admitia [Sl 24.1 e 50.12]. Mas alguém po<strong>de</strong>ria<br />

formar a seguinte pergunta: “O que isto tem a ver com o presente<br />

assunto?” Minha resposta é: Se a terra e sua plenitu<strong>de</strong> pertencem ao<br />

Senhor, não há nada no mundo que não seja sagrado e puro. Devemos<br />

sempre prestar atenção à questão que o apóstolo está discutindo aqui.<br />

É possível que surja alguma dúvida se as criaturas <strong>de</strong> Deus se tornam<br />

impuras ao serem usadas pelos incrédulos em seus sacrifícios. Paulo<br />

nega tal conceito, porque o senhorio e possessão <strong>de</strong> toda a terra permanecem<br />

nas mãos <strong>de</strong> Deus. Por seu po<strong>de</strong>r, porém, o Senhor sustenta<br />

as coisas que tem em suas mãos, e, por causa disso, ele as santifica.<br />

Por isso, tudo o que os filhos <strong>de</strong> Deus usam é limpo, visto que o tomam<br />

das mãos <strong>de</strong> Deus, e <strong>de</strong> nenhuma outra parte.<br />

Pelo termo, plenitu<strong>de</strong> da terra, o profeta tem em mente a riqueza<br />

das boas coisas com as quais a terra é provida e enriquecida pelo<br />

Senhor. Pois se a terra não fosse provida <strong>de</strong> árvores, plantas, animais<br />

e outras coisas, seria semelhante a uma casa <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> móveis e<br />

utensílios <strong>de</strong> todo gênero; ainda mais, seria algo mutilado e horrível<br />

<strong>de</strong> se contemplar. Uma resposta simples po<strong>de</strong> ser formulada e dada a<br />

qualquer um que suscite a objeção <strong>de</strong> que a terra permanece sob maldição<br />

em <strong>de</strong>corrência do pecado. Paulo, porém, aqui está pensando na<br />

natureza pura e intata, visto que ele está tratando com crentes, para<br />

quem tudo é santificado por Cristo.<br />

27. E algum dos incrédulos vos convidar. Aqui segue uma exceção<br />

a esse efeito, a saber: que se um crente, após ser advertido <strong>de</strong> que<br />

o que se acha diante <strong>de</strong>le foi oferecido em sacrifício a algum ídolo, e<br />

intuir que há risco <strong>de</strong> provocar escândalo, estará pecando contra seus<br />

irmãos se não se abstiver. Numa palavra, Paulo, pois, ensina que não<br />

se <strong>de</strong>ve causar injúria às consciências sensíveis.<br />

Ao dizer: “e quiser<strong>de</strong>s ir”, ele indiretamente notifica que não aprova<br />

plenamente tal coisa, e que seria melhor se <strong>de</strong>clinassem; mas, como<br />

se trata <strong>de</strong> uma coisa indiferente, então <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> não proibir em termos<br />

absolutos. E por certo que não há nada melhor do que manter-se à


Capítulo 10 • 371<br />

distância <strong>de</strong> tais ciladas – não que tais pessoas <strong>de</strong>vam ser expressamente<br />

con<strong>de</strong>nadas, as quais se acomodam aos homens até on<strong>de</strong> a<br />

consciência permite, 77 mas porque nos é conveniente proce<strong>de</strong>r com<br />

prudência 78 on<strong>de</strong> percebemos que corremos o risco <strong>de</strong> fracassar.<br />

29. Consciência, digo, não a tua propriamente. Ele sempre age<br />

<strong>de</strong> forma muito cuidadosa para não restringir a liberda<strong>de</strong>, ou para não<br />

subtrair <strong>de</strong>la nenhum grau. “Deves transigir sobre a questão relativa à<br />

consciência frágil <strong>de</strong> teu irmão, para que não tires vantagem <strong>de</strong> teu direito<br />

pessoal e lhe causes escândalo através <strong>de</strong> teu procedimento; ao<br />

mesmo tempo, porém, tua consciência permanece livre como sempre,<br />

visto que ela mesma é mantida sob controle. Portanto, não permitas<br />

que a restrição que imponho sobre ti no tocante ao uso externo venha<br />

a ser, <strong>de</strong> alguma forma, uma armadilha a enredar tua consciência.”<br />

Devemos observar que, neste versículo, a palavra consciência é<br />

usada em seu sentido restrito, consi<strong>de</strong>rando que em Romanos 13.5 e<br />

1 Timóteo 1.5 ela tem um sentido mais amplo. Paulo diz ali: “Portanto,<br />

é necessário que lhe estejais sujeitos, não só pelo castigo”; em outros<br />

termos: não por causa do temor do castigo, mas porque o Senhor no-lo<br />

or<strong>de</strong>na, e é nosso <strong>de</strong>ver proce<strong>de</strong>r assim. Não é justo que nos acomo<strong>de</strong>mos<br />

a nossos irmãos fracos sobre a mesma base também, a saber,<br />

visto que estamos sob a obrigação <strong>de</strong> agir assim em relação a eles, aos<br />

olhos <strong>de</strong> Deus? Além disso, a finalida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>ver é o amor que proce<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> uma boa consciência. A atitu<strong>de</strong> do amor não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma boa<br />

consciência? Portanto, como já disse, o significado aqui é mais restrito,<br />

ou, seja: visto que a alma <strong>de</strong> um crente divisa somente o tribunal<br />

divino, e não alguma autorida<strong>de</strong> humana, e se alegra na bênção da liberda<strong>de</strong><br />

alcançada em Cristo, ele não está sob a obrigação em relação<br />

a nenhum indivíduo, ou limitada a alguma condição <strong>de</strong> tempo e lugar.<br />

Alguns manuscritos reiteram a frase “a terra é do Senhor”. Mas a<br />

probabilida<strong>de</strong> é que algum leitor antigo a tenha escrito na margem, e<br />

77 “Seulement autant que faire se peut sans offenser Dieu.” – “Somente até on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m agir<br />

assim sem ofen<strong>de</strong>r a Deus.”<br />

78 “Auec grand auis et pru<strong>de</strong>nce.” – “Com gran<strong>de</strong> cuidado e prudência.”


372 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

então se <strong>de</strong>slizou para o texto. 79 Não obstante, esta é uma questão não<br />

<strong>de</strong> muita importância.<br />

Porquanto, por que minha liberda<strong>de</strong> seria julgada pela consciência<br />

alheia? Não fica claro se aqui o apóstolo está falando <strong>de</strong> si<br />

mesmo ou se está pondo esta objeção nos lábios dos coríntios. Se a tomarmos<br />

como sendo uma afirmação dirigida a si próprio, então estará<br />

corroborando a afirmação anterior. “Ao refrear-vos por causa da consciência<br />

<strong>de</strong> outra pessoa, vossa liberda<strong>de</strong> não fica com isso sujeita a tal<br />

pessoa.” Se foi dirigida aos coríntios, o significado po<strong>de</strong>ria ser este:<br />

“Tu nos impuseste uma lei injusta, ao exigir que nossa liberda<strong>de</strong> fique<br />

<strong>de</strong> pé ou caia ao capricho <strong>de</strong> outras pessoas.” Minha opinião é que<br />

Paulo se dirige a si próprio, porém explica em outros termos, porque<br />

até aqui estivera <strong>de</strong>clarando os conceitos <strong>de</strong> outros. Ser julgado, pois,<br />

eu o explico aqui no sentido <strong>de</strong> ser con<strong>de</strong>nado, concor<strong>de</strong>mente com<br />

a aceitação da palavra na Escritura. Paulo nos adverte sobre o perigo<br />

que resultaria, se fizermos uso <strong>de</strong> nossa liberda<strong>de</strong> sem reservas, dando<br />

ocasião <strong>de</strong> escândalo a nosso próximo, e assim ele nos con<strong>de</strong>nará.<br />

Assim, através <strong>de</strong> nosso erro e nossa ação irrefletida, a conseqüência<br />

será que este benefício especial da parte <strong>de</strong> Deus será con<strong>de</strong>nado. Se<br />

não nos pusermos em guarda contra tal perigo, corrompemos nossa<br />

liberda<strong>de</strong> em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> a usarmos mal. Esta consi<strong>de</strong>ração, pois, ten<strong>de</strong><br />

muito mais a confirmar a exortação <strong>de</strong> Paulo.<br />

30. Portanto, se pela graça sou participante. Este argumento é o<br />

mesmo, ou quase o mesmo. Já que é prerrogativa do favor divino que<br />

todas as coisas me sejam lícitas, por que <strong>de</strong>veria eu, <strong>de</strong> minha parte,<br />

ser ainda interpretado como transgressor? Naturalmente que não po<strong>de</strong>mos<br />

impedir que os ímpios nos difamem, e nem ainda os fracos <strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong> vez em quando, se irarem contra nós; Paulo, porém, responsabiliza,<br />

por sua falta <strong>de</strong> domínio próprio, aos que voluntariamente dão ocasião<br />

a que outros escandalizem e firam as consciências sensíveis, sem<br />

qualquer justificativa e sem servir a nenhum propósito altruístico. Daí,<br />

79 Ela é omitida na versão <strong>de</strong> Alexandria e <strong>de</strong> Clermont e em todos os manuscritos mais<br />

antigos; bem como nas versões Siríaca, Arábica e Vulgata.


Capítulo 10 • 373<br />

o apóstolo quer que façamos uso a<strong>de</strong>quado <strong>de</strong> nossos benefícios, 80 <strong>de</strong><br />

modo que, não transigindo em licenciosida<strong>de</strong> irrefletida, não <strong>de</strong>mos<br />

ao fraco nenhuma chance <strong>de</strong> maldizer-nos.<br />

31. Portanto, quer comais, quer bebais. Para que não tivessem<br />

a impressão <strong>de</strong> que não havia nenhuma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> preocupar-se<br />

em evitar censura, imaginando que não passava <strong>de</strong> uma questão trivial,<br />

Paulo ensina que não há parte alguma <strong>de</strong> nossa vida ou conduta,<br />

por mais insignificante 81 que seja, que não esteja relacionada com a<br />

glória <strong>de</strong> Deus, e que <strong>de</strong>vemos preocupar-nos, sim, ao comermos e<br />

bebermos, e tudo fazendo para promovê-la. Esta sentença concorda<br />

com a que prece<strong>de</strong>, a saber: se formos zelosos pela glória <strong>de</strong> Deus,<br />

como <strong>de</strong> fato <strong>de</strong>vemos ser, até on<strong>de</strong> estiver em nosso po<strong>de</strong>r, evitaremos<br />

que suas bênçãos se transformem em objetos <strong>de</strong> abuso. Isto foi<br />

bem expresso no provérbio antigo: “Que não vivamos para comer, e,<br />

sim, comamos para viver.” 82 Des<strong>de</strong> que o propósito da vida seja ao<br />

mesmo tempo mantido em nossa mente, em certo sentido nosso alimento<br />

será, conseqüentemente, consagrado a Deus, porque ele será<br />

<strong>de</strong>stinado a sua honra [e glória].<br />

32. Não <strong>de</strong>is ocasião a escândalo. Eis aqui o segundo elemento<br />

que <strong>de</strong>vemos almejar – a regra do amor. Portanto, zelar pela glória<br />

<strong>de</strong> Deus assume o primeiro lugar; preocupação com a sorte <strong>de</strong> nosso<br />

próximo, o segundo. Paulo faz menção <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us e gentios, não só pelo<br />

fato <strong>de</strong> a Igreja <strong>de</strong> Deus ser composta <strong>de</strong>stas duas classes, mas para<br />

mostrar que <strong>de</strong>vemos algo a todos, mesmo aos estrangeiros, <strong>de</strong> modo<br />

que, se possível, façamos tudo para ganhá-los.<br />

33. Como também agrado a todos os homens em todas as coisas.<br />

Visto que Paulo está falando em termos gerais, sem qualquer exceção,<br />

há quem erroneamente esten<strong>de</strong> isso <strong>de</strong> modo a envolver coisas<br />

que são proibitivas e, portanto, são contra a Palavra <strong>de</strong> Deus, como<br />

80 “C’est a dire, <strong>de</strong> nostre liberte.” – “Equivale dizer, <strong>de</strong> nossa liberda<strong>de</strong>.”<br />

81 “Qu’il n’y a rien en toute nostre vie, tant petit soit-il.” – “Que nada há em toda nossa vida<br />

que seja pequeno <strong>de</strong>mais.”<br />

82 A expressão proverbial referida ocorre em Auctor. ad Herem. 4.28 – “Esse oportet ut vivas,<br />

non vivere ut edas.” – “Você <strong>de</strong>ve comer para viver; não viver para comer.”


374 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

se tivéssemos todo o direito, no interesse <strong>de</strong> nosso próximo, <strong>de</strong> ousar<br />

fazer mais do que o Senhor no-lo permite. Todavia, nada po<strong>de</strong> ser mais<br />

evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> que Paulo aqui está apenas acomodando-se aos homens<br />

em relação às coisas que, em si mesmas, são indiferentes e plenamente<br />

permissíveis.<br />

Finalmente, <strong>de</strong>vemos atentar bem para o propósito <strong>de</strong> se fazer<br />

isso, a saber: para que sejam salvos. Portanto, nenhuma concessão se<br />

<strong>de</strong>ve fazer-lhes em relação a tudo aquilo que opera em <strong>de</strong>trimento<br />

<strong>de</strong> sua salvação, porém <strong>de</strong>ve-se estabelecer, neste respeito, critério,<br />

e critério espiritual.


Capítulo 11<br />

1 . Se<strong>de</strong> meus imitadores, assim como<br />

também eu o sou <strong>de</strong> Cristo.<br />

2. Ora, eu vos louvo, irmãos, porque<br />

em tudo vos lembrais <strong>de</strong> mim, e<br />

manten<strong>de</strong>s firmes as or<strong>de</strong>nanças<br />

como vo-las entreguei.<br />

3 .Mas quero que saibais que a cabeça<br />

<strong>de</strong> todo homem é Cristo, e que a cabeça<br />

da mulher é o homem, e que a<br />

cabeça <strong>de</strong> Cristo é Deus.<br />

4. Todo homem que ora ou profetiza,<br />

tendo sua cabaça coberta, <strong>de</strong>sonra<br />

sua cabeça.<br />

5. Mas, toda mulher que ora ou profetiza<br />

com sua cabeça <strong>de</strong>scoberta,<br />

<strong>de</strong>sonra sua cabeça, porque diante<br />

<strong>de</strong> todos é como se ela fosse rapada.<br />

6. Portanto, se uma mulher não se<br />

cobre, então que seja também tosquiada;<br />

mas, se para uma mulher é<br />

vergonhoso tosquiar-se ou rapar-se,<br />

então que se cubra.<br />

7. Por isso o homem não <strong>de</strong>ve cobrir<br />

sua cabeça, visto ser ele a imagem e<br />

glória <strong>de</strong> Deus, porém a mulher é a<br />

glória do homem.<br />

8. Pois o homem não provém da mulher,<br />

e, sim, a mulher do homem;<br />

1. Imitatores mei estote, sicut et ego<br />

Christi.<br />

2. Laudo autem vos, fratres, quod omnia<br />

mea meministis et traditiones 1<br />

tenetis, quemadmodum vobis traditi.<br />

3. Volo autem vos scire, quod omnis<br />

viri caput est Christus, caput autem<br />

mulieris, vir: caput autem Christi,<br />

Deus.<br />

4. Omnis vir orans aut prophetans velato<br />

capite, <strong>de</strong><strong>de</strong>core afficit caput<br />

suum.<br />

5. Omnis mulier orans aut prophetans<br />

aperto capite, <strong>de</strong><strong>de</strong>core afficit<br />

caput suum: perin<strong>de</strong> enim acsi radatur.<br />

6. Si enim non velatur mulier, etiam<br />

ton<strong>de</strong>atur: si autem mulieri turpe<br />

est ton<strong>de</strong>ri aut radi, veletur.<br />

7. Vir qui<strong>de</strong>m velato esse capite non<br />

<strong>de</strong>bet, quum sit imago et gloria Dei:<br />

mulier autem gloria viri est.<br />

8. Non enim est vir ex muliere, sed mulier<br />

ex viro.<br />

1 “Mês ordonnances.” – “Minhas or<strong>de</strong>nanças.”


376 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

9. tampouco foi o homem criado para<br />

a mulher, e, sim, a mulher para o<br />

homem.<br />

10. Por este motivo, a mulher <strong>de</strong>ve ter<br />

autorida<strong>de</strong> em sua cabeça, por causa<br />

dos anjos.<br />

11. Não obstante, no Senhor nem a<br />

mulher existe sem o homem, nem o<br />

homem, sem a mulher.<br />

12. Pois como a mulher provém do<br />

homem, assim também o homem<br />

provém da mulher; porém todas as<br />

coisas provêm <strong>de</strong> Deus.<br />

13. Julgai vós mesmos: é conveniente<br />

que a mulher ore a Deus <strong>de</strong>scoberta?<br />

14. Ou não vos ensina a própria natureza<br />

que, se um homem tem cabelos<br />

longos, isso lhe constitui uma <strong>de</strong>sonra?<br />

15. Mas se uma mulher tem cabelos<br />

longos, isso lhe constitui uma glória,<br />

porque seu cabelo lhe é dado<br />

como cobertura.<br />

16 .Mas, se algum homem se revela<br />

contencioso, não temos tal costume,<br />

nem as igrejas <strong>de</strong> Deus.<br />

9. Etenim non est creatus vir mulieris<br />

causa, sed mulier causa viri.<br />

10. Propterea <strong>de</strong>bet mulier potestatem<br />

habere super caput suum, propter<br />

angelos.<br />

11. Cæterum neque vir absque muliere,<br />

neque mulier absque viro in<br />

Domino.<br />

12. Quemadmodum enim mulier ex<br />

viro, sic et vir per mulierem: omnia<br />

autem ex Deo.<br />

13. In vobis ipsis iudicate, <strong>de</strong>ceatne mulierem<br />

retecto capite Deum precari.<br />

14. An ne ipsa qui<strong>de</strong>m natura vos<br />

docet, quod si vir comam alat, <strong>de</strong><strong>de</strong>cus<br />

illi sit?<br />

15. Si vero mulier comam alat, gloria<br />

sit illi? quoniam illi coma instar velamenti<br />

data est.<br />

16. Quodsi quis vi<strong>de</strong>tur contentiosus<br />

esse, nos talem consuetudinem non<br />

habemus, neque Ecclesiæ Dei.<br />

1. Se<strong>de</strong> meus imitadores. Isto nos revela quão prejudicialmente<br />

os capítulos foram divididos, porquanto esta sentença foi separada<br />

das prece<strong>de</strong>ntes, às quais pertence por direito, e reunida ao que vem<br />

a seguir, procedimento este totalmente injustificável. Consi<strong>de</strong>remos,<br />

pois, esta sentença como parte do capítulo anterior. Nele Paulo introduziu<br />

seu exemplo pessoal em abono do que vinha ensinando. Agora<br />

ele insta com os coríntios a que imitassem seu procedimento, assim<br />

como ele, por sua vez, era imitador <strong>de</strong> Cristo, <strong>de</strong> modo a po<strong>de</strong>rem<br />

compreen<strong>de</strong>r que é precisamente isso o que se esperava <strong>de</strong>les.<br />

Duas coisas <strong>de</strong>vem-se notar aqui: primeiro, Paulo não or<strong>de</strong>na que<br />

outros façam o que ele mesmo não tivesse antes posto em prática;


Capítulo 11 • 377<br />

segundo, ele aponta para si mesmo e para outros, à sombra <strong>de</strong> Cristo,<br />

como exemplos da atitu<strong>de</strong> correta. Porquanto, é próprio do caráter <strong>de</strong><br />

um bom mestre não ministrar qualquer instrução, em termos verbais,<br />

sem antes estar preparado a transformá-la em atos, evitando ser excessivamente<br />

rigoroso ao ponto <strong>de</strong> esperar que outros façam exatamente<br />

o que ele tem o hábito <strong>de</strong> fazer. Isto é precisamente o que pessoas<br />

hiper-escrupulosas geralmente fazem, pois procuram impor a outrem<br />

tudo aquilo que constitui seu <strong>de</strong>leite, e exigem que seu exemplo pessoal<br />

seja consi<strong>de</strong>rado como um padrão terminantemente obrigatório. E<br />

as pessoas mundanas também possuem uma tendência mui natural <strong>de</strong><br />

seguir toda sorte distorcida <strong>de</strong> exemplos (κακοζηλίαν), 2 e, assemelhando-se<br />

aos símios, esforçam-se por fazer precisamente o que vêem fazer<br />

aqueles que exercem gran<strong>de</strong> influência [sobre outros]. Além do mais,<br />

estamos a par do volume <strong>de</strong> mazelas trazidas para <strong>de</strong>ntro da Igreja<br />

por esta irracional avi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> imitar-se tudo quanto é praticado pelos<br />

santos, sem qualquer exceção. Eis a razão por que <strong>de</strong>vemos ser mui<br />

precavidos em conservar este ensino <strong>de</strong> Paulo, a fim <strong>de</strong> evitarmos que<br />

sejamos encontrados seguindo tão-somente a homens, contanto que<br />

tenham Cristo como seu protótipo (πρωτότυπον). Como resultado, os<br />

exemplos dos santos <strong>de</strong>vem ter o efeito, não <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar-nos <strong>de</strong> Cristo,<br />

mas, antes, <strong>de</strong> nos remeter a ele.<br />

2. Ora, eu vos louvo. Ele então transita para outro tema. Prepara-<br />

-se para ministrar aos coríntios a instrução sobre o gênero <strong>de</strong> <strong>de</strong>coro<br />

que <strong>de</strong>vem manter em suas assembléias sacras. Pois, da mesma forma<br />

que as vestes que uma pessoa usa, ou a atitu<strong>de</strong> que ela adota, às vezes<br />

empanam e às vezes realçam sua aparência, passando o <strong>de</strong>coro<br />

a trazer graça a todas suas ações, enquanto que a ausência <strong>de</strong> <strong>de</strong>coro<br />

constitui sua ruína. Portanto, uma gran<strong>de</strong> parcela <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> τὸ<br />

πρεπον, 3 ou, seja, <strong>de</strong> <strong>de</strong>coro, não só para brindar com graça e atrativida-<br />

2 “Κακοζηλία, uma imitação absurda.” O termo é usado por Luciano neste sentido (v. 70).<br />

Nosso autor faz uso do mesmo termo na Harmonia vol. i. p. 209, n. 2.<br />

3 Τὸ πρέπον po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finido como a união <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> e graça. Sendo que πρέπον e<br />

καλὸν são usados entre os gregos e entre os romanos, pulchrum e <strong>de</strong>corum, como termos<br />

sinônimos.


378 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

<strong>de</strong> nossas ações, mas também para fazer com que nossas imaginações<br />

se habituem com o que é nobre. Se isso, falando em termos gerais,<br />

resulta bem em todas as coisas, muito mais em se tratando particularmente<br />

das coisas sacras. 4 Pois se não nos mantivermos dignamente na<br />

Igreja, conduzindo-nos <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong>cente e condizente, então será<br />

imprevisível qual o gênero <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo e, eventualmente, <strong>de</strong> ru<strong>de</strong>za<br />

<strong>de</strong> conduta advirá disto. Paulo, pois, <strong>de</strong>lineia certas coisas que têm a<br />

ver com a disposição daquilo que é público, e que em si mesmo realça<br />

o caráter das reuniões <strong>de</strong> culto [quo sacri coetus ornantur]. Mas, para<br />

que pu<strong>de</strong>sse fazê-los mais dispostos a praticarem o que ele diz, Paulo<br />

inicia louvando sua obediência no passado, pois haviam realmente<br />

conservado as or<strong>de</strong>nanças que lhes havia <strong>de</strong>ixado. Pois havendo gerado<br />

aquela igreja para o Senhor [1Co 4.15], ele legara-lhe uma certa<br />

organização para seu bom funcionamento. Visto que se mantiveram<br />

neste rumo, os coríntios o levaram a nutrir esperança <strong>de</strong> que também<br />

estariam acessíveis à instrução no futuro.<br />

Mas é estranho que anteriormente os tenha reprovado em tantas<br />

coisas, e agora passe a louvá-los. Mais que isso, se realmente nos pusermos<br />

a observar o estado daquela igreja, como foi <strong>de</strong>scrito no início<br />

<strong>de</strong>sta carta, <strong>de</strong>scobriremos que longe estavam <strong>de</strong> merecer um encômio<br />

<strong>de</strong>sse gênero. A esta objeção replico que alguns <strong>de</strong>les se afligiam<br />

à vista <strong>de</strong>sses pecados, dos quais Paulo já fez menção, <strong>de</strong> fato alguns<br />

com um aspecto, outros com outro. Entretanto, ao mesmo tempo a<br />

forma com que os elogiara fora preservada por todo o grupo. Ora, não<br />

há inconsistência em tal situação, ou, seja: que uma tão gran<strong>de</strong> soma e<br />

mescla <strong>de</strong> pecados exerça domínio sobre certas pessoas, <strong>de</strong> sorte que<br />

algumas são impostoras, outras roubadoras; algumas são dominadas<br />

pela inveja, outras são amantes <strong>de</strong> disputas, e ainda outras vivem na<br />

prática da fornicação; enquanto que, concomitantemente, no que diz<br />

respeito à forma pública da Igreja, as instituições <strong>de</strong> Cristo e dos apóstolos<br />

são conservadas em existência.<br />

4 “Es choses qui concernent le seruice <strong>de</strong> Dieu.” – “Em coisas que dizem respeito ao serviço<br />

divino.”


Capítulo 11 • 379<br />

Isso se torna mais nítido à medida que retemos o que Paulo pretendia<br />

dizer com παραδόσεις [tradições]. 5 À parte <strong>de</strong>sse fato, algo precisa<br />

ser dito sobre este termo em resposta aos papistas que se armam com<br />

este versículo a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rem seu conceito <strong>de</strong> tradição. O princípio<br />

que eles <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m já é bem gasto, a saber: que o ensino dos apóstolos<br />

consiste <strong>de</strong> duas partes, ou, seja: escritos e tradições. A esta segunda<br />

classe incluem não só toda sorte <strong>de</strong> crenças disparatadas e supersticiosas,<br />

mas também ritos pueris que conservam em gran<strong>de</strong> profusão, bem<br />

como toda sorte <strong>de</strong> abominações estapafúrdias, as quais são contrárias<br />

à insofismável Palavra <strong>de</strong> Deus; e, finalmente, [mantêm] leis tirânicas,<br />

fruto <strong>de</strong> suas próprias maquinações, as quais outra coisa não fazem<br />

senão torturar a consciência humana. Daí, não há nada tão fútil, nada<br />

tão absurdo, aliás, nada tão monstruoso que não se encontre protegido<br />

sob este falso refúgio, ou, se se preferir, que não seja alvo <strong>de</strong>sse verniz.<br />

Portanto, já que Paulo aqui faz menção <strong>de</strong> tradições, apo<strong>de</strong>ram-se <strong>de</strong>sta<br />

pequena palavra, em sua forma usual, com o fim <strong>de</strong> transformar Paulo<br />

no inventor <strong>de</strong> todas as abominações, as quais nós, <strong>de</strong> nossa parte, refutamos,<br />

apelando para a insofismável evidência da Escritura.<br />

Ora, não nego que algumas das tradições 6 dos apóstolos <strong>de</strong> fato<br />

não foram <strong>de</strong>ixadas em forma <strong>de</strong> registro escrito, porém discordo que<br />

se constituíssem em elementos <strong>de</strong> doutrina, e que tivessem algo a ver<br />

com o que é necessário para a salvação. Então, com o quê elas tinham<br />

a ver? A resposta é que elas eram matéria relativa à or<strong>de</strong>m e à forma <strong>de</strong><br />

governo. Sabemos que cada igreja é livre para estabelecer a forma <strong>de</strong><br />

governo que se a<strong>de</strong>qúe bem a suas circunstâncias e busque seu benefício,<br />

porquanto o Senhor não ministrou nenhuma instrução específica<br />

sobre esse tema. Assim, foi Paulo o primeiro a lançar os fundamentos<br />

da Igreja em Corinto, e lhe <strong>de</strong>u as diretrizes por meio <strong>de</strong> instruções<br />

justas e saudáveis [institutis quoque piis et honestis], para que tudo<br />

fosse feito or<strong>de</strong>ira e <strong>de</strong>centemente, segundo <strong>de</strong>ixou pressuposto no<br />

capítulo 14.40.<br />

5 “Traditions ou ordonnances.” – “Tradições e or<strong>de</strong>nanças.”<br />

6 “Quelques ordonnances.” – “Certos <strong>de</strong>cretos.”


380 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Mas o que tem isso a ver com as cerimônias insípidas e <strong>de</strong>spropositadas<br />

que nos põem face a face com o papismo 7 mo<strong>de</strong>rno? O que isso<br />

tem a ver com uma superstição que exce<strong>de</strong> em muito à dos ju<strong>de</strong>us? O<br />

que <strong>de</strong> fato isso tem a ver com uma tirania tal como a <strong>de</strong> Falaris, 8 por<br />

meio da qual torturam as consciências <strong>de</strong> indivíduos <strong>de</strong>sventurados?<br />

O que isso tem a ver com tantos exemplos <strong>de</strong> idolatria? Porque, se<br />

alguém tiver que ditar normas a outrem, a forma correta <strong>de</strong> fazê-lo é<br />

pondo em prática a mesma mo<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> Paulo, a fim <strong>de</strong> não forçar<br />

ninguém a aceitar suas <strong>de</strong>cisões, 9 quando passam todo seu tempo elaborando<br />

tudo o que se ajuste a eles próprios, mas, ao contrário, que<br />

sejam imitadores daqueles que são, por sua vez, imitadores <strong>de</strong> Cristo.<br />

Sob tais circunstâncias, em que tiveram a <strong>de</strong>sfaçatez <strong>de</strong> produzir as<br />

invenções <strong>de</strong> suas próprias maquinações, exigi-lo como obediência <strong>de</strong><br />

todos certamente está além <strong>de</strong> qualquer pilhéria. Finalmente, <strong>de</strong>vemos<br />

compreen<strong>de</strong>r que Paulo está elogiando a obediência inicial dos<br />

coríntios com o fim <strong>de</strong> torná-los mais dispostos a instrução futura.<br />

3. Quero, porém, que saibais. Diz um provérbio antigo: “Boas leis<br />

são oriundas <strong>de</strong> más maneiras.” 10 Visto que nenhuma dúvida havia ainda<br />

sido suscitada sobre a prática [ritus] discutida aqui, Paulo não faz<br />

nenhum pronunciamento sobre ela. 11 O erro dos coríntios lhe fornece<br />

agora o ensejo <strong>de</strong> ensinar qual era a maneira correta <strong>de</strong> agir nesta conexão.<br />

A fim <strong>de</strong> provar que era inconveniente para uma mulher aparecer<br />

em reunião pública <strong>de</strong> culto com suas cabeças <strong>de</strong>scobertas, e, por outro<br />

lado, para o homem orar ou profetizar com suas cabeças cobertas, Paulo<br />

inicia com as disposições que são divinamente estabelecidas.<br />

7 “Les sottes cedremonies et badinages, qu’on voit auiourd’huy en la Papaute.” – “As tolas<br />

cerimônias e idiotices que são vistas no papado <strong>de</strong> nossos dias.”<br />

8 “Ceste tyrannie plus que barbare.” – “Que é pior que cruelda<strong>de</strong> bárbara.” Falaris, o tirano<br />

<strong>de</strong> Agrigentum na Sicília, foi infame por sua cruelda<strong>de</strong>. Cícero em mais <strong>de</strong> uma ocasião<br />

emprega o termo Phalarismus para <strong>de</strong>notar excessiva cruelda<strong>de</strong>. Ver Cic. Att. vii.12 e Fam.<br />

vii.11.<br />

9 “Leurs arrests et <strong>de</strong>terminations.” – “Seus <strong>de</strong>cretos e <strong>de</strong>terminações.”<br />

10 Matthew Henry faz uso <strong>de</strong>ste provérbio em seu Comentário, quando sumaria o conteúdo<br />

<strong>de</strong> Lucas 15.<br />

11 “Nen auoit rien touché es enseignemens qu’il auoit donnez.” – “De forma alguma tivesse<br />

tocado sobre ela nas instruções que ministrara.”


Capítulo 11 • 381<br />

Eis o que ele diz: “Como Cristo está abaixo <strong>de</strong> Deus, como sua<br />

Cabeça, assim o homem está sujeito a Cristo, e a mulher, ao homem.”<br />

Veremos mais adiante como Paulo conclui disso que a mulher <strong>de</strong>ve<br />

cobrir a cabeça. Nesse ínterim, retenhamos estas quatro gradações<br />

a que ele faz referência. Deus, pois, mantém a preeminência; Cristo<br />

mantém o segundo plano. Como assim? A resposta é que ele se fez<br />

sujeito ao Pai, em nossa carne, porque, afora este fato, sendo <strong>de</strong> uma<br />

só essência com o Pai, ele é igual ao Pai. Tenhamos em mente, pois,<br />

que isso se refere a Cristo em sua função <strong>de</strong> Mediador. Meu ponto <strong>de</strong><br />

visto é que ele é inferior ao Pai em razão <strong>de</strong> ter-se vestido com nossa<br />

natureza, <strong>de</strong> modo a tornar-se o Primogênito entre muitos irmãos.<br />

Há excessiva dificulda<strong>de</strong> no que segue. Aqui o homem é colocado<br />

numa posição imediata entre Cristo e a mulher, <strong>de</strong> modo que Cristo<br />

não constitui a Cabeça da mulher. Todavia, é o próprio apóstolo que<br />

em Gálatas 3.28 ensina que “em Cristo... não há nem macho nem fêmea”.<br />

Por que ele conservou esta diferença aqui, quando a eliminou na<br />

outra passagem? Minha resposta é que a solução <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do contexto<br />

<strong>de</strong> ambas as passagens. Quando Paulo diz que não há diferença entre<br />

homem e mulher, ele está falando do reino espiritual <strong>de</strong> Cristo, on<strong>de</strong><br />

as características externas [personae] não são levadas em conta, pois<br />

esse reino não tem nada a ver com o corpo [material], nada a ver com<br />

as relações físicas e recíprocas dos homens [ad externam hominum<br />

societatem]; assim, toda sua preocupação gira em torno do espírito.<br />

Eis a razão por que Paulo <strong>de</strong>clara que não há diferença nem mesmo<br />

entre escravo e livre. Contudo, ao mesmo tempo ele <strong>de</strong>ixa intata a or<strong>de</strong>m<br />

civil [civilem ordinem], bem como as distinções em honras, pois a<br />

vida cotidiana ordinária não po<strong>de</strong> avançar sem estas. Aqui, por outro<br />

lado, Paulo está preocupado com a proprieda<strong>de</strong> externa e o <strong>de</strong>coro,<br />

e pertence à esfera da or<strong>de</strong>m eclesiástica. Portanto, no que respeita à<br />

união espiritual [ad spiritualem coniunctionem], aos olhos <strong>de</strong> Deus, e<br />

interiormente, na consciência humana, Cristo é a Cabeça <strong>de</strong> ambos,<br />

homem e mulher, sem qualquer distinção, porque, no reino espiritual,<br />

nenhuma consi<strong>de</strong>ração é dada a macho ou fêmea. De igual forma, no


382 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

que tange às relações externas e a<strong>de</strong>quação social, o homem segue a<br />

Cristo e a mulher, ao homem, <strong>de</strong> modo que não estão no mesmo pé<br />

igualda<strong>de</strong>, mas, ao contrário, permanece essa <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>.<br />

Se alguém perguntar como fica o matrimônia em relação a Cristo,<br />

respondo que Paulo está falando aqui daquela união sacra [<strong>de</strong> sancto<br />

coniugio] <strong>de</strong> pessoas pias, união esta da qual Cristo é o sacerdote oficiante<br />

[antistes] e a qual é sacralizada em seu nome.<br />

4. Todo homem que ora. Das duas afirmações que ora seguem,<br />

a primeira tem a ver com o homem, e a segunda, com a mulher. Paulo<br />

diz que o homem dirige insulto a Cristo, sua Cabeça, caso ore ou profetizae<br />

com sua cabeça coberta. Por quê? Porque ele se fez sujeito a<br />

Cristo, e isso inclui a condição na qual ele assume o primeiro lugar no<br />

controle da família e seus negócios. Porque, em seu próprio lar, o pai<br />

<strong>de</strong> família é consi<strong>de</strong>rado rei. Portanto, ele reflete a glória <strong>de</strong> Deus, por<br />

causa do controle que se acha em suas mãos. Se porventura cobre sua<br />

cabeça, ele se rebaixa daquela preeminência na qual Deus o colocou, e<br />

se põe sob a autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outrem. Tal injúria é feita à dignida<strong>de</strong> que<br />

pertence a Cristo. Por exemplo, 12 se alguém é <strong>de</strong>signado por <strong>de</strong>terminada<br />

autorida<strong>de</strong> a agir em seu nome, e não sabe como conservar seu<br />

posto, 13 e faz pouco caso <strong>de</strong> sua posição, <strong>de</strong> modo a cair em ridículo,<br />

e mesmo em situação em extremo <strong>de</strong>gradante, não estará tal homem<br />

trazendo <strong>de</strong>scrédito àquela autorida<strong>de</strong> que o <strong>de</strong>signara? Semelhantemente,<br />

se o homem não conserva sua posição, e não se põe sob a<br />

autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo, <strong>de</strong> maneira a exercer sua própria autorida<strong>de</strong> na<br />

chefia <strong>de</strong> sua família, ele está, em certo sentido, obscurecendo a glória<br />

<strong>de</strong> Cristo, a qual é refletida na or<strong>de</strong>m perfeitamente constituída do<br />

matrimônio. Finalmente, a cobertura, como veremos mais adiante, é o<br />

emblema <strong>de</strong> uma autorida<strong>de</strong> intermédia e interposta.<br />

Consi<strong>de</strong>ro profetizar, aqui, no sentido <strong>de</strong> explicar os mistérios <strong>de</strong><br />

Deus visando à instrução daqueles que ouvem, como <strong>de</strong>paramos no<br />

12 “Mais afin <strong>de</strong> mieux entendre ceci, prenons vn exemple.” – “Mas, para que entendamos<br />

isso melhor, lancemos mão <strong>de</strong> um exemplo.”<br />

13 “Se maintenir, et vser <strong>de</strong> son authorite.” – “Conservar seu lugar e manter sua autorida<strong>de</strong>.”


Capítulo 11 • 383<br />

capítulo 14. Semelhantemente, orar significa cogitar que forma a oração<br />

tomará e fornecer diretrizes, por assim dizer, a todas as pessoas;<br />

e esta é a função do mestre público, 14 pois Paulo não está aqui discutindo<br />

oração em geral, e, sim, oração no culto público. Lembremo-nos,<br />

porém, <strong>de</strong> que aqui a extensão do erro dos coríntios consiste em que o<br />

<strong>de</strong>coro era prejudicado, e a diferença <strong>de</strong> condição, imposta por Deus,<br />

obscurecida. Pois não <strong>de</strong>vemos ser excessivamente preconceituosos,<br />

motivados pelo escrúpulo, imaginando que um mestre está invertendo<br />

tudo ao usar um solidéu em sua cabeça enquanto fala do púlpito ao<br />

povo. Entretanto, tudo o que Paulo tem em vista po<strong>de</strong> ser percebido<br />

claramente, ou, seja, que o homem está em posição <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>, e<br />

que a mulher se acha em posição <strong>de</strong> submissão em relação a ele, e que<br />

isso se dá quando o homem <strong>de</strong>scobre sua cabeça diante da congregação,<br />

mesmo que ele ponha novamente seu solidéu com o intuito <strong>de</strong><br />

não apanhar um resfriado. A súmula é: o princípio diretor é το πρέπον,<br />

a<strong>de</strong>quação; se isso for preservado, Paulo não pe<strong>de</strong> nada mais.<br />

5, 6. Toda mulher, porém, que ora e profetiza. A segunda proposição<br />

é que a mulher <strong>de</strong>ve manter sua cabeça coberta quando ora ou<br />

profetiza, doutra sorte estaria <strong>de</strong>sonrando sua cabeça. Pois o homem<br />

honra sua cabeça manifestando publicamente que é in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte;<br />

semelhantemente, a mulher assim proce<strong>de</strong> a fim <strong>de</strong> mostrar que ela<br />

está em submissão. Em contrapartida, se a mulher <strong>de</strong>scobre sua cabeça,<br />

ela estará se <strong>de</strong>svencilhando da submissão <strong>de</strong>vida, e com isso<br />

<strong>de</strong>monstra, ao mesmo tempo, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração por seu esposo. Não<br />

obstante, po<strong>de</strong> parecer <strong>de</strong>snecessário a Paulo proibir uma mulher <strong>de</strong><br />

profetizar com a cabeça <strong>de</strong>scoberta, visto que em 1 Timóteo 2.12 ele<br />

sumariamente priva a mulher <strong>de</strong> falar na igreja. Portanto, as mulheres<br />

não têm o direito <strong>de</strong> profetizar, nem mesmo com suas cabeças cobertas;<br />

e a conclusão óbvia é que para Paulo é perda <strong>de</strong> tempo prossiguir<br />

discutindo aqui a questão da cobertura [da cabeça]. A isso respondo<br />

que, ao <strong>de</strong>saprovar o apóstolo uma coisa, aqui, não significa que está<br />

14 “Du ministre et docteur <strong>de</strong> l’Eglise.” – “Do ministro e mestre da Igreja.”


384 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

aprovando a outra, ali. Pois quando as censura <strong>de</strong> profetizarem com a<br />

cabeça <strong>de</strong>scoberta, ele não está absolutamente fazendo uma concessão<br />

para profetizar, senão que está protelando a censura contra este<br />

erro para outra passagem [cap. 14]. Esta é uma resposta perfeitamente<br />

a<strong>de</strong>quada. Entretanto, po<strong>de</strong>-se a<strong>de</strong>quar a situação plenamente bem,<br />

dizendo que o apóstolo espera das mulheres esta conduta mo<strong>de</strong>sta,<br />

não só no local on<strong>de</strong> toda a congregação se reúne, mas também em<br />

qualquer outra das reuniões mais formais, seja <strong>de</strong> senhoras, seja <strong>de</strong><br />

senhores, como às vezes suce<strong>de</strong> em reuniões domésticas privativas.<br />

Porque é como se a tivesse rapada. Ele então se vale <strong>de</strong> outras<br />

razões para ultimar sua tese <strong>de</strong> que é inconveniente às mulheres conservarem<br />

suas cabeças <strong>de</strong>scobertas. A própria natureza revela que isso<br />

é um horror, diz ele. Uma mulher com sua cabeça rapada é algo asqueroso,<br />

<strong>de</strong>veras uma visão que agri<strong>de</strong> a natureza. Presumimos disto que<br />

à mulher foi dado seu cabelo como uma cobertura natural. Se alguém<br />

contesta que seu cabelo, sendo sua cobertura natural, é tudo quanto<br />

importa, Paulo diz que não, pois esta é uma cobertura <strong>de</strong> tal gênero que<br />

requer outra para cobri-la. E daqui po<strong>de</strong>mos aventurar-nos a uma conjetura<br />

provável <strong>de</strong> que as mulheres que possuíam uma invejável cabeleira<br />

tinham o hábito <strong>de</strong> aparecer em público com a cabeça <strong>de</strong>scoberta com<br />

o fim <strong>de</strong> exibir sua beleza. Portanto, Paulo, intencionalmente, remedia<br />

tal erro, expressando um conceito completamente oposto ao <strong>de</strong>las, a<br />

saber: que em vez <strong>de</strong> torná-las atraentes aos olhos dos homens, e <strong>de</strong>spertar<br />

sua luxúria, só serviam <strong>de</strong> espetáculo in<strong>de</strong>coroso. 15<br />

7. Naturalmente, o homem não <strong>de</strong>ve trazer sua cabeça velada. A<br />

mesma questão suscitada sobre a cabeça po<strong>de</strong> agora suscitar-se sobre<br />

a imagem. Pois ambos os sexos foram criados segundo a imagem <strong>de</strong><br />

Deus [ad imaginem Dei], e Paulo insiste que as mulheres, tanto quanto<br />

15 “Sainct Paul pour remedier à ce vice, propose tout le contraire <strong>de</strong> ce qui leur sembloit;<br />

disant s’en faut qu’en cela il y ait vne beaute pour attirer les hommes à connoitise, que<br />

plustot c’est vne chose lai<strong>de</strong> et <strong>de</strong>shonneste.” – “São Paulo, com vistas a remediar este<br />

viço, apresenta muito bem o reverso do que lhes parecia – dizendo que, no lugar <strong>de</strong> haver<br />

beleza nessa atitu<strong>de</strong> com o intuito <strong>de</strong> seduzir os homens, ao contrário era uma coisa em<br />

extremo feia e inconveniente.”


Capítulo 11 • 385<br />

os homens, são recriados segundo essa imagem. Entretanto, ao falar<br />

<strong>de</strong>ssa imagem aqui, ele está se referirindo ao estado conjugal [ad ordinem<br />

coniugalem]. Conseqüentemente, isso tem a ver com a presente<br />

vida, e, por outro lado, não tem nada a ver com a consciência. A solução<br />

simples é a seguinte: Aqui Paulo não trata da inocência ou santida<strong>de</strong><br />

que a mulher, tanto quanto o homem, po<strong>de</strong> ter; e, sim, da preeminência<br />

que Deus confere ao homem, <strong>de</strong> modo a fazê-lo superior à mulher.<br />

A glória <strong>de</strong> Deus é percebida num estado mais excelente através do<br />

homem, assim como é refletida em cada autorida<strong>de</strong> superior.<br />

A mulher é a glória do homem. Não há dúvida <strong>de</strong> que a mulher<br />

é um esplêndido adorno na vida do homem. Pois Deus a dignificou<br />

muitíssimo, <strong>de</strong>signando-a para ser companheira e auxiliadora à vida<br />

do homem, 16 e em colocá-la sujeita a ele, como o corpo à cabeça. Pois<br />

a <strong>de</strong>scrição que Salomão faz [Pv 12.4] da esposa conscienciosa, como<br />

sendo a coroa <strong>de</strong> seu esposo, é genuína no tocante a toda a classe<br />

feminina, se refletirmos sobre a or<strong>de</strong>nação divina; pois isso é o que<br />

Paulo está corroborando aqui, ao mostrar que a mulher foi criada com<br />

o expresso propósito <strong>de</strong> enriquecer sublimemente a vida do homem.<br />

8, 9. Porque o homem não provém da mulher. Ele agora faz uso<br />

<strong>de</strong> dois argumentos em prol da superiorida<strong>de</strong> que atribuía ao homem<br />

sobre a mulher. O primeiro é que a mulher se originou do homem,<br />

e que portanto ela tem uma condição inferior. O segundo é que a<br />

mulher foi criada por causa do homem, e portanto está sujeita a ele,<br />

como um artigo concluído <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do propósito por que foi feito. 17<br />

Que o homem é a origem da mulher, e a razão por que ela foi criada,<br />

é evi<strong>de</strong>nte à luz da lei: “Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-<br />

-ei uma auxilia dora idônea” [Gn 2.18]. Em seguida: “E da costela que<br />

o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e a trouxe a<br />

Adão” [Gn 2.21, 22].<br />

16 “Pour estre compagne à l’homme, pour viure auec luy, et pour luy ai<strong>de</strong>r.” – “Ser uma companheira<br />

ao homem, viver com ele e ajudá-lo.”<br />

17 “Ainsi que l’œuure tendant à quelque fin est au <strong>de</strong>ssous <strong>de</strong> as cause et fin pour laquelle<br />

on le fait.” – “Como uma obra adaptada para algum <strong>de</strong>sígnio é inferior a sua causa e o<br />

<strong>de</strong>sígnio pelo qual ela foi feita.”


386 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

10. Por este motivo, a mulher <strong>de</strong>ve trazer em sua cabeça o sinal<br />

<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. 18 Dessa autorida<strong>de</strong> ele extrai um argumento 19 em prol<br />

do <strong>de</strong>coro externo. “A mulher está submissa”, diz ele, “portanto <strong>de</strong>ve<br />

usar o emblema <strong>de</strong> submissão.” No termo po<strong>de</strong>r há um exemplo <strong>de</strong><br />

metonímia, 20 posto que ele quer exibir um emblema por meio do qual<br />

a mulher <strong>de</strong>clara que ela se encontra sob o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seu esposo; e<br />

tal emblema está na cobertura, seja um manto, um véu 21 ou qualquer<br />

outra espécie <strong>de</strong> cobertura. 22<br />

Há quem inquira se Paulo está fazendo referência somente à mulher<br />

casada, porquanto há aqueles que restrinjem o que Paulo ensina<br />

aqui, com base no fato <strong>de</strong> que isso não diz respeito às virgens, porquanto<br />

elas não estão sujeitas à autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um esposo. No entanto,<br />

isso não passa <strong>de</strong> um equívoco, porquanto a visão <strong>de</strong> Paulo vai além,<br />

ou, seja, atinge a lei eterna <strong>de</strong> Deus, o qual criou o sexo feminino sujeito<br />

à autorida<strong>de</strong> dos homens. É <strong>de</strong>ssa forma que todas as mulheres<br />

nascem, para que reconheçam sua inferiorida<strong>de</strong> ao sexo masculino.<br />

Do contrário seria um argumento inconclusivo que Paulo extraiu da<br />

natureza, ao afirmar que, se uma mulher insiste em ter sua cabeça<br />

<strong>de</strong>scoberta, então seria melhor rapá-la, e isso se aplica igualmente às<br />

virgens.<br />

18 “Doit auoir sur la teste vne enseigne qu’elle est sous puissance.” – “Ela <strong>de</strong>ve ter sobre sua<br />

cabeça um emblema <strong>de</strong> que ela está sob autorida<strong>de</strong>.”<br />

19 “Vn argument et consequence.” – “Um argumento e inferência.”<br />

20 “Il y a <strong>de</strong> mot à mot au Grec, La femme doit auoir puissance sur la teste. Mais au mot <strong>de</strong><br />

puissance il y a une figure appellee metonymie.” – “No grego temos literalmente: A mulher<br />

<strong>de</strong>ve ter po<strong>de</strong>r sobre sua cabeça. Mas, na palavra po<strong>de</strong>r há uma figura chamada metonímia.”<br />

21 “C’est la couuerture <strong>de</strong> teste, soit un chapperon, ou couurechef, ou coiffe, ou chose semblable.”<br />

– “É uma cobertura da cabeça, seja um capuz, ou um chale, ou uma coifa, ou algo<br />

<strong>de</strong>sse gênero.”<br />

22 O termo εξουσία (exousia) é consi<strong>de</strong>rado por Bloomfield como sendo o nome <strong>de</strong> um artigo<br />

do vestuário, do qual se faz menção em Rute 3.15 e Isaías 3.23, e consistia <strong>de</strong> “uma peça<br />

<strong>de</strong> roupa <strong>de</strong> uma forma quadriculada lançada sobre a cabeça e amarrada <strong>de</strong>baixo do<br />

queixo”. Granville Penn, em contrapartida, a consi<strong>de</strong>ra como sendo nada mais que o (τι)<br />

κατα κεγαλης no terceiro versículo do capítulo – algo sobre a cabeça, ou uma cobertura<br />

sobre a cabeça, e nota que era algo notável, que na versão <strong>de</strong> Wiclif (1380) a tradução é<br />

a seguinte: “a mulher terá uma manta em sua cabeça”, o que o dissionário explica como<br />

sendo uma cobertura.


Capítulo 11 • 387<br />

Por causa dos anjos. Esta passagem é explicada <strong>de</strong> diversas maneiras.<br />

Uma vez que o profeta Malaquias chama os sacerdotes <strong>de</strong> anjos<br />

<strong>de</strong> Deus [2.7], alguns acreditam que Paulo aqui está se referindo a eles.<br />

Não obstante, os ministros da Palavra em parte algum têm esse termo<br />

aplicado à sua pessoa sem que algo mais seja acrescido; além disso,<br />

esse sentido seria um tanto forçado. Portanto, eu o consi<strong>de</strong>ro em seu<br />

sentido usual. Mas alguém po<strong>de</strong>ria perguntar por que Paulo queria<br />

que as mulheres tivessem suas cabeças veladas por causa dos anjos.<br />

O que isso tem a ver com eles? Alguns respon<strong>de</strong>m que os anjos estão<br />

presentes quando os crentes se põem a orar, e são por isso espectadores<br />

<strong>de</strong> algum in<strong>de</strong>coro que furtivamente tiver ingresso em suas<br />

reuniões. Não obstante, que necessida<strong>de</strong> há <strong>de</strong> uma idéia tão engenhosa?<br />

Sabemos que os anjos estão em constante assistência, ainda mais<br />

sob Cristo como sua Cabeça, oferecendo-lhe seu ministério. 23 Quando,<br />

pois, as mulheres se aventuram a impor sua liberda<strong>de</strong>, ao ponto<br />

<strong>de</strong> usurpar o emblema <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> tornam manifesta sua vileza aos<br />

olhos dos anjos. Portanto, isso foi expresso à guisa <strong>de</strong> ampliação,<br />

como se ele quisesse dizer: “Se as mulhres <strong>de</strong>scobrem suas cabeças,<br />

não somente Cristo, mas igualmente todos os anjos testemunharão<br />

tamanho ultraje.” E esta interpretação se a<strong>de</strong>qua muito bem ao propósito<br />

do apóstolo. Ele está tratando aqui da posição social que cada<br />

classe mantém. E ele diz que, quando as mulheres se põem numa posição<br />

mais elevada à que têm direito, elas granjeiam isto para si: põem<br />

a <strong>de</strong>scoberto aos olhos dos anjos celestiais quão impu<strong>de</strong>ntes elas são.<br />

11. Nem o homem existe sem a mulher. Isto é adicionado, em<br />

parte para refrear os homens <strong>de</strong> tratarem suas mulheres 24 <strong>de</strong> forma<br />

injuriosa, e em parte para injetar consolação nas mulheres, a fim <strong>de</strong><br />

que sua submissão não lhes seja uma fonte <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontentamento.<br />

Ele está dizendo: “O sexo masculino exerce distinção sobre o sexo<br />

23 “Et sont tousiours à son comman<strong>de</strong>ment et seruice.” – “E estão sempre a suas or<strong>de</strong>m e<br />

serviço.”<br />

24 “Qu’ils n’ayent les femmes en <strong>de</strong>sdain et mocquerie.” – “Para que não tenham as mulheres<br />

em <strong>de</strong>sdém e <strong>de</strong>sprezo.”


388 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

feminino, com este discernimento: que <strong>de</strong>vem manter-se unidos em<br />

mútua benevolência; porquanto um não po<strong>de</strong> subsistir sem o outro.<br />

Eles, separados, se assemelhariam a membros mutilados <strong>de</strong> um corpo<br />

<strong>de</strong>stroçado. Portanto, que vivam unidos um ao outro pelo vínculo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>veres mútuos.” 25<br />

Ao dizer, “no Senhor”, ele está relembrando aos crentes que fora<br />

o Senhor que o <strong>de</strong>terminara; ao passo que a única coisa que os incrédulos<br />

percebem é a pressão da necessida<strong>de</strong>. 26 Pois se os ímpios não<br />

encontram nenhuma dificulda<strong>de</strong> em viver a vida <strong>de</strong> solteiro, então<br />

olham com <strong>de</strong>sprezo para o sexo oposto e não atentam para o fato <strong>de</strong><br />

que a <strong>de</strong>terminação e o <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Deus os puseram sob igual obrigação.<br />

Mas os crentes estão bem cônscios <strong>de</strong> que o sexo masculino é<br />

apenas a meta<strong>de</strong> da raça humana. Pon<strong>de</strong>ram sobre o significado que<br />

as seguintes palavras têm para eles: “Deus criou o homem [hominem]<br />

... macho e fêmea os criou” [Gn 1.27 e 5.2]. Assim reconhecem francamente<br />

que <strong>de</strong>vem alguma coisa ao sexo frágil. As mulheres crentes,<br />

semelhantemente, pon<strong>de</strong>ram sobre quais são seus <strong>de</strong>veres. 27 E assim<br />

o homem não possui vida sem a mulher, pois isso seria uma cabeça<br />

<strong>de</strong>cepada do corpo; nem possui a mulher qualquer existência sem o<br />

homem, pois isso seria um corpo sem a cabeça. Que o homem, pois,<br />

cumpra sua função como cabeça, mantendo a supremacia sobre a<br />

mulher; e que esta exerça sua função como corpo, assessorando o homem.<br />

E que esta seja a norma não só para os casados, mas igualmente<br />

para os solteiros; pois aqui não me preocupo com o matrimônio, mas<br />

com as obrigações públicas, as quais são atinentes também à vida daqueles<br />

que ainda não se casaram. Se sua opinião era que isso seria<br />

mais aplicável a todos os sexos, não discuto. Não obstante, como Paulo<br />

está dirigindo-se aos indivíduos, tudo indica estar ele realçando a<br />

função <strong>de</strong> cada um.<br />

25 “Par ce lien d’ai<strong>de</strong><strong>de</strong> et amitie mutuelle.” – “Por este laço <strong>de</strong> assistência e amiza<strong>de</strong> mútuas.”<br />

26 “La necessite qui les presse et contraint.” – “A necessida<strong>de</strong> que os pressiona e constrange.”<br />

27 “Pensent à leur <strong>de</strong>uoir, et que <strong>de</strong> leur costé elles sont obligees aux hommes.” – “Lembram-<br />

-se do <strong>de</strong>ver e da obrigação, <strong>de</strong> sua parte para com os homens.”


Capítulo 11 • 389<br />

12. Porque, como a mulher provém do homem. Se esta é uma<br />

das razões por que o homem <strong>de</strong>sfruta <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong>, a saber,<br />

que a mulher foi tomada <strong>de</strong>le, da mesma forma existe uma forte razão<br />

para sua relação carinhosa com ela, a saber, os homens não são<br />

capazes <strong>de</strong> cuidar <strong>de</strong> si mesmos e nem <strong>de</strong> se manter sem a cooperação<br />

das mulheres. Pois ainda permanece um fato inegável, a saber:<br />

que “não é bom que o homem esteja só” [Gn 2.18]. O que Paulo diz<br />

aqui po<strong>de</strong> sem dúvida ser consi<strong>de</strong>rado como uma referência à propagação,<br />

visto que os seres humanos não são um produto exclusivo<br />

do homem, senão que provêm da somatória homem/mulher. Mas<br />

o entendo também no sentido em que a mulher é uma ajudadora<br />

indispensável ao homem, visto que uma vida solitária não é conveniente<br />

ao homem. Este <strong>de</strong>creto divino nos exorta a cultivarmos<br />

relações mútuas.<br />

Todas as coisas, porém, provêm <strong>de</strong> Deus. Deus é a Fonte <strong>de</strong><br />

ambos os sexos. Por isso, ambos <strong>de</strong>vem humil<strong>de</strong>mente aceitar e preservar<br />

a porção que lhes foi <strong>de</strong>signada por Deus. Que o homem, pois,<br />

exerça sua autorida<strong>de</strong> com mo<strong>de</strong>ração, e não maltrate a mulher, a qual<br />

lhe foi dada como sua companheira. Que a mulher viva contente com<br />

sua posição <strong>de</strong> submissão, e não se sinta afrontada por ocupar uma<br />

posição inferior em relação ao sexo mais distinguido. Caso contrário,<br />

ambos se livrariam do jugo do Deus que fez tais diferenças em suas posições<br />

visando a que as mesmas lhes fossem benéficas. Além do mais,<br />

é muito mais grave dizer que, quando o homem e a mulher cessam<br />

<strong>de</strong> cumprir suas obrigações recíprocas, estão se rebelando contra a<br />

autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, do que Paulo dizer que estão lançando injúria um<br />

contra o outro.<br />

14. Ou não vos ensina a própria natureza? Ele uma vez mais põe<br />

a natureza diante <strong>de</strong>les como a mestra do <strong>de</strong>coro. Ora, ele indica, pelo<br />

termo natural, o que estava naquele tempo em uso comum por consenso<br />

e costume universais – isto é, entre os gregos –, ele fala como sendo<br />

natural, porque nem sempre se reconhecia como uma infâmia ter o homem<br />

cabelos longos. Obras históricas relatam que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primórdios


390 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

os homens, em muitos países, usavam cabelos longos. 28 Daí os poetas<br />

cultivarem o hábito <strong>de</strong> falar sobre os antigos, aplicando-lhes o epíteto<br />

popular <strong>de</strong> “não-tosquiados”. 29 Em Roma, o uso da barba não teve início<br />

senão num período posterior, mais ou menos na época <strong>de</strong> Africanus o<br />

ancião [nascido em 235 d.C.]. No tempo em que Paulo escrevia estas<br />

palavras, a prática <strong>de</strong> cortar o cabelo não havia ainda sido adotada na<br />

Gália ou na Germânia. Sim, e mais que isso, certamente teria sido algo<br />

<strong>de</strong>sastroso para os homens – tanto quanto para as mulheres – terem<br />

seus cabelos tosquiados ou cortados. Mas, visto que os gregos não consi<strong>de</strong>ravam<br />

ser muito viril ter cabelos longos, o que caracterizava os que<br />

eram tidos na conta <strong>de</strong> efeminados, ele consi<strong>de</strong>ra como sendo conforme<br />

a natureza um costume que viera para ser confirmado. 30<br />

16. Mas, se alguém é amante <strong>de</strong> contendas. Amante <strong>de</strong> contendas<br />

é aquele que se <strong>de</strong>leita em instigar disputas, e <strong>de</strong> modo algum se<br />

preocupa com a verda<strong>de</strong>. Incluídos nesta categoria estão todos os que<br />

<strong>de</strong>stroem o bem e os costumes benéficos, sem qualquer necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

o assim fazer; que suscitam controvérsias sobre questões que são tão<br />

cristalinas como o sol ao meio-dia; que não param para pensar; que não<br />

po<strong>de</strong>m tolerar que alguém lhes seja superior. Nesta classe <strong>de</strong> pessoas<br />

31 estão incluídos também os anti-sociais (ἀκοινώνητοι) que acariciam<br />

28 O Presi<strong>de</strong>nte Edwards observa que “a ênfase usada, αὐτὴ ἡ φύσις, a própria natureza, mostra<br />

que o apóstolo não está falando do costume, mas da natureza no sentido usual. É<br />

verda<strong>de</strong> que o costume era tão antigo que ter a cabeça coberta tornou-se um emblema <strong>de</strong><br />

submissão, e um hábito ou aparência feminina, como o costume que faz com que alguma<br />

ação ou palavra externa vem a ser um sinal do sexo feminino. A própria natureza mostra<br />

ser um opróbrio que um pai se curve diante <strong>de</strong> seu próprio filho ou servo, porque, ao agir<br />

assim é, pelo costume, um emblema estabelecido <strong>de</strong> sujeição ou submissão.” Edwards,<br />

em Original Sin, part ii., chap. iii., sec. 3.<br />

29 Exemplos disso ocorrem em Ovídio, Fast. ii. 30, e em Horácio, Od. 2, 15, 11. A Gália, no<br />

norte dos Alpes, era chamada Gália comata, em vista <strong>de</strong> seus habitantes usarem seus<br />

cabelos longos. Homero aplica aos gregos <strong>de</strong> seu tempo o apelido <strong>de</strong> καρηκομόωντες –<br />

cabelos longos. Hom. Il., ii. 11.<br />

30 “Il appelle Nature ceste coustume <strong>de</strong>sia confermee par vn long temps et vsage commun.”<br />

– “Ele dá a <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> Natureza a este costume, já confirmado por muito tempo e uso<br />

comum.”<br />

31 “Qui ne se veulent en rien accommo<strong>de</strong>r aux autres.” – “Que não se dispôs a acomodar-se<br />

em nada a outros.” A palavra grega usada por Calvino aqui (ακοινωνητος) é empregada<br />

pelos escritores clássicos no sentido <strong>de</strong> não ter inter-relação, ou não preocupar-se em ter<br />

inter-relação com outros.


Capítulo 11 • 391<br />

um estranho conceito que os leva a um inusitado modo <strong>de</strong> vida. Paulo<br />

não crê que tais pessoas mereçam alguma resposta, porque o espírito<br />

polêmico é algo danoso, e por isso <strong>de</strong>ve ser mantido fora das igrejas. É<br />

por isso que Paulo nos ensina que os que são obstinados e amantes <strong>de</strong><br />

controvérsia <strong>de</strong>vem ser reprimidos com autorida<strong>de</strong>, em vez <strong>de</strong> serem<br />

submetidos a longos <strong>de</strong>bates e assim provem que laboram em erro. Pois<br />

se o leitor quiser satisfazer o contencioso <strong>de</strong> que é superior a ele, as<br />

disputas nunca chegarão ao fim; porque, ainda que seja refutado cem<br />

vezes, ele continuará argumentando cada vez mais atrevidamente.<br />

Portanto, prestemos muita atenção a este versículo a fim <strong>de</strong> não<br />

sermos arrebatados por argumentos fúteis. Daí, tenhamos sempre<br />

diante <strong>de</strong> nós o dispositivo que nos faça distinguir as pessoas contenciosas.<br />

Pois aquele que não concorda com nossas opiniões, ou tem<br />

suficiente coragem <strong>de</strong> nos fazer oposição, não significa que <strong>de</strong>va ser<br />

tido na conta <strong>de</strong> contencioso. Mas quando ele nos olha <strong>de</strong> frente, com<br />

insistência e obstinação, então afirmemos com Paulo que “as contenções<br />

estão em oposição aos costumes da Igreja”. 32<br />

17. Ora, nisto que vos <strong>de</strong>claro, não vos<br />

louvo; porquanto vos reunis não<br />

para melhor, e, sim, para pior.<br />

18. Porque, antes <strong>de</strong> tudo, quando vos<br />

reunis na igreja, o que tenho ouvido<br />

é que há divisões entre vós; e em<br />

parte acredito.<br />

19. Pois é necessário que haja heresias<br />

entre vós, para que também os aprovados<br />

<strong>de</strong>ntre vós se manifestem.<br />

20. Quando, pois, vos reunis em um lugar,<br />

isso não significa comer a ceia<br />

do Senhor;<br />

21. porque, ao comer<strong>de</strong>s, cada um<br />

toma antes <strong>de</strong> outro sua própria<br />

ceia; e, assim, um está faminto e outro,<br />

embriagado.<br />

17. Hoc autem <strong>de</strong>nuntians non laudo,<br />

quod non in melius, sed in peius<br />

convenitis.<br />

18. Primum enim, convenientibus vobis<br />

in Ecclesiam, audio dissidia<br />

inter vos esse: et ex parte credo.<br />

19. Oportet enim hæreses quoque esse<br />

in vobis, ut qui probe sunt, manifesti<br />

fiant inter vos.<br />

20. Convenientibus ergo vobis in<br />

unum, non est Dominicam cœnam<br />

e<strong>de</strong>re.<br />

21. Unusquisque enim propriam cœnam<br />

præsumit e<strong>de</strong>ndo: atque hic<br />

qui<strong>de</strong>m esurit, ille autem ebrius est.<br />

32 “Que ce n’est point la coustume <strong>de</strong> l’Eglise d’entrer en <strong>de</strong>batis, et contentions.” – “Que<br />

não é o costume da Igreja entrar em querelas e contendas.”


392 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

22. Será que não ten<strong>de</strong>s casas on<strong>de</strong> comer<br />

e beber? Ou <strong>de</strong>sprezais a igreja<br />

<strong>de</strong> Deus e envergonhais os que nada<br />

possuem? Que vos direi eu? Louvar-<br />

-vos-ei nisto? Não vos louvo.<br />

22. Numquid domos non habetis, ad<br />

e<strong>de</strong>ndum et bibendum, aut Ecclesiam<br />

Dei contemnitis, et pudore<br />

afficitis eos qui non habent? Quid<br />

vobis dicam? Laudabo vos in hoc?<br />

Non laudo.<br />

A reprovação que ele externa, contra os erros <strong>de</strong>scritos na primeira<br />

parte do capítulo, não passa <strong>de</strong> uma gentil admoestação, visto<br />

que os coríntios pecavam por uma questão <strong>de</strong> ignorância, e por isso<br />

era justo que fossem prontamente perdoados. No início do capítulo,<br />

Paulo os elogia por terem fielmente guardado as instruções que<br />

lhes ministrara [1Co 11.2]. Agora ele inicia uma reprovação muito<br />

mais incisiva, porquanto estavam cometendo certas ofensas <strong>de</strong> natureza<br />

muito mais grave; e <strong>de</strong>sta vez não havia como acusá-los <strong>de</strong><br />

ignorância.<br />

17. Ora, nisto que vos <strong>de</strong>claro, não vos louvo. 33 Esta é minha<br />

solução para a dificulda<strong>de</strong> existente aqui, porquanto tudo indica que<br />

Paulo intercambiou o particípio e o verbo. 34 A interpretação <strong>de</strong> Erasmo<br />

não se a<strong>de</strong>qua bem, ao traduzir παραγγέλειν no sentido <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nar. O<br />

verbo <strong>de</strong>nunciar, porém, se a<strong>de</strong>qua melhor ao contexto, porém quanto<br />

a isso não polemizo.<br />

Há uma antítese entre esta frase e o que ele diz no início do<br />

capítulo. Ele po<strong>de</strong>ria ter posto nestes termos: “Visto que vos tenho<br />

elogiado, não tireis conclusão apressada pensando que não haja<br />

restrição em meu elogio, pois tenho algo com que responsabilizar-<br />

-vos, algo que <strong>de</strong>veras merece reprovação.” Em minha opinião,<br />

porém, isto não se relaciona unicamente com a Ceia do Senhor, mas<br />

33 “Or ie vous rememore ceci, non point eu louant. Il y a au Grec mot à mot. Or rememorant<br />

ie ne loue point.” – “Mas eu vos faço cônscios disto, que não vos louvo por isto. No grego<br />

lemos literalmente: Mas faço-vos conscientes <strong>de</strong> que não vos louvo.”<br />

34 Na explicação <strong>de</strong>sta observação, observe-se que a redação no manuscrito alexandrino temos:<br />

Του̑το δε παραγγέλω οὐκ ἐπαινω̑ν – Advirto-vos, porém, nestes termos: não louvando.<br />

Esta redação é seguida das versões Latina e Siríaca. Em Wiclif (1380) a tradução é: “Mas<br />

esta coisa or<strong>de</strong>no, não louvando.” Na Rheims (1582): “E isto or<strong>de</strong>no, não louvando.”


Capítulo 11 • 393<br />

também com outros pecados, os quais Paulo mencionará. Portanto,<br />

consi<strong>de</strong>remos isto como uma afirmação geral, ao dizer que os coríntios<br />

são repreendidos em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> se reunirem, não para melhor,<br />

e, sim, para pior. Os resultados específicos <strong>de</strong>ste mal serão tratados<br />

mais adiante.<br />

A primeira queixa <strong>de</strong> Paulo contra eles é que se reuniam, não<br />

para melhor; sua segunda queixa é que assim faziam para pior. Por<br />

certo que a segunda é <strong>de</strong> caráter mais grave. Mas a primeira não<br />

<strong>de</strong>ve, tampouco, ser minimizada; porque, se prestarmos atenção<br />

no que suce<strong>de</strong> na Igreja, nem uma única reunião do povo <strong>de</strong>ve ser<br />

consi<strong>de</strong>rada sem algum fruto. Pois ali ouvimos a instrução divina,<br />

oferecemos orações e os Sacramentos são administrados. A Palavra<br />

produz fruto quando confiamos em Deus e seu temor age e cresce<br />

em nosso interior; quando fazemos progresso na vida <strong>de</strong> santida<strong>de</strong>;<br />

quando, paulatinamente, nos <strong>de</strong>spimos do velho homem [Cl 3.9];<br />

quando avançamos em novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida [Rm 6.4]. O propósito dos<br />

Sacramentos é que nos entreguemos à prática da <strong>de</strong>voção e do amor.<br />

As orações, também, <strong>de</strong>vem ser eficazes em promover todos esses<br />

propósitos. Além <strong>de</strong> tudo isso, o Senhor opera eficazmente através<br />

<strong>de</strong> seu Espírito, visto que não quer que as coisas que nos foram<br />

<strong>de</strong>stinadas sejam infrutíferas. Portanto, se não extrairmos algum benefício<br />

das reuniões <strong>de</strong> culto, e não nos tornarmos pessoas melhores<br />

em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>las, nossa ingratidão é que merece vexame, e por<br />

isso merecemos ser reprovados. Pois nós mesmos somos a causa<br />

daquilo que, por sua própria natureza e pelo <strong>de</strong>sígnio divino, <strong>de</strong>ve<br />

trazer-nos benefícios ou privar-nos <strong>de</strong>les.<br />

Então segue o segundo erro, a saber: os que se reúnem para pior.<br />

Este é um problema muito mais sério, todavia é quase sempre resultante<br />

do primeiro. Pois se não extraímos nenhum proveito das coisas<br />

<strong>de</strong> que Deus nos proveu, a forma que ele usa para punir nossa indolência<br />

é permitindo que nos tornemos piores. E esta é, geralmente, a<br />

razão por que a negligência provoca tanta corrupção; e geralmente<br />

suce<strong>de</strong> que a negligência dá origem a muitas corrupções, especialmen-


394 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

te porque os que não observam o uso natural das coisas <strong>de</strong> repente<br />

passam às invenções perniciosas. 35<br />

18. Quando vos reunis na igreja, o que tenho ouvido é que há<br />

divisões. Há quem conclua que divisões e heresias se referem àquela<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m (ἀταξίαν) sobre a qual ele discorrerá logo a seguir. Entendo<br />

que elas abrangem mais do que isto. Aliás, é improvável que ele tivesse<br />

usado termos como estes, não ajustáveis nem a<strong>de</strong>quáveis, para<br />

<strong>de</strong>screver tal abuso. 36 Alguns <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a opinião <strong>de</strong> que Paulo usou<br />

linguagem mais severa com o intuito <strong>de</strong> realçar a gravida<strong>de</strong> do pecado<br />

<strong>de</strong>les e expô-lo <strong>de</strong> forma ainda mais clara. Estaria disposto a concordar,<br />

se o significado das palavras se a<strong>de</strong>quasse a tal idéia. Portanto,<br />

sua reprovação aqui, em termos gerais, visa a mostrar que não estavam,<br />

como cristãos, vivendo em harmonia, e, sim, que todos estavam<br />

por <strong>de</strong>mais envolvidos em seus próprios negócios para envidar algum<br />

esforço em benefício da vida <strong>de</strong> outrem. Esta a raiz <strong>de</strong>sse abuso particular,<br />

o que percebemos quase <strong>de</strong> imediato; esta era a origem <strong>de</strong> sua<br />

vaida<strong>de</strong> e arrogância, <strong>de</strong> modo que cada um se colocava num pe<strong>de</strong>stal<br />

elevado e olhava <strong>de</strong> cima para os <strong>de</strong>mais; esta era a origem <strong>de</strong> sua<br />

negligência na edificação [da Igreja] e em sua profanação dos dons<br />

divinos.<br />

Ele diz que em parte o crê, para que nem todos concluíssem que<br />

ele consi<strong>de</strong>rava a ofensa como sendo em tal grau <strong>de</strong> gravida<strong>de</strong> que<br />

culpava a cada um <strong>de</strong>les, sem distinção, sem dar-lhes a chance <strong>de</strong><br />

reclamarem que estavam sendo acusados por algo <strong>de</strong> que eram inocentes.<br />

Entretanto, ao mesmo tempo ele alega que isso chegara a seus<br />

ouvidos, não através <strong>de</strong> um mero ou vago rumor, mas através <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>poimento mui <strong>de</strong>finido, cuja fi<strong>de</strong>dignida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>scartar-se<br />

completamente.<br />

35 “Principalement pource que ceux qui ne regar<strong>de</strong>ut à tenir le droit et naturel usage <strong>de</strong>s<br />

choses, sont suites à tomber incontinent en beaucoup d’inuentions peruerses et dangereuses.”<br />

– “Principalmente porque os que não cuidam em observar o uso correto e<br />

natural das coisas, são passíveis <strong>de</strong> cair <strong>de</strong> ponta cabeça em muitas invenções perversas<br />

e danosas.”<br />

36 “Qu’il leur remonstrera qu’ils fout en la Cene.” – “Que ele mostrará que têm fracassado no<br />

que concerne à Ceia.”


Capítulo 11 • 395<br />

19. Pois é necessário que até mesmo haja heresia entre vós. Ele<br />

já havia mencionado as divisões; agora menciona as heresias, com o<br />

intuito <strong>de</strong> tornar as coisas ainda mais claras. Além do mais, <strong>de</strong>duzimos<br />

esse fato do uso que ele faz da palavra também [até mesmo], pois ela é<br />

inserida à guisa <strong>de</strong> ampliação (προς αὔξησιν). É notório em que sentido<br />

os pais usaram estes dois termos, 37 e que gênero <strong>de</strong> distinção faziam<br />

entre herejes e cismáticos. Sustentavam que heresia consiste em <strong>de</strong>sacordo<br />

sobre doutrina; e cisma consite mais em alienação do afeto;<br />

como, por exemplo, quando alguém abandona a Igreja motivado por<br />

indisposição ou aversão que sente pelos ministros, ou pela dificulda<strong>de</strong><br />

em concordar com os <strong>de</strong>mais. A <strong>de</strong>speito do fato <strong>de</strong> o mal ensino só<br />

po<strong>de</strong>r levar à cisão da igreja, <strong>de</strong> modo que a heresia se torna a raiz e<br />

fonte do cisma; e a <strong>de</strong>speito do fato <strong>de</strong> a inveja ou orgulho ser a mãe <strong>de</strong><br />

quase toda heresia, não obstante é valioso que se faça distinção entre<br />

estes dois elementos.<br />

Entretanto, vejamos em que sentido Paulo os emprega aqui. Já <strong>de</strong>scartei<br />

o conceito daqueles que explicam heresia como sendo a divisão<br />

que ocorria à mesa, ou em que o rico não partilhava sua ceia com o<br />

pobre; pois a intenção <strong>de</strong> Paulo era realçar algo ainda mais ofensivo.<br />

Pondo <strong>de</strong> lado, porém, outros pontos <strong>de</strong> vista, tomo cisma e heresia<br />

aqui como sendo uma questão <strong>de</strong> posição em que um vai além do outro.<br />

Assim, o cisma será sempre encontrado on<strong>de</strong> estão presentes animosida<strong>de</strong>s<br />

secretas, on<strong>de</strong> está ausente aquela harmonia que <strong>de</strong>ve haver<br />

entre os crentes, ou on<strong>de</strong> interesses conflitantes impõem sua presença;<br />

on<strong>de</strong> cada um pensa nos próprios meios <strong>de</strong> assegurar seus direitos, não<br />

acalentando o mínimo interesse no que os outros dizem ou fazem. A<br />

heresia aparece on<strong>de</strong> o mal é por <strong>de</strong>mais acentuado, e avança <strong>de</strong> uma<br />

forma tão solerte, que a hostilida<strong>de</strong> se acentua <strong>de</strong> tal forma que os homens<br />

se dispõem francamente a dividir-se em partidos opostos.<br />

Daí, a fim <strong>de</strong> que os crentes não se sentissem <strong>de</strong>sanimados ao verem<br />

os coríntios se dilacerando em divisões, o apóstolo focaliza a causa<br />

37 “Schisme et Heresie.” – “Cisma e Heresia.”


396 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

das ofensas <strong>de</strong> uma perspectiva totalmente diferente, dizendo que tudo<br />

isso acontecia porque o Senhor estava pondo à prova a perseverança<br />

<strong>de</strong> seu próprio povo por meio <strong>de</strong> experiências como estas. Que glorioso<br />

conforto! Diz ele: “Quando o que vemos na Igreja nada tem a ver com<br />

a perfeita unida<strong>de</strong>, mas, ao contrário, percebemos nitidamente certos<br />

traços <strong>de</strong> fragmentação provinda do fato <strong>de</strong> seus membros não conseguirem<br />

viver juntos em harmonia, então não nos fica dúvida alguma <strong>de</strong><br />

que seremos perturbados e como resultado nos dispomos a <strong>de</strong>sistir;<br />

não obstante, ainda que as seitas entrem em cena, 38 <strong>de</strong>vemos permanecer<br />

firmes e resolutos. Porque é assim que não só os hipócritas são<br />

i<strong>de</strong>ntificados, mas também, em contrapartida, a sincerida<strong>de</strong> dos fiéis<br />

é comprovada. Pois, <strong>de</strong> um lado, assim como isso nos evi<strong>de</strong>ncia a levianda<strong>de</strong><br />

dos que não se acham radicados na Palavra do Senhor e a<br />

<strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong> dos que se esnobam e se passam por boa gente, assim<br />

também, do outro lado, isso propicia aos bons a chance <strong>de</strong> fornecerem<br />

mais clara evidência <strong>de</strong> sua inabalabilida<strong>de</strong> e sincerida<strong>de</strong>.”<br />

No entanto, é bom notar que Paulo diz ser necessário, pois, ao<br />

fazer uso <strong>de</strong>sta expressão, sua intenção é evi<strong>de</strong>nciar que esta situação<br />

não surge casualmente, mas que surge pela infalível providência divina,<br />

visto que o Senhor visa a experimentar seu próprio povo como se<br />

faz com o ouro num cadinho. Ora, se isso é agradável a Deus, segue-se<br />

que nos é igualmente benéfico. Todavia, tal fato não nos <strong>de</strong>ve servir <strong>de</strong><br />

base para entrarmos em espinhosos <strong>de</strong>bates, ou, pior ainda, não serve<br />

para nos embrenharmos por confusos labirintos sobre a questão da<br />

necessida<strong>de</strong> fatal. Sabemos que jamais haverá um tempo em que não<br />

mais existam pessoas falsas. Sabemos que tais pessoas são controladas<br />

pelo espírito <strong>de</strong> Satanás, e que o mal as mantém verda<strong>de</strong>iramente<br />

cativas. Sabemos que Satanás perseverantemente faz <strong>de</strong> tudo para ver<br />

rompida a unida<strong>de</strong> da Igreja. Esta é a origem da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que<br />

Paulo está falando, 39 não <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino. Também sabemos que em sua<br />

38 “De tous costez.” – “De todos os lados.”<br />

39 “De là vient ceste necessite <strong>de</strong> laquelle S. Paul fait mention, et non pas <strong>de</strong> ce Fatum que<br />

les Stoiques ont imaginé, que l’on nomme communeement Destine. Voyez l’Institution.”


Capítulo 11 • 397<br />

grandiosa sabedoria o Senhor reverte os perniciosos propósitos <strong>de</strong> Satanás<br />

para a salvação dos fiéis. 40 Assim suce<strong>de</strong> ao resultado que Paulo<br />

<strong>de</strong>screve, ou, seja: “Para que, os que são retos, sejam percebidos muito<br />

mais claramente.” Pois <strong>de</strong> forma alguma se <strong>de</strong>ve imaginar que uma<br />

bênção tal como esta tenha sua fonte na heresia, a qual sendo por si<br />

mesma má, não po<strong>de</strong> produzir coisa alguma senão o que é nocivo; mas<br />

a bênção emana <strong>de</strong> Deus, o qual reverte a natureza das coisas por sua<br />

infinita benevolência, <strong>de</strong> modo que tudo quanto Satanás porventura<br />

maquine para a <strong>de</strong>struição dos eleitos, isso mesmo se transforma em<br />

bênção para eles.<br />

Ora, Crisóstomo argumenta dizendo que a partícula ἵνα indica não<br />

causa, e, sim, efeito. Isso não é <strong>de</strong> muita importância. Pois a causa é<br />

o secreto conselho <strong>de</strong> Deus, 41 por meio do qual as coisas ruins são<br />

manipuladas <strong>de</strong> tal sorte que tudo se reverte em bem. Finalmente, sabemos<br />

que os ímpios são impelidos por Satanás, <strong>de</strong> tal maneira, que<br />

são não só movidos a agir, mas também eles <strong>de</strong> bom grado agem movidos<br />

por vonta<strong>de</strong> própria! 42 Portanto, eles são <strong>de</strong>ixados sem qualquer<br />

justificativa.<br />

20. Não é possível comer-se a Ceia do Senhor. Uma vez mais,<br />

ele volta a con<strong>de</strong>nar o abuso que tivera acesso sorrateiramente na<br />

observância corintiana da Ceia do Senhor, a saber: estavam confundindo<br />

banquetes ordinários com aquela festa que é santa e espiritual;<br />

e, concomitantemente, tratavam os pobres com <strong>de</strong>sdém. Paulo afirma<br />

que, quando se age assim, já não é a Ceia do Senhor que se come;<br />

não porque um abuso particular estaria <strong>de</strong>struindo completamente e<br />

– “Disto provém que a necessida<strong>de</strong> da qual São Paulo faz menção, e não daquele Fado <strong>de</strong><br />

que os estóicos têm sonhado e que é comumente chamado Destino.” Ver nas Institutas.<br />

40 “Conuertit au profit et salut <strong>de</strong>s fi<strong>de</strong>les les machinations <strong>de</strong> Satan horribles et pernicieuses.”<br />

– “Converte as horríveis e perniciosas maquinações <strong>de</strong> Satanás em benefício e<br />

salvação para os crentes.”<br />

41 “Car à parler proprement, la cause <strong>de</strong> ceci <strong>de</strong>pend du secret conseil <strong>de</strong> Dieu.” – “Porque,<br />

propriamente falando, a causa disto <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do secreto conselho <strong>de</strong> Deus.”<br />

42 “Ce qu’ils font, et ce que Satan leur fait faire, ils le font volontairement, et non point par<br />

force.” – “O que fazem, e o que Satanás faz neles, o fazem voluntariamente, e não movidos<br />

pela força.”


398 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

reduzindo a nada a mais sacra das instituições <strong>de</strong> Cristo, mas porque<br />

estavam profanando o sacramento ao celebrá-lo erroneamente. Em<br />

nossa conversação ordinária, costumamos dizer que uma coisa não<br />

merece ser feita, a menos que seja feita corretamente. Ora, este não<br />

era um abuso trivial, como veremos adiante.<br />

Se tomarmos a expressão “não é possível” no sentido <strong>de</strong> “não<br />

é admissível”, 43 como fazem alguns, não fará diferença no significado,<br />

ou, seja, que os coríntios não estavam preparados para comer<br />

a Ceia do Senhor, visto que se achavam totalmente divididos. Não<br />

obstante, o que já expus é mais simples, a saber: que Paulo con<strong>de</strong>na<br />

a inclusão <strong>de</strong> coisas comuns que não têm nenhuma relação com a<br />

Ceia do Senhor.<br />

21. Porque cada um toma antes <strong>de</strong> outros sua própria ceia. É<br />

algo em extremo fantástico, e inclusive quase um milagre, 44 que Satanás<br />

tenha sido capaz <strong>de</strong> fazer tanto, em tão pouco espaço <strong>de</strong> tempo.<br />

Isso serve <strong>de</strong> exemplo para prevenir-nos sobre o quanto uma coisa<br />

antiga po<strong>de</strong> fazer quando não endossada por qualquer razão; em outros<br />

termos, quanta influência tem um costume bem estabelecido,<br />

quando a própria Palavra <strong>de</strong> Deus não fornece sequer uma partícula<br />

<strong>de</strong> evidência que o justifique. Visto que tal costume se tornara comum,<br />

concluíram que o mesmo era legítimo. Naquele tempo, Paulo<br />

estava pronto para intervir. Mas, como ficou a situação após a morte<br />

dos apóstolos? Bem po<strong>de</strong>mos imaginar como a Satanás foi permitido<br />

cometer excessos até à sacieda<strong>de</strong>! 45 Todavia, este é o mais forte fundamento<br />

sobre o qual os papistas constroem: “Eis aqui algo bem antigo;<br />

foi elaborado há muito tempo; portanto, que sua autorida<strong>de</strong> seja equivalente<br />

a um oráculo celestial.”<br />

Entretanto, não po<strong>de</strong>mos afirmar com certeza o que <strong>de</strong>u origem a<br />

tal abuso, ou o que o levou a vicejar tão <strong>de</strong>pressa. Crisóstomo acredi-<br />

43 Paraeus entre outros toma as palavras ὀυκ ἔστι, não é, como usada para ὀυκ ἔξεστι, não é<br />

admissível.<br />

44 “Quase incroyable.” – “Como era incrível.”<br />

45 “A ioué ses tours.” – “Tem impingido seus ardis.”


Capítulo 11 • 399<br />

ta que ele <strong>de</strong>ve sua origem às festas <strong>de</strong> amor 46 (ἀπὸ τω̑ν ἀγαπω̑ν), cuja<br />

prática era a seguinte: enquanto os ricos tinham por hábito 47 trazer<br />

refeição <strong>de</strong> suas casas, e a comiam juntamente com os pobres, sem<br />

haver qualquer discriminação entre eles, mais tar<strong>de</strong> foram eliminando<br />

publicamente os pobres e <strong>de</strong>glutindo suas iguarias sozinhos. E isso<br />

parece proce<strong>de</strong>nte, pois Tertuliano explicita que esta era uma prática<br />

muito antiga. 48 Ora, eles costumavam <strong>de</strong>screver como agape (ἀγάπαι) 49<br />

aquelas refeições comunitárias que mantinham entre eles, porque simbolizavam<br />

seu amor fraternal, e consistiam daquilo que eles mesmos<br />

contribuíam. E estou plenamente certo <strong>de</strong> que a origem <strong>de</strong> tal festa<br />

estava nos ritos sacrificiais comuns tanto a ju<strong>de</strong>us quanto a gentios.<br />

Pois estou consciente <strong>de</strong> que os cristãos geralmente corrigiam as <strong>de</strong>formida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>sses ritos, mas o faziam <strong>de</strong> maneira que ainda retinham<br />

certa semelhança <strong>de</strong>les. É bem provável que, ao verem que tanto ju<strong>de</strong>us<br />

quanto gentios estavam suplementando seu sacrifício com uma<br />

festa, mas que ambos pecavam pela futilida<strong>de</strong>, excessiva tolerância<br />

e intemperança, então instituíram 50 uma forma <strong>de</strong> festa que os disciplinava<br />

bem mais em frugalida<strong>de</strong> 51 e mo<strong>de</strong>ração. Ao mesmo tempo, o<br />

fato <strong>de</strong> sua participação mútua lhe imprimia um aspecto <strong>de</strong> refeição<br />

espiritual. Pois os pobres se alimentavam à expensa dos ricos, e todos<br />

se sentavam à mesma mesa. Mas, se haviam recaído nesta prática<br />

mundana e corrupta, como era no início, ou se uma instituição, que<br />

<strong>de</strong> outra forma não seria tão ruim, havia se <strong>de</strong>generado nesse estado,<br />

com o passar do tempo, Paulo não quer <strong>de</strong> forma alguma que esta<br />

46 Vne sorte <strong>de</strong> banquets qui se faisoyent par chyarite.” – “Um tipo <strong>de</strong> banquete que era<br />

celebrado à guisa <strong>de</strong> amor.”<br />

47 “Premierement.” – “A princípio.”<br />

48 Supõe-se que é Plínio quem se refere à Αγαπαι (festas <strong>de</strong> amor) em sua 97ª carta a Trajano,<br />

na qual ele diz dos cristãos em Bitínia da qual era ele governador, que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

examinados, afirmavam que, que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tomar seu sacramentum – “morem sibi disce<strong>de</strong>ndi<br />

fuisse, rursusque coëundi ad capiendum cibum, promiscuum tamen et innoxium.”<br />

– “era-lhes costumeiro afastar-se e reunir-se novamente com o intuito <strong>de</strong> comer juntos<br />

um repasto inocente.”<br />

49 “Agapas, c’est à dire Charitez.” – “Agapae, isto é, Amores.”<br />

50 “Par succession <strong>de</strong> temps.” – “Em processo <strong>de</strong> tempo.”<br />

51 “Qu’autrement.” – “Do que <strong>de</strong> outra maneira.”


400 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

festa espiritual se associe a festas ordinárias. “É certamente algo mui<br />

excelente ver tanto o pobre quanto o rico comendo juntos as mesmas<br />

comidas que haviam sido subvencionadas, e o rico partilhando sua<br />

abundância com o necessitado; porém, não <strong>de</strong>vemos pôr <strong>de</strong>masiada<br />

ênfase em algo que nos leve a profanar o santo Sacramento.” 52<br />

E alguém fica faminto. Um péssimo aspecto da situação consistia<br />

em que o rico, ao fazer ampla provisão para si mesmo, estava tomando<br />

a extrema pobreza do pobre e lançando-a em seu rosto. Ao dizer que<br />

alguns se embriagavam, enquanto que outros tinham fome, Paulo fazia<br />

uso <strong>de</strong> hipérbole a fim <strong>de</strong> realçar a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong>les; porquanto alguns<br />

tinham comida suficiente para empanturrar-se excessivamente,<br />

enquanto que outros mal tinham o suficiente para manter unidos corpo<br />

e alma. Assim, o pobre se expunha ao ridículo diante do rico, ou, no<br />

mínimo, se sentia humilhado. Portanto, presenciava-se um espetáculo<br />

repulsivo, em total <strong>de</strong>sacordo com a Ceia do Senhor.<br />

22. Não ten<strong>de</strong>s casas? Esta pergunta nos revela quão insatisfeito<br />

estava o apóstolo com este costume coríntio <strong>de</strong> festejar, mesmo que<br />

jamais houvessem praticado o abuso que já mencionara. Pois embora<br />

pareça plenamente aceitável que toda a Igreja coma a Ceia numa<br />

mesa comum, todavia, por outro lado, é <strong>de</strong>finitivamente errôneo voltar<br />

a reunir-se para o culto com outras práticas que são completamente<br />

estranhas à natureza da Ceia. Sabemos o que a Igreja <strong>de</strong>ve fazer ao reunir-se,<br />

ou, seja: ouvir os ensinamentos; oferecer a Deus suas orações e<br />

cânticos; observar os sacramentos; 53 fazer confissão <strong>de</strong> sua fé; tomar<br />

parte nos ritos religiosos e outros exercícios piedosos. Tudo o mais que<br />

ali se faz fica fora <strong>de</strong> propósito. Cada pessoa tem um lar propriamente<br />

seu, o qual lhe é <strong>de</strong>stinado para comer e beber; portanto, é fora <strong>de</strong> propósito<br />

fazer essas coisas numa reunião <strong>de</strong>stinada ao culto divino.<br />

Que vos direi eu? Uma vez discutido o assunto, ele agora os convida<br />

a pon<strong>de</strong>rarem se <strong>de</strong> fato merecem ser elogiados, porquanto não<br />

52 “Mais il n’y a consi<strong>de</strong>ration aucume qui nous doyue tant esmouuoir, que pour cela nous<br />

venions à profaner ce sainct mystere.” – “Mas não há consi<strong>de</strong>ração que tenha tanta influência<br />

sobre nós que nos faria por essa conta profanar seu santo Sacramento.”<br />

53 “Pour receuoir et administrer les sacrements.” – “Receber e administrar os sacramentos.”


Capítulo 11 • 401<br />

po<strong>de</strong>riam <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong> um abuso tão óbvio. Ele, porém, aplica mais<br />

pressão sobre eles ao formular a pergunta nestes termos: “O que mais<br />

<strong>de</strong>vo fazer? Direi que não há base para con<strong>de</strong>nar-vos?”<br />

Alguns manuscritos conectam o termo nisto com o verbo que segue,<br />

ficando assim construído: “Elogiar-vos-ei? Nisto não vos elogio”; 54<br />

nos manuscritos gregos, porém, a outra redação é mais usualmente<br />

encontrada, e é a mais a<strong>de</strong>quada.<br />

23. Porque eu recebi do Senhor o que<br />

também vos entreguei: Que o Senhor<br />

Jesus, na mesma noite em que<br />

foi traído, tomou o pão;<br />

24. e enquanto dava graças, o partiu,<br />

e disse: Isto é o meu corpo, que é<br />

quebrado por vós; fazei isto em memória<br />

<strong>de</strong> mim.<br />

25. Da mesma maneira, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> haver<br />

ceado, tomou também o cálice,<br />

dizendo: Este cálice é o novo testamento<br />

em meu sangue; fazei isto,<br />

todas as vezes que o beber<strong>de</strong>s, em<br />

memória <strong>de</strong> mim.<br />

26. Porque, todas as vezes que comer<strong>de</strong>s<br />

este pão, e beber<strong>de</strong>s este cálice,<br />

proclamais a morte do Senhor até<br />

que ele venha.<br />

27. Por isso, todo aquele que comer<br />

este pão, ou beber este cálice do<br />

Senhor, indignamente, será culpado<br />

do corpo e do sangue do Senhor.<br />

28. Assim, examine o homem a si mesmo,<br />

e então coma <strong>de</strong>sse pão e beba<br />

<strong>de</strong>sse cálice.<br />

29. Pois aquele que come e bebe, indignamente,<br />

sem discernir o corpo<br />

do Senhor, come e bebe juízo para<br />

si mesmo.<br />

23. Ego enim accepi a Domino, quod<br />

etiam tradidi vobis: quod Dominus<br />

Iesus nocte qua traditus est, accepit<br />

panem.<br />

24. Et gratiis actis, fregit, et dixit, Accipite,<br />

edite: hoc est corpus meum<br />

quod pro vobis frangitur: hoc facite<br />

in mei memoriam.<br />

25. Similiter et calicem, postquam cœnaverant,<br />

dicens, Hic calix Novum<br />

testamentum est in sanguine meo:<br />

hoc facite, quotiescunque biberitis,<br />

in mei memoriam.<br />

26. Quotiescunque enim e<strong>de</strong>ritis panem<br />

hunc, et biberitis hunc calicem,<br />

mortem Domini annuntiabilitis, donec<br />

veniat.<br />

27. Itaque quisquis e<strong>de</strong>rit panem hunc,<br />

aut biberit panem hunc, aut biberit<br />

calicem Domini indigne, reus erit<br />

corporis et sanguinis Domini.<br />

28. Probet autem homo se ipsum, et sic<br />

<strong>de</strong> pane illo edat, et <strong>de</strong> calice bibat.<br />

29. Qui enim e<strong>de</strong>rit aut biberit indigne,<br />

iudicium sibi edit ac bibit, non discernens<br />

corpus Domini.<br />

54 As versões inglesas mais antigas seguiram esta redação. Assim Wiclif (1380): “Que vos<br />

direi? Eu vos louvo: mas na verda<strong>de</strong> não vos louvo. Cranmer (1539): “O que vos direi?<br />

Louvar-vos-ei? Nisto não vos louvo.”


402 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Até aqui ele esteve mostrando o que estava errado; 55 agora ele<br />

começa a ensinar-lhes o melhor caminho para a correção dos transtornos.<br />

Pois a instituição <strong>de</strong> Cristo segue um padrão <strong>de</strong>terminado, <strong>de</strong><br />

modo que o mais leve <strong>de</strong>svio <strong>de</strong>le significa que se cai em erro. Visto<br />

que os coríntios tinham-se afastado <strong>de</strong>sse padrão, Paulo os chama <strong>de</strong><br />

volta para o mesmo. Esta passagem precisa ser criteriosamente estudada,<br />

pois ela revela que o único remédio para a remoção e correção<br />

das <strong>de</strong>turpações é a volta à instituição original <strong>de</strong> Deus. Isto foi o que<br />

o Senhor pessoalmente fez quando falou do matrimônio [Mt 19.3]. Os<br />

escribas faziam referência ao costume e também à concessão feita por<br />

Moisés, mas a única coisa que ele mesmo fez foi apontar para a instituição<br />

do Pai; porque ela é um princípio inviolável. Ao proce<strong>de</strong>rmos<br />

assim hoje, os papistas fazem estardalhante protesto, dizendo que estamos<br />

manipulando e corrompendo tudo. 56 O que fazemos não é só<br />

<strong>de</strong>ixar bem claro o fato <strong>de</strong> se terem afastado da instituição original<br />

<strong>de</strong> nosso Senhor, <strong>de</strong> uma única forma, mas que a corromperam <strong>de</strong><br />

mil formas. Não há nada mais óbvio do que ser sua missa o oposto da<br />

Santa Ceia <strong>de</strong> nosso Senhor. Vou um pouco além: Declaro em alto e<br />

bom som que ela está saturada <strong>de</strong> ímpias abominações. Portanto, ela<br />

necessita <strong>de</strong> séria correção. Nossa exigência, e é óbvio que Paulo teve<br />

<strong>de</strong> fazê-la também, é que a instituição <strong>de</strong> nosso Senhor seja nosso padrão<br />

comum, e que ambos os lados estejam <strong>de</strong> acordo sobre isso. Eles<br />

fazem violento protesto contra isso. Ora, o leitor conhece a natureza<br />

da controvérsia em torno da Ceia do Senhor nos dias atuais.<br />

23. Porque eu recebi do Senhor. Com estas palavras Paulo tenciona<br />

mostrar que a única autorida<strong>de</strong> que tem real valor na Igreja é a<br />

do Senhor. Ele po<strong>de</strong>ria ter posto nestes termos: “Não vos entreguei<br />

algo <strong>de</strong> minha própria autoria. Quando vim a vós, não inventara uma<br />

nova ceia, produto <strong>de</strong> minha própria imaginação; porém tenho a Cristo<br />

como seu autor, e <strong>de</strong>le eu recebi o que pessoalmente vos entreguei.<br />

55 “Qu’ils commettoyent en la Cene.” – “No que tinham fracassado no tocante à Ceia.”<br />

56 “Qued nous gastons tout, et ne laissons rien en son entièr.” – “Que estamos <strong>de</strong>struindo<br />

tudo, e nada <strong>de</strong>ixamos inteiro.”


Capítulo 11 • 403<br />

Portanto, recorro a esta fonte única.” 57 Por isso, quando voltamos nossas<br />

costas às normas que os homens engendram, então a autorida<strong>de</strong><br />

exclusiva <strong>de</strong> Cristo permancece inabalável.<br />

Na noite em que ele foi traído. A referência à ocasião nos lembra<br />

que o propósito do sacramento é que sejamos confirmados na bênção<br />

que a morte <strong>de</strong> Cristo confere. Porque o Senhor po<strong>de</strong>ria ter confiado<br />

este selo do pacto 58 aos discípulos em alguma ocasião anterior, porém<br />

aguardou o tempo <strong>de</strong> seu sacrifício, para que os apóstolos não tivessem<br />

que esperar muito a fim <strong>de</strong> verem que o que ele prefigurava no<br />

pão e no vinho realmente se cumpria em seu corpo.<br />

Se alguém inferir disto que então <strong>de</strong>vemos celebrar a Ceia à noite,<br />

e após comer a refeição ordinária, respondo que, quando olhamos<br />

para os atos <strong>de</strong> nosso Senhor, <strong>de</strong>vemos consi<strong>de</strong>rar o que ele pretendia<br />

que fizéssemos. O fato é que ele não tinha nenhuma intenção <strong>de</strong> ministrar-lhes<br />

instrução sobre ritos noturnos, semelhantes aos <strong>de</strong> Ceres, 59 e<br />

nem pretendia convidar seu povo para sua festa espiritual após terem<br />

comido uma refeição substanciosa. Não somos solicitados a imitar tais<br />

atos <strong>de</strong> Cristo, como da mesma forma não <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>rados<br />

pertencentes a sua instituição. 60 Esta é a razão por que não há dificulda<strong>de</strong><br />

em se refutarem os astutos argumentos dos papistas, por meio<br />

dos quais eles se esquivam 61 do que eu disse sobre reter e preservar o<br />

que Cristo realmente instituiu, e somente isso. “Portanto”, dizem eles,<br />

“só receberemos a Ceia do Senhor à noite, e após termos tomado a<br />

refeição, nunca em jejum.” Tal discurso, digo eu, é um <strong>de</strong>sperdício <strong>de</strong><br />

57 Nosso autor parece referir aqui ao que dissera previamente, quando comenta 1 Coríntios<br />

4.1, quanto ao <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> incumbir nas administrações dos mistérios <strong>de</strong> Deus.<br />

58 “Car le Seigneur pouuoit bien quelque temps <strong>de</strong>uant ordonner à ses Apostres<br />

l’obsedruation <strong>de</strong> ce Sacrement.” – “Pois o Senhor po<strong>de</strong>ria ter, em alguma ocasião prévia,<br />

incumbido seus apóstolos à observância <strong>de</strong>ste Sacramento.”<br />

59 “Vne ceremonie, qui ne peust faire que <strong>de</strong> nuit, comme les Payens auoyent la feste <strong>de</strong><br />

Ceres.” – “Uma cerimônia que só podia ser observada à noite, como os pagãos que<br />

mantinham o festival <strong>de</strong> Ceres.” O tempo em que o festival era celebrado estava em concordância<br />

com o sigilo peculiar com que seus ritos eram observados.”<br />

60 “Pour partie, ou <strong>de</strong> la substance <strong>de</strong> son institution.” – “Como uma parte <strong>de</strong> sua instituição,<br />

ou da essência <strong>de</strong>la.”<br />

61 “Ils se mocquent.” – “eles escarnecem.”


404 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

fôlego; porque é fácil <strong>de</strong>terminar que o que o Senhor fez foi com o<br />

expresso propósito <strong>de</strong> seguirmos seu exemplo; alguém <strong>de</strong>veria antes<br />

dizer: o que ele fez foi com o intuito <strong>de</strong> nos ensinar a fazê-lo também.<br />

24. Tendo dado graças. Paulo, em 1 Timóteo 4.5, afirma que toda<br />

dádiva que recebemos das mãos <strong>de</strong> Deus nos é santificada através da<br />

Palavra <strong>de</strong> Deus e da oração. Em parte alguma, pois, lemos <strong>de</strong> nosso<br />

Senhor comendo com seus discípulos sem estar também registrado<br />

que ele dava graças [Jo 6.23]. É sem a menor sombra <strong>de</strong> dúvida que<br />

ele nos ensinou, através <strong>de</strong> seu exemplo, a fazer o mesmo. No entanto,<br />

esta ação <strong>de</strong> graças é ainda muito mais profunda, porquanto<br />

Cristo está dando graças a seu Pai por sua misericórdia 62 em favor<br />

da raça humana e seu inestimável dom re<strong>de</strong>ntivo; e ele nos estimula,<br />

através <strong>de</strong> seu exemplo, a que toda vez que nos aproximarmos da<br />

Santa Mesa elevemos nossos corações em reconhecimento do incomensurável<br />

amor <strong>de</strong> Deus por nós, e sejamos, assim, inflamados <strong>de</strong><br />

genuína gratidão. 63<br />

Tomai, comei, isto é o meu corpo. Visto que o propósito <strong>de</strong> Paulo<br />

aqui era instruir-nos <strong>de</strong> forma sucinta sobre a forma correta <strong>de</strong> se celebrar<br />

o sacramento, nosso <strong>de</strong>ver é consi<strong>de</strong>rar atentamente 64 o que põe<br />

diante <strong>de</strong> nossos olhos, não permitindo que algo passe <strong>de</strong>sapercebidamente,<br />

visto que, como ele diz, nada, senão o que é excessivamente<br />

necessário, merece nossa mais estrita atenção.<br />

Em primeiro lugar, notemos que Cristo aqui distribui o pão entre<br />

os discípulos a fim <strong>de</strong> que todos eles o comessem juntos; e <strong>de</strong>ssa forma<br />

todos viessem a participar igualmente <strong>de</strong>le. Portanto, quando uma<br />

mesa comum <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser preparada para todos os que crêem, quando<br />

estes não são convidados a partir o pão comum, e quando, em suma,<br />

os fiéis não têm participação com reciprocida<strong>de</strong>, não há a menor base<br />

para dar-lhe o título <strong>de</strong> Ceia do Senhor.<br />

62 “Sa misericor<strong>de</strong> infinie.” – “Sua infinita misericórdia.”<br />

63 “Et n’en soyons enuers luy ingrats, mais soyons enflambez à vne vraye recognoissance.”<br />

– “E que não sejamos ingratos para com ele, mas sejamos movidos a um verda<strong>de</strong>iro reconhecimento.”<br />

64 “Et bien poiser.” – “E pon<strong>de</strong>rar bem.”


Capítulo 11 • 405<br />

Com que propósito, 65 porém, o povo é convocado a reunir-se para<br />

a missa? Talvez a resposta seja simplesmente para que sejam <strong>de</strong>spedidos<br />

novamente insatisfeitos, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> presenciarem uma exibição<br />

insípida. 66 Portanto, tal ato não tem nada em comum com a Ceia [do<br />

Senhor]. À luz <strong>de</strong>ste versículo <strong>de</strong>duzimos igualmente que a promessa<br />

<strong>de</strong> Cristo não se aplica à missa mais do que à festa dos Salii. 67 Pois<br />

quando Cristo promete que nos daria seu corpo, ele semelhantemente<br />

nos or<strong>de</strong>na que tomemos o pão e o comamos. Se não obe<strong>de</strong>cemos a<br />

este seu mandamento, toda nossa vanglória <strong>de</strong> possuirmos sua promessa<br />

é <strong>de</strong> nenhuma valia. Coloquemos isto em outros termos, em<br />

linguagem mais costumeira: a promessa está intrinsecamente unida<br />

ao mandamento, como se o último fosse uma condição; a promessa,<br />

pois, só se torna eficaz se a condição for também cumprida. Evocando<br />

um exemplo, está escrito [Sl 50.15]: “Invoca-me; eu te ouvirei.” O que<br />

temos a fazer é obe<strong>de</strong>cer ao mandamento <strong>de</strong> Deus a fim <strong>de</strong> que cumpra<br />

ele o que nos prometeu; <strong>de</strong> outra forma, nos privaremos <strong>de</strong> seu<br />

cumprimento. 68<br />

E o que dizer dos papistas? Negligenciam a participação [do povo]<br />

e consagram o pão para um fim totalmente diferente, ao mesmo tempo<br />

que se vangloriam <strong>de</strong> ter o corpo do Senhor. Por provocarem um<br />

ímpio divórcio, separando as coisas que Cristo juntou [Mt 19.6], evi<strong>de</strong>ntemente<br />

sua vanglória não passa <strong>de</strong> palavrório fútil. Portanto, toda<br />

vez que citam as palavras, “Isto é o meu corpo”, <strong>de</strong>vemos revidar com<br />

outras palavras, as quais prece<strong>de</strong>m àquelas: “Tomai e comei.” Porquanto<br />

o significado das palavras é este: “Ao participar<strong>de</strong>s da quebra<br />

65 “Mais ie vous prie, à quel propos.” – “Mas, com que propósito você ora.”<br />

66 “Comme s’il retournoit <strong>de</strong> voir vne bastelerie inutile et sotte.” – “Como se fossem voltar a<br />

ver uma cena inútil e tola <strong>de</strong> charlatão.”<br />

67 “Vn banquet <strong>de</strong> la confrairie <strong>de</strong>s Sacrificateurs <strong>de</strong> Mars, lesquels les Romains nommoyent<br />

Salii.” – “Ao banquete da fraternida<strong>de</strong> dos sacerdotes <strong>de</strong> Marte, à qual os romanos chamavam<br />

Salii.” Receberam este título <strong>de</strong> seu costume <strong>de</strong> saírem pela cida<strong>de</strong> pulando e<br />

dançando. A festa da qual participavam, após terminar sua procissão, era excessivamente<br />

suntuosa. Daí a expressão: “Epulari Saliarem in modum” – “sutuosamente para a festa.”<br />

Cícero, Att. v.9.<br />

68 “Nous reiettons l’effet, et luy fermons la porte.” – “Rejeitamos sua realização, e contra ela<br />

fechamos a porta.”


406 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

do pão, segundo a or<strong>de</strong>m e o rito que or<strong>de</strong>nei, <strong>de</strong>veis também participar<br />

<strong>de</strong> meu corpo.” Assim, quando uma pessoa come seu próprio pão,<br />

a promessa neste caso não se efetiva. Além disso, estas palavras nos<br />

ensinam o que o Senhor quer que façamos: Tomai, diz ele. Portanto, os<br />

que sacrificam a Deus recebem suas diretrizes <strong>de</strong> algum outro mestre,<br />

e não <strong>de</strong> Cristo, pois ele, nestas palavras, não nos ministra instruções<br />

para a realização <strong>de</strong> sacrifício.<br />

Entretanto, o que os papistas realmente dizem sobre a Missa? Antes<br />

<strong>de</strong> tudo, sua impudência os levou ao ponto <strong>de</strong> alegarem que ela<br />

era correta e apropriadamente <strong>de</strong>nominada um sacrifício. Ora, eles admitem<br />

que ela é <strong>de</strong>veras um sacrifício comemorativo, mas que, <strong>de</strong>ssa<br />

forma, por meio <strong>de</strong> seu oferecimento diário, 69 a bênção re<strong>de</strong>ntora é<br />

canalizada tanto para os vivos quanto para os mortos. Seja como for,<br />

certamente apresentam algo que se assemelha a um sacrifício 70 [immolationis<br />

spectaculum]. Em primeiro lugar, há nesse ato uma gran<strong>de</strong><br />

temerida<strong>de</strong>, visto que não há nenhum mandamento <strong>de</strong> Cristo que o<br />

justifique. Cometem, porém, um pecado ainda mais grave ao agirem<br />

<strong>de</strong>ssa forma, porque, enquanto o propósito <strong>de</strong> Cristo na Ceia era que<br />

a tomássemos e a comêssemos, eles a perverteram para um uso totalmente<br />

diferente.<br />

Isto é o meu corpo. Não recorrerei a <strong>de</strong>sditosas controvérsias<br />

que têm trazido tanta perturbação à Igreja <strong>de</strong> nosso tempo, no que tange<br />

ao significado <strong>de</strong>stas palavras. Gostaria simplesmente que me fosse<br />

possível sepultar toda lembrança <strong>de</strong>las em esquecimento eterno! Darei<br />

minha própria visão <strong>de</strong>stas palavras, não só sincera e honestamente,<br />

mas também sem qualquer reserva, como geralmente faço.<br />

Cristo <strong>de</strong>nomina o pão <strong>de</strong> meu corpo. Rejeito, sem argumento adicional,<br />

a noção estapafúrdia <strong>de</strong> que nosso Senhor não exibiu o pão aos<br />

apóstolos, e, sim, seu próprio corpo, o qual era algo concreto diante<br />

69 “Par leur belle oblation qu’ils font tous les iours.” – “Por sua admirável oblação, a qual<br />

fazem todo dia.”<br />

70 “Vne apparence et representation <strong>de</strong> sacrifice.” – “A aparência e representação <strong>de</strong> um<br />

sacrifício.”


Capítulo 11 • 407<br />

<strong>de</strong> seus olhos; pois logo a seguir vêm as palavras: “Este cálice é a nova<br />

aliança em meu sangue.” Consi<strong>de</strong>remos, pois, como além <strong>de</strong> toda controvérsia<br />

que Cristo aqui está falando do pão.<br />

Agora, porém, voltamos à pergunta: o que ele quis dizer ao referir-<br />

-se ao pão? A fim <strong>de</strong> chegarmos ao significado genuíno, <strong>de</strong>vemos ter<br />

em mente que ele está falando figuradamente; porque, com toda certeza,<br />

negar tal coisa é ser excessivamente <strong>de</strong>sonesto. 71 Por que, pois,<br />

é o termo corpo aplicado ao pão? Creio que todos concordariam que é<br />

pela mesma razão que João <strong>de</strong>nomina o Espírito Santo <strong>de</strong> pomba [Jo<br />

1.32]. Até aqui estamos <strong>de</strong> acordo. Além do mais, no caso do Espírito<br />

Santo, a razão era que ele aparecera na forma <strong>de</strong> uma pomba; daí o<br />

nome do Espírito ser transferido para o sinal visível. Por que não po<strong>de</strong>ríamos<br />

dizer que aqui se usa uma metonímia <strong>de</strong> maneira semelhante, e<br />

que a <strong>de</strong>signação corpo é dada ao pão por ser este um sinal ou símbolo<br />

do corpo? Se algum <strong>de</strong>les <strong>de</strong>savier-se comigo, talvez me perdoarão;<br />

mas parece-me que, persistir argumentando sobre a assunto, outra<br />

coisa não é senão causar distúrbio. Portanto, tenho bem nítido em minha<br />

própria mente que esta é uma forma sacramental <strong>de</strong> expressão 72<br />

[sacramentalem loquendi modum], quando o Senhor aplica ao sinal o<br />

nome da realida<strong>de</strong> significada [rei signatae].<br />

Agora <strong>de</strong>vemos avançar um pouco mais, e perguntar por que aqui<br />

se usa metonímia. Minha reposta é que o nome da realida<strong>de</strong> significada<br />

não é dado ao sinal simplesmente porque ele a auxilia [sit figura];<br />

mas, antes, porque é um símbolo 73 por meio do qual a realida<strong>de</strong> nos<br />

é confirmada [exhibetur]. Porquanto não aceito as comparações que<br />

alguns fazem com as coisas seculares ou mundanas, porque estas pertencem<br />

a uma categoria distinta dos sacramentos <strong>de</strong> nosso Senhor. A<br />

estátua <strong>de</strong> Hércules é chamada Hércules; ela, porém, não passa <strong>de</strong> uma<br />

nua e vazia representação [figura]. A pomba, porém, é <strong>de</strong>scrita como<br />

71 “Ce seroit vne impu<strong>de</strong>nce et opinionastrete trop gran<strong>de</strong>.” – “Isso era uma excessiva impudência<br />

e obstinação.”<br />

72 “C’est à dire, qui est ordinaire en matiere <strong>de</strong>s Sacremens.” – “Isto é, o que é geralmente<br />

conectado aos Sacramentos.”<br />

73 “Vn gage et tesmoignage externe.” – “Um emblema e evidências externos.”


408 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

sendo o Espírito, porque ela é um penhor [tessera] <strong>de</strong>finido da presença<br />

invisível do Espírito. Portanto, o pão é o corpo <strong>de</strong> Cristo porque<br />

ele dá indubitável testemunho do fato <strong>de</strong> que todo o corpo, que o simboliza,<br />

nos é comunicado; ou porque, ao oferecer-nos este símbolo, o<br />

Senhor está nos dando também, ao mesmo tempo, seu próprio corpo;<br />

pois Cristo não está nos enganando e nos fazendo <strong>de</strong> tolos com representações<br />

fúteis. 74 Conseqüentemente, a mim é tão claro como a luz<br />

meridiana que aqui a realida<strong>de</strong> é associada ao sinal; em outros termos,<br />

realmente nos tornamos participantes do corpo <strong>de</strong> Cristo, no tocante<br />

ao po<strong>de</strong>r espiritual, da mesma forma que comemos o pão.<br />

Devemos então consi<strong>de</strong>rar o modo da participação. Os papistas<br />

nos impõem seu sistema <strong>de</strong> transubstanciação. Sustentam que,<br />

quando a consagração é efetuada, a substância do pão não mais<br />

permanece, mas somente os aci<strong>de</strong>ntes. 75 Contra tal fabricação estabelecemos<br />

não só as límpidas palavras da Escritura, mas também<br />

a própria natureza dos Sacramentos. Pois qual seria a significação<br />

[significatio] da Ceia se não houvesse nenhuma analogia entre o sinal<br />

visível e a realida<strong>de</strong> espiritual [si nulla sit inter signum visibile et rem<br />

spiritualem analogia]? Acreditam que o sinal tem a falsa e ilusória<br />

aparência [speciem] <strong>de</strong> pão. Então, o que dizer da realida<strong>de</strong> significada?<br />

Talvez não passe <strong>de</strong> um exemplar <strong>de</strong> simulacro. Portanto,<br />

se <strong>de</strong>ve haver uma relação [convenientiam] correspon<strong>de</strong>nte entre<br />

o sinal e a realida<strong>de</strong> [veritate] por trás <strong>de</strong>le, então o pão <strong>de</strong>ve ser<br />

verda<strong>de</strong>iro [verum] pão, não pão imaginário, a fim <strong>de</strong> representar o<br />

verda<strong>de</strong>iro [verum] corpo <strong>de</strong> Cristo. Além disso, este versículo revela<br />

que não é assim que o corpo <strong>de</strong> Cristo nos é oferecido, senão que<br />

nos é oferecido como alimento. Ora, o que nos nutre não é <strong>de</strong> forma<br />

alguma a aparência <strong>de</strong> pão, e, sim, sua substância. Pondo-o em poucas<br />

palavras, se a realida<strong>de</strong> mesma <strong>de</strong>ve ser uma realida<strong>de</strong> genuína,<br />

então o sinal <strong>de</strong>ve igualmente ser um sinal genuíno.<br />

74 “Pour penser qu’il nous repaisse d’ombres et vaines figures.” – “Pensar que ele quisesse<br />

nutrir-nos com sombras e representações fúteis.”<br />

75 Pelo termo aci<strong>de</strong>ntes do pão estão implícitos sua cor, sabor, odor e forma.


Capítulo 11 • 409<br />

Portanto, uma vez rejeitado o sonho dos papistas, vejamos o<br />

modo como o corpo <strong>de</strong> Cristo nos é oferecido. A explicação <strong>de</strong> alguns<br />

é que [o corpo <strong>de</strong> Cristo] nos é dado quando nos tornamos participantes<br />

<strong>de</strong> todos os benefícios que Cristo nos grangeou em seu próprio<br />

corpo; portanto, quando pela fé abraçamos Cristo, crucificado em<br />

nosso favor e ressurreto <strong>de</strong>ntre os mortos, <strong>de</strong>sta forma nos tornamos<br />

eficazmente participantes <strong>de</strong> todos seus benefícios. Os que pensam<br />

assim têm muito <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> em seu ponto <strong>de</strong> vista. Pessoalmente,<br />

porém, <strong>de</strong>claro que tal coisa só é possível <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> obtermos Cristo<br />

mesmo para então participarmos <strong>de</strong> seus benefícios. E além do mais<br />

<strong>de</strong>claro que ele é obtido <strong>de</strong> forma apropriada não só quando cremos<br />

que ele foi crucificado em nosso favor, mas quando ele habita em nós;<br />

quando, enfim, nos tornamos unidos numa só vida e substância (se o<br />

po<strong>de</strong>mos afirmar nestes termos) com ele. Além disso, <strong>de</strong>vemos prestar<br />

atenção na implicitu<strong>de</strong> das palavras, pois Cristo não só nos oferece<br />

o benefício <strong>de</strong> sua morte e ressurreição, mas o mesmo corpo no qual<br />

ele sofreu e ressuscitou. Minha conclusão é que o corpo <strong>de</strong> Cristo nos<br />

é real [realiter], para usar a palavra usual, e verda<strong>de</strong>iramente [vere]<br />

oferecido na Ceia a fim <strong>de</strong> ser o alimento gerador <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> para nossas<br />

almas. Estou adotando termos usuais, mas o que quero dizer é que<br />

nossas almas são alimentadas pela substância <strong>de</strong> seu corpo, <strong>de</strong> modo<br />

que nos tornamos verda<strong>de</strong>iramente [vere] um com ele; ou, o que equivale<br />

a mesma coisa, que o po<strong>de</strong>r gerador <strong>de</strong> vida da carne <strong>de</strong> Cristo<br />

[vim ex Christi carne vivificam] é <strong>de</strong>rramado em nós pela instrumentalida<strong>de</strong><br />

do Espírito, apesar <strong>de</strong> estar a uma gran<strong>de</strong> distância <strong>de</strong> nós e <strong>de</strong><br />

não estar entre nós 76 [nec misceatur nobiscum].<br />

76 Nesta passagem, como também em algumas outras partes <strong>de</strong> seus escritos, Calvino parece<br />

afirmar a presença real <strong>de</strong> Cristo na Ceia do Senhor, <strong>de</strong> alguma maneira misteriosa, embora<br />

ele se opusesse, como se sabe muito bem, à consubstanciação, bem como à transubstanciação.<br />

O venerável Dr. Dick <strong>de</strong> Glasgow, enquanto trata da Ceia do Senhor – embora faça menção<br />

<strong>de</strong> Calvino em termos do mais elevado respeito, como sendo “um dos mais brilhantes ornamentos<br />

da Reforma”, o qual, “em erudição, gênio e zelo, teve poucos iguais e não superiores”<br />

– chama a atenção para algumas expressões que ele usou em suas Institutas que parecem<br />

não estar em plena harmonia com seu sistema geral <strong>de</strong> conceitos e referências à presença <strong>de</strong><br />

Cristo no Sacramento da Ceia. Dick’s Lectures on Theology, vol. iv. pp. 225, 226.


410 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Só um problema ainda permanece: como é possível que seu corpo,<br />

que se acha no céu, nos seja oferecido aqui na terra? Alguns acreditam<br />

que o corpo <strong>de</strong> Cristo é ilimitado, e não po<strong>de</strong> confinar-se a um único<br />

lugar, senão que permeia o céu e a terra, como o faz a essência divina.<br />

Tal noção é tão estapafúrdia que nem merece refutação. Os escolásticos<br />

discutem a questão <strong>de</strong> seu corpo glorioso com mais intensida<strong>de</strong>,<br />

porém todo seu ensino simplesmente equivale ao seguinte: que Cristo<br />

<strong>de</strong>ve ser encontrado no pão, como se estivesse encarcerado [inclusus]<br />

nele. O resultado é que os homens olham para o pão com espanto, e<br />

lhe ren<strong>de</strong>m adoração como se fosse Cristo mesmo. Alguém lhes po<strong>de</strong>ria<br />

perguntar se o que adoram é o pão ou sua substância [especiem], e<br />

convictamente lhe respon<strong>de</strong>riam com um firme “a nenhum dos dois”;<br />

a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> tudo, porém, quando vão oferecer a Cristo sua adoração,<br />

se movem na direção do pão. Por isso digo, a questão não é <strong>de</strong> meramente<br />

volver seus olhos e todo seu corpo, mas também todos seus<br />

pensamentos. Ora, que outra coisa é isso senão pura idolatria? Mas,<br />

segundo minha tese, a participação no corpo do Senhor, que nos é oferecido<br />

na Ceia, exige não uma presença local, nem a <strong>de</strong>scida <strong>de</strong> Cristo,<br />

nem uma extensão infinita 77 <strong>de</strong> seu corpo, nem qualquer outra coisa<br />

<strong>de</strong>sse gênero; porque, em vista <strong>de</strong> ser a Ceia um ato celestial, não há<br />

absurdo algum em dizer que Cristo permanece no céu e, não obstante,<br />

é recebido por nós. Pois o modo como ele mesmo se nos comunica é<br />

através do po<strong>de</strong>r secreto do Espírito Santo, po<strong>de</strong>r esse que é capaz<br />

não só <strong>de</strong> manter-nos juntos, mas também <strong>de</strong> juntar as coisas que são<br />

separadas pela distância – <strong>de</strong> fato, por uma imensa distância.<br />

Não obstante, a fim <strong>de</strong> estarmos habilitados para essa participação,<br />

teremos que subir ao céu. Neste sentido, nossas faculda<strong>de</strong>s físicas não<br />

são <strong>de</strong> nenhuma valia; por isso é indispensável que a fé se intervenha<br />

em nosso socorro. Quando falo em fé, não estou referindo-me a algum<br />

gênero <strong>de</strong> opinião que <strong>de</strong>penda do que os homens elaborem, visto que<br />

há muitos que constantemente se gloriam <strong>de</strong> sua fé, e que, no entanto,<br />

77 “Vne estendue <strong>de</strong> son corps infinie.” – “Uma extensão infinita <strong>de</strong> seu corpo.”


Capítulo 11 • 411<br />

se acham extremamente longe da questão em pauta. Então, que fé é<br />

essa? Você vê o pão, e nada mais; porém você ouve dizer que ele é um<br />

símbolo 78 do corpo <strong>de</strong> Cristo. Esteja plenamente certo <strong>de</strong> que o Senhor<br />

realmente executará o que o leitor enten<strong>de</strong> ser o sentido das palavras,<br />

a saber: que seu corpo, o qual o leitor <strong>de</strong> forma alguma vê, é o alimento<br />

espiritual para cada um <strong>de</strong> nós. Parece inacreditável que somos<br />

alimentados pela carne <strong>de</strong> Cristo, a qual se acha tão distante <strong>de</strong> nós.<br />

Lembremo-nos <strong>de</strong> que tal fato é uma obra secreta e grandiosa efetuada<br />

pelo Espírito Santo, e seria algo pecaminoso tentar medi-lo pelo tacanho<br />

padrão <strong>de</strong> nosso próprio entendimento. “Entretanto, ao mesmo tempo<br />

livre-se das noções absurdas que porventura conservem seus olhos grudados<br />

no pão. Que Cristo conserve sua carne, que é carne real [veram<br />

carnis naturam], e que o leitor não <strong>de</strong>fenda o conceito equivocado <strong>de</strong><br />

que o corpo <strong>de</strong> Cristo se esten<strong>de</strong> por todo o céu e terra. Tampouco o divida<br />

em partículas por meio <strong>de</strong> suas idéias extravagantes, e nem o adore<br />

neste ou naquele local ou segundo sua apreensão carnal [pro carnali tuo<br />

sensu]. Deixe-o em sua glória celestial; aspire, pessoalmente, alcançar o<br />

céu, para que <strong>de</strong> lá 79 ele possa comunicar-se com você.”<br />

Estas poucas coisas satisfarão as mentes das pessoas retas e humil<strong>de</strong>s.<br />

Aos curiosos, meu conselho é que volva sua atenção em outra<br />

direção, a fim <strong>de</strong> satisfazer seus apetites.<br />

Que é quebrado por vós. Há quem pense que isto se refere à<br />

distribuição do pão, já que era necessário que o corpo <strong>de</strong> Cristo fosse<br />

preservado intato, a fim <strong>de</strong> harmonizar-se com a predição constante<br />

em xodo 12.46: “nenhum <strong>de</strong> seus ossos será quebrado.” Quanto<br />

a mim, embora reconheça que Paulo está aludindo à quebra do pão,<br />

não obstante consi<strong>de</strong>ro o termo quebrado como sendo aqui usado no<br />

sentido <strong>de</strong> sacrificado; certamente que este não é o uso apropriado do<br />

termo, porém não é fora <strong>de</strong> propósito. Porque, embora “nenhum osso<br />

seu” fosse danificado, todavia, visto que seu corpo foi, antes <strong>de</strong> tudo,<br />

exposto a tanta tortura e sofrimento, e em seguida à punição <strong>de</strong> morte<br />

78 “Vn signe et tesmoignage.” – “Um sinal e evidência.”<br />

79 “Esleve ton esprit et ton cœur jusques là.” – “Ele conduz sua mente e coração até lá.”


412 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

em sua forma mais cruel, não se po<strong>de</strong> dizer que seus ossos saíssem<br />

ilesos. Eis o que Paulo preten<strong>de</strong> com o termo quebrado. Esta contudo é<br />

a segunda parte da promessa, e ela não <strong>de</strong>ve ser passada por alto. Pois<br />

o Senhor não nos oferece seu corpo, só seu corpo e nada mais além<br />

<strong>de</strong>le, porém seu corpo como tendo sido sacrificado em nosso favor. A<br />

primeira parte, pois, nos diz que seu corpo nos foi comunicado; esta<br />

segunda parte <strong>de</strong>clara que <strong>de</strong>sfrutamos <strong>de</strong>le, ou, seja, nossa participação<br />

na re<strong>de</strong>nção e na aplicação do benefício <strong>de</strong> seu sacrifício. Esta é a<br />

razão por que a Ceia é um espelho a nos refletir o Cristo crucificado,<br />

<strong>de</strong> modo que uma pessoa não po<strong>de</strong> receber a Ceia e <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> seus<br />

benefícios, a menos que abrace o Cristo crucificado.<br />

Fazei isto em memória <strong>de</strong> mim. A Ceia, pois, é um memorial<br />

(μνημόσυνον) 80 <strong>de</strong>signado com o fim <strong>de</strong> assistir-nos em nossas fraquezas;<br />

porque, se <strong>de</strong> outra forma estivéssemos suficientemente imbuídos<br />

da morte <strong>de</strong> Cristo, este auxílio seria <strong>de</strong> todo supérfluo. Isto se aplica<br />

a todos os Sacramentos, porquanto eles nos ajudam em nossas fraquezas.<br />

No entanto logo <strong>de</strong>scobriremos que sorte <strong>de</strong> memorial <strong>de</strong> si<br />

mesmo Cristo queria que conservássemos na Ceia.<br />

Alguns extraem uma inferência <strong>de</strong>sta frase, dizendo que, nestas<br />

circunstâncias, Cristo não está presente na Ceia, visto que não po<strong>de</strong><br />

haver memorial [memoria] <strong>de</strong> algo [ou alguém] que se acha ausente.<br />

Isso po<strong>de</strong> ser facilmente respondido: segundo esse raciocínio sobre a<br />

Ceia como recordação [recordatio], Cristo realmente está ausente <strong>de</strong>la.<br />

Pois ele não se acha presente visivelmente, e nem é visto por nossos<br />

olhos como vemos os símbolos, os quais, por representá-lo, nos<br />

estimulam a lembrar-nos <strong>de</strong>le. Finalmente, a fim <strong>de</strong> estar presente conosco,<br />

ele não <strong>de</strong>ixa seu lugar, senão que, do céu, nos envia a eficácia<br />

<strong>de</strong> sua carne para estar presente em nós. 81<br />

80 É digno <strong>de</strong> nota que nosso autor fez uso do mesmo termo grego (quando comenta 1Co 5.8)<br />

em referência à Páscoa, a qual se <strong>de</strong>stinava, em parte, a ser um memorial (μνημόσυνον).<br />

O termo é ocorrência freqüente, no mesmo sentido, em Heródoto e, ocasionalmente, em<br />

outros autores clássicos.<br />

81 “Du ciel il fait <strong>de</strong>scouler sur nous la vertu7 <strong>de</strong> sa chair presentement et vrayement.” – “Ele faz<br />

com que a virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua carne seja <strong>de</strong>rramada sobre nós do céu presente e verda<strong>de</strong>iramente.”


Capítulo 11 • 413<br />

25. Depois <strong>de</strong> haver ceado, tomou também o cálice. O apóstolo<br />

parece sugerir que houve um certo intervalo <strong>de</strong> tempo entre a entrega<br />

do pão e a do cálice; e os evangelistas não <strong>de</strong>ixam muito claro se tudo<br />

foi um ato contínuo. 82 É verda<strong>de</strong> que isso não importa muito, porque<br />

po<strong>de</strong> muito bem ter ocorrido que o Senhor proferisse algum discurso,<br />

o qual po<strong>de</strong>ria ter-se encaixado entre a entrega do pão e a do cálice.<br />

Visto, porém, que ele nada fez nem disse que não estivesse relacionado<br />

com o mistério, não há qualquer necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dizermos que sua<br />

administração era <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada ou foi interrompida. Não quero adotar<br />

a redação <strong>de</strong> Erasmo – “quando a ceia foi concluída” –, visto que a ambigüida<strong>de</strong><br />

precisa ser evitada numa questão <strong>de</strong> tão gran<strong>de</strong> relevância.<br />

Este cálice é o novo testamento. O que é afirmado quanto ao cálice<br />

aplica-se igualmente ao pão; e assim ele está usando estes termos<br />

para expressar o que já dissera <strong>de</strong> uma forma mais abreviada, ou, seja,<br />

que o pão é seu corpo. Porque o temos por esta razão: para que seja<br />

uma aliança em seu corpo, a saber, uma aliança que foi uma vez por<br />

todas ratificada pelo sacrifício <strong>de</strong> seu corpo, e que é agora confirmada<br />

pelo comer, ou, seja, quando os crentes se <strong>de</strong>leitam nesse sacrifício.<br />

Daí, on<strong>de</strong> Paulo e Lucas falam <strong>de</strong> o testamento em meu sangue, Mateus<br />

e Marcos falam <strong>de</strong> o sangue do testamento, o que equivale a mesma<br />

coisa. Pois o sangue foi <strong>de</strong>rramado a fim <strong>de</strong> nos reconciliarmos com<br />

Deus, e agora o bebemos espiritualmente a fim <strong>de</strong> termos participação<br />

nesta reconciliação. Portanto, na Ceia temos a aliança [foedus] e um<br />

penhor que confirma a aliança.<br />

Se o Senhor me poupar, pretendo discorrer sobre a palavra aliança<br />

ou testamento [testamentum] no comentário à Epístola aos Hebreus.<br />

É bem notório, porém, o fato <strong>de</strong> que os Sacramentos são <strong>de</strong>scritos<br />

como testamentos, visto que nos suprem com testemunhos do beneplácito<br />

<strong>de</strong> Deus com o fim <strong>de</strong> fazer nossas mentes plenamente seguras<br />

<strong>de</strong>le. 83 Pois o modo como o Senhor trata conosco é semelhante ao<br />

modo como os homens fazem suas alianças entre si através <strong>de</strong> ritos<br />

82 “Continuel et sans interualle.” – “Contínuo e sem um intervalo.”<br />

83 “Confermer et seeller.” – “Confirmar e selar.”


414 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

solenes. Este modo <strong>de</strong> falar não é <strong>de</strong> forma alguma ina<strong>de</strong>quado, porque,<br />

em razão da conexão existente entre palavra e sinal, a aliança do<br />

Senhor realmente está jungida aos Sacramentos, e o termo aliança [foedus]<br />

produz uma relação conosco ou nos enlaça. Isso será <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

valor para enten<strong>de</strong>rmos a natureza dos Sacramentos, pois se são alianças,<br />

então contêm promessas, as quais po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>spertar a consciência<br />

humana para a certeza da salvação. Segue-se <strong>de</strong>sse fato que eles não<br />

são simplesmente sinais externos da fé que professamos, para que os<br />

homens vejam, mas também auxiliam nossa própria vida interior <strong>de</strong> fé.<br />

Fazei isto todas as vezes que o beber<strong>de</strong>s. Cristo, pois, instituiu<br />

um duplo sinal na Ceia. As coisas que Deus ajuntou, os homens não<br />

<strong>de</strong>vem separar. Portanto, distribuir o pão sem o cálice é mutilar a<br />

instituição <strong>de</strong> Cristo, 84 e nosso <strong>de</strong>ver é dar crédito a suas palavras.<br />

Como ele nos or<strong>de</strong>na comer o pão, assim nos or<strong>de</strong>na beber o cálice.<br />

Consentir com uma meta<strong>de</strong> do mandamento e <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar a outra,<br />

outra coisa não é senão zombar daquilo que ele estabeleceu. Impedir<br />

o povo <strong>de</strong> beber o cálice que Cristo <strong>de</strong>u a todos, como suce<strong>de</strong> sob a<br />

tirania papal, é sem dúvida alguma uma presunção diabólica. Seu sofisma<br />

<strong>de</strong> que Cristo estava falando aos apóstolos, e não ao povo comum,<br />

é excessivamente pueril e facilmente refutável por esta mesma passagem;<br />

porque aqui Paulo está se dirigindo aos homens e mulheres, sem<br />

distinção, e <strong>de</strong> fato à Igreja toda, e diz que ele lhos entregou em consonância<br />

com o mandamento do Senhor [v. 23]. Os que ousaram anular<br />

esta or<strong>de</strong>nança, agiram movidos por qual espírito? Contudo, ainda em<br />

nossos dias esta grosseira corrupção continua sendo obstinadamente<br />

<strong>de</strong>fendida. E que motivo há para surpresa, se impu<strong>de</strong>ntemente tudo<br />

fazem para justificar, pelo uso <strong>de</strong> discurso e escritos, o que é tão cruelmente<br />

mantido a fogo e espada?<br />

26. Porque todas as vezes que comer<strong>de</strong>s. Ele agora adiciona uma<br />

<strong>de</strong>scrição do modo como o memorial <strong>de</strong>ve ser observado, a saber:<br />

com ações <strong>de</strong> graças. Não é que o memorial <strong>de</strong>penda completamente<br />

84 “L’institution du Fils <strong>de</strong> Dieu.” – “A instituição do Filho <strong>de</strong> Deus.”


Capítulo 11 • 415<br />

da confissão <strong>de</strong> nossos lábios, porque o ponto básico é que o po<strong>de</strong>r da<br />

morte <strong>de</strong> Cristo <strong>de</strong>ve estar selado em nossas consciências. Mas este<br />

conhecimento <strong>de</strong>ve mover-nos a louvá-lo publicamente a fim <strong>de</strong> que<br />

os homens saibam, quando estamos em sua companhia, que em nosso<br />

íntimo temos consciência da presença divina. A Ceia, portanto – se<br />

é que posso expressar-me assim –, é uma espécie <strong>de</strong> memorial [quoddam<br />

memoriale] que <strong>de</strong>ve ser conservado perenemente na Igreja, até<br />

a vinda final <strong>de</strong> Cristo; e que foi instituída com este propósito, a saber:<br />

para que Cristo nos lembre do benefício <strong>de</strong> sua morte, e nós, <strong>de</strong> nossa<br />

parte, possamos reconhecê-la 85 diante dos homens. Esta é a razão por<br />

que ela é chamada Eucaristia. 86 Portanto, a fim <strong>de</strong> que possa celebrar a<br />

Ceia a<strong>de</strong>quadamente, o leitor <strong>de</strong>ve ter em mente que o requerimento é<br />

que faça <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> sua fé.<br />

Isto nos revela mui claramente quão impu<strong>de</strong>ntemente motejam<br />

<strong>de</strong> Deus, vangloriando-se <strong>de</strong> que na missa eles têm algo correspon<strong>de</strong>nte<br />

à natureza da Ceia. Pois, o que é a missa? Eles admitem (pois<br />

não me refiro aos papistas, e, sim, aos pretensos seguidores <strong>de</strong> Nico<strong>de</strong>mos)<br />

que ela está saturada <strong>de</strong> superstições abomináveis. Por meio<br />

<strong>de</strong> gestos externos fazem uma pretensa aprovação <strong>de</strong>las. Que sorte<br />

<strong>de</strong> exibição é esta <strong>de</strong> proclamar a morte <strong>de</strong> Cristo? Não estão, antes,<br />

renunciando-a?<br />

Até que ele venha. Uma vez que somos sempre necessitados <strong>de</strong><br />

um arrimo como este, enquanto ainda vivemos neste mundo, o apóstolo<br />

salienta que fomos incumbidos <strong>de</strong>ste ato <strong>de</strong> recordação [recordationem]<br />

até que Cristo entre em cena para o juízo. Porque, já que ele não está<br />

presente conosco <strong>de</strong> forma visível, carecemos <strong>de</strong> ter algum símbolo <strong>de</strong><br />

sua presença espiritual, com o qual exercitar nossa mente.<br />

27. Por isso, todo aquele que comer o pão... indignamente. Se o<br />

Senhor espera <strong>de</strong> nós gratidão, ao recebermos este sacramento; se ele<br />

85 “Que <strong>de</strong> nostre part le recognoissions.” – “Para que nós, <strong>de</strong> nossa parte, a reconheçamos.”<br />

86 De εὐχαριστήσας (tendo dado graças), a qual Paulo usa aqui, bem como os evangelistas em<br />

seu relato da instituição original da Ceia. O termo é ao mesmo tempo uma expressão do<br />

espírito da instituição com respeito às ações <strong>de</strong> graças.


416 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

quer que reconheçamos sua graça <strong>de</strong> todo nosso coração e fazê-la conhecida<br />

através <strong>de</strong> nossos lábios, então aquele que lhe dirigiu insulto<br />

em vez <strong>de</strong> honra não escapará sem castigo; pois o Senhor não tolerará<br />

que seu mandamento seja menosprezado.<br />

Ora, para que possamos apreen<strong>de</strong>r o significado <strong>de</strong>ste versículo,<br />

é preciso que compreendamos o que “comer indignamente” significa.<br />

Alguns o aplicam somente aos coríntios e à corrupção que grassava<br />

em seu seio. Minha opinião pessoal, porém, é que Paulo, como geralmente<br />

faz, se move do caso particular para o ensino geral, ou <strong>de</strong> um<br />

exemplo para toda uma classe. Havia um erro que prevalecia entre os<br />

coríntios. Ele aproveita a ocasião para falar <strong>de</strong> toda espécie <strong>de</strong> erro<br />

que porventura seja encontrado na administração e recepção da Ceia.<br />

“Deus”, diz ele, “não permitirá que este sacramento seja profanado<br />

sem severa punição.”<br />

Portanto, comer indignamente é <strong>de</strong>sonrar o uso puro e legítimo<br />

por nosso próprio abuso. Esta é a razão por que há vários graus <strong>de</strong><br />

indignida<strong>de</strong>, por assim dizer; e alguns pecam muito mais gravemente,<br />

enquanto que outros o fazem só levemente. Nenhum fornicador, perjuro,<br />

ébrio ou impostor, sem indício <strong>de</strong> arrependimento, po<strong>de</strong> forçar<br />

caminho. Visto que indiferença <strong>de</strong>ste nível produz a caracterização <strong>de</strong><br />

um cruel insulto a Cristo, não há dúvida <strong>de</strong> que alguém, que recebe a<br />

Ceia nesse estado, recebe sua própria <strong>de</strong>struição. Outros se chegam, e<br />

não se encontram sob o domínio <strong>de</strong> algum erro óbvio e perceptível, no<br />

entanto em seu coração não estão preparados como <strong>de</strong>veriam. Visto<br />

que esta displicência ou indiferença é sinal <strong>de</strong> irreverência, ela também<br />

merece a punição <strong>de</strong> Deus. Por isso, visto que há vários graus <strong>de</strong><br />

“participação indigna”, o Senhor aplica castigos mais leves em alguns,<br />

e mais severos em outros.<br />

Ora, esta passagem tem suscitado uma inquirição que tem levado<br />

muitos aos mais acirrados <strong>de</strong>bates, a saber: aquele que participa<br />

indignamente está <strong>de</strong> fato comendo o corpo <strong>de</strong> Cristo. Pois há quem<br />

se sente tão arrebatado pela controvérsia que chega a dizer que ele<br />

[o corpo] é recebido igualmente pelo bom e pelo mau; e, em nossos


Capítulo 11 • 417<br />

dias, muitos espalhafatosos estão obstinadamente sustentando que<br />

na própria primeira Ceia Pedro não recebeu mais do que Judas. E eu<br />

me sinto <strong>de</strong>veras relutante em entrar em feroz <strong>de</strong>bate com alguém sobre<br />

esta matéria, a qual, em minha opinião, é uma questão periférica.<br />

Mas, como outros evocam sobre si a responsabilida<strong>de</strong>, com ares <strong>de</strong><br />

professor, seja o que for que lhes pareça apreciável, fazendo trovejar<br />

para todos os lados e contra todos que expressem algo em contrário,<br />

seremos justificados se calmamente aduzirmos razões em abono do<br />

que consi<strong>de</strong>ramos como sendo a plena verda<strong>de</strong>.<br />

O fato <strong>de</strong> Cristo não po<strong>de</strong>r separar-se <strong>de</strong> seu Espírito constitui<br />

para mim um axioma, e não permitirei que eu mesmo seja alijado <strong>de</strong>le.<br />

Daí sustento que seu corpo não é recebido como morto, ou ainda<br />

como inativo, dissociado da graça e po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seu Espírito. Não gastarei<br />

muito tempo em provar esta afirmação.<br />

Ora, se alguém não possui sequer um leve vestígio <strong>de</strong> fé vigorosa<br />

ou <strong>de</strong> arrependimento autêntico, e nada do Espírito <strong>de</strong> Cristo, 87 como<br />

po<strong>de</strong>ria receber o próprio Cristo? Mais que isso, visto que o tal se<br />

acha completamente sob o controle <strong>de</strong> Satanás e do pecado, como<br />

estaria apto a receber Cristo? Portanto, <strong>de</strong> um lado, concordo que haja<br />

pessoas que verda<strong>de</strong>iramente recebem Cristo na Ceia e que, ao mesmo<br />

tempo, são indignas. Muitos dos fracos, por exemplo, pertencem<br />

a esta categoria. Em contrapartida, não aceito o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> que<br />

os que <strong>de</strong>positam fé meramente nos eventos históricos do Evangelho 88<br />

[fi<strong>de</strong>m historicam], sem uma viva consciência <strong>de</strong> arrependimento e fé,<br />

recebem apenas o sinal. Pois não posso suportar a idéia <strong>de</strong> partir Cristo<br />

89 em pedaços, e fico horrorizado ante a noção absurda <strong>de</strong> que aos<br />

<strong>de</strong>screntes ele se oferece para ser comido <strong>de</strong> forma exangüe, por as-<br />

87 “Veu que par consequent il n’há rien <strong>de</strong> l’Esprit <strong>de</strong> Christ.” – “Visto que ele, conseqüentemente,<br />

nada tem do Espírito <strong>de</strong> Cristo.”<br />

88 “Vne foy historique qu’on appelle; (c’est à dire pour consentir simplement à l’histoire <strong>de</strong><br />

l’Euangile.”) – “Uma fé histórica, como a chamam (equivale a dizer: dar um mero assentimento<br />

ao evangelho histórico).”<br />

89 “Car ie n’ose proposer et imaginer Christ à <strong>de</strong>mi.” – “Porquanto não ouso apresentar e<br />

imaginar a meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo.”


418 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

sim dizer. Tampouco Agostinho quis algo mais que isso quando disse<br />

que os ímpios recebem Cristo meramente no sacramento [sacramento<br />

tenus] o que ele expressa mais claramente em outro lugar, quando diz<br />

que os <strong>de</strong>mais apóstolos comeram o pão – o Senhor [panem Dominum];<br />

Judas, porém, apenas o pão do Senhor [panem Domini]. 90<br />

Mas a objeção aqui apresentada é que a eficácia dos Sacramentos<br />

não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da dignida<strong>de</strong> humana, e que as promessas <strong>de</strong> Deus<br />

não são <strong>de</strong> maneira alguma comunicadas nem <strong>de</strong>struídas pela malda<strong>de</strong><br />

humana. Concordo com isso, e por essa mesma razão digo mais,<br />

e em termos bem explícitos, que o corpo <strong>de</strong> Cristo é oferecido aos<br />

maus tanto quanto aos bons, e que tudo isso é requerido no que diz<br />

respeito ao efeito do sacramento e da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Porque,<br />

na Ceia Deus não ludibria o ímpio através <strong>de</strong> mera representação do<br />

corpo <strong>de</strong> seu Filho, mas realmente o faz válido para eles; e o pão não<br />

lhes é um sinal vazio, mas um penhor [tessera] da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> divina.<br />

Sua rejeição em sentido algum prejudica ou altera a natureza do sacramento.<br />

Devemos ainda enfrentar uma objeção oriunda do que Paulo diz<br />

nesta passagem. “Ele apresenta os indignos como sendo culpados, visto<br />

que não discernem o corpo do Senhor; segue-se que recebem seu<br />

corpo.” Eu nego tal inferência; porque, embora a rejeitem, contudo,<br />

como a profanam e a tratam com <strong>de</strong>sonra quando lhes é apresentada,<br />

merecidamente são tidos como culpados, porquanto a lançam,<br />

por assim dizer, no chão e a pisam sob seus pés. Um sacrilégio <strong>de</strong>ssa<br />

proporção é algo trivial? Por isso não vejo dificulda<strong>de</strong> nas palavras <strong>de</strong><br />

Paulo, contanto que se tenha em vista o que Deus apresenta e sustenta<br />

aos ímpios – não no que eles recebem.<br />

28. Assim, prove o homem a si mesmo. A seguinte exortação é extraída<br />

da ameaça que ele pronunciou. “Se os que comem indignamente<br />

são culpados do corpo e do sangue do Senhor, então que ninguém<br />

se aproxime da mesa sem antes estar <strong>de</strong>vidamente preparado. Que<br />

90 Este célebre dito <strong>de</strong> Agostinho (que ocorre na Hom. em João 62) é citado também nas<br />

Institutas, on<strong>de</strong> nosso autor compendia em gran<strong>de</strong> extensão o tema aqui discutido.


Capítulo 11 • 419<br />

todos, pois, cui<strong>de</strong>m para que não caiam neste sacrilégio mediante negligência<br />

ou indiferença.”<br />

Agora, porém, pergunta-se: Quando Paulo nos intima a fazermos<br />

um auto-exame, qual seria a natureza disso? A conclusão dos papistas<br />

é que isso consiste em confissão auricular. Or<strong>de</strong>nam a todos os<br />

que estão para receber a Ceia a examinarem suas vidas cuidadosa<br />

e minuciosamente, a fim <strong>de</strong> que aliviem-se <strong>de</strong> todos seus pecados<br />

aos ouvidos <strong>de</strong> um sacerdote. Eis seu método <strong>de</strong> preparação! 91 Mas,<br />

quanto a mim, <strong>de</strong>fendo a tese <strong>de</strong> que o santo exame <strong>de</strong> que Paulo<br />

está falando muito longe está <strong>de</strong> ser tortura. Tais pessoas 92 acreditam<br />

que ficam limpas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> torturarem suas consciências por<br />

algumas poucas horas e então permitem que o sacerdote entre em<br />

seus recessos mais secretos e <strong>de</strong>scubra suas infâmias. 93 O que Paulo<br />

aqui requer é outro gênero <strong>de</strong> exame, aquele que correspon<strong>de</strong> ao uso<br />

apropriado da Santa Ceia.<br />

Tenho um método <strong>de</strong> preparação mais eficaz ou mais fácil a apresentar-lhe,<br />

a saber: se o leitor <strong>de</strong>seja extrair os benefícios próprios<br />

<strong>de</strong>ste dom <strong>de</strong> Cristo, então cultive em seu coração fé e arrependimento.<br />

Daí, para que o leitor se apresente bem preparado, o exame precisa<br />

ter por base estes dois elementos. No arrependimento incluo o amor,<br />

pois é indubitável que a pessoa que apren<strong>de</strong>u a renúncia a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>votar-se<br />

a Cristo e a seu serviço, também se <strong>de</strong>votará <strong>de</strong> corpo e alma<br />

à promoção da unida<strong>de</strong> que Cristo nos recomendou. Aliás, o que se<br />

exige não é fé perfeita ou arrependimento perfeito. Isto é enfatizado<br />

por causa <strong>de</strong> algumas pessoas, pois ao insistirem <strong>de</strong>mais numa perfeição<br />

que não po<strong>de</strong> ser encontrada em parte alguma, outra coisa não<br />

fazem senão estabelecer barreira perene entre cada homem e cada<br />

mulher e a Ceia. Entretanto, se o leitor aspirar pela justiça <strong>de</strong> Deus e<br />

se, humilhando-se ante a consciência <strong>de</strong> sua própria miséria, recorre<br />

91 “Voyla leur belle preparation.” – “Ver sua admirável preparação.”<br />

92 “Ces imiserables.” – “Aquelas criaturas miseráveis.”<br />

93 “Et qu’ils on <strong>de</strong>bagoulé leur turpitu<strong>de</strong> à monsieur le prestre.” – “E quando tiverem balbuciado<br />

sua vileza ao senhor sacerdote.”


420 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

à graça <strong>de</strong> Cristo, e <strong>de</strong>scansa nela, esteja certo <strong>de</strong> que é um convidado<br />

digno <strong>de</strong> aproximar-se <strong>de</strong>ssa Mesa. Ao afirmar que o leitor é digno, estou<br />

dizendo que o Senhor não o exclui, ainda que em outros aspectos<br />

não esteja como <strong>de</strong>veria. Porque a fé, ainda que imperfeita, transforma<br />

o indigno em digno.<br />

29. Aquele que come indignamente, come juízo para si. Paulo<br />

já havia ressaltado claramente a gravida<strong>de</strong> da ofensa ao dizer<br />

que quem “come indignamente será culpado do corpo e do sangue<br />

do Senhor”. Agora ele lhes apresenta a causa para que se alarmem<br />

diante da ameaça <strong>de</strong> castigo. 94 Pois muitos não se sentem perturbados<br />

diante do pecado propriamente dito, a não ser que sejam<br />

visitados pelo juízo divino. E é isso que Paulo está fazendo quando<br />

<strong>de</strong>clara que esta refeição, que <strong>de</strong> outro modo é salutar, se converterá<br />

em peçonha e causa <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição para aqueles que a comerem<br />

indignamente.<br />

E ele adiciona a razão para isso, ou, seja, porque não discernem<br />

o corpo do Senhor, o qual é santo e não algo vulgar. O que<br />

ele está querendo comunicar é que os coríntios compulsavam<br />

o sagrado corpo <strong>de</strong> Cristo com mãos impuras [Mc 7.2], 95 e, pior<br />

ainda, tratavam-no como se fosse algo vil, não dando qualquer importância<br />

a seu infinito valor. 96 Portanto, teriam que pagar o preço<br />

por uma profanação tão grave. Não obstante, que meus leitores<br />

tenham em mente o que disse há pouco, ou, seja, que o corpo 97 <strong>de</strong><br />

Cristo lhes é oferecido, ainda que sua indignida<strong>de</strong> os impeça <strong>de</strong><br />

participarem <strong>de</strong>le.<br />

94 “La punition que Dieu en fera.” – “A punição que Deus infligirá sobre eles.”<br />

95 “Ils manient le corpos precieux <strong>de</strong> Christ irreueremment, c’est à dire, sans nettoyer leur<br />

conscience.” – “Manuseiam o precioso corpo <strong>de</strong> Cristo irreverentemente, isto é, sem lavar<br />

sua consciência.”<br />

96 Na Vulgata e no manuscrito alexandrino, bem como na versão cóptica, a redação é<br />

simplesmente μη διακρίνων τὸ σω̑μα – não distinguindo o corpo; enquanto as cópias mais<br />

recentes têm τὸ σω̑μα του̑ Κυρίου – o corpo do Senhor. O verbo διακρίνω é empregado por<br />

Heródoto no sentido <strong>de</strong> distinguir, na seguinte expressão: διακρίνων ουδενα – sem qualquer<br />

distinção <strong>de</strong> pessoas. (Herod. iii.39.) Há quem suponha que a palavra, como empregada<br />

aqui, contém uma alusão à distinção <strong>de</strong> alimentos sob a lei mosaica.<br />

97 “Le corps <strong>de</strong> Christ.” – “O corpo <strong>de</strong> Cristo.”


Capítulo 11 • 421<br />

30. Por esta causa há entre vós muitos<br />

fracos e doentes, e muitos que dormem.<br />

31. Pois, se julgássemos a nós mesmos,<br />

não seríamos julgados.<br />

32. Mas, quando somos julgados, somos<br />

disciplinados pelo Senhor,<br />

para não sermos con<strong>de</strong>nados com<br />

o mundo.<br />

33. Por isso, meus irmãos, quando vos<br />

ajuntais para comer, esperai uns pelos<br />

outros.<br />

34. E se alguém tiver fome, coma em<br />

casa, para não vos ajuntar<strong>de</strong>s para<br />

con<strong>de</strong>nação. Quanto às <strong>de</strong>mais coisas,<br />

or<strong>de</strong>ná-las-ei quando eu for.<br />

30. Propterea inter vos infirmi sunt<br />

multi, et ægroti, et dormiunt multi.<br />

31. Si enim ipsi nos indicassemus, non<br />

indicaremur.<br />

32. Porro quum indicamur, a Domino<br />

corripimur, ne cum hoc mundo damnemur.<br />

33. Itaque, fratres mei, dum convenitis<br />

àd e<strong>de</strong>ndum, alii alios exspectate.<br />

34. Si autem quispiam esurit, domi<br />

edat, ne in iudicium edatis; cætera<br />

autem, quum venero, disponam.<br />

30. Por esta causa. Uma vez tendo tratado, em termos gerais, da<br />

questão da “participação indigna”, e o gênero <strong>de</strong> punição que aguarda<br />

aqueles que profanam este sacramento, ele agora fala da punição que<br />

por sua vez terão que enfrentar. Não sabemos se nesse tempo alguma<br />

praga os atormentava, ou se eram afligidos por outros gêneros <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>s.<br />

Seja como for, <strong>de</strong>duzimos do que Paulo diz que o Senhor<br />

havia enviado algum tipo <strong>de</strong> açoite para discipliná-los. E quando Paulo<br />

diz que estavam sendo punidos porque comiam indignamente, com<br />

certeza não estava fazendo nenhuma conjetura, senão que asseverava<br />

algo <strong>de</strong> que estava muito bem consciente. Então <strong>de</strong>clara que muitos<br />

haviam contraído doenças, que muitos se achavam sob o domínio <strong>de</strong><br />

um longo estado <strong>de</strong> enfraquecimento e que muitos haviam morrido em<br />

razão do abuso que faziam à Ceia, pelo que haviam ofendido a Deus.<br />

Desta forma, ele está pondo em realce o fato <strong>de</strong> que somos advertidos<br />

através <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> outros meios disciplinares usados por<br />

Deus, a fim <strong>de</strong> meditarmos sobre nossos pecados; pois, visto que Deus<br />

não tem nenhum prazer em nossas aflições, ele não nos fere a menos<br />

que tenha boas razões para fazê-lo.


422 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Este é um gran<strong>de</strong> e multifário tema; porém, aqui o apresentamos<br />

apenso a um comentário breve e superficial. Se na época <strong>de</strong> Paulo um<br />

abuso feito à Ceia, 98 que não era dos mais graves, podia <strong>de</strong>spertar a<br />

ira <strong>de</strong> Deus contra os coríntios, ao ponto <strong>de</strong> puni-los com tanta severida<strong>de</strong>,<br />

o que pensar da situação em nossos próprios dias? Ao longo<br />

da série <strong>de</strong> papas, vemos não só as horríveis profanações da Ceia, mas<br />

também algo profano e <strong>de</strong>testável estabelecido em seu lugar.<br />

(1) Em primeiro lugar, ela é prostituída para sórdidos fins lucrativos<br />

[1Tm 3.8]. (2) Ela é mutilada, visto que o cálice foi suprimido. (3)<br />

Sua forma 99 foi totalmente alterada, visto que se tornou o costume <strong>de</strong><br />

cada um ter sua festa a seu próprio modo, <strong>de</strong> forma que a participação<br />

mútua é posta <strong>de</strong> lado. 100 (4) Não se apresenta nenhuma explicação<br />

do sacramento, mas tudo é ouvido em som murmurante, o que se assemelha<br />

mais a encantamentos <strong>de</strong> mágicos, ou a horríveis sacrifícios<br />

pagãos, do que mesmo à instituição do Senhor. (5) Há incontáveis cerimônias,<br />

profusas não só <strong>de</strong> coisas sem sentido, como também <strong>de</strong><br />

superstição e, por isso, <strong>de</strong> claras <strong>de</strong>turpações. (6) Há a diabólica invenção<br />

do sacrifício, o que equivale a uma ímpia blasfêmia contra a<br />

morte <strong>de</strong> Cristo. (7) É bem projetada para levar os homens ignóbeis<br />

a se embriagarem com uma confiança carnal, ao colocá-la diante <strong>de</strong><br />

Deus como expiação e ao imaginarem que, por meio <strong>de</strong>ste fetiche, estão<br />

expulsando tudo quanto po<strong>de</strong>ria prejudicá-los, e isso sem fé e sem<br />

arrependimento. Sim, e o que é ainda pior, quando se vêem tão seguros<br />

<strong>de</strong> que estão armados contra o diabo e a morte, e que, no tocante<br />

a Deus, se sentem seguramente protegidos contra ele, se tornam ousados<br />

para pecar com muito mais liberda<strong>de</strong>, 101 e se agigantam em sua<br />

obstinação. (8) Nela, um ídolo é adorado no lugar <strong>de</strong> Cristo. Em suma,<br />

98 “Vn tel abus <strong>de</strong> la Cene qui n’estoit pas <strong>de</strong>s plus grans.” – “Tal abuso da Ceia, como não<br />

era um dos maiores.”<br />

99 “Vne forme estrange et du tout autre.” – “Uma forma estranha e totalmente diferente.”<br />

100 “Sans en distribuer ne communiquer aux autres.” – “Sem distribuir ou comunicar <strong>de</strong>la<br />

aos <strong>de</strong>mais.”<br />

101 Ils pechent plus audacieusement, et à bri<strong>de</strong> auallee.” – “Pecam mais ousadamente e<br />

livres <strong>de</strong> qualquer freio.”


Capítulo 11 • 423<br />

ela está saturada <strong>de</strong> toda sorte <strong>de</strong> abominações. 102<br />

Ora, nós administramos a Ceia em sua pureza, na forma como<br />

nos foi restaurada, 103 como se tivesse, por assim dizer, regressado do<br />

exílio. 104 Mesmo entre nós, porém, quanta irreverência existe! Quanta<br />

hipocrisia por parte <strong>de</strong> muitos! Que <strong>de</strong>sditosa mescla existe quando,<br />

sem qualquer discriminação, pessoas perversas e publicamente<br />

dissolutas abrem caminho para ela, pessoas com quem nenhuma outra<br />

pessoa <strong>de</strong>cente e respeitável teria quaisquer relações sociais e<br />

ordinárias! 105 E ainda indagamos qual seria a razão para tantas guerras,<br />

tantas pragas, quantas colheitas abortivas, quantas <strong>de</strong>sgraças e calamida<strong>de</strong>s,<br />

como se a causa não nos fosse tão óbvia como uma nuvem<br />

que percorre o céu. E certamente não po<strong>de</strong>mos antecipar o fim dos<br />

infortúnios, até que tenhamos removido sua causa pela correção <strong>de</strong><br />

nossos erros.<br />

31 Se julgássemos a nós mesmos. Aqui temos outra notável<br />

afirmação, ou, seja: que Deus não se ira contra nós repentinamente,<br />

punindo-nos tão logo erramos, mas, na maioria das vezes, é em virtu<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> nossa negligência que ele se vê forçado a punir-nos, ao notar que<br />

estamos <strong>de</strong>spreocupados e apáticos, ludibriando-nos a nós mesmos<br />

em relação a nossos pecados. 106 Por isso, <strong>de</strong>sviaremos <strong>de</strong> nós ou mi-<br />

102 O parágrafo supra é aptamente <strong>de</strong>signado na antiga tradução inglesa <strong>de</strong> Thomas Tymme<br />

(1573): “Da mentirosa <strong>de</strong>scrição da Missa Papal.”<br />

103 “Le pur vsage <strong>de</strong> la Cene en son entier, qui nous a este finalement rendu par la grace<br />

<strong>de</strong> Dieu.” – “O uso puro da Ceia em sua completu<strong>de</strong>, que por fim nos foi restaurada pela<br />

graça <strong>de</strong> Deus.”<br />

104 Calvino aqui emprega o termo postliminum (restauração do cativeiro) e <strong>de</strong> uma forma<br />

muito feliz compara a restauração da pura observância das or<strong>de</strong>nanças religiosas, em<br />

<strong>de</strong>corrência da Reforma, à recuperação, por um cidadão romano, <strong>de</strong> seus privilégios<br />

superiores, em sua conversão do estado <strong>de</strong> cativeiro, durante o qual não per<strong>de</strong>ram os<br />

direitos, mas dos quais foram suspensos.<br />

105 “Lesquels vn homme <strong>de</strong> bien, et qui auroit honnestete en quelque recommendation, ne<br />

receuroit iamais à sa table.” – “O que um homem <strong>de</strong> princípios, que tivesse algum respeito<br />

pela <strong>de</strong>cência, jamais admitiria a sua mesa.”<br />

106 “Quand il voit que nous ne nous soucions <strong>de</strong> rien, et que nous-nous endormons en nos<br />

pechez, et nous flattons en nos ordures et vilenies.” – “Quando vê que estamos totalmente<br />

<strong>de</strong>scuidosos, e estamos dormitando em nossos pecados, e a nós mesmos gratificamos<br />

em nossas impurezas e corrupções.”


424 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

tigaremos os castigos que nos ameaçam, se antes <strong>de</strong> tudo fizermos<br />

um balanço <strong>de</strong> nós mesmos e, sinceramente arrependidos, <strong>de</strong>sviarmos<br />

a ira <strong>de</strong> Deus por meio <strong>de</strong> orações sinceramente a ele dirigidas,<br />

infligindo-nos punições, <strong>de</strong> nosso próprio arbítrio. 107 Numa palavra, os<br />

crentes evitam o juízo divino por meio <strong>de</strong> arrependimento; e o único<br />

antídoto pelo qual po<strong>de</strong>m obter absolvição aos olhos <strong>de</strong> Deus é através<br />

da autocon<strong>de</strong>nação espontânea.<br />

Entretanto, o leitor não <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>duzir (como geralmente fazem os<br />

papistas) que há uma espécie <strong>de</strong> transação entre nós e Deus, nesta<br />

conexão, <strong>de</strong> modo que, ao nos infligirmos nosso próprio castigo, <strong>de</strong><br />

nossa própria iniciativa, fazemos-lhe compensação, e em certo sentido<br />

nos redimimos a nós mesmos <strong>de</strong> <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> sua mão. Portanto,<br />

não <strong>de</strong>sviamos o juízo <strong>de</strong> Deus antecipadamente só porque trazemos<br />

algo <strong>de</strong> natureza compensatória, que o possa apaziguar. A razão é que<br />

quando Deus nos pune, sua intenção é sacudir-nos <strong>de</strong> nossa letargia<br />

e incitar-nos ao quebrantamento. Se proce<strong>de</strong>mos assim, <strong>de</strong> nosso<br />

próprio arbítrio, então não existe mais razão para ele prosseguir exercendo<br />

seu juízo contra nós. Mas se alguém que já apren<strong>de</strong>u a viver<br />

insatisfeito consigo mesmo e a praticar penitência se vê ainda, não<br />

obstante, perseguido pelo azorrague divino, <strong>de</strong>vemos <strong>de</strong>duzir disso<br />

que seu arrependimento não é tão completo e tão forte que se exima<br />

da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguma reprovação a ajudá-lo a <strong>de</strong>senvolvê-la ainda<br />

mais. Note-se como o arrependimento estanca o juízo divino como um<br />

antídoto eficaz, mas não como algo que o substitua.<br />

32. Mas quando somos julgados. Aqui temos uma consolação que<br />

é imprescindivelmente necessária. Pois se alguém que se encontra em<br />

dificulda<strong>de</strong> crê que isso se <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong> Deus estar irado contra<br />

ele, seu quebrantamento é suficiente para movê-lo à reparação. Paulo,<br />

pois, diz que, quando Deus mostra aos crentes sua ira, ele o faz <strong>de</strong><br />

107 “Prions nostre bom Dieu d’addoucir la rigueur <strong>de</strong> sa iustiice; par manier <strong>de</strong> dire nous<br />

punissans nous-mesmes sans attendre qu’il y mette la main.” – “Suplicamos a nosso bom<br />

Deus que mitigue o rigor <strong>de</strong> sua justiça – punindo-nos (por assim dizer) em vez <strong>de</strong> esperar<br />

até que ele manifeste sua mão para fazer isso.”


Capítulo 11 • 425<br />

tal forma que, ao mesmo tempo, põe em relevo que não olvida sua<br />

misericórdia; e ainda mais, ele diz que, quando Deus nos pune, isso se<br />

<strong>de</strong>ve a sua particular preocupação por nossa salvação. Constitui um<br />

inestimável conforto 108 o fato <strong>de</strong> que as punições, por meio das quais<br />

nossos pecados são corrigidos, são prova, não da ira divina visando a<br />

nossa <strong>de</strong>struição, mas, antes, <strong>de</strong> seu amor paternal; e que, ao mesmo<br />

tempo, elas nos ajudam a restabelecer nossa salvação, pois Deus se<br />

ira contra nós como seus filhos, aos quais ele não quer que pereçam.<br />

Ao dizer: para não sermos con<strong>de</strong>nados com o mundo, ele tem<br />

em mente duas coisas. A primeira é que, quando os filhos <strong>de</strong>ste mundo<br />

vivem felizes e sem dificulda<strong>de</strong>s, embalados por seus próprios<br />

<strong>de</strong>leites, 109 estão sendo engordados como suínos para o dia da matança<br />

[Jr 12.3]. Pois ainda que o Senhor às vezes intime também os ímpios<br />

ao arrependimento, usando neles seu azorrague, não obstante às vezes<br />

os toma por estranhos 110 e lhes permite que <strong>de</strong>sçam seus <strong>de</strong>clives<br />

sem qualquer freio, até que encham transbordantemente a medida <strong>de</strong><br />

sua final con<strong>de</strong>nação. O privilégio <strong>de</strong> ser arrancado das bordas da <strong>de</strong>struição,<br />

através <strong>de</strong> castigos, pertence exclusivamente aos crentes.<br />

A segunda coisa é esta: que as disciplinas [divinas] são remédios<br />

dos quais os crentes necessitam, pois, do contrário, seriam também<br />

impelidos rumo à <strong>de</strong>struição eterna, 111 caso não fossem impedidos pelos<br />

castigos temporais.<br />

Essas consi<strong>de</strong>rações nos ajudam não só a sermos pacientes a fim<br />

<strong>de</strong> suportarmos calmamente as aflições impostas por Deus, mas também<br />

para apren<strong>de</strong>rmos a gratidão; <strong>de</strong> modo que, dando graças a Deus<br />

108 “Y a-il plus gran<strong>de</strong> consolation pour le Chrestien que ceste-ci?” – “Há para o cristão um<br />

conforto maior que este?”<br />

109 “Sont tout asseurez, et ne se soucians du ingement <strong>de</strong> Dieu s’endorment en leurs plaisirs<br />

et voluptexz.” – “São totalmente confiantes e, não se preocupando com o juízo divino, se<br />

espojam em seus prazeres e <strong>de</strong>leites.”<br />

110 “Il aduient souuent qu’il les met en oubli comme estrangers.” – “Amiú<strong>de</strong> acontece que<br />

ele os ignora como estranhos.”<br />

111 “Ils tomberoyent aussi bien que les autres em ruine eternelle.” – “Cairiam, tanto quanto<br />

os outros, em eterna <strong>de</strong>struição.”


426 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

nosso Pai, submetamo-nos 112 a sua disciplina em obediência espontânea.<br />

Há muitos outros meios pelos quais esses pensamentos po<strong>de</strong>m<br />

ser-nos <strong>de</strong> muita utilida<strong>de</strong>, a saber: transformam nossas disciplinas<br />

em algo saudável para nós, já que nos ensinam a mortificação da carne<br />

e a humilda<strong>de</strong> diante <strong>de</strong> Deus; nos fazem habituados a obe<strong>de</strong>cer a<br />

Deus; nos convencem <strong>de</strong> nossas próprias fraquezas; lançam chamas<br />

em nossos corações com solicitu<strong>de</strong> pela oração; nos fazem esperançosos<br />

<strong>de</strong> que realizaremos uma gran<strong>de</strong> obra; <strong>de</strong> modo que, seja longa<br />

ou breve, qualquer que seja a severida<strong>de</strong> que porventura haja nesses<br />

pensamentos, é tudo absorvido pela alegria espiritual.<br />

33. Por isso, meus irmãos. Ele <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> lado o ensino <strong>de</strong> natureza<br />

geral e se volve agora para o caso particular com o qual começara. Ele<br />

termina dizendo que na Ceia do Senhor a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser preservada,<br />

para que haja genuína participação <strong>de</strong>la, e que cada um por sua<br />

vez não celebre sua própria ceia; e finalmente diz que este sacramento<br />

não <strong>de</strong>ve ser confundido com festas ordinárias.<br />

34. Quanto às <strong>de</strong>mais coisas, or<strong>de</strong>ná-las-ei quando for. É provável<br />

que houvesse outros assuntos além <strong>de</strong>stes, os quais não valiam a<br />

pena acrescentar; mas já que eram <strong>de</strong> bem menos importância, o apóstolo<br />

adia sua inclusão até que visite os coríntios. Ainda que se prove<br />

que nada disso realmente existiu lá, todavia, visto que uma pessoa só<br />

tem pleno conhecimento do que é necessário quando está presente,<br />

Paulo reserva para si a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> organizar as coisas pessoalmente,<br />

segundo as exigências da real situação que porventura encontre.<br />

Os papistas tomam isso também contra nós, como um escudo<br />

em <strong>de</strong>fesa da missa. Pois interpretam isto como equivalendo o pôr em<br />

or<strong>de</strong>m que Paulo aqui promete; como se <strong>de</strong> fato tivesse assumido sobre<br />

si a liberda<strong>de</strong> 113 <strong>de</strong> interferir na imutável instituição <strong>de</strong> Cristo, a<br />

qual ele tão claramente endossa nesta passagem. Ora, que semelhança<br />

112 “Voluntairement, à soustenir tel chastisement qu’il luy plaira nous enuoyer.” – “Voluntariamente<br />

suportar tal disciplina segundo ele aprouver enviar-nos.”<br />

113 “Mais c’est bien à propos, comme si ce sainct personnage se fust donne ceste license.” –<br />

“Mas esta provavelmente seja uma coisa verda<strong>de</strong>ira! Como se aquele santo personagem<br />

se permitisse tal liberda<strong>de</strong>.”


Capítulo 11 • 427<br />

po<strong>de</strong> haver entre a missa e a instituição <strong>de</strong> Cristo? Não obstante, não<br />

ouçamos mais tal absurdo, visto não haver dúvida <strong>de</strong> que Paulo aqui<br />

está falando apenas da a<strong>de</strong>quação do comportamento exterior. Mas<br />

como esta é uma questão que é <strong>de</strong>ixada à discrição da Igreja, assim, ao<br />

dispô-la, <strong>de</strong>vem-se levar em consi<strong>de</strong>ração as circunstâncias <strong>de</strong> tempo,<br />

<strong>de</strong> lugar, bem como as pessoas envolvidas.


Capítulo 12<br />

1. No tocante aos dons espirituais, não<br />

quero, irmãos, que sejais ignorantes.<br />

2. Sabeis que outrora, quando éreis<br />

gentios, <strong>de</strong>ixáveis conduzir-vos aos<br />

ídolos mudos, guiados <strong>de</strong> qualquer<br />

forma.<br />

3. Por isso vos faço compreen<strong>de</strong>r que<br />

ninguém que fala pelo Espírito <strong>de</strong><br />

Deus afirma: Jesus é anátema; e ninguém<br />

po<strong>de</strong> dizer: Jesus é o Senhor,<br />

senão pelo Espírito Santo.<br />

4. Ora, há diversida<strong>de</strong>s nos dons, porém<br />

o Espírito é o mesmo.<br />

5. E há diversida<strong>de</strong>s nos ministérios,<br />

mas o Senhor é o mesmo.<br />

6. E há diferenças nas administrações,<br />

porém é o mesmo Deus que opera<br />

tudo em todos.<br />

7. Mas a cada um é concedida a manifestação<br />

do Espírito, visando a um<br />

fim proveitoso.<br />

1. Porro <strong>de</strong> spiritualibus, fratres, nolo<br />

vos ignorare.<br />

2. Scitis, quum Gentes eratis, qualiter<br />

simulacra muta, prout ducebamini,<br />

sequuti sitis.<br />

3. Quamobrem notum vobis facio,<br />

quod nemo in Spiritu Dei loquens,<br />

dicit anathema Iesum: et nemo potest<br />

dicere Dominum Iesum, nisi<br />

per Spiritum Sanctum.<br />

4. Divisiones autem donorum sunt, sed<br />

unus Spiritus.<br />

5. Et divisiones ministeriorum sunt,<br />

sed unus Dominus.<br />

6. Et divisiones facultatum sunt, sed<br />

Deus unus, qui operatur omnia in<br />

omnibus.<br />

7. Unicuique autem datur manifestatio<br />

Spiritus ad utilitatem.<br />

1. No tocante aos dons espirituais. Ele prossegue corrigindo outro<br />

erro. Visto que os coríntios faziam mau uso dos dons <strong>de</strong> Deus,<br />

visando à ostentação e pompa, havia pouca ou nenhuma preocupação<br />

com o amor. Paulo então lhes ensina que a razão para os crentes<br />

serem enriquecidos por Deus, com dons espirituais, é para que seus irmãos<br />

sejam edificados. Ele, porém, divi<strong>de</strong> o princípio em duas partes.


430 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Antes <strong>de</strong> tudo, ele realça que Deus é a fonte dos dons; em seguida, uma<br />

vez estabelecido este fato, ele se põe a discutir seu propósito. Partindo<br />

<strong>de</strong> sua experiência pessoal, ele prova que as coisas em que eles se vangloriavam<br />

proce<strong>de</strong>m da benevolência <strong>de</strong> Deus para com os homens;<br />

pois ele os lembra quão ignorantes, estúpidos e espiritualmente cegos<br />

eram diante do Deus que um dia os chamou. Daí ser evi<strong>de</strong>nte que não<br />

tinham sido providos com estes dons, não através da natureza, mas<br />

através da imerecida benignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus.<br />

No tocante às palavras – “Não quero que sejais ignorantes” –, <strong>de</strong>vemos<br />

suplementá-las com “do que é correto”, ou “no que diz respeito<br />

a vossos <strong>de</strong>veres”, ou uma expressão semelhante. Acerca do que vem<br />

a seguir há duas redações possíveis: alguns manuscritos trazem ὅτι,<br />

somente, e outros adicionam ὅτε. Usam ὅτι no sentido do que é explicativo.<br />

ὅτε significa quando, e esta redação é muito mais a<strong>de</strong>quada.<br />

Isolando essa variação, a construção fica confusa nas outras formas;<br />

porém, o significado é bem claro. Bem literalmente, po<strong>de</strong>-se ler:<br />

“Sabeis que quando éreis gentios, seguindo após os ídolos mudos, precisamente<br />

como éreis guiados.” Não obstante, segundo minha própria<br />

tradução, procurei manter fielmente o que Paulo tencionava dizer.<br />

Pela expressão ídolos mudos, ele preten<strong>de</strong> dizer que os coríntios<br />

não podiam pensar nem mover-se.<br />

Este versículo nos informa quão profunda é a cegueira da mente<br />

humana, em sua carência da iluminação do Espírito Santo; uma vez<br />

que o homem se pasma maravilhado diante dos ídolos mudos, 1 ele não<br />

consegue elevar-se além disso em sua busca <strong>de</strong> Deus; e, ainda pior, na<br />

verda<strong>de</strong> ele se <strong>de</strong>ixa guiar por Satanás como se fosse um bruto. 2 Ele<br />

aqui usa o termo gentios no mesmo sentido que Efésios 2.12. Neste<br />

1 “Il <strong>de</strong>meure là abbruti apres les idoles.” – “Permanece ali, num afeto animalesco pelos<br />

ídolos.”<br />

2 Esta idéia é abordada mais amplamente por Bloomfield, que observa que ἀπάγεσθαι (ser<br />

levado embora) é “um termo forte, <strong>de</strong>notando ser arrebatado por uma força que não<br />

po<strong>de</strong> ser resistida; e aqui se refere à cega enfatuação pela qual os pagãos eram atraídos à<br />

idolatria e vícios, como bestas brutas que não têm entendimento.” Adiciona ainda: “Isto<br />

é especialmente mencionado em ὡς ἄν ἤγεσθε – como po<strong>de</strong>is ser levados, isto é, por costume,<br />

exemplo, ou inclinação, justamente como po<strong>de</strong> acontecer.”


Capítulo 12 • 431<br />

texto, ele diz: “naquele tempo estáveis sem Cristo, separados da comunida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Israel e estranhos às alianças da promessa, não tendo<br />

esperança, e sem Deus no mundo.” Talvez Paulo esteja também argumentando<br />

a partir do oposto, a saber: o que dizer se 3 agora, <strong>de</strong>pois<br />

que Deus os tomou sob sua proteção a fim <strong>de</strong> serem guiados por sua<br />

Palavra e pelo Espírito, eles se mostram menos dispostos em seguir<br />

suas instruções do que era outrora sua prontidão em ce<strong>de</strong>r às insinuações<br />

<strong>de</strong> Satanás e em fazê-las concretas?<br />

3. Por isso vos faço compreen<strong>de</strong>r. Tendo-os admoestado à luz da<br />

experiência pessoal <strong>de</strong>les, ele prossegue ministrando-lhes instrução<br />

<strong>de</strong> natureza geral, mas com base nela. Pois o que os coríntios experimentaram<br />

em si mesmos é comum a toda a humanida<strong>de</strong>, ou, seja,<br />

transitar pelo erro 4 <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> serem, pela benevolência divina, conduzidos<br />

à verda<strong>de</strong>. Daí ser necessário que sejamos guiados pelo Espírito<br />

<strong>de</strong> Deus, do contrário vagaremos sem rumo para sempre. Daqui se<br />

<strong>de</strong>duz igualmente que tudo quanto diz respeito ao genuíno conhecimento<br />

<strong>de</strong> Deus é um dom do Espírito Santo. Ele ao mesmo tempo extrai<br />

um argumenta partindo das causas opostas para os efeitos opostos.<br />

Ninguém que fala pelo Espírito <strong>de</strong> Deus po<strong>de</strong> injuriar a Cristo; em contrapartida,<br />

ninguém po<strong>de</strong> honrar a Cristo, a não ser pelo Espírito <strong>de</strong><br />

Deus. Afirmar que Jesus é maldito equivale a pronunciar blasfêmia<br />

contra ele. Afirmar que Jesus é o Senhor equivale falar <strong>de</strong>le com honra<br />

e reverência, visando a exaltar sua majesta<strong>de</strong>.<br />

Neste ponto alguém po<strong>de</strong>ria perguntar se os <strong>de</strong>screntes possuem<br />

o Espírito <strong>de</strong> Deus quando, oportunamente, cantam os louvores <strong>de</strong><br />

Cristo em termos magnificentes. Minha resposta é que indubitavelmente<br />

eles o possuem, no que diz respeito a sua influência; no entanto,<br />

o dom da regeneração é uma coisa, enquanto que o dom <strong>de</strong> mero<br />

conhecimento factual [intelligentiae] é outra, porquanto até mesmo<br />

Judas era dotado com o mesmo dom quando pregava o evangelho.<br />

3 “Que ce sera une vilenie à eux s’ils” – “Será uma <strong>de</strong>sgraça para eles se ...”<br />

4 “D’estre errans et abusez en diuerses sortes.” – “De andar ao léu e iludidos <strong>de</strong> várias<br />

maneiras.”


432 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Também <strong>de</strong>scobrimos, à luz <strong>de</strong>ste fato, quão impotentes somos<br />

nós, já que não po<strong>de</strong>mos empregar nossas línguas para que expressem<br />

o louvor <strong>de</strong> Deus, a menos que sejam governadas pelo Espírito<br />

Santo. As Escrituras freqüentemente nos recordam este fato (Davi dá<br />

testemunho disso quando dá louvores por esse dom: “Senhor, abre<br />

meus lábios” [Sl 51.15], e <strong>de</strong> todos os recantos os santos reconhecem<br />

que, a não ser que o Senhor abra nossa boca, não teremos capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ser seus arautos. Entre outros, Isaías diz: “Sou homem <strong>de</strong> lábios<br />

impuros” [6.5].<br />

4. Ora, há diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dons. A simetria da Igreja 5 está no fato<br />

<strong>de</strong> ela constituir-se, por assim dizer, numa unida<strong>de</strong> 6 <strong>de</strong> muitas partes;<br />

em outros termos, quando os diferentes dons são todos direcionados<br />

para um e o mesmo fim, assim como na música partes diferentes são<br />

ajustadas umas às outras, e tão bem combinadas que produzem uma<br />

peça harmoniosa. É certo, pois, que os dons <strong>de</strong>vem ser distinguidos<br />

uns dos outros, assim como os ofícios, e que, não obstante, <strong>de</strong>vem ser<br />

todos eles combinados numa só harmonia. Conseqüentemente, Paulo,<br />

no capítulo 12 <strong>de</strong> Romanos, fala <strong>de</strong>sta varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> dons, <strong>de</strong> modo que<br />

ninguém po<strong>de</strong> obscurecer a distinção que o Senhor fez, usurpando<br />

alguém ousadamente o lugar do outro. Ele, pois, insta com o indivíduo<br />

a que viva satisfeito com seus dons e a cultivar a maioria <strong>de</strong>les. Ele os<br />

proíbe <strong>de</strong> ultrapassar seus próprios limites mediante esforço carnal<br />

para obter algo mais. Numa palavra, ele estimula a cada um a consi<strong>de</strong>rar<br />

o quanto tem recebido, a natureza da porção <strong>de</strong>signada e para o<br />

quê ele foi chamado a fazer. 7<br />

Aqui, <strong>de</strong> um lado, ele está instruindo indivíduos a trazerem o que<br />

possuem como uma contribuição para o fundo comum, e não para<br />

5 “La proportion et ordre bien compassé qui est en l’Eglise.” – “A proporção e or<strong>de</strong>m bem<br />

regulada que existem na Igreja.”<br />

6 “Consiste en vne vnite faite <strong>de</strong> plusieurs parties assemblees.” – “Consiste <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong><br />

feita <strong>de</strong> muitas partes bem ajustadas.”<br />

7 “Il veut donc qu’un chacun se contentant du don qu’il a receu, s’employe a le faire valoir,<br />

et s’acquitter <strong>de</strong> son <strong>de</strong>uoir.” – “Portanto, ele quer que cada um se contente com o dom<br />

que recebeu, esforçando-se por aperfeiçoá-lo e cumprindo cuidadosamente seu <strong>de</strong>ver.”


Capítulo 12 • 433<br />

guardar para si os dons <strong>de</strong> Deus, o que significaria que os benefícios<br />

provindos dos dons <strong>de</strong> cada pessoa se restringiriam somente a ela<br />

própria, em vez <strong>de</strong> serem partilhados com outros; 8 mas <strong>de</strong>vem operar<br />

harmoniosamente para a edificação <strong>de</strong> todos igualmente. Em ambas as<br />

passagens, ele usa a analogia do corpo humano, mas com toda certeza<br />

por diferentes razões. A suma do que ele diz equivale ao seguinte:<br />

os dons não são distribuídos aos crentes em tal varieda<strong>de</strong> para que<br />

os guar<strong>de</strong>m isolados um do outro; mas existe unida<strong>de</strong> na diferença,<br />

porque o Único Espírito é a fonte <strong>de</strong> todos os dons; o Único Deus é o<br />

Senhor <strong>de</strong> todas as formas <strong>de</strong> servir [ministeriorum] e o originador <strong>de</strong><br />

todas as ativida<strong>de</strong>s. Deus, porém, que é o originador, <strong>de</strong>ve igualmente<br />

ser a finalida<strong>de</strong>.<br />

Um só Espírito. Carinhosa atenção <strong>de</strong>ve-se dar a este versículo a<br />

fim <strong>de</strong> neutralizar os fanáticos 9 que ensinam que a <strong>de</strong>signação Espírito<br />

não tem referência alguma a algo essencial, mas só aos dons ou ativida<strong>de</strong>s<br />

do po<strong>de</strong>r divino. Paulo, porém, aqui mostra com toda clareza que<br />

existe um po<strong>de</strong>r essencial <strong>de</strong> Deus, do qual proce<strong>de</strong>m todas suas ativida<strong>de</strong>s.<br />

É verda<strong>de</strong> que o termo Espírito e com freqüência transferido,<br />

à guisa <strong>de</strong> metonímia, para os dons propriamente ditos, e assim lemos<br />

do Espírito <strong>de</strong> entendimento, <strong>de</strong> juízo, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>ração. 10<br />

Contudo Paulo aqui traz a lume plenamente que juízo, entendimento,<br />

lhaneza e tudo mais proce<strong>de</strong>m <strong>de</strong> uma única fonte. Pois é o ofício do<br />

Espírito Santo irradiar e exercer o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus, conferindo esses<br />

dons aos homens e distribuindo-os entre eles.<br />

Um só Senhor. Os Pais usaram estes versículos contra os arianos<br />

como evidência em abono da Trinda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pessoas. Pois aqui o Espírito<br />

é nomeado, em seguida o Senhor e finalmente Deus, e uma e a mesma<br />

ativida<strong>de</strong> é atribuída aos Três. O que significa que consi<strong>de</strong>raram<br />

Senhor como sendo Cristo. Mas, embora eu não faça objeção a esta<br />

8 “Pour en iouyr à part, sans en communiquer à ses freres.” – “De modo a <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong>les<br />

sem reparti-los com seus irmãos.”<br />

9 “Vn tas d’esprits enragez.” – “Uma tropa <strong>de</strong> espíritos furiosos.”<br />

10 “De discretion.” – “De discrição.”


434 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

interpretação dos versículos, não obstante estou certo <strong>de</strong> que este é<br />

um argumento bastante frágil para alguém que esperava fechar a boca<br />

aos arianos; porquanto existe uma relação entre as palavras serviço e<br />

Senhor. Ele diz que os serviços são diferentes, porém só há um Deus<br />

a quem nos dispomos a servir, não importa a que tipo <strong>de</strong> serviço nos<br />

comprometamos. Esta antítese, pois, mostra qual é o significado simples,<br />

porquanto confiná-lo só a Cristo é por <strong>de</strong>mais forçado.<br />

6. Um só Deus que opera. On<strong>de</strong> usamos a palavra po<strong>de</strong>res, o termo<br />

grego é ἐνεργήματα, termo esse que contém uma alusão ao verbo<br />

operar, como em latim effectus [um efeito] correspon<strong>de</strong> ao verbo efficere<br />

[efetuar]. O que Paulo tem em mente é que, mesmo que os crentes<br />

estejam bem equipados com diferentes po<strong>de</strong>res, todavia todos esses<br />

po<strong>de</strong>res têm sua fonte no po<strong>de</strong>r singular <strong>de</strong> Deus. Da mesma forma,<br />

as palavras “opera tudo em todos”, neste versículo, não se referem à<br />

providência geral <strong>de</strong> Deus, mas apontam para a liberalida<strong>de</strong> que ele<br />

exerce em nosso favor, nos conce<strong>de</strong>ndo a cada um algum dom. O que<br />

equivale dizer que os homens nada têm <strong>de</strong> bom ou louvável exceto<br />

o que emana unicamente <strong>de</strong> Deus. Por essa razão, fica fora <strong>de</strong> lugar,<br />

aqui, suscitar a pergunta <strong>de</strong> que maneira Deus age em Satanás e nos<br />

réprobos.<br />

7. Mas a cada um é concedida a manifestação do Espírito. Ele<br />

agora ressalta o propósito para o qual Deus <strong>de</strong>stinou seus dons, pois<br />

ele não no-los confere em vão e nem os <strong>de</strong>stina para que sirvam ao<br />

propósito <strong>de</strong> ostentação. Portanto, é indispensável que perguntemos<br />

com que propósito os dons são conferidos? A este respeito, Paulo respon<strong>de</strong>:<br />

πρὸς τὸ συμφερον [com vistas à utilida<strong>de</strong>], ou, seja, para que a<br />

Igreja receba benefícios provindos <strong>de</strong>les.<br />

A manifestação do Espírito po<strong>de</strong> ser entendida tanto no sentido<br />

passivo quanto no ativo. Po<strong>de</strong> ser tomada no sentido passivo, porque<br />

on<strong>de</strong> há profecia, conhecimento ou algum outro dom, ali o Espírito<br />

<strong>de</strong> Deus está presente e ativo. Po<strong>de</strong> ser tomada no sentido ativo, porque<br />

on<strong>de</strong> o Espírito <strong>de</strong> Deus nos mune com algum dom, ele abre seus<br />

tesouros a fim <strong>de</strong> revelar-nos coisas que, <strong>de</strong> outra forma, estariam


Capítulo 12 • 435<br />

ocultas e além <strong>de</strong> nosso alcance. A segunda é a melhor interpretação.<br />

O ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> Crisóstomo é bastante <strong>de</strong>salinhado e forçado, a<br />

saber: que o termo manifestação é usado 11 aqui porque a única maneira<br />

<strong>de</strong> os <strong>de</strong>screntes obterem o conhecimento <strong>de</strong> Deus é por via <strong>de</strong><br />

milagres visíveis.<br />

8. Porque a um é dada, através do Espírito,<br />

a palavra da sabedoria; a outro,<br />

pelo mesmo Espírito, a palavra do<br />

conhecimento;<br />

9. a outro, pelo mesmo Espírito, fé; a<br />

outro, pelo mesmo Espírito, dons<br />

<strong>de</strong> curar;<br />

10. a outro, operação <strong>de</strong> milagres; a outro,<br />

profecia; a outro, discernimento<br />

<strong>de</strong> espíritos; a outro, diversos tipos<br />

<strong>de</strong> línguas; a outro, interpretação<br />

<strong>de</strong> línguas.<br />

11. Mas um só e o mesmo Espírito é<br />

quem opera todas estas coisas, distribuíndo-as<br />

como lhe apraz, a cada<br />

um, individualmente.<br />

12. Porque, assim como o corpo é um,<br />

e tem muitos membros, e todos os<br />

membros <strong>de</strong>sse único corpo, sendo<br />

muitos, constituem um só corpo, assim<br />

também com respeito a Cristo.<br />

13. Pois, em um só Espírito, todos nós<br />

somos batizados em um corpo, quer<br />

ju<strong>de</strong>us, quer gentios, quer escravos,<br />

quer livres. E a todos foi dado beber<br />

<strong>de</strong> um só Espírito.<br />

8. Huic qui<strong>de</strong>m per Spiritum datur<br />

sermo sapientiæ, alteri datur sermo<br />

cognitionis, secundum eun<strong>de</strong>m<br />

Spiritum.<br />

9. Alii fi<strong>de</strong>s in eo<strong>de</strong>m Spiritu, alii dona<br />

sanationum in eo<strong>de</strong>m Spiritu.<br />

10. Alii facultates potentiarum, alii<br />

autem prophetia, alii autem discre<strong>de</strong>tiones<br />

spirituum, alii genera<br />

linguarum, alii interpretatio linguarum.<br />

11. Porro omnia hæc efficit unus et<br />

i<strong>de</strong>m Spiritus, distribuens seorsum<br />

cuique prout vult.<br />

12. Quemadmodum enim corpus unum<br />

est, et membra habet multa: omnia<br />

autem membra corporis unius<br />

quum multa sint, corpus autem est<br />

unum: ita et Christus.<br />

13. Etenim per unum Spiritum nos<br />

omnes in unum corpus baptizati<br />

sumus, sive Iudæi, sive Græci: sive<br />

servi, sive liberi: et omnes in uno<br />

Spiritu potum hausimus.<br />

8. Porque a um é dada. Ele agora anexa uma lista; em outros<br />

termos, ele <strong>de</strong>talha tipos particulares <strong>de</strong> dons, por certo não todos<br />

os dons, mas o suficiente para seu presente propósito. Diz ele: “Os<br />

crentes são ricamente equipados com diferentes dons, mas é preciso<br />

11 “Que ceci estg appelé Manifestation.” – “Que isto é <strong>de</strong>signado uma Manifestação.”


436 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

que cada um reconheça que o Espírito <strong>de</strong> Deus lhe proporcionou tudo<br />

quanto possui, porquanto ele <strong>de</strong>rrama seus dons, assim como o sol<br />

difun<strong>de</strong> seus raios em todas as direções.”<br />

No tocante à diferença entre estes dons, conhecimento [ou entendimento<br />

= scientia vel cognitio] e sabedoria são usados <strong>de</strong> diversas maneiras<br />

nas Escrituras, aqui, porém, os tomo na forma <strong>de</strong> menor e maior, como<br />

em Colossenses 2.3, on<strong>de</strong> também se acham juntos e on<strong>de</strong> Paulo ensina<br />

que “todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão escondidos<br />

em Cristo”. Conhecimento, pois, em minha opinião, significa familiarida<strong>de</strong><br />

com as coisas sacras; sabedoria, em contrapartida, significa a perfeição<br />

<strong>de</strong>le [conhecimento]. Prudência é às vezes apresentada como uma<br />

espécie <strong>de</strong> posição intermédia entre estes dois, e nesse caso significa a<br />

habilida<strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> aplicar o conhecimento para algum propósito prático. Esses<br />

dois termos estão indubitavelmente muito relacionados um com o<br />

outro; entretanto, é possível alguém ver uma certa diferença entre eles,<br />

quando são postos lado a lado. Tomemos, pois, conhecimento no sentido<br />

<strong>de</strong> informação ordinária; e sabedoria, como incluindo revelações que são<br />

<strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m mais secreta e sublime. 13<br />

9. O termo fé é aqui empregado para um gênero particular <strong>de</strong><br />

fé, como o contexto logo evi<strong>de</strong>nciará. Este é o tipo <strong>de</strong> fé que não se<br />

limita a Cristo em sua inteireza para a re<strong>de</strong>nção, justificação e santificação,<br />

mas só no âmbito em que os milagres são efetuados em<br />

seu nome. Judas possuía este gênero <strong>de</strong> fé, e em sua instrumentalida<strong>de</strong><br />

ele realizou milagres. Crisóstomo faz uma distinção levemente<br />

diferente, chamando-a fé <strong>de</strong> milagres [signorum], e não <strong>de</strong> doutrina<br />

[dogmatorum]. 14 Entretanto, não há muita divergência entre esta e<br />

12 “Le sçauoir et la <strong>de</strong>xterite.” – “Habilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>streza.” Quanto ao termo prudência [pru<strong>de</strong>nce],<br />

ver Cícero <strong>de</strong> Officiis, i.43.<br />

13 Um dos pontos <strong>de</strong> vista mais satisfatórios <strong>de</strong>ste tema é o do Dr. Hen<strong>de</strong>rson, em seu<br />

Lecture on “Divine Inspiration” (pp. 193, 196), que enten<strong>de</strong> por σοφία (sabedoria), nesta<br />

passagem, “as sublimes verda<strong>de</strong>s do evangelho, diretamente reveladas aos apóstolos,<br />

das quais λογος (palavra) era a habilida<strong>de</strong> supernatural <strong>de</strong> comunicá-las corretamente<br />

a outros”; e por λόγος γνώσεως (palavra <strong>de</strong> conhecimento) a faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> “infalivelmente<br />

explicar verda<strong>de</strong>s e doutrinas que foram previamente divulgadas.”<br />

14 As palavras <strong>de</strong> Crisóstomo são: “Por esta fé ele tem em mente não a fé <strong>de</strong> doutrinas, mas


Capítulo 12 • 437<br />

a interpretação que já apresentei. Quanto ao dom <strong>de</strong> curas, 15 todos<br />

sabem seu significado.<br />

10. Entretanto, não há a mesma certeza quanto ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

operar milagres [<strong>de</strong> facultatibus potentiarum], ou, como outros o<br />

traduzem, “operações <strong>de</strong> influências” [operationibus virtutum]. Contudo,<br />

sinto-me inclinado a crer que se trata do po<strong>de</strong>r [virtutem] que<br />

é exercido contra os <strong>de</strong>mônios, bem como contra os hipócritas. Assim,<br />

quando Cristo e os apóstolos, com toda autorida<strong>de</strong>, subjugaram<br />

os <strong>de</strong>mônios, ou os puseram em fuga, isto era ἐνέργημα [operação<br />

po<strong>de</strong>rosa]. Outros exemplos temos no fato <strong>de</strong> Paulo trazer cegueira<br />

ao mágico [At 13.11] e Pedro fazer Ananias e Safira caírem por terra<br />

mortos, simplesmente lhes dirigindo a palavra [At 5.1-11]. Portanto,<br />

os dons <strong>de</strong> cura e milagres são ambos canais da benevolência <strong>de</strong><br />

Deus para conosco. Em sua severida<strong>de</strong>, porém, ele usa os milagres<br />

para a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> Satanás. 16<br />

Por profecia entendo aquele dom singular e selecionado <strong>de</strong> <strong>de</strong>svendar<br />

a vonta<strong>de</strong> secreta <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong> modo que o profeta é, por assim<br />

dizer, o mensageiro entre Deus e o homem. 17 Minhas razões para pensar<br />

assim serão <strong>de</strong>monstradas <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong> forma mais completa.<br />

O discernimento <strong>de</strong> espíritos era a clareza <strong>de</strong> percepção em formar<br />

juízo quanto aos que professavam ser alguma coisa [At 5.36]. Não<br />

estou falando da sabedoria natural, pela qual somos regulados para<br />

julgar. Era uma iluminação especial com que alguns eram dotados pelo<br />

dom divino. O uso <strong>de</strong>le era este: ele não podia ser imposto por máscaa<br />

<strong>de</strong> milagres.” Ela era chamada pelos escolásticos fi<strong>de</strong>s miraculorum (fé <strong>de</strong> milagres).<br />

15 O uso <strong>de</strong> plural se manifesta para notificar o número e varieda<strong>de</strong> das enfermida<strong>de</strong>s que<br />

foram curadas – os apóstolos foram revestidos com po<strong>de</strong>r para curar todas as formas <strong>de</strong><br />

doenças e todas as formas <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>s [Mt 10.1].<br />

16 Parece não haver base suficiente para enten<strong>de</strong>r os milagres aqui referidos como necessariamente<br />

atos <strong>de</strong> terror, embora a conexão em que a expressão ocorre pareça notificar que<br />

milagres aqui significavam mais que manifestações ordinariamente estupendas do po<strong>de</strong>r<br />

divino, tal como constrangeria po<strong>de</strong>rosamente o espectador a exclamar: Este é o <strong>de</strong>do <strong>de</strong><br />

Deus! Assim, “a ressurreição dos mortos, tornar serpentes inócuas, ou beber alguma bebida<br />

envenenada, a expulsão <strong>de</strong> <strong>de</strong>mônios e a cura <strong>de</strong> cegueira”, como no caso <strong>de</strong> Elimas, o<br />

mágico, e da própria morte, como no caso <strong>de</strong> Ananias e Safira, foram feitos po<strong>de</strong>rosos .”<br />

17 “Apportant la volonte <strong>de</strong> Dieu aux hommes.” – “Comunicar a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus aos homens.”


438 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

ras nem por pretensões, 18 mas por meio <strong>de</strong>sse juízo espiritual; quem o<br />

possuísse podia distinguir, como por uma marca particular, os verda<strong>de</strong>iros<br />

ministros <strong>de</strong> Cristo dos falsos.<br />

Havia certa diferença entre o conhecimento <strong>de</strong> línguas e a interpretação<br />

<strong>de</strong>las, pois os que eram dotados com o último, em muitos<br />

casos não estavam familiarizados com a língua das pessoas com quem<br />

tinham que tratar. Os intérpretes 19 traduziam as línguas estrangeiras<br />

para a língua nativa. Naquela época, não adquiriam estes dons através<br />

<strong>de</strong> árduo trabalho ou estudo; ao contrário, os possuíam através <strong>de</strong><br />

uma maravilhosa revelação do Espírito.<br />

11. Mas um só e o mesmo Espírito distribui a cada um. Daqui segue-se<br />

que as pessoas laboram em erro quando não movem sequer uma<br />

palha pela participação, porém quebram aquela santa harmonia em que<br />

todas as partes se fun<strong>de</strong>m – algo que só po<strong>de</strong> existir quando todos, sob<br />

a direção do mesmo Espírito, trabalham juntos <strong>de</strong> comum acordo. Paulo<br />

uma vez mais intima os coríntios à unida<strong>de</strong>, lembrando-os <strong>de</strong> que<br />

todos os dons que possuíam, obtiveram-nos <strong>de</strong> uma única fonte; mas,<br />

ao mesmo tempo, ele prova que ninguém possui tanto para que se sinta<br />

auto-suficiente, que não necessite do auxílio <strong>de</strong> outrem. Pois é isso<br />

mesmo que ele preten<strong>de</strong> quando diz: “distribuindo-os a cada um, individualmente,<br />

como lhe apraz.” O Espírito <strong>de</strong> Deus, portanto, distribui<br />

esses dons entre nós, a fim <strong>de</strong> concentrarmos toda nossa contribuição<br />

visando ao bem comum. Ele não distribui tudo a um só indivíduo, para<br />

evitar que alguém fique tão satisfeito com sua porção, que procure<br />

isolar-se dos <strong>de</strong>mais, vivendo unicamente para si. O advérbio individualmente<br />

é usado para o mesmo propósito, visto ser particularmente<br />

importante que a diferença individual, pela qual Deus nos faz mutuamente<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, 20 seja por nós a<strong>de</strong>quadamente preservada. Ora,<br />

18 “Par la montre et belle apparence que les gens ont aucuneffois.” – “Pela boa aparência<br />

que às vezes as pessoas têm.”<br />

19 “Et en tel cas ceux que auoyent le don d’interpretation <strong>de</strong>s laugues.” – “E em caso como<br />

esse, os que tinham o dom <strong>de</strong> interpretar línguas.”<br />

20 “Par laquelle Dieu nou conioint et oblite mutuellement les uns aux autres.” – “Por meio da<br />

qual Deus nos conecta e obriga mutuamente uns aos outros.”


Capítulo 12 • 439<br />

quando boa vonta<strong>de</strong> é predicado do Espírito, juntamente com seu po<strong>de</strong>r,<br />

é possível concluir que o Espírito é genuína e legitimamente Deus.<br />

12. Porque, assim como o corpo é um. Ele agora introduz o símile<br />

do corpo humano, o qual também usa em Romanos 12.4, mas para um<br />

propósito distinto, como já mostrei. Ali ele está levando cada pessoa<br />

a sentir-se feliz com sua própria vocação, e a não invadir o território<br />

<strong>de</strong> outrem, seja por ambição, curiosida<strong>de</strong> ou algum outro motivo<br />

egoístico que leva muitas pessoas a se apropriarem mais do que lhes<br />

é conveniente. Nesta passagem, porém, Paulo está estimulando os<br />

crentes a manterem-se unidos pela associação <strong>de</strong> seus dons para o<br />

benefício recíproco; porquanto seus dons haviam sido outorgados por<br />

Deus, não para que cada um nutrisse a si próprio, mas para que tivesse<br />

com que auxiliar a outrem.<br />

Além disso, é algo bem comum que uma associação ou um grupo<br />

<strong>de</strong> pessoas se <strong>de</strong>nomine corpo, como, por exemplo, um corpo <strong>de</strong> políticos,<br />

um corpo governante e um corpo do povo. Certa vez, há muito<br />

tempo, quando Menenius Agripa 21 pretendia reconciliar o povo romano<br />

com o senado, contra quem o povo se rebelara, ele contou uma<br />

fábula, a qual traz certa similitu<strong>de</strong> com o que Paulo ensina aqui. 22 No<br />

caso dos cristãos, porém, a situação é inteiramente distinta, pois não<br />

constituem um mero corpo político, mas constituem o corpo espiritual<br />

e místico <strong>de</strong> Cristo, como Paulo mesmo acrescenta [v. 27]. O significado,<br />

pois, é o seguinte: embora haja diferentes membros no corpo,<br />

com diferentes funções, no entanto se acham <strong>de</strong> tal maneira jungidos<br />

uns aos outros que formam uma unida<strong>de</strong>. 23 Portanto nós, que somos<br />

21 Menenius Agripa, cônsul romano, por ocasião <strong>de</strong> uma rebelião irrompida entre o populacho<br />

contra os nobres e senadores, aos quais representavam como sendo inúteis e nauseabundos<br />

ao paladar, foi bem sucedido em aplacar a insurreição, pelo feliz uso do apólogo referido,<br />

fundamentado na conexão íntima e mútua <strong>de</strong>pendência das diferentes partes do corpo. O<br />

leitor encontrará este interessante inci<strong>de</strong>nte relatado por Livy, Livro ii. cap. 32.<br />

22 “En remonstrant que les membres du corps ayans conspiré contre le ventre, et se voulans<br />

separer d’auec luy s’en trouuerent mal les premiers.” – “Ao mostrar que os membros do<br />

corpo, tendo conspirado contra o ventre, e <strong>de</strong>sejando separar-se <strong>de</strong>le, foram os primeiros<br />

a experimentar os maus efeitos disso.”<br />

23 “Ils prenent nourriture et acroissement l’un auec l’autre.” – “Tomam nutrientes e crescem,<br />

uns com os outros.”


440 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

membros <strong>de</strong> Cristo, mesmo estando equipados com diferentes dons,<br />

não obstante <strong>de</strong>vemos preocupar-nos com aquela união mútua, que<br />

temos em Cristo.<br />

Assim também com respeito a Cristo. O nome <strong>de</strong> Cristo é usado<br />

aqui no lugar da Igreja, porque a comparação [similitudo] precisava<br />

ser aplicada, não ao Filho Unigênito <strong>de</strong> Deus, mas a nós. Visto, porém,<br />

ele chamar a Igreja, Cristo, este versículo se acha saturado <strong>de</strong> raro conforto.<br />

A razão por que Cristo nos veste com esta honra, é que ele 24<br />

<strong>de</strong>seja ser discernido e reconhecido, não só em sua própria Pessoa,<br />

mas também em seus membros. Portanto, o mesmo apóstolo diz em<br />

Efésios 1.23 que a Igreja é sua plenitu<strong>de</strong> [complementum], 25 como se<br />

quisesse dizer que, caso fosse separado <strong>de</strong> seus membros, ele [Cristo]<br />

mesmo seria <strong>de</strong> alguma forma mutilado. E <strong>de</strong> fato, como Agostinho<br />

com elegância o expressa em alguma parte <strong>de</strong> seus escritos: “Visto que<br />

em Cristo somos uma vi<strong>de</strong>ira frutífera [Jo 15.4], o que somos fora <strong>de</strong><br />

Cristo senão poucos ramos murchos?” Nosso conforto repousa nesta<br />

verda<strong>de</strong>, a saber, que assim como ele e o Pai são um, também somos<br />

um com ele. Eis a razão por que ele partilha seu nome conosco.<br />

13. Pois em um só Espírito todos nós fomos batizados em um<br />

corpo. A prova <strong>de</strong>ste fato é fornecida pelo efeito do batismo. Diz ele:<br />

Através do batismo somos enxertados no corpo <strong>de</strong> Cristo, <strong>de</strong> modo a<br />

vivermos unidos, jungidos uns aos outros como membros, e nutrindo-<br />

-nos <strong>de</strong> uma só vida. Portanto, quem <strong>de</strong>seja permanecer na Igreja <strong>de</strong><br />

Cristo <strong>de</strong>ve necessariamente <strong>de</strong>votar-se a esta comunhão.”<br />

Ele, naturalmente, está falando do batismo <strong>de</strong> crentes, o qual se<br />

torna eficaz pela ação da graça do Espírito. Porquanto para muitos o<br />

batismo não passa <strong>de</strong> mera formalida<strong>de</strong>, um símbolo sem a realida<strong>de</strong>;<br />

no entanto, os crentes realmente recebem a realida<strong>de</strong> com o sacramento.<br />

Portanto, no tocante a Deus, sempre resulta verda<strong>de</strong>iro que<br />

24 “Ce bom Seigneur Jesus.” – “Este bom Senhor Jesus.”<br />

25 Calvino, entre outros intérpretes, enten<strong>de</strong> o termo πλήρωμα (plenitu<strong>de</strong>), na passagem referida,<br />

num sentido ativo. Teofilato observa que a Igreja é a Πλήρωμα – completu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Cristo, como o corpo e os membros são da cabeça. O termo po<strong>de</strong>, contudo, ser tomado<br />

num sentido passivo, significando uma coisa a ser preenchida ou completada.


Capítulo 12 • 441<br />

o batismo é um enxerto no corpo <strong>de</strong> Cristo, porque tudo o que Deus<br />

anuncia no batismo ele está pronto a pôr em obra, contanto que, <strong>de</strong><br />

nossa parte, sejamos-lhe receptivos. O apóstolo aqui também observa<br />

um meio muito admirável, ao ensinar que a natureza do batismo<br />

consiste em conectar-nos com o corpo <strong>de</strong> Cristo. Contudo, para que<br />

ninguém suponha que isso é efetuado pelo símbolo externo, o apóstolo<br />

acrescenta que ele é obra do Espírito Santo.<br />

Quer ju<strong>de</strong>us quer gregos. Ele menciona estas duas classes a fim<br />

<strong>de</strong> realçar que a diferença na condição das pessoas não é obstáculo a<br />

esta unida<strong>de</strong> sagrada, a qual ele está recomendando. A inclusão <strong>de</strong>sta<br />

frase é apropriada e oportuna, pois duas coisas po<strong>de</strong>riam ter suscitado<br />

ressentimento naquele tempo. A primeira é que os ju<strong>de</strong>us estavam<br />

relutantes em pôr outras pessoas no mesmo nível com eles. A outra,<br />

on<strong>de</strong> alguém tivesse alguma excelência acima <strong>de</strong> outros, com vistas a<br />

manter sua superiorida<strong>de</strong>, o mesmo se afasta a uma longa distância <strong>de</strong><br />

seus irmãos.<br />

E a todos foi dado beber <strong>de</strong> um só Espírito. A tradução literal do<br />

grego é: “temos bebido <strong>de</strong> um só Espírito”. Não obstante, tudo indica<br />

que, com o fim <strong>de</strong> evitar que as duas palavras ἐν [em] e ἑν [um] viessem<br />

uma após a outra, Paulo propositadamente mudou ἐν para εἰς [para],<br />

como costumava fazer com freqüência. Daí, sua intenção parece antes<br />

ser que somos feitos para beber através da influência, como disse antes,<br />

do Espírito <strong>de</strong> Cristo, e não que temos bebido no mesmo Espírito.<br />

Não obstante, é incerto se ele fala aqui do batismo ou da Ceia. Sou<br />

antes inclinado a entendê-lo como se referindo à Ceia, ao fazer menção<br />

<strong>de</strong> beber, pois não tenho dúvida alguma <strong>de</strong> que ele pretendia fazer<br />

alusão à similitu<strong>de</strong> do sinal [ad signi analogiam]. Certamente, beber<br />

não tem nenhuma conexão com o batismo. Mas, mesmo que o cálice<br />

seja apenas uma meta<strong>de</strong> da Ceia, contudo isso não ocasiona nenhuma<br />

dificulda<strong>de</strong>, pois é bem comum nas Escrituras o uso <strong>de</strong> sinédoque 26<br />

quando se trata dos Sacramentos. No capítulo 10 [v. 7], ele menciona<br />

26 Uma figura <strong>de</strong> linguagem, por meio da qual uma parte é expressa pelo todo.


442 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

só o pão, omitindo qualquer referência ao cálice. O significado, pois,<br />

seria que o propósito pelo qual participamos do cálice é para que<br />

todos nós possamos beber da mesma bebida espiritual. Pois nele [o<br />

cálice] bebemos o sangue <strong>de</strong> Cristo, o qual é gerador <strong>de</strong> vida, para po<strong>de</strong>rmos<br />

ter vida comum com ele; e isso realmente suce<strong>de</strong> quando ele<br />

habita em nós por meio <strong>de</strong> seu Espírito. Além do mais, este Espírito é<br />

Um só. Paulo, pois, ensina que, logo que os crentes são iniciados através<br />

do batismo <strong>de</strong> Cristo, eles já se sentem cheios <strong>de</strong> zelo pelo cultivo<br />

da unida<strong>de</strong> mútua; 27 em seguida, quando recebem a Santa Ceia, são<br />

conduzidos, paulatinamente, à mesma unida<strong>de</strong>, porque estão todos<br />

sendo simultaneamente vivificados pelo mesmo beber.<br />

14. Porque o corpo não é um só membro,<br />

mas muitos.<br />

15. Se o pé disser: Porque não sou mão,<br />

não sou do corpo, nem por isso <strong>de</strong>ixa<br />

<strong>de</strong> ser do corpo.<br />

16. E se o ouvido disser: Porque não<br />

sou olho, não sou do corpo, nem<br />

por isso o <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser do corpo.<br />

17. Se todo o corpo fosse olho, on<strong>de</strong><br />

estaria a audição? Se todo ele fosse<br />

audição, on<strong>de</strong> estaria o olfato?<br />

18. Deus, porém, dispôs os membros,<br />

colocando cada um <strong>de</strong>les no corpo,<br />

como lhe aprouve.<br />

19. E se todos fossem um só membro,<br />

on<strong>de</strong> estaria o corpo?<br />

20. Mas o certo é que há muitos membros,<br />

porém um só corpo.<br />

21. O olho não po<strong>de</strong> dizer à mão: Não<br />

precisamos <strong>de</strong> ti; nem mesmo a cabeça,<br />

aos pés: Não preciso <strong>de</strong> vós.<br />

14. Etenim corpus non est unum membrum,<br />

sed multa.<br />

15. Si dixerit pes: Quoniam non sum<br />

manus, non sum ex corpore: an<br />

propterea non este ex corpore?<br />

16. Et si dixerit auris: Quia non sum<br />

oculus, non sum ex corpore: an<br />

propterea non est ex corpore?<br />

17. Si totum corpus oculus, ubi auditus?<br />

si totum auditus, ubi olfactus?<br />

18. Nunc vero Deus posuit membra,<br />

unumquodque ipsorum in corpore<br />

prout voluit.<br />

19. Quodsi essent omnia unum membrum,<br />

ubi corpus?<br />

20. At nunc multa qui<strong>de</strong>m membra,<br />

unum autem corpus.<br />

21. Nec potest oculus dicere manui: Ego<br />

te opus non habeo. Nec rursum caput<br />

pedibus: Vobis opus non habeo.<br />

27 “Si tost qu’ils sont amenez à Christ par le baptesme, <strong>de</strong>sia leur est donné un goust <strong>de</strong><br />

l’affection qu’ils doyuent auoir d’entretenir entr’eux unite et conionction naturelle.” –<br />

“Tão logo são conduzidos a Cristo pelo batismo, já lhes é dado algum sabor da disposição<br />

que <strong>de</strong>vem nutrir, para manter entre si uma unida<strong>de</strong> e conexão mútuas.”


Capítulo 12 • 443<br />

22. Muito ao contrário, os membros do<br />

corpo que parecem ser mais débeis,<br />

são necessários;<br />

23. e os membros do corpo, que pensamos<br />

serem menos dignos, a estes<br />

atribuímos muito mais honra; e nossas<br />

partes in<strong>de</strong>corosas revestimos<br />

<strong>de</strong> muito mais beleza;<br />

24. enquanto que nossas partes nobres<br />

não têm necessida<strong>de</strong> disso.<br />

No entanto Deus ajustou o corpo<br />

num todo harmonioso, conce<strong>de</strong>ndo<br />

muito mais honra àquela parte que<br />

menos tinha,<br />

25. para que não haja divisão no corpo;<br />

pelo contrário, que os membros<br />

suportem uns aos outros com igual<br />

cuidado.<br />

26. De maneira que, se um membro sofre,<br />

todos os membros sofrem com<br />

ele; ou, se um membro é honrado,<br />

todos os membros se regozijam<br />

com ele.<br />

27. Ora, vós sois o corpo <strong>de</strong> Cristo, e<br />

individualmente membros <strong>de</strong>sse<br />

corpo.<br />

22. Quin potius, quæ infirmiora corporis<br />

membra vi<strong>de</strong>ntur esse,<br />

neccessaria sunt:<br />

23. Et quæ iudicamus viliora esse in<br />

corpore, his abundantiorem honorem<br />

circundamus: et quæ minus<br />

honesta sunt in nobis, plus <strong>de</strong>coris<br />

habent.<br />

24. Quæ autem <strong>de</strong>cora sunt in nobis,<br />

non habent opus, sed Deus contemperavit<br />

corpus, tribuens honorem<br />

abundantiorem opus habenti,<br />

25. Ut ne dissidium esset in corpore,<br />

sed ut membra alia pro aliis invicem<br />

ean<strong>de</strong>m sollicitudinem habeant.<br />

26. Et sive patitur unum membrum,<br />

compatiuntur omnia membra: sive<br />

glorificatur unum membrum, congau<strong>de</strong>nt<br />

omnia membra.<br />

27. Vos autem estis corpus Christi, et<br />

membra ex parte.<br />

15. Se o pé disser. Esta frase é um <strong>de</strong>senvolvimento (ἐπεξεργασία)<br />

da anterior; ou, expressando <strong>de</strong> outra forma, Paulo elabora e amplia<br />

a idéia com o fim <strong>de</strong> elucidar o que con<strong>de</strong>nsara em poucas palavras.<br />

Além disso, tudo nesta seção correspon<strong>de</strong> à fábula <strong>de</strong> Menenius<br />

Agripa. Se porventura se <strong>de</strong>flagrasse uma rebelião no corpo, os pés<br />

dizendo que não tinham qualquer obrigação <strong>de</strong> fazer tudo pelo resto<br />

do corpo; não só eles, mas o estômago, os olhos e as mãos, o que resultaria?<br />

Não seria o caos para o corpo todo? No entanto, Paulo aqui<br />

está forçando uma situação, ou, seja, que cada membro <strong>de</strong>ve viver<br />

contente com seu próprio lugar e posição relativa, não nutrindo inveja<br />

dos outros [membros], posto que ele faz comparação entre os mem-


444 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

bros superiores e os que <strong>de</strong>sfrutam <strong>de</strong> menos valor. Porquanto, os<br />

olhos assumem uma posição <strong>de</strong> maior honra no corpo do que as mãos,<br />

e as mãos maior honra do que os pés. Imaginemos bem se a natureza o<br />

toleraria, caso as mãos fossem incentivadas pelo ciúme a recusar-se a<br />

fazer seu trabalho. Outro membro consentirá que a mão seja <strong>de</strong>cepada<br />

do resto do corpo?<br />

Não sou do corpo significa aqui não ter nada a ver com o restante<br />

dos membros, mas que seria capaz <strong>de</strong> viver por si mesmo, adaptando-<br />

-se a sua própria conveniência. Ele pergunta: “Porque a mão tem ciúme<br />

dos olhos, isso lhe dá algum direito <strong>de</strong> negar aos <strong>de</strong>mais membros<br />

seus serviços?”<br />

Estas coisas são ditas em referência ao corpo físico, porém <strong>de</strong>vem<br />

ser aplicadas aos membros da Igreja, para que não brote em<br />

nosso ser aquela indisposição 28 que gera o egoísmo, o ciúme e a inveja,<br />

tendo como conseqüência que alguém, ocupando uma posição<br />

inferior, não queira prestar seus serviços aos que se acham em posição<br />

superior.<br />

17. Se todo o corpo fosse olho. Ele repudia o estúpido esforço<br />

pela aquisição da igualda<strong>de</strong>, mostrando que tal coisa é impossível. Diz<br />

ele: “Se todos os membros ambicionassem a honra que pertence aos<br />

olhos, a conseqüência inevitável seria a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> todo o corpo.<br />

Pois é impossível que o corpo permaneça saudável e perfeito, a menos<br />

que seus membros <strong>de</strong>sempenhem suas diferentes funções e prestem<br />

serviços em favor dos <strong>de</strong>mais. A igualda<strong>de</strong>, portanto, se põe em franco<br />

conflito com o bem-estar do corpo, visto que ela gera confusão, o<br />

que nos leva sucessivamente a um <strong>de</strong>sastre imediato. Que exemplo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>mência seria, pois, se um membro, mais do que outro, 29 se fizesse<br />

responsável por provocar não só sua própria ruína, mas a do próprio<br />

corpo como um todo!”<br />

28 “Nous face restraindre et espargner les vnes enuers les autres.” – “E nos faça restringir e<br />

poupar-nos em relação a outros.”<br />

29 “De s’accommo<strong>de</strong>r et soumetre à l’un <strong>de</strong>s autres membres.” – “Para acomodar-se e submeter-se<br />

aos <strong>de</strong>mais membros.”


Capítulo 12 • 445<br />

18. Deus, porém, dispôs. Este é outro argumento baseado na or<strong>de</strong>nação<br />

divina. “Pareceu bem a Deus que o corpo fosse composto <strong>de</strong><br />

diferentes membros, e que estes fossem supridos com funções e dons<br />

diversos. Portanto, qualquer membro que fica <strong>de</strong>scontente com sua<br />

própria posição está travando guerra contra Deus como fizeram os<br />

gigantes. 30 Que curvemos nossas cabeças, pois, diante da or<strong>de</strong>m que<br />

Deus mesmo estabeleceu, a fim <strong>de</strong> não <strong>de</strong>sperdiçarmos nossas energias<br />

opondo-nos a sua vonta<strong>de</strong>.” 31<br />

19. E se todos fossem um só membro. O que ele tem em mente<br />

é que Deus não outorgou diferentes dons aos membros do corpo sem<br />

algum propósito ou razão, senão que ele assim o fez porque o corpo<br />

tinha que ser conservado em existência; pois se esse arranjo tão perfeitamente<br />

equilibrado per<strong>de</strong>sse sua simetria, então se estabeleceria<br />

a confusão e total <strong>de</strong>sintegração. Todos nós <strong>de</strong>vemos estar prontos a<br />

submeter-nos à providência divina, posto que Deus conduz tudo <strong>de</strong><br />

forma a servir a nosso comum interesse. “Um só membro” produz o<br />

sentido <strong>de</strong> uma massa uniforme, não assistida por quaisquer variações.<br />

Se Deus <strong>de</strong>sse a nosso corpo a forma <strong>de</strong> uma massa como essa,<br />

este não passaria <strong>de</strong> uma protuberância inútil. 32<br />

20. Muitos membros, mas um só corpo. Ele procura inculcar isso<br />

com muita freqüência, visto que o cerne <strong>de</strong> toda a questão se radica<br />

nestas palavras: a unida<strong>de</strong> do corpo é <strong>de</strong> tal natureza que só po<strong>de</strong> ser<br />

preservada pela varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> membros; e, por outro lado, enquanto<br />

os membros diferem uns dos outros em suas funções e habilida<strong>de</strong>s,<br />

nada obstante se acham <strong>de</strong> tal maneira conectados uns aos outros<br />

que alcançam o propósito <strong>de</strong> preservar a unida<strong>de</strong> do corpo. Ele, pois,<br />

está ensinando que nenhum corpo po<strong>de</strong> continuar existindo, como tal,<br />

a menos que suas partes estejam combinadas em plena harmonia, <strong>de</strong><br />

30 “Comme les poetes ont dit anciennement <strong>de</strong>s geans.” – “Como os poetas contaram dos<br />

gigantes dos tempos <strong>de</strong> outrora.” A fábula da guerra dos gigantes com os <strong>de</strong>uses referida<br />

na Odisséia <strong>de</strong> Homero, 7, 59, 206; 10, 120.<br />

31 “De peur <strong>de</strong> perdre temps, and nous gaster en resistant à la volonté.” – “Para não per<strong>de</strong>rmos<br />

tempo e prejudicar-nos por resistirmos sua vonta<strong>de</strong>.”<br />

32 “Un amas <strong>de</strong> chair inutile.” – “Um amontoado <strong>de</strong> carne inútil.”


446 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

sorte que <strong>de</strong>vemos ter consciência <strong>de</strong> que cada um <strong>de</strong> nós é consultor<br />

tanto do bem comum quanto do seu próprio, levando a bom termo sua<br />

própria função individual.<br />

21. O olho não po<strong>de</strong> dizer à mão. Ao convergir-se para este ponto,<br />

o apóstolo ressaltou qual é o <strong>de</strong>ver dos membros menos dignos, ou,<br />

seja: prestar seus serviços ao corpo, e não nutrir inveja dos membros<br />

mais proeminentes. Ora, <strong>de</strong> um lado ele está instruindo os membros<br />

mais dignos a não <strong>de</strong>sprezarem os mais inferiores, pois nada po<strong>de</strong>m<br />

fazer sem eles. O olho é uma parte superior à mão, todavia não po<strong>de</strong> tratá-la<br />

com <strong>de</strong>sdém, nem po<strong>de</strong> escarnecer <strong>de</strong>la como algo sem utilida<strong>de</strong>.<br />

22. Ele extrai um argumento da utilida<strong>de</strong> dos membros, dizendo<br />

que os membros que são tidos como não muito valiosos são os mais<br />

necessários. Por isso, em função do bem-estar <strong>de</strong> todo o corpo, tais<br />

membros não <strong>de</strong>vem ser menosprezados. Ele aqui prefere usar o termo<br />

“mais fraco” em vez <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezível, como faz em 2 Coríntios 12.9,<br />

quando diz que se gloria em suas fraquezas, significando com isso as<br />

coisas que lhe eram motivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo e humilhação.<br />

23. E nossas partes in<strong>de</strong>corosas. Este é o segundo argumento: que<br />

a <strong>de</strong>sonra <strong>de</strong> um membro po<strong>de</strong> levar <strong>de</strong>sgraça ao corpo todo; e isso se<br />

faz evi<strong>de</strong>nte à luz do cuidado que tomamos para cobrir nossas partes<br />

in<strong>de</strong>corosas. Diz ele: “Nossas partes graciosas não exigem adorno algum,<br />

no entanto nos preocupamos muito mais em cuidar das partes mais mo<strong>de</strong>stas<br />

ou não tão bem apresentáveis. A razão por que agimos assim é que<br />

o constrangimento que essas partes nos causam afetaria o corpo todo.”<br />

Revestir com honra significa vestir convenientemente, para que as partes,<br />

cuja exposição traria vergonha, fiquem <strong>de</strong>centemente ocultas. 33<br />

24. Deus ajustou o corpo num todo harmonioso. Ele reitera o que<br />

afirmou prieviamente, só que agora <strong>de</strong> uma forma bem mais explícita,<br />

ou, seja: que Deus or<strong>de</strong>nou este arranjo harmonioso para o bem <strong>de</strong> todo<br />

33 Raphelius observa que τιμὴν περιτιθέναι “significa, em geral, (honorem exhibere) dar honra;<br />

nesta passagem, porém, à guisa <strong>de</strong> metonímia, cobrir com roupa aqueles membros do<br />

corpo que, se vistos, seria <strong>de</strong>sagradável e <strong>de</strong> aparência inconveniente; e este é um tipo<br />

<strong>de</strong> honra que os veste.”


Capítulo 12 • 447<br />

o corpo, porque este não po<strong>de</strong>ria subsistir <strong>de</strong> outra maneira. Ora, por<br />

que todos os membros são solidários em preocupar-se com a reputação<br />

<strong>de</strong> um membro que não é suficientemente apresentável, e o único que<br />

<strong>de</strong>ve velar seu constrangimento? O instinto que os leva a proce<strong>de</strong>r assim<br />

foi-lhes dado por Deus porque, se não existisse essa forma <strong>de</strong> manter as<br />

coisas em equilíbrio, a <strong>de</strong>sarmonia logo <strong>de</strong>comporia todo o corpo. Deste<br />

fato se faz evi<strong>de</strong>nte que, assim que alguém injustamente reivindica mais<br />

do que po<strong>de</strong> ter, não só é o corpo <strong>de</strong>struído e o arranjo natural transtornado,<br />

mas também a autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus é publicamente rejeitada. 34<br />

26. Se um membro sofre. Existe no corpo humano uma tal simetria<br />

[συμπάθεια] 35 que, se um membro sofre alguma avaria, todo o resto<br />

do corpo participa <strong>de</strong> sua dor; assim como também participa <strong>de</strong> seu<br />

bem-estar quando se acha plenamente saudável. Portanto, não existe<br />

nele nenhum espaço para a inveja ou para o <strong>de</strong>sdém. Ser honrado é<br />

usado aqui num sentido amplo <strong>de</strong> viver em prosperida<strong>de</strong> e felicida<strong>de</strong>.<br />

Ora, não há nada que mais fomente a harmonia do que esta disposição<br />

recíproca, em que cada um por sua vez compreen<strong>de</strong> que é enriquecido<br />

pelos benefícios <strong>de</strong> cada partícula que vem dos <strong>de</strong>mais, e que,<br />

quando os <strong>de</strong>mais sofrem alguma avaria, aquela parte se empobrece<br />

juntamente com o todo.<br />

27. Ora, nós somos o corpo <strong>de</strong> Cristo. Segue-se que tudo o que<br />

foi expresso sobre a natureza e características do corpo humano<br />

<strong>de</strong>ve aplicar-se a nós, pois não somos apenas uma socieda<strong>de</strong> civil,<br />

mas também, tendo sido implantados no corpo <strong>de</strong> Cristo, verda<strong>de</strong>iramente<br />

somos membros uns dos outros. Portanto, cada um <strong>de</strong> nós<br />

<strong>de</strong>ve compreen<strong>de</strong>r que, seja qual for o dom que possui, o mesmo lhe<br />

foi concedido para a edificação <strong>de</strong> todos seus irmãos. Com isso em<br />

mente, ele <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>dicá-lo ao bem comum, não suprimindo-o, nem sepultando-o<br />

em seu interior, por assim dizer, nem tampouco usando-o<br />

como se ele fosse sua possessão particular. Aquele que se sobressai<br />

porque possui dons mais excelentes, não <strong>de</strong>veria ser arrogante, nem<br />

34 “Et que ne porte sa vocation.” – “E não se mantém nos limites <strong>de</strong> sua vocação.”<br />

35 Os autores clássicos fazem uso do termo neste sentido.


448 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

subestimar os <strong>de</strong>mais; ao contrário, precisa pon<strong>de</strong>rar sobre o fato <strong>de</strong><br />

que nada é tão insignificante que não venha a ser útil. Tomemos como<br />

exemplo o seguinte: ainda o menos importante entre os crentes, na<br />

realida<strong>de</strong> produz fruto, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua escassa capacida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> modo<br />

que não existe pessoa alguma que seja um membro inútil da Igreja.<br />

Os que não são agraciados com uma distinção tão excelente não <strong>de</strong>veriam<br />

invejar os que lhe são superiores, nem negar-lhes obediência;<br />

ao contrário, <strong>de</strong>vem manter-se na posição em que foram colocados.<br />

Que haja amor uns para com os outros, simpatia e consi<strong>de</strong>ração uns<br />

pelos outros. Que seja o bem comum a influenciar-nos para que não<br />

sejamos os que danificam a Igreja por meio <strong>de</strong> malevolência, ciúme,<br />

orgulho, ou algum gênero <strong>de</strong> discórdia; ao contrário disso, que cada<br />

um canalize toda sua energia em sua preservação. Este é um tema mui<br />

rico e esplêndido, 36 porém tenho-me limitado a realçar a forma como a<br />

analogia [similitudo] anterior <strong>de</strong>ve aplicar-se à Igreja.<br />

E individualmente membros <strong>de</strong>sse corpo. Crisóstomo entendia<br />

que esta frase fora adicionada, já que os coríntios não constituíam a<br />

Igreja Universal, mas esta interpretação me parecia um tanto forçada.<br />

37 Às vezes tenho pensado que a frase foi a expressão <strong>de</strong> alguma<br />

improprieda<strong>de</strong>, como costumam os latinos dizer: Quodammodo 38 [<strong>de</strong><br />

certa maneira]. 39 Mas, ao avaliar tudo numa perspectiva mais precisa,<br />

então entendi que o apóstolo fez esta menção em referência às diferenças<br />

existentes entre os membros, como mencionou anteriormente.<br />

Portanto, eles são membros individualmente, visto que cada um foi<br />

posto na Igreja para ter participação pessoal e <strong>de</strong>veres <strong>de</strong>finidos. O<br />

próprio contexto nos leva a este significado. Portanto, individualmente<br />

e como um todo são termos correlativos.<br />

36 “Voyci vne belle matgiere riche et abondance.” – “Aqui está um tema excelente, rico e<br />

copioso.”<br />

37 Billroth observa que “o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> Crisóstomo está fora <strong>de</strong> lugar; pois tal noção<br />

não pertence à argumentação do apóstolo”. Biblical Cabinet, No. xxii, p. 39.<br />

38 Um exemplo disto po<strong>de</strong> ser encontrado em Cícero <strong>de</strong> Amicitia, 8.<br />

39 “Comme nous disons en Langue vulgaire, Aucunement.” – “Como dizemos na linguagem<br />

popular: <strong>de</strong> certa maneira.”


Capítulo 12 • 449<br />

28. E Deus estabeleceu alguns na Igreja,<br />

primeiramente apóstolos, em<br />

segundo lugar profetas, em terceiro<br />

mestres, <strong>de</strong>pois milagres, <strong>de</strong>pois<br />

dons <strong>de</strong> curar, socorros, governos,<br />

diversida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> línguas.<br />

29. Porventura são todos apóstolos?<br />

são todos profetas? são todos<br />

mestres? são todos operadores <strong>de</strong><br />

milagres?<br />

30. têm todos os dons <strong>de</strong> curar? falam<br />

todos em línguas? interpretam-nas<br />

todos?<br />

31. Desejai, porém, ar<strong>de</strong>ntemente, os<br />

dons mais excelentes. E eu passo<br />

a mostrar-vos ainda um caminho<br />

mais excelente.<br />

28. Et alios qui<strong>de</strong>m posuit Deus in Ecclesia,<br />

primum apostolos, <strong>de</strong>in<strong>de</strong><br />

Prophetas, tertio Doctores, postea<br />

Potestates, <strong>de</strong>in<strong>de</strong> dona sanationum,<br />

opitulationes, gubernationes,<br />

genera linguarum.<br />

29. Numquid omnes Apostoli? numquid<br />

omnes Prophetæ? numquid omnes<br />

Doctores? numquid omnes Potestates?<br />

30. Numquid omnes dona habent sanationum?<br />

numquid omnes linguis<br />

loquuntur? nusmquid omnes interpretantur?<br />

31. Sectamini autem dona potiora. 40<br />

No início do capítulo, ele falou <strong>de</strong> dons [facultatibus]; agora ele<br />

prossegue discutindo os ofícios, e <strong>de</strong>vemos prestar especial atenção a<br />

esta or<strong>de</strong>m dos elementos. Visto que o Senhor só <strong>de</strong>signou os ministros<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> dotá-los com os dons indispensáveis e capacitá-los para o<br />

cumprimento dos <strong>de</strong>veres a que foram <strong>de</strong>stinados. É preciso <strong>de</strong>duzir<br />

<strong>de</strong>ste fato que as pessoas completamente <strong>de</strong>stituídas <strong>de</strong> qualificações,<br />

que se impõem na Igreja, não passam <strong>de</strong> fanáticos, dominados por um<br />

espírito maligno. Por exemplo, há muitos que se gabam <strong>de</strong> que foram<br />

movidos pelo Espírito a agir, e se orgulham <strong>de</strong> haver recebido uma vocação<br />

secreta <strong>de</strong> Deus, quando todo o tempo não vão além <strong>de</strong> obtusa e<br />

rematada ignorância. Mas <strong>de</strong> fato a or<strong>de</strong>m natural é que os dons vêm antes<br />

do ofício efetivo. Como, pois, ele já <strong>de</strong>monstrou supra, seja qual for o<br />

dom que um indivíduo receba <strong>de</strong> Deus, o mesmo <strong>de</strong>ve ser subserviente<br />

ao bem comum, ele agora <strong>de</strong>clara que os ofícios são distribuídos <strong>de</strong> tal<br />

maneira que todos possam juntos, por meio <strong>de</strong> esforços combinados,<br />

edificar a Igreja, e cada indivíduo segundo sua própria medida. 41<br />

40 “Ou, Soyez couuoiteux <strong>de</strong>s plus excellens dons, ou, estes-vous enuieux <strong>de</strong>s plus excellens<br />

dons?” – “Ou, Ten<strong>de</strong> ambição pelos dons mais excelentes, ou, Vós sois envejosos dos<br />

dons mais excelentes?”<br />

41 “Selon sas portion et mesure.”– “Segundo sua porção e medida.”


450 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

28. Primeiramente, apóstolos. Ele não inclui em sua lista todos<br />

os tipos <strong>de</strong> ofícios. E <strong>de</strong> fato isso não era necessário, pois tudo o que<br />

ele pretendia era citar exemplos. Em Efésios 4.11 há uma lista mais<br />

completa dos ofícios que são constantemente indispensáveis para o<br />

governo da Igreja. Apresentarei a razão para isso quando tratar <strong>de</strong>sta<br />

passagem, se o Senhor mo permitir; não obstante, nem mesmo ali se<br />

faz menção <strong>de</strong> todos eles. No tocante à passagem que se acha diante<br />

<strong>de</strong> nós, <strong>de</strong>vemos observar que alguns dos ofícios, aos quais Paulo está<br />

se referindo, são permanentes, enquanto que outros são temporários.<br />

Os ofícios permanentes são aqueles que são indispensáveis ao governo<br />

da Igreja. Os temporários, em contrapartida, são aqueles que foram<br />

<strong>de</strong>signados, no início, para a fundação da Igreja e o estabelecimento<br />

do Reino <strong>de</strong> Cristo, os quais cessaram <strong>de</strong> existir <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então.<br />

O ofício <strong>de</strong> mestre [officium doctoris] pertence à primeira classe;<br />

e o <strong>de</strong> apóstolo, à segunda. Pois o Senhor <strong>de</strong>signou [creavit] os<br />

apóstolos para que difundissem o evangelho pelo mundo todo. Não<br />

<strong>de</strong>signa-lhes quaisquer limites territoriais, nem paróquias, mas queria<br />

que agissem como seus embaixadores, por on<strong>de</strong> quer que fossem,<br />

entre os povos <strong>de</strong> cada nação e língua. Neste aspecto, eram diferentes<br />

dos pastores que estão limitados, por assim dizer, a suas igrejas<br />

[locais]. Porquanto o pastor não tem um mandado para pregar o evangelho<br />

no mundo inteiro, mas simplesmente cuida da Igreja que lhe foi<br />

confiada. Em Efésios 4.11, Paulo inclui evangelistas na lista, <strong>de</strong>pois dos<br />

apóstolos, porém os omite aqui, pois o mesmo transita diretamente da<br />

or<strong>de</strong>m mais excelente [a primo gradu] para os profetas.<br />

Por este termo [profetas] (em minha opinião) ele tem em mente<br />

não os que eram dotados com o dom <strong>de</strong> profetizar [vaticinar, predizer],<br />

mas os que eram dotados com um dom peculiar, não meramente<br />

para interpretar a Escritura, mas também para aplicá-la sabiamente<br />

para o presente uso. 42 Minha razão para pensar assim é que ele prefere<br />

42 “De l’accommo<strong>de</strong>r pru<strong>de</strong>mment, et l’appliquer en vsage selon les personnes et le temps.”<br />

– “Para fazer uso <strong>de</strong>la sabiamente, bem como aplicá-la para o uso <strong>de</strong> acordo com as pessoas<br />

e tempo.”


Capítulo 12 • 451<br />

profecia a todos os <strong>de</strong>mais dons, porque ela é a fonte mais excelente<br />

<strong>de</strong> edificação, recomendação esta que dificilmente po<strong>de</strong> aplicar-se<br />

à predição <strong>de</strong> eventos futuros. Além disso, quando <strong>de</strong>fine a obra do<br />

profeta, ou ao menos trata daquilo que o profeta <strong>de</strong>ve principalmente<br />

fazer, ele <strong>de</strong>clara que se <strong>de</strong>dicava à consolação, ao encorajamento e à<br />

doutrinação. No entanto, essas ativida<strong>de</strong>s são completamente distintas<br />

<strong>de</strong> predição. 43 Este versículo, pois, nos ensina que os profetas são<br />

(1) <strong>de</strong>stacados intérpretes da Escritura; e (2) homens dotados com<br />

extraordinária sabedoria e aptidão para compreen<strong>de</strong>r qual é a necessida<strong>de</strong><br />

imediata da Igreja e falar-lhe a palavra exata <strong>de</strong> que ela carece<br />

para seu sustento. Eis a razão por que eles são, por assim dizer, embaixadores<br />

para comunicar a vonta<strong>de</strong> divina.<br />

Po<strong>de</strong>-se traçar certa diferença entre eles e mestres, ou, seja: que a<br />

tarefa dos mestres consiste em preservar e propagar as sãs doutrinas<br />

(sana dogmata) para que a pureza da religião permaneça na Igreja. Não<br />

obstante, este título é também usado <strong>de</strong> diferentes formas, e provavelmente<br />

se refira aqui mais ao pastor; a não ser que o leitor prefira<br />

tomá-lo num sentido geral, aplicando-o a todos aqueles que são dotados<br />

com a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ensinar, como é o caso em Atos 13.1, on<strong>de</strong><br />

Lucas também os agrupa com os profetas. Tenho uma razão pessoal<br />

para não participar da opinião dos que restringem a tarefa do profeta à<br />

interpretação das Escrituras, ou, seja: Paulo or<strong>de</strong>na que somente dois<br />

ou três <strong>de</strong>les <strong>de</strong>viam falar [1Co 14.29], e isso sucessivamente, o que<br />

não se harmoniza com a idéia <strong>de</strong> que não faziam outra coisa senão interpretar<br />

as Escrituras. Em suma, meu ponto <strong>de</strong> vista é que os profetas<br />

referidos aqui são homens habilidosos e experientes em notabilizar a<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, aplicando as profecias, ameaças, promessas e todo o<br />

ensino da Escritura às necessida<strong>de</strong>s vigentes da Igreja. Se porventura<br />

alguém tiver outra opinião, estou disposto a reconhecer que há espaço<br />

para a mesma, e não provocarei nenhuma controvérsia por causa<br />

disto. Pois é difícil mudar a mente <strong>de</strong> alguém sobre os dons e os ofí-<br />

43 “Et advertissemens <strong>de</strong>s choses à venir.” – “E notificações ou coisas futuras.”


452 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

cios, dos quais a Igreja foi privada por tanto tempo, a não ser aqueles<br />

leves traços ou sombras <strong>de</strong>les que ainda po<strong>de</strong>m ser percebidos.<br />

No tocante a prodígios [milagres] e dom <strong>de</strong> curas, já fiz menção<br />

<strong>de</strong>les no capítulo 12 <strong>de</strong> Romanos. Apenas que se observe que Paulo<br />

não está falando dos dons propriamente ditos, mas, sim, do exercício<br />

<strong>de</strong>les. Visto que aqui o apóstolo está <strong>de</strong>talhando os ofícios, não posso<br />

aceitar o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> Crisóstomo <strong>de</strong> que a palavra ἀντιλήψεις<br />

(a saber, assistência ou socorros) significa dar assistência aos fracos.<br />

Então, o que ele tem em vista? Indubitavelmente, tampouco era ele<br />

um ofício ou um dom na Igreja <strong>de</strong> outrora, e do qual não temos nenhum<br />

conhecimento agora; ou talvez tenha algo a ver com a obra do<br />

diaconato, ou, seja, o cuidado dos pobres. Prefiro a segunda explicação.<br />

44 Paulo, porém, faz menção <strong>de</strong> dois gêneros <strong>de</strong> diáconos em<br />

Romanos 12.8, e fiz relevante explanação sobre eles em meu comentário<br />

sobre essa passagem.<br />

Consi<strong>de</strong>ro governos como sendo anciãos [seniores], os quais eram<br />

responsáveis pela disciplina. Pois a Igreja primitiva tinha seu Senado<br />

[senatus] 45 ou “Concílio dos Anciãos” para manter o povo em retidão<br />

<strong>de</strong> vida. Ele revela isso em 1 Timóteo 5.17, on<strong>de</strong> faz referência à dupla<br />

or<strong>de</strong>m [duplicem ordinem] <strong>de</strong> presbíteros. 46 O governo era, pois,<br />

realizado por presbíteros que excediam aos <strong>de</strong>mais em sobrieda<strong>de</strong>, experiência<br />

e autorida<strong>de</strong>.<br />

Ele inclui à varieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> línguas tanto o conhecimento <strong>de</strong> línguas<br />

quanto o dom <strong>de</strong> interpretá-las. Os coríntios, porém, tinham dois dons<br />

44 Este ponto <strong>de</strong> vista da importância do termo αντιλήψεις (socorros) geralmente é aquiescido<br />

por intérpretes mo<strong>de</strong>rnos. O Dr. Dick observa (em sua Theology, vol. iv. p. 390)<br />

que “não há pessoas que sejam tão razoavelmente obrigadas a enten<strong>de</strong>r que socorros<br />

significam diáconos”; os quais “foram instituídos com o expresso propósito <strong>de</strong> ajudar<br />

os apóstolos, com o propósito <strong>de</strong> aliviá-los do cuidado dos pobres, para que pu<strong>de</strong>ssem<br />

<strong>de</strong>votar-se exclusivamente ao ministério da palavra.” Ele observa ainda (p. 389) que “isso<br />

não proce<strong>de</strong>, visto que alguns dos ofícios e ministrações enumeradas neste lugar eram<br />

miraculosos e extraordinários, os quais eram todos <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>scrição.”<br />

45 “Auoit comme son Senate, ou Consistoire.” – “Tinham seu Senado, por assim dizer, ou<br />

Consistório.”<br />

46 “Deux ordres <strong>de</strong> Prestres: c’est à dire d’Anciens.” – “Dois tipos <strong>de</strong> Presbíteros, ou, seja,<br />

Anciãos.”


Capítulo 12 • 453<br />

distintos, visto que às vezes uma pessoa que falava muitas línguas não<br />

conhecia, contudo, a língua da igreja local com a qual ela estava lidando;<br />

e os intérpretes eram preparados para suprir tal <strong>de</strong>ficiência. 47<br />

29. São todos apóstolos? É natural ter ocorrido que alguém fosse<br />

dotado com muitos dons e exercesse os dois dos ofícios aos quais<br />

Paulo faz referência; e <strong>de</strong> fato não há nenhum erro nisso. O que ele<br />

quer mostrar, antes <strong>de</strong> tudo, é que ninguém está tão plenamente equipado<br />

com tudo, que se sinta tão completo em si mesmo, e que não<br />

sinta nenhuma <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> outras pessoas. Em seguida, ele quer<br />

mostrar que os ofícios, assim como os dons, são distribuídos <strong>de</strong> tal<br />

maneira que nenhum membro sozinho constitui o corpo inteiro. Pois<br />

a intenção <strong>de</strong>le, nesta passagem, é <strong>de</strong>sarraigar tudo quanto fomente<br />

o orgulho, o ciúme, a arrogância e o menosprezo pelos irmãos; a indisposição,<br />

o egoísmo e tudo o mais que pertença a esse gênero <strong>de</strong><br />

coisas.<br />

31. Desejai ar<strong>de</strong>ntemente os dons mais excelentes. Esta frase<br />

po<strong>de</strong> ser também traduzida “<strong>de</strong> valor mais elevado”, o que se a<strong>de</strong>qua<br />

plenamente bem ao contexto. Não obstante, isso não faz qualquer<br />

diferença no significado. Pois ele está incitando os coríntios a valorizarem<br />

ou a lutarem, acima <strong>de</strong> tudo, pelos dons que possuem mais<br />

eficácia para a edificação. Pois era predominante entre eles o erro <strong>de</strong><br />

se preocupar com a ostentação mais do que com as coisas que trazem<br />

benefício. Eis a razão por que negligenciavam a profecia. Ao mesmo<br />

tempo, todo o local estrugia com línguas; e embora fizessem um gran<strong>de</strong><br />

estardalhaço sobre isso, o saldo real era mui pouco. O apóstolo<br />

não está se dirigindo a indivíduos, como se quisesse que cada pessoa<br />

<strong>de</strong>vesse almejar ser profeta, ou mestre, mas que todo seu esforço é no<br />

sentido <strong>de</strong> que os coríntios estivessem preocupados com a edificação<br />

mútua, esperando que assim se <strong>de</strong>votassem com todo ardor às coisas<br />

que se revelam mais eficientes para a edificação.<br />

47 Nosso autor repete aqui o que foi afirmado on<strong>de</strong> comenta sobre o versículo 10.


Capítulo 13<br />

1. Se eu falar as línguas dos homens e<br />

dos anjos, mas não tiver amor, serei<br />

como o bronze ressonante ou como<br />

o símbalo estri<strong>de</strong>nte.<br />

2. E se eu tiver o dom <strong>de</strong> profecia e conhecer<br />

todos os mistérios e toda a<br />

ciência; e se tiver toda a fé que faz<br />

remover montanhas, mas não tiver<br />

amor, nada serei.<br />

3. E se eu doar todos meus bens para o<br />

sustento dos pobres, e se entregar<br />

meu corpo para ser queimado, mas<br />

não tiver amor, <strong>de</strong> nada me aproveitará.<br />

1. Et adhuc excellentiorem viam vobis<br />

<strong>de</strong>monstro. Si linguis hominum<br />

loquar et Angelorum, caritatem<br />

autem non habeam, factus sum<br />

tympanum sonans, aut cymbalum<br />

tinniens.<br />

2. Et si habeam prophetiam, et noverim<br />

mysteria omnia omnemque<br />

scientiam, et si habeam omnem<br />

fi<strong>de</strong>m, a<strong>de</strong>o ut montes loco dimoveam,<br />

caritatem autem non habeam,<br />

nihil sum.<br />

3. Et si insumam in alimoniam omnes<br />

facultates meas, et si tradam corpus<br />

meum ut comburar, cartatem<br />

autem non habeam, nihil mihi pro<strong>de</strong>st.<br />

E vos mostrarei um caminho muito mais excelente. Nada mais<br />

posso fazer senão mudar a estranha divisão do capítulo, especialmente<br />

porque acho impossível expô-lo a<strong>de</strong>quadamente <strong>de</strong> outra forma.<br />

Pois o que haveria <strong>de</strong> lucrar cortando a sentença e emendando-a ao<br />

capítulo anterior, quando ela se harmoniza tão bem com o que segue,<br />

sendo <strong>de</strong>veras expandida e completada por ele? É provável que isso se<br />

<strong>de</strong>u por um equívoco praticado por copistas.<br />

Seja como for, após ter ele atraído especial atenção para a<br />

edificação, ele agora promete mostrar-lhes algo ainda <strong>de</strong> maior im-


456 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

portância, a saber: que tudo seja regulado segundo a regra do amor<br />

[caritas]. O caminho mais excelente, pois, está on<strong>de</strong> o amor é o po<strong>de</strong>r<br />

controlador <strong>de</strong> todas as ações. E <strong>de</strong>veras ele começa <strong>de</strong> chofre<br />

afirmando que todas as axcelências 1 nada valem sem o amor. Porque<br />

nada existe, não importa quão maravilhoso ou extraordinário<br />

possa ser, que não é arruinado, pelo prisma <strong>de</strong> Deus, pela ausência<br />

do amor. 2 E o que Paulo ensina aqui é um eco do que ele assevera<br />

em outro lugar, ou, seja: que o amor é o alvo <strong>de</strong> tudo [1Tm 1.5], e<br />

“o vínculo da perfeição” [Cl 3.14]; e igualmente baseia a santida<strong>de</strong><br />

dos crentes inteiramente no amor; pois o que mais Deus pe<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

nós em todo o conteúdo da segunda tábua da lei? Portanto, não é<br />

<strong>de</strong> admirar que todas nossas ações serão julgadas por meio <strong>de</strong> um<br />

padrão, a saber, se elas revelam os sinais que emanam do amor.<br />

Nem é <strong>de</strong> admirar que esses dons, que são, por outro lado, excelentes,<br />

só concretizam seu verda<strong>de</strong>iro valor quando se acham<br />

relacionados ao amor.<br />

1. Se eu falar as línguas dos homens. Ele toma como ponto <strong>de</strong><br />

partida a eloqüência, a qual por si só é um dom muito excelente, mas<br />

quando se vê divorciada do amor, <strong>de</strong> nada serve para alguém obter o<br />

favor divino. Ao referir-se a línguas dos anjos, ele faz uso <strong>de</strong> hipérbole<br />

para algo notável ou raro. Todavia, prefiro dar-lhe uma interpretação<br />

precisa, como se referindo aos diferentes gêneros <strong>de</strong> idiomas. Pois os<br />

coríntios, que consi<strong>de</strong>ravam o valor <strong>de</strong> todas as coisas pela reputação<br />

1 “Quelles qu’elles soyent.” – “Tudo quanto elas são.”<br />

2 Penn, em seu Annotations, dá o seguinte relato do termo charity [carida<strong>de</strong>], como usado<br />

em nossa tradução inglesa: “Se a versão latina não tivesse traduzido αγαπη, neste lugar,<br />

por charitas, em vez <strong>de</strong> amor [amor], não teríamos achado a palavra carida<strong>de</strong> em nossa<br />

versão. Wiclif, porém, que só conhecia o latim bíblico, adotou <strong>de</strong>le essa palavra e traduziu:<br />

‘e eu não tiver carida<strong>de</strong>.’ Quando o conhecimento do grego foi adquirido por nossos<br />

eruditos reformadores, os primeiros revisores <strong>de</strong> Wiclif se ressentiram ante a falta <strong>de</strong><br />

adaptabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa tradução, e traduziram esta sentença: ‘e ainda que não tiver amor’,<br />

como está impressa em ‘Newe Testament in Englishe and Latin, of 1548’; e traduziram<br />

αγαπη – amor. Nossos últimos revisores abandonaram esta sã correção <strong>de</strong> seus pre<strong>de</strong>cessores<br />

imediatos, e trouxeram <strong>de</strong> volta a carida<strong>de</strong> latinizada <strong>de</strong> Wiclif, o único <strong>de</strong>sculpável<br />

pelo emprego daquela palavra, porquanto traduzira <strong>de</strong> um texto latino, em sua ignorância<br />

<strong>de</strong> seu original grego.”


Capítulo 13 • 457<br />

que lhes podiam dar, e não pelos frutos 3 que se produziam, davam<br />

muito valor à habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar muitos idiomas. Paulo está dizendo:<br />

“Po<strong>de</strong>is ter a posse <strong>de</strong> todos os idiomas, não só os <strong>de</strong> todos os homens,<br />

mas os dos próprios anjos, e ainda muito mais. Contudo, a impressão<br />

que se tem é que Deus não vos consi<strong>de</strong>ra como sendo <strong>de</strong> mais valor<br />

que um símbalo, por assim dizer, se porventura não possuís o amor.”<br />

2. E se tiver o dom <strong>de</strong> profecia. Ele também reduz a nada a dignida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ste dom, 4 embora o classificasse acima <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>mais,<br />

caso ele não esteja sujeito ao amor. Conhecer todos os mistérios<br />

po<strong>de</strong> dar a idéia <strong>de</strong> haver sido adicionado à profecia à guisa <strong>de</strong> explicação;<br />

visto, porém, que conhecimento vem logo em seguida, e <strong>de</strong><br />

haver feito menção separada do conhecimento num contexto anterior<br />

[1Co 14.8], <strong>de</strong>ve-se pon<strong>de</strong>rar se porventura o conhecimento <strong>de</strong><br />

mistérios não é usado aqui em vez <strong>de</strong> sabedoria. Ao mesmo tempo<br />

que não <strong>de</strong>vemos ser dogmáticos aqui, todavia sinto-me muitíssimo<br />

atraído para este pondo <strong>de</strong> vista.<br />

A fé da qual ele faz referência aqui é <strong>de</strong> caráter especial, como se<br />

faz óbvio à luz das palavras que a acompanham, ou, seja: “ao ponto <strong>de</strong><br />

remover montanhas”. Portanto, os sofistas estão <strong>de</strong>sperdiçando seu<br />

tempo em interpretar este versículo à revelia, ao ponto <strong>de</strong> roubarem<br />

da fé o po<strong>de</strong>r. Por isso, à luz do fato <strong>de</strong> a palavra fé [πολύημον] possuir<br />

muitos matizes <strong>de</strong> significado, o leitor que possui discernimento <strong>de</strong>ve<br />

observar bem o sentido em que ela é usada aqui. Ora, ele se constitui<br />

em seu próprio intérprete (segundo já realcei), porquanto aqui ele limita<br />

a fé a milagres. É a isso que Crisóstomo chama “a fé <strong>de</strong> sinais ou<br />

milagres”; e nós, “a fé especial”, visto que ela não se pren<strong>de</strong> a Cristo<br />

em sua plenitu<strong>de</strong>, mas somente a seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> efetuar milagres. Esta<br />

é a razão por que os homens po<strong>de</strong>m, às vezes, exercer essa fé, mesmo<br />

não possuindo o Espírito <strong>de</strong> santificação, como foi o caso <strong>de</strong> Judas. 5<br />

3 “Par le fruit qui s’en pouuoit ensuyure.” – “Pelo fruto que porventura resulte <strong>de</strong>le.”<br />

4 “La dignite mesme <strong>de</strong> la prophetie.” – “A dignida<strong>de</strong> inclusive da profecia.”<br />

5 O leitor observará que isto é em substância o que foi afirmado previamente por Calvino,<br />

quando comenta 1 Coríntios 12.10.


458 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

3. E se eu doar todas minhas possessões. 6 Consi<strong>de</strong>rado em si mesma,<br />

esta coragem certamente merece o mais elevado louvor. Visto,<br />

porém, que a renúncia <strong>de</strong> coisas às vezes tem suas raízes no egoísmo,<br />

e não na genuína generosida<strong>de</strong>; ou, por outro lado, porque um homem<br />

generoso às vezes se vê <strong>de</strong>stituído dos <strong>de</strong>mais aspectos do amor (já<br />

que um sentimento generoso é apenas um elemento do amor), po<strong>de</strong><br />

suce<strong>de</strong>r que uma ação, por mais louvável que seja em outros aspectos,<br />

po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada pelos homens como algo realmente esplêndido<br />

e fazê-la o objeto <strong>de</strong> seus louvores, e no entanto ser consi<strong>de</strong>rada como<br />

<strong>de</strong> absoluta nulida<strong>de</strong> aos olhos <strong>de</strong> Deus.<br />

E se entregar meu corpo. Indubitavelmente, ele está falando aqui<br />

do martírio, o qual constitui o ato mais excelente e supremo <strong>de</strong> todos.<br />

Pois o que é mais admirável do que aquela inabalável firmeza <strong>de</strong> caráter,<br />

quando alguém não hesita em oferecer sua vida em testemunho<br />

do evangelho? Todavia, até mesmo isto Deus também reputa como<br />

sendo <strong>de</strong> nenhum préstimo, caso o coração seja <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> amor.<br />

Não obstante, o gênero <strong>de</strong> castigo que ele menciona aqui não era o<br />

único geralmente infligido aos cristãos. Pois lemos que, naqueles dias,<br />

os tiranos que almejavam <strong>de</strong>sarraigar a Igreja procediam contra eles<br />

[cristãos] usando mais a espada do que o fogo, 7 excetuando Nero que,<br />

em sua <strong>de</strong>mência, também recorria ao incêndio. Mas tudo indica que<br />

o Espírito está a predizer, pela instrumentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paulo, que gênero<br />

<strong>de</strong> perseguições estava se avizinhando. Isto, porém, é aci<strong>de</strong>ntal. O<br />

ponto-mestre <strong>de</strong>ste versículo é o seguinte: visto que o amor é a única<br />

regra que <strong>de</strong>ve governar nossas ações, e a única diretriz para o correto<br />

uso dos dons divinos, Deus não aprova nada que esteja <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong><br />

amor, não importa quão magnificentes sejam os conceitos humanos.<br />

Pois, sem o amor, a mais bela <strong>de</strong> todas as virtu<strong>de</strong>s não passa <strong>de</strong> mera<br />

aparência, um ruído vazio <strong>de</strong> significação, não mais digna que a moi-<br />

6 “Et si ie distribue tous mês biens.” – “E se eu distribuir todos meus bens.”<br />

7 “Les tyrans faisoyent plustot trancher la teste aux Chrestiens et vsoyent plustot du glaiue<br />

que du feu pour <strong>de</strong>struire l’Eglise.” – “Os tiranos praticavam antes a <strong>de</strong>ccapitação dos<br />

cristãos e faziam uso da espada, mais que do fogo, para a <strong>de</strong>struição da Igreja.”


Capítulo 13 • 459<br />

nha; em suma, não passa <strong>de</strong> algo grosseiro e ofensivo. Ora, os papistas<br />

<strong>de</strong>duzem disso que o amor é, portanto, <strong>de</strong> mais valor para nossa justificação<br />

do que a fé. Minha refutação virá mais adiante. No momento,<br />

prossigamos com a passagem.<br />

4. O amor é paciente, é bondoso; o<br />

amor não inveja, não se vangloria,<br />

5. não se comporta inconvenientemente,<br />

não busca seus interesses, não<br />

se sente provocado, não suspeita<br />

mal;<br />

6. não se regozija com a injustiça, mas<br />

se alegra com a verda<strong>de</strong>;<br />

7. tudo sofre, tudo crê, tudo espera,<br />

tudo suporta.<br />

8. O amor nunca falha; mas, se houver<br />

profecias, serão suprimidas; se<br />

houver línguas, cessarão; se houver<br />

conhecimento, será <strong>de</strong>struído.<br />

4. Caritas patiens est, benigne agit, caritas<br />

non æmulatur, caritas non agit<br />

insolenter, non inflatur;<br />

5. Non agit in<strong>de</strong>center, non quærit sua<br />

ipsius, non provocatur, non cogitat<br />

malum:<br />

6. Non gau<strong>de</strong>t obiniustitiam, congau<strong>de</strong>t<br />

autem veritati.<br />

7. Omnia fert, omnia credit, omnia sperat,<br />

omnia sustinet.<br />

8. Caritas nunquam excidit: sive prophetiæ<br />

abolebuntur, sive linguæ<br />

cessabunt, sive scientia <strong>de</strong>struetur.<br />

4. O amor é paciente. Ele agora nos leva a <strong>de</strong>scobrir quão<br />

excelente é o amor, ao mostrar-nos seus efeitos ou seus frutos.<br />

Entretanto, estas <strong>de</strong>scrições não se propõem simplesmente a<br />

torná-lo atrativo, mas a levar os coríntios a enten<strong>de</strong>rem a forma<br />

como ele se expressa em ação e em sua natureza. O objetivo primordial,<br />

porém, é mostrar quão necessário ele é na preservação<br />

da unida<strong>de</strong> da Igreja. E não tenho dúvida <strong>de</strong> que o apóstolo pretendia<br />

repreen<strong>de</strong>r os coríntios <strong>de</strong> forma indireta, confrontando-os<br />

com uma situação completamente diversa daquela propriamente<br />

<strong>de</strong>les, para que pu<strong>de</strong>ssem aperceber-se <strong>de</strong> seus próprios vícios,<br />

contrastando-se com o que viam.<br />

A primeira recomendação do amor é que ele, ao suportar pacientemente<br />

muitas coisas, fortalece a paz e a harmonia da Igreja. A<br />

segunda excelência do amor é bem semelhante, ou, seja, bonda<strong>de</strong> e


460 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

respeito, porquanto este é o significado do verbo grego (χρηστεύεσθαι). 8<br />

A terceira excelência consiste em que ele corrige a emulação, a qual<br />

constitui a causa originária <strong>de</strong> todas as disputas. Ele inclui inveja que<br />

causa emulação, porquanto se assemelha muito a ela; ou, antes, ele<br />

tem em mente a espécie <strong>de</strong> emulação que se associa à inveja e freqüentemente<br />

se origina <strong>de</strong>la. Segue-se que on<strong>de</strong> a inveja mantém influência,<br />

on<strong>de</strong> cada um é ávido por <strong>de</strong>staque pessoal, ao menos na aparência, o<br />

amor não po<strong>de</strong> vicejar.<br />

O grego endossa minha tradução: “não age insolentemente” [οὐ<br />

περπερεύεται]. Erasmo o traduz como “não é impu<strong>de</strong>nte”. 9 Sabe-se muito<br />

bem que este termo grego tem diferentes significados, mas já que,<br />

às vezes, ele é usado como “ser obstinado, tornar-se arrogante por<br />

causa da autoconfiança”, este sentido parece a<strong>de</strong>quar-se melhor a este<br />

versículo. 10 Ele, pois, está reivindicando para o amor uma influência<br />

mo<strong>de</strong>rada, e mostra que ele é um freio para manter o homem sob controle<br />

e impedi-lo <strong>de</strong> prorromper em atos <strong>de</strong> ferocida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> modo que<br />

todos venham a viver juntos <strong>de</strong> maneira tranqüila e or<strong>de</strong>ira. Ele acrescenta<br />

mais, dizendo que não existe nele a mínima sombra <strong>de</strong> orgulho. 11<br />

Que o homem, pois, que se <strong>de</strong>ixa governar pelo amor não se infla com<br />

orgulho, olhando para os outros com <strong>de</strong>sdém e sentindo-se satisfeito<br />

consigo mesmo. 12<br />

8 A distinção entre a primeira e a segunda <strong>de</strong>ssas recomendações aqui, outorgadas ao<br />

amor, é <strong>de</strong>clarado por Bloomfield como segue: Μακροθυμε, “<strong>de</strong>nota clemência, como o<br />

oposto <strong>de</strong> paixão e vingança; e χρηστεύεται, mansidão, como o oposto <strong>de</strong> severida<strong>de</strong> e<br />

misantropia.”<br />

9 Esta tradução é seguida em duas antigas traduções inglesas, a saber: Tyndale (1534) e<br />

Cranmer (1539). “O amor não age obstinadamente.”<br />

10 Os intérpretes <strong>de</strong> modo algum concordam quanto à essência precisa do termo original<br />

περπερεύεται. Os comentaristas mais antigos e muitos mo<strong>de</strong>rnos o explicam neste sentido:<br />

“agir precipitada e temerariamente” – e em concordância com isso é a tradução dada por<br />

nossos tradutores na Marginal – não é temerário. Nenhuma expressão, contudo, parece<br />

realçar mais satisfatoriamente a essência da palavra original do que nossos tradutores<br />

que inseriram no texto: não se vangloria. Beausobre faz uso <strong>de</strong> dois epítetos: “N’est point<br />

et insolente.” – “Não é fútil nem insolente.”<br />

11 “Il dit consequemment que charite ne s’enfle point.” – “Ele diz, conseqüentemente, que o<br />

amor não é enfatuado.”<br />

12 Bloomfield consi<strong>de</strong>ra a distinção entre esta sentença e a prece<strong>de</strong>nte como sendo esta:<br />

que a primeira “se refere ao orgulho como <strong>de</strong>monstrado em palavras”; e a segunda como


Capítulo 13 • 461<br />

5. Não se comporta inconvenientemente (οὐκ ἀσχημονε). Erasmo<br />

o traduz por “não é <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhoso”. Visto, porém, que ele não cita<br />

qualquer autorida<strong>de</strong> em apoio <strong>de</strong>ste significado, preferi reter seu sentido<br />

próprio e usual. Minha explicação, pois, é a seguinte: o amor não<br />

se <strong>de</strong>leita com fútil ostentação nem provoca gran<strong>de</strong> espalhafato, mas<br />

sempre observa a mo<strong>de</strong>ração e a conveniência. E assim o apóstolo<br />

uma vez mais se põe a censurar os coríntios <strong>de</strong> maneira indireta, pois<br />

se portavam <strong>de</strong> forma tão vergonhosa e com tal arrogância, ao ponto<br />

<strong>de</strong> não revelarem nenhum escrúpulo em ignorar toda e qualquer conveniência.<br />

13<br />

Não busca seus interesses. Disto po<strong>de</strong>mos inferir que o amor está<br />

longe <strong>de</strong> ser-nos algo inerente, pois todos nós somos portadores <strong>de</strong><br />

uma natural tendência <strong>de</strong> amar-nos e <strong>de</strong> cuidar <strong>de</strong> nós mesmos, buscando<br />

só o que nos interessa. Sim, para falar com mais exatidão, nos<br />

atiramos <strong>de</strong> ponta cabeça para alcançar o que nos interessa. 14 O amor<br />

é o único antídoto 15 que cura essa tendência tão pervertida, pois ele<br />

nos faz ignorar nossas próprias circunstâncias e a preocupar-nos sinceramente<br />

com a sorte <strong>de</strong> nosso próximo, amando e cuidando <strong>de</strong>le.<br />

Além disso, “buscar as próprias coisas <strong>de</strong> alguém” 16 é viver <strong>de</strong>votadamente<br />

para ele e sentir-se completamente feliz em ajudá-lo a cuidar<br />

<strong>de</strong> seus próprios interesses. A questão se é lícito que o cristão se preocupe<br />

com seu próprio bem-estar é solucionada por esta <strong>de</strong>finição.<br />

Porquanto o apóstolo não preten<strong>de</strong> dizer que <strong>de</strong>ixemos <strong>de</strong> preocupar-nos<br />

conosco e <strong>de</strong> cuidar <strong>de</strong> nossos próprios negócios; senão que<br />

con<strong>de</strong>na a excessiva preocupação e ansieda<strong>de</strong> pelos mesmos, o que<br />

nasce do amor excessivamente cego por nós mesmos. Mas tal excessi-<br />

“a carruagem e a paciência, para <strong>de</strong>notar o orgulho e arrogância por conta <strong>de</strong> certas vantagens<br />

externas”. Um ponto <strong>de</strong> vista semelhante é assumido por Barnes, que consi<strong>de</strong>ra<br />

a primeira sentença como uma referência a “a expressão dos sentimentos <strong>de</strong> orgulho,<br />

vaida<strong>de</strong>” etc.; e a última como “o sentimento propriamente dito.”<br />

13 O sentido próprio do verbo ασχήμονειν é ofen<strong>de</strong>r contra o <strong>de</strong>coro.<br />

14 “Nous sommes transportez-là, et nous-nous y iettons sans mo<strong>de</strong>ration aucune.” – “Corremos<br />

apressadamente para ele, e avançamos sem qualquer freio.”<br />

15 “Le reme<strong>de</strong> unique.” – “O único remédio.”<br />

16 “Car il y a ainsi à le traduire mot à mot.” – “Pois é o significado literal.”


462 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

vida<strong>de</strong> realmente consiste em negligenciarmos os outros e pensarmos<br />

<strong>de</strong>mais em nós mesmos, ou vivermos tão concentrados em nossos interesses<br />

que nos abstraímos da consi<strong>de</strong>ração que Deus nos or<strong>de</strong>na<br />

ter por nosso próximo. 17 Ele adiciona que o amor é também um freio<br />

que restringe as disputas; e isso se <strong>de</strong>duz das duas primeiras afirmações<br />

<strong>de</strong>ste versículo. Pois aquele que é cortês e tolerante não explo<strong>de</strong><br />

em ira repentina e nem se lança precipitadamente em controvérsias e<br />

contendas. 18<br />

7. Tudo sofre. O que ele preten<strong>de</strong> com todas as <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong>ste<br />

versículo é que o amor não é impaciente nem malicioso. Pois é parte<br />

da tolerância sofrer e suportar tudo, enquanto que a essência da sincerida<strong>de</strong><br />

e espírito humanitário é crer e esperar tudo. Somos natural<br />

e <strong>de</strong>masiadamente <strong>de</strong>votados a nós mesmos, e tal erro nos faz irritadiços<br />

e queixosos. O resultado é que passamos a <strong>de</strong>sejar que outros<br />

levem nossos fardos, enquanto que, ao mesmo tempo, recusamos, <strong>de</strong><br />

alguma forma, dar-lhes assistência. O amor é o antídoto que cura esse<br />

tipo <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>, pois ele nos faz servos <strong>de</strong> nossos irmãos e nos<br />

ensina a carregar seus fardos em nossos próprios ombros. Além disso,<br />

visto que somos por natureza maliciosos, somos também <strong>de</strong>sconfiados,<br />

e percebemos erro em quase tudo. O amor, porém, nos arrasta <strong>de</strong><br />

volta ao espírito humanitário, para que cultivemos a sincerida<strong>de</strong> e a<br />

bonda<strong>de</strong> no trato com os outros.<br />

Ao dizer todas as coisas, <strong>de</strong>vemos enten<strong>de</strong>r que essa é uma referência<br />

a tudo quanto temos <strong>de</strong> suportar, e <strong>de</strong> uma forma correta. Pois<br />

não é pelos maus hábitos que somos edificados, seja sancionando-os<br />

por meio <strong>de</strong> gabolice, ou fechando-lhes os olhos e estimulando-os<br />

através <strong>de</strong> nossa conivência. Além disso, essa tolerância não significa<br />

17 Granville Penn traduz assim a sentença: “Não busca o que não é seu” – em concordância<br />

com a redação do manuscrito vaticano: οὐ ζητε τὰ μὴ εαυτη̑ς (Não busca as coisas que não<br />

são suas.) Ele presume que μη̑ (não) “é um erro ou foi erroneamente omitido <strong>de</strong> todas as<br />

últimas cópias.”<br />

18 A última sentença do versículo, que está em nossa tradução, não busca o mal, é traduzida<br />

por Pearce: “não medita no dano” – sentido em que a expressão λογιζεσθαι κακον ocorre<br />

na Septuaginta, no Salmo 35.4 e 41.7. É lindamente traduzida por Bloomfield: “Não figura<br />

num ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> anotações para vingança futura.”


Capítulo 13 • 463<br />

<strong>de</strong>sistência <strong>de</strong> medidas disciplinares e punições que são porventura<br />

merecidas. A mesma coisa se aplica ao espírito humanitário em julgar<br />

as coisas.<br />

O amor tudo crê. Não significa que o cristão consciente e intencionalmente<br />

permite ser enganado; não que ele faça calar a sabedoria<br />

e o discernimento com o fim <strong>de</strong> permitir que as pessoas o tripudiem<br />

mais facilmente; não que ele tenha que ser daltônico! Então, o que é?<br />

Como já disse, o que o apóstolo está pedindo aqui é que haja sincerida<strong>de</strong><br />

e altruísmo no julgamento das coisas; e aqui ele afirma que estes 19<br />

são os acompanhantes invariáveis do amor. O que isso significará na<br />

prática é que o cristão será melhor percebido através <strong>de</strong> sua própria<br />

bonda<strong>de</strong> e altruísmo do que provocando humilhação a seu irmão através<br />

da <strong>de</strong>sconfiança infundada.<br />

8. O amor nunca falha. Aqui ele tem outra das excelências do<br />

amor, a saber, que ele dura para sempre. Uma excelência como esta,<br />

que jamais falha, é certamente digna <strong>de</strong> ser obtida com muito esforço.<br />

O amor, portanto, <strong>de</strong>ve ser preferido antes <strong>de</strong> todos os dons<br />

temporários e perecíveis. As profecias passam; as línguas cessam; o<br />

conhecimento chega ao fim. Daí, o amor é mais excelente que todos<br />

eles, por esta razão: enquanto eles falham, ele sobrevive.<br />

Os papistas torcem este versículo a fim <strong>de</strong> buscar apoio para<br />

o dogma que, sem qualquer autorida<strong>de</strong> escriturística, inventaram,<br />

a saber: que as almas dos mortos estão orando a Deus em nosso<br />

favor. Porquanto arrazoam da seguinte forma: “Orar é um serviço<br />

eterno que o amor empreen<strong>de</strong>; o amor permanece nas almas<br />

dos santos que já morreram; portanto, elas continuam orando por<br />

nós.” Embora não queira provocar um <strong>de</strong>bate mordaz em torno<br />

<strong>de</strong>ste assunto, não obstante, para que não fique alguma impressão<br />

<strong>de</strong> que granjearam uma boa parcela <strong>de</strong> vantagem através <strong>de</strong><br />

minha concessão, apresentarei uma réplica sucinta do ponto <strong>de</strong><br />

vista oposto ao <strong>de</strong>les.<br />

19 “Ceux vertus.” – “Estas duas virtu<strong>de</strong>s.”


464 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Em primeiro lugar, ainda que o amor dure para sempre, não se<br />

conclui necessariamente que ele esteja (segundo a expressão) em<br />

constante exercício. Porque, o que nos impediria <strong>de</strong> afirmar que<br />

os santos, vivendo agora no usufruto <strong>de</strong> sua paz e <strong>de</strong>scanso, não<br />

exercem amor nos ofícios da presente vida? 20 E pergunto: que incongruência<br />

os papistas vêem nisto? Em segundo lugar, se eu fosse<br />

afirmar que não é o ofício perpétuo do amor fazer intercessão pelos<br />

irmãos, como provariam o contrário? Para que uma pessoa interceda<br />

por outra é necessário que esteja bem familiarizada com suas<br />

necessida<strong>de</strong>s. Se nos é permitido arriscar uma conjetura acerca do<br />

estado dos mortos, é uma suposição mais provável que os santos<br />

falecidos ignorem o que se passa por aqui, do que estão cônscios<br />

<strong>de</strong> nossas necessida<strong>de</strong>s. É verda<strong>de</strong> que os papistas imaginam que<br />

as almas vêem o mundo todo no reflexo da luz que <strong>de</strong>sfrutam na<br />

presença <strong>de</strong> Deus. Não obstante, esta é uma suposição ímpia e totalmente<br />

pagã, a qual traz mais laivos da teologia egípcia do que<br />

concordância com o pensamento cristão. Portanto, à luz da ignorância<br />

dos santos no tocante a nossas circunstâncias, suponhamos que<br />

eu dissesse que não estão preocupados conosco, que argumento os<br />

papistas me apresentariam a fim <strong>de</strong> me forçarem a abandonar meu<br />

ponto <strong>de</strong> vista? Na suposição <strong>de</strong> que eu sustentasse que se acham<br />

tão ocupados e absortos, por assim dizer, com a visão <strong>de</strong> Deus, que<br />

não conseguem pensar absolutamente em nada mais, como provarão<br />

que este não é um ponto <strong>de</strong> vista lógico? Suponhamos que eu<br />

dissesse mui explicitamente que a eternida<strong>de</strong> do amor, <strong>de</strong> que o<br />

apóstolo faz referência aqui, virá a ser <strong>de</strong>pois do Último Dia, e que<br />

não tem absolutamente nada a ver com o período intermediário?<br />

Suponhamos que eu dissesse que a responsabilida<strong>de</strong> pela intercessão<br />

mútua foi confiada única e exclusivamente aos vivos, que ora<br />

peregrinam pelo mundo, e que, por essa razão, não envolve absolutamente<br />

os mortos?<br />

20 “En secourant et aidant presentement à ceux qui sont en ce mon<strong>de</strong>.” – “Em presentemente<br />

socorrer e ajudar os que estão neste mundo.”


Capítulo 13 • 465<br />

O que acabo <strong>de</strong> expor é mais do que suficiente; pois o ponto<br />

propriamente dito, pelo qual os papistas digladiam tão renhidamente,<br />

<strong>de</strong>ixo sem <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>finida, a fim <strong>de</strong> não provocar controvérsia<br />

sobre uma questão tão fora <strong>de</strong> propósito. Entretanto, vale a pena<br />

notar, <strong>de</strong> passagem, quão frágil apoio este versículo <strong>de</strong> fato lhes<br />

proporciona, quando eles mesmos acreditam que ele lhes fornece<br />

uma arma tão po<strong>de</strong>rosa. Que nos seja suficiente o fato <strong>de</strong> que<br />

sua asseveração é totalmente <strong>de</strong>stituída do apoio <strong>de</strong> qualquer evidência<br />

bíblica; portanto, ao sustentá-la, se mostram audaciosos e<br />

temerários. 21<br />

Se houver conhecimento, será <strong>de</strong>struído. O sentido <strong>de</strong>stas palavras<br />

já é por <strong>de</strong>mais óbvio; porém elas suscitam uma pergunta,<br />

que <strong>de</strong> forma alguma é trivial, a saber: se os que neste mundo se<br />

<strong>de</strong>stacam em cultura ou outros dons terão a mesma condição dos ignorantes<br />

no reino <strong>de</strong> Deus. Antes <strong>de</strong> tudo, gostaria <strong>de</strong> advertir 22 meus<br />

leitores que são crentes a não se torturarem <strong>de</strong>masiadamente em<br />

esquadrinhar estas questões. Devem buscar, sim, a forma pela qual<br />

po<strong>de</strong>rão alcançar o reino <strong>de</strong> Deus, em vez <strong>de</strong> formularem perguntas<br />

sobre as condições que haverão <strong>de</strong> prevalecer nele [o reino <strong>de</strong><br />

Deus]; pois ao guardar silêncio sobre tais problemas, nosso Senhor<br />

também nos ensinava a não transigirmos em tal curiosida<strong>de</strong>. Mas<br />

agora respondo à pergunta, até on<strong>de</strong> posso conjeturar, bem como<br />

ante a escassa informação que posso respigar <strong>de</strong>sta passagem. Visto<br />

que cultura, conhecimento das línguas e dons similares servem às<br />

necessida<strong>de</strong>s existenciais da presente vida, não me parece que estarão<br />

em vigor quando esse tempo chegar. Contudo, os eruditos <strong>de</strong><br />

forma alguma serão privados <strong>de</strong> sua erudição, a <strong>de</strong>speito da <strong>de</strong>struição<br />

<strong>de</strong> seus dons, visto que receberão a fruição <strong>de</strong>les, o que é muito<br />

mais <strong>de</strong>sejável. 23<br />

21 “C’est folie et presomption gran<strong>de</strong> à eux <strong>de</strong> l’affermer.” – “É gran<strong>de</strong> tolice presunção o<br />

afirmarem.”<br />

22 “En premier lieu, i’admoneste et prie.” – “Em primeiro lugar, admoesto e rogo.”<br />

23 “Qui est plus excellent sans comparaison.” – “Que é, além <strong>de</strong> comparação, mais excelente.”


466 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

9. Porque em parte conhecemos, e em<br />

parte profetizamos.<br />

10. Mas quando vier o que é perfeito,<br />

então o que é em parte será aniquilado.<br />

11. Quando eu era criança, falava como<br />

criança, sentia como criança, pensava<br />

como criança; mas agora que<br />

me tornei adulto, <strong>de</strong>sisti das coisas<br />

próprias da infância.<br />

12. Porque agora vemos como em<br />

espelho, obscuramente; então veremos<br />

face a face; agora conheço em<br />

parte; mas, então, conhecerei como<br />

também sou conhecido.<br />

13. E agora permanecem a fé, a esperança<br />

e o amor, estes três; porém, o<br />

maior <strong>de</strong>stes é o amor.<br />

9. Ex parte enim cognoscimus, et ex<br />

parte prophetamus:<br />

10. At ubi venerit quod perfectum est,<br />

tunc, quod ex parte est, abolebitur.<br />

11. Quum essem puer, ut puer loquebar,<br />

ut puer sentiebam, ut puer<br />

cogitabam: at postquam factus sum<br />

vir, abolevi puerilia.<br />

12. Cernimus enim nunc per speculum<br />

in ænigmate: tunc autem facie ad faciem:<br />

nunc cognosco ex parte: tunc<br />

vero cognoscam, quemadmodum<br />

et cognitus sum.<br />

13. Nunc autem manet fi<strong>de</strong>s, spes, caritas,<br />

tria hæc: sed maxima ex his<br />

est caritas.<br />

Ele então mostra que a profecia e todos os <strong>de</strong>mais dons <strong>de</strong>sse<br />

gênero serão <strong>de</strong>struídos, 24 visto que nos são outorgados para auxiliar-<br />

-nos em nossa <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>. Ora, um dia nossa imperfeição chegará ao<br />

fim; portanto, o uso <strong>de</strong>sses dons também cessará concomitantemente.<br />

Porquanto seria absurdo que continuassem em vigor quando não haja<br />

mais nenhuma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les; por isso, perecerão. O apóstolo retoma<br />

este argumento no final do capítulo.<br />

9. Em parte conhecemos. A maioria das pessoas explica este versículo<br />

<strong>de</strong> forma equivocada, ou, seja: que nosso conhecimento não é<br />

ainda perfeito; ao contrário, diariamente estamos fazendo progresso<br />

nele; e que o mesmo se aplica à profecia. Mas a intenção do apóstolo<br />

é mostrar que o fato <strong>de</strong> recebermos conhecimento e profecia é precisamente<br />

uma prova <strong>de</strong> que somos imperfeitos. Portanto, em parte<br />

significa que não fomos ainda aperfeiçoados. Conhecimento e profecia,<br />

portanto, terão lugar em nossas vidas enquanto a imperfeição fizer<br />

parte <strong>de</strong> nossa existência terrena, pois eles nos assessoram até que a<br />

24 “Seront un iour abolis.” – “Um dia serão abolidos.”


Capítulo 13 • 467<br />

plenitu<strong>de</strong> nos atinja. É sem dúvida correto que nos seja exigido progredir<br />

ao longo <strong>de</strong> nossa vida terrena, e tudo o que temos está num estado<br />

inacabado. Mas precisamos compreen<strong>de</strong>r o que o apóstolo <strong>de</strong>seja ressaltar,<br />

ou, seja: que os dons em questão são <strong>de</strong> caráter temporário.<br />

Não obstante, a razão pela qual ele realça este fator é que o benefício<br />

oriundo dos dons só é eficaz enquanto estivermos nos movendo rumo<br />

ao alvo, evi<strong>de</strong>nciando progresso dia a dia.<br />

10. Quando vier o que é perfeito. O apóstolo po<strong>de</strong>ria ter posto<br />

nestes termos: “Quando tivermos alcançado o ponto <strong>de</strong> chegada, então<br />

as coisas que nos ajudaram no percurso <strong>de</strong>ixarão <strong>de</strong> existir.” No<br />

entanto, ele usa a mesma forma <strong>de</strong> expressão anterior, ao pôr a perfeição<br />

em contraste com o que é em parte. Ele está dizendo: “Quando<br />

a perfeição chegar, tudo quanto nos auxiliou em nossas imperfeições<br />

será abolido.” Mas, quando tal perfeição virá? Em verda<strong>de</strong>, ela começa<br />

na morte, quando nos <strong>de</strong>spirmos das inúmeras fraquezas juntamente<br />

com o corpo; ela, porém, não será plenamente estabelecida até que<br />

chegue o dia do juízo final, como logo veremos. Portanto, <strong>de</strong>sse fato<br />

concluímos que é algo em extremo estúpido alguém fazer toda esta<br />

discussão aplicar-se ao período intermediário.<br />

11. Quando eu era criança. O apóstolo ilustra o que afirmou,<br />

usando uma similitu<strong>de</strong>. Pois muitas das coisas que são apropriadas à<br />

infância <strong>de</strong>saparecem mais tar<strong>de</strong>, quando chegam os anos da maturida<strong>de</strong>.<br />

25 Por exemplo, quando somos ainda crianças, temos necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ir à escola; isso, porém, seria ridículo para uma pessoa idosa. Ora,<br />

enquanto vivemos neste mundo, precisamos <strong>de</strong> alguma instrução;<br />

pois ainda nos achamos longe da plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sabedoria. Portanto, a<br />

perfeição, que será uma espécie <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong> no <strong>de</strong>senvolvimento<br />

espiritual, porá fim à instrução e tudo quanto a acompanha. Na epístola<br />

aos Efésios [4.14], o apóstolo insta conosco a que não mais sejamos<br />

crianças; ele, porém, o faz com um objetivo distinto, e falaremos disso<br />

ao tratarmos <strong>de</strong>ssa passagem.<br />

25 “Elle ne conuient point à ceux qui sont en aage <strong>de</strong> discretion.” – “Ela não vem enquanto<br />

não chega a ida<strong>de</strong> da discrição.”


468 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

12. Porque agora vemos como em espelho. Aqui chegamos à aplicação<br />

da similitu<strong>de</strong>, ou, seja: o sistema <strong>de</strong> conhecimento que agora<br />

possuímos é apropriado a nosso estado <strong>de</strong> imperfeição, e que po<strong>de</strong><br />

ser <strong>de</strong>nominado nossa infância; porque não possuímos ainda uma nítida<br />

percepção dos mistérios do reino do céu, e não usufruímos ainda<br />

da visão <strong>de</strong>snuda <strong>de</strong>les. Com o fim <strong>de</strong> enfatizar isso, o apóstolo usa<br />

ainda outra similitu<strong>de</strong>, a saber: que a única maneira <strong>de</strong> vermos agora é<br />

através <strong>de</strong> um espelho, e portanto não <strong>de</strong> forma concreta. Ele expressa<br />

tal obscurida<strong>de</strong> através do termo enigma. 26<br />

Em primeiro lugar, não há dúvida <strong>de</strong> que ele está comparando a<br />

um espelho o ministério da Palavra e os auxílios indispensáveis para<br />

seu exercício. Pois Deus, que por outro lado é invisível, <strong>de</strong>signou estes<br />

como meios para revelar-se a nós. Naturalmente, isso po<strong>de</strong> também<br />

ser feito para abranger toda a estrutura do universo, no qual a glória<br />

<strong>de</strong> Deus resplan<strong>de</strong>ce para que nos contemplemos, como se acha<br />

expresso em Romanos 1.16 e 2 Coríntios 3.18. Em Romanos 1.20 o<br />

apóstolo <strong>de</strong>screve as coisas criadas como espelhos 27 através dos quais<br />

a majesta<strong>de</strong> invisível <strong>de</strong> Deus possa ser vista; mas já que o apóstolo<br />

está tratando aqui particularmente dos dons espirituais, que são assistenciais<br />

no ministério exercido pela Igreja, e a acompanham, não<br />

divagaremos mais.<br />

O ministério da Palavra, repito, é como um espelho. Pois os anjos<br />

não precisam da pregação, nem <strong>de</strong> outros auxílios inferiores, nem<br />

<strong>de</strong> sacramentos. Eles possuem a vantagem <strong>de</strong> contemplar a Deus por<br />

outros meios, 28 porque Deus não lhes mostra sua face simplesmente<br />

26 O termo original, αἴνιγμα [enigma], significa propriamente um dito obscuro. É empregado<br />

pelos escritores clássicos neste sentido. Ver Pind. Fr. 165. Aesch. Pr. 610. Presume-se<br />

que o apóstolo tinha diante <strong>de</strong> seus olhos Números 13.8, que é traduzido na Septuaginta<br />

assim: Στόμα κατὰ στόμα λαλήσω αὐτω̑ ἐν ἔιδει, καὶ οὐ δι ̕ αἰνίγματων. – “Eu lhe falarei boca a<br />

boca numa visão, e não por meio <strong>de</strong> ditos obscuros.”<br />

27 “Et l’Apostre, en l’onzieme aux Heb., d. 13, nomme les creatures, miroirs.” – “E o apóstolo, em<br />

Hebreus 11.13, fala das criaturas como espelhos.” Há obviamente um equívoco aqui na citação.<br />

Mais provavelmente Calvino tivesse diante dos olhos Hebreus 11.3, como uma passagem<br />

semelhante, em substância, a Romanos 1.20, citada por ele em seu comentário em latim.<br />

28 “Ils ont vn autre iouissance <strong>de</strong> la presence <strong>de</strong> Dieu.” – “Eles têm outro meio <strong>de</strong> usufruir da<br />

presença <strong>de</strong> Deus.”


Capítulo 13 • 469<br />

através <strong>de</strong> um espelho [in speculo], mas se apresenta publicamente<br />

diante <strong>de</strong>les [palam se illis praesentem exhihit]. Nós, porém, que ainda<br />

não escalamos tais altitu<strong>de</strong>s, contemplamos a imagem <strong>de</strong> Deus [imaginem<br />

Dei speculamur] na Palavra, nos Sacramentos e, em síntese, em<br />

todo o ministério da Igreja.<br />

Aqui o apóstolo fala daquela visão, da qual participamos, como<br />

sendo obscura [aenigmaticam], não porque ela seja dúbia ou ilusória,<br />

mas porque não é tão nítida como eventualmente será no Último Dia.<br />

Ele ensina a mesma coisa <strong>de</strong> forma distinta em 2 Coríntios 5.6, 7: “enquanto<br />

no corpo, estamos ausentes do Senhor; visto que andamos por<br />

fé, e não pelo que vemos.” Portanto, nossa fé agora contempla Deus<br />

que, <strong>de</strong> certa forma, está ausente [tanquam absentem]. Como assim?<br />

Porque ela não mira sua face, porém se sente feliz mirando sua imagem<br />

no espelho [in speculi imagine]. Mas quando <strong>de</strong>ixarmos o mundo<br />

para trás, e partirmos para Deus, a fé o contemplará, por assim dizer,<br />

em contato direto e sem véu diante <strong>de</strong> seus próprios olhos.<br />

Daí <strong>de</strong>vermos entendê-lo por este prisma: o conhecimento <strong>de</strong><br />

Deus, que agora extraímos <strong>de</strong> sua Palavra é indubitavelmente confiável<br />

e genuíno, e não há nele nada confuso, nem ininteligível, nem obscuro;<br />

senão que, quando ele é qualificado <strong>de</strong> obscuro [aenigmaticam],<br />

este é num sentido relativo, porquanto ele é muito lento em perceber<br />

aquela clara revelação que aguardamos, quando veremos face a<br />

face. 29 Portanto, este versículo não está <strong>de</strong> forma alguma em conflito<br />

com outros que falam da clareza, quer da lei ou da Escritura como<br />

um todo, principalmente <strong>de</strong> todos os Evangelhos. Pois há na Palavra<br />

uma revelação franca e nítida <strong>de</strong> Deus (suficiente para satisfazer nossas<br />

necessida<strong>de</strong>s), e não há nela nada que seja recôndito [involutum],<br />

29 “A bendita manifestação que Deus faz <strong>de</strong> si mesmo”, diz Howe, “é enfaticamente expressa<br />

em 1 Coríntios 13.12: veremos face a face, o que significa, <strong>de</strong> sua parte, graciosa concessão<br />

– o oferecimento <strong>de</strong> seu bendito rosto para ser visto. Que ele não o oculte, nem o<br />

<strong>de</strong>svie, como às vezes ele proce<strong>de</strong> aqui, com justo <strong>de</strong>sprazer. E sua face, ou seu rosto,<br />

significa, inclusive sua glória mais conspícua tal como neste estado <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong>, que<br />

nos seria fatal se contemplarmos. Pois nenhum ser humano, nem mesmo um homem santo<br />

como Moisés, po<strong>de</strong>ria contemplar seu rosto e viver. E significa da parte dos homens<br />

que são assim aperfeiçoados.


470 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

segundo imaginam os <strong>de</strong>screntes, 30 que nos mantenha num estado <strong>de</strong><br />

incerteza. Todavia, quão pequena é esta parte da visão em direção à<br />

qual caminhamos! Portanto, o conhecimento é <strong>de</strong>scrito como obscuro<br />

só no sentido comparativo.<br />

O advérbio então indica o último dia, antes do tempo imediatamente<br />

após a morte. Entretanto, ainda que a plenitu<strong>de</strong> da visão seja<br />

adiada até o Dia <strong>de</strong> Cristo, começaremos a ter uma nítida visão <strong>de</strong> Deus<br />

assim que morrermos. Então nossas almas se verão livres <strong>de</strong> nossos<br />

corpos, e não terão mais necessida<strong>de</strong> nem do ministério externo nem<br />

<strong>de</strong> outros auxílios inferiores. Paulo, porém (como já enfatizei), não<br />

está ansioso por discutir o estado dos mortos, porque o conhecimento<br />

<strong>de</strong>sta matéria é <strong>de</strong> pouco valor para a pieda<strong>de</strong>.<br />

Agora conheço em parte, isto é, o conhecimento que agora temos é<br />

incompleto. João diz a mesma coisa em sua carta [1Jo 3.2]: “Sabemos que,<br />

quando ele manifestar-se, seremos semelhantes a ele, porque havemos<br />

<strong>de</strong> vê-lo como ele é.” Então veremos a Deus, não em seu reflexo [imagine],<br />

mas ele mesmo, <strong>de</strong> modo que haverá, por assim dizer, uma mútua visão.<br />

13. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor. Esta<br />

é a conclusão do que vem antes: que o amor é muito mais excelente<br />

que todos os <strong>de</strong>mais dons; mas, em vez do catálogo dos dons que<br />

Paulo apresentara previamente, ele agora coloca fé e esperança lado<br />

a lado com o amor, pois todos os outros estão compreendidos nestes<br />

três. Porque, com que propósito todo o ministério foi dado senão para<br />

sermos treinados nestes três dons? 31 Daí, o termo fé tem aqui uma<br />

acepção muito mais ampla, mais ampla do que nos exemplos anteriores<br />

<strong>de</strong> seu uso. Pois é como se o apóstolo preten<strong>de</strong>sse dizer: “É<br />

verda<strong>de</strong> que há muitos e variados dons, porém todos eles apontam<br />

para este objetivo, e o tem em mira.”<br />

Portanto, permanecer comunica esta idéia: como ocorre no acerto<br />

<strong>de</strong> contas, quando tudo estiver <strong>de</strong>duzido, este é o resultado que per-<br />

30 “Comme imaginent les moqueurs et gens profanes.” – “Como os escarnecedores e profanos<br />

imaginam.”<br />

31 “En ces trois choses.” – “Nestas três coisas.”


Capítulo 13 • 471<br />

manece. Pois a fé não permanece <strong>de</strong>pois da morte, segundo o apóstolo<br />

a contrasta em outro lugar com a vista [2Co 5.7], e ensina que ela dura<br />

só enquanto estamos ausentes do Senhor. Agora po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r<br />

o que está implícito no termo fé neste versículo, ou, seja: o conhecimento<br />

<strong>de</strong> Deus e <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong>, o qual obtemos através do ministério<br />

exercido pela Igreja; ou, se se preferir, a fé universal e tomada em sua<br />

acepção própria.<br />

Esperança nada mais nada menos é que a perseverança na fé. Pois<br />

assim que tivermos crido na Palavra <strong>de</strong> Deus, resta ainda que perseveremos<br />

até a concretização <strong>de</strong>ssas coisas. Daí, visto que a fé é a mãe<br />

da esperança, esta é também sustentada por aquela a fim <strong>de</strong> que não<br />

venha a perecer.<br />

O maior <strong>de</strong>stes é o amor. Isso é assim se estimarmos sua excelência<br />

pelos efeitos que ele previamente enumerou; e mais, se<br />

tivermos a visão <strong>de</strong> sua perpetuida<strong>de</strong>. Pois cada um extrai benefício<br />

<strong>de</strong> sua própria fé e esperança, ao passo que o amor é <strong>de</strong>rramado para<br />

o bem <strong>de</strong> outrem. A fé e a esperança são os acompanhantes <strong>de</strong> nosso<br />

estado imperfeito, porém o amor persistirá mesmo nas condições <strong>de</strong><br />

perfeição.<br />

Pois se examinarmos os frutos da fé, um a um, e os compararmos,<br />

<strong>de</strong>scobriremos que ela é superior em muitos aspectos. Sim, o amor<br />

propriamente dito, segundo o testemunho do próprio apóstolo [1Ts<br />

1.3], é um efeito da fé; e o efeito é, sem dúvida, inferior a sua causa.<br />

Além disso, um notável tributo é pago à fé, o que não se aplica no<br />

caso do amor, quando João [1Jo 5.4] diz que a fé é a vitória que vence<br />

o mundo. Finalmente, é mediante a fé que nascemos <strong>de</strong> novo, nos<br />

tornamos filhos <strong>de</strong> Deus, obtemos a vida eterna e Cristo habita em<br />

nós [Ef 3.17]. Deixo <strong>de</strong> mencionar outras incontáveis bênçãos, porém<br />

os poucos exemplos serão suficientes para trazer a lume o que quero<br />

dizer quando afirmo que a fé é superior ao amor em muitos <strong>de</strong> seus<br />

efeitos. É evi<strong>de</strong>nte, à luz do texto, que o amor é maior, não em todos os<br />

aspectos, mas porque ele durará eternamente, e no momento exerce<br />

um papel primário em conservar a Igreja em existência.


472 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

No entanto, é estranho como os papistas se mostram egoístas em<br />

proclamar em alto e bom som que, se a fé justifica, então o amor, que<br />

é <strong>de</strong>scrito como sendo o maior, justifica muito mais. Ora, a solução<br />

<strong>de</strong> tal objeção já foi fornecida pelo que já afirmei, porém admitamos<br />

que o amor é em muitos aspectos superior. Que sorte <strong>de</strong> raciocínio é<br />

essa, a saber: visto que o amor é maior, ele é mais eficaz para justificar<br />

os homens? Segundo essa forma <strong>de</strong> pensar, um rei preparará a terra<br />

melhor que um agricultor; fará um calçado melhor que um sapateiro,<br />

só porque é um homem <strong>de</strong> nascimento mais nobre que ambos juntos.<br />

Semelhantemente, um homem correrá mais rápido que um cavalo e<br />

carregará um fardo mais pesado que o <strong>de</strong> um elefante, e isso porque<br />

ele é um ser superior aos dois animais! Além do mais, sob o mesmo<br />

princípio, os anjos gerarão mais luz para a terra do que o sol e a lua,<br />

só porque estão muito acima <strong>de</strong>les! Se o po<strong>de</strong>r para justificar <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>sse<br />

da dignida<strong>de</strong> ou do mérito da fé, talvez <strong>de</strong>vêssemos prestar mais<br />

atenção ao que dizem. Nós, porém, não ensinamos que a fé justifica em<br />

virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser mais valiosa ou que ocupe um lugar <strong>de</strong> mais honra, mas<br />

porque ela recebe a justiça que é oferecida gratuitamente no evangelho.<br />

Gran<strong>de</strong>za, dignida<strong>de</strong>, não têm parte alguma nesta questão, e aqui<br />

equivalem a nada. Esta é a razão por que este versículo não fornece<br />

mais assistência aos papistas do que se o apóstolo tivesse realmente<br />

colocado a fé antes <strong>de</strong> tudo mais.


Capítulo 14<br />

1. Segui o amor, e <strong>de</strong>sejai os dons espirituais,<br />

mas principalmente que<br />

profetizeis.<br />

2. Pois quem fala em língua <strong>de</strong>sconhecida,<br />

não fala a homens, mas a Deus,<br />

visto que ninguém o enten<strong>de</strong>, mas,<br />

no espírito, fala mistérios.<br />

3. Aquele, porém, que profetiza fala aos<br />

homens para edificação, exortação<br />

e conforto.<br />

4. Aquele que fala em língua <strong>de</strong>sconhecida<br />

edifica a si mesmo; mas o que<br />

profetiza edifica a Igreja.<br />

5. Eu gostaria que todos vós falásseis<br />

em línguas, mas sobretudo que<br />

profetizásseis; pois quem profetiza<br />

é superior ao que fala em línguas,<br />

salvo se as interpretar para que a<br />

Igreja receba edificação.<br />

6. Ora, irmãos, se eu for a vós falando<br />

em línguas, em que vos serei proveitoso,<br />

a menos que eu vos fale<br />

por meio ou <strong>de</strong> revelação, ou <strong>de</strong> conhecimento,<br />

ou <strong>de</strong> profecia, ou <strong>de</strong><br />

doutrina?<br />

1. Sectamini caritatem: æmulamini<br />

spiritualia, magis autem ut prophetetis.<br />

2. Nam qui loquitur lingua, non hominibus<br />

loquitur sed Deo: nullus enim<br />

audit; Spiritu vero loquitur mysteria.<br />

3. Cæterum qui prophetat, hominibus<br />

loquitur ad ædificationem, exhortationem,<br />

et consolationem.<br />

4. Qui loquitur lingua, se ipsum ædificat;<br />

at qui prophetat, Ecclesiam<br />

ædificat.<br />

5. Volo autem omnes vos loqui linguis,<br />

magis tamen ut prophetetis; maior<br />

enim qui prophetat, quam qui linguis<br />

loquitur; nisi interpretetur, ut<br />

Ecclesia ædificationem accipiat.<br />

6. Nunc autem, fratres, si venero ad<br />

vos linguis loquens, quid vobis<br />

pro<strong>de</strong>ro, nisi vobis loquar aut per<br />

revelationem, aut per scientiam,<br />

aut per prophetiam, aut per doctrinam?<br />

Como previamente ele instara com os coríntios a <strong>de</strong>sejarem ar<strong>de</strong>ntemente<br />

os dons mais importantes [1Co 12.31], agora os aconselha


474 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

a seguirem o amor; 1 porquanto esse fora a excelência 2 mui distinta que<br />

prometera lhes mostraria. Portanto, eles manterão seus dons sob controle,<br />

enquanto o amor <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> um lugar <strong>de</strong> proeminência em seu<br />

relacionamento recíproco. Porquanto Paulo tacitamente os responsabiliza<br />

pela carência <strong>de</strong> amor, o que saltava aos olhos na maneira como<br />

usavam mal seus dons. E ele infere das coisas que suce<strong>de</strong>ram no passado,<br />

quando não haviam ainda dado ao amor o primeiro lugar, que<br />

não empreendiam sérios e a<strong>de</strong>quados esforços para usufruírem das<br />

coisas excelentes que realmente possuíam. Ele, portanto, põe em relevo,<br />

diante dos olhos <strong>de</strong>les, quão sem sentido é seu egoísmo, fazendo<br />

naufragar as esperanças e anseios dos coríntios.<br />

1. Desejai os dons espirituais. Para que os coríntios não suscitassem<br />

a objeção <strong>de</strong> que Deus seria prejudicado se <strong>de</strong>sprezassem seus<br />

dons, o apóstolo antecipa a objeção asseverando que não pretendia<br />

privá-los <strong>de</strong>sses dons, os quais eles estavam usando <strong>de</strong> forma errônea.<br />

Ao contrário, ele os encoraja a ardorosamente ir após os dons,<br />

e <strong>de</strong>seja que os mesmos tenham um lugar na Igreja. E, sem a menor<br />

dúvida, sendo eles conferidos visando ao benefício da Igreja, o modo<br />

abusivo como os homens os manipulavam não <strong>de</strong>via dar ocasião a<br />

que fossem os mesmos <strong>de</strong>scartados como algo inútil e prejudicial. Não<br />

obstante, no ínterim ele enaltece a profecia acima <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>mais<br />

dons, visto que ela era, <strong>de</strong> todos os dons, o mais útil. Portanto, ele<br />

observa um meio termo admirável, a saber, nada <strong>de</strong>saprovando que<br />

fosse <strong>de</strong> alguma utilida<strong>de</strong>, enquanto, ao mesmo tempo, os encoraja a<br />

não permitirem que um zelo absurdo os fizesse valorizar as coisas <strong>de</strong><br />

somenos importância acima daquelas <strong>de</strong> suprema importância. Com<br />

isso ele estabelece a profecia como sendo primordial. Portanto, “cobiçai<br />

os dons espirituais”, diz ele. Em outros termos: “Não negligencieis<br />

1 “A palavra διώκετε”, diz Doddridge, “significa propriamente ir após algo com tanto ardor,<br />

como o caçador que persegue sua caça. E é possível que ele quisesse notificar quão difícil<br />

é obter e preservar um espírito tão verda<strong>de</strong>iramente benevolente nas principais fases da<br />

vida. Consi<strong>de</strong>rando, <strong>de</strong> um lado, quantas provocações iremos enfrentar; e, do outro, a<br />

força do amor próprio que em tantos casos estará disposto terçar armas.”<br />

2 “C’estoit ceste voye et vertu escellence.” – “Esta era aquela distinta maneira e excelência.”


Capítulo 14 • 475<br />

nenhum dom, pois vos exorto a empenhar-vos por todos eles, contanto<br />

que a profecia retenha sua posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque.”<br />

2. Pois quem fala em língua <strong>de</strong>sconhecida, 3 não fala aos homens.<br />

Ele agora mostra pelo efeito por que preferia a profecia aos <strong>de</strong>mais<br />

dons, e a compara com o dom <strong>de</strong> línguas, no qual é bem provável<br />

que os coríntios exce<strong>de</strong>ssem, visto ser o mesmo mais ostentoso, pois<br />

quando as pessoas ouvem alguém a expressar-se em língua estrangeira,<br />

geralmente sua admiração é excitada <strong>de</strong> uma forma incomum. O<br />

apóstolo, pois, mostra, partindo <strong>de</strong> princípios já pressupostos, quão<br />

perverso é tal comportamente, já que esse dom [<strong>de</strong> línguas] não vale<br />

absolutamente nada para a edificação da Igreja. Seu primeiro ponto<br />

é este: “aquele que fala em língua <strong>de</strong>sconhecida está falando não a<br />

homens, mas a Deus”. Em outros termos (segundo um provérbio), “ele<br />

fala a si próprio e às pare<strong>de</strong>s.” 4 Não há pleonasmo 5 no uso da palavra<br />

língua, como suce<strong>de</strong> nos seguintes casos: “ela falava com sua própria<br />

boca”; “eu ouvi sua voz com estes ouvidos”; ao contrário, significa<br />

uma língua estrangeira. A razão por que “ele não fala a homens” é que<br />

“ninguém enten<strong>de</strong>”, ou, seja, as palavras não po<strong>de</strong>m ser distinguidas.<br />

Pois os ouvintes ouvem um som, porém não enten<strong>de</strong>m o sentido da<br />

linguagem.<br />

3 Grannville Penn observa que “o contexto revela que o apóstolo tem em mente uma língua<br />

estrangeira àquela dos ouvintes, e por isso <strong>de</strong>sconhecida para eles” – como “apren<strong>de</strong>mos<br />

à luz do versículo 21 que estamos para suprir com ἑτερᾳ, ‘outra’, não αγνωστῃ, ‘<strong>de</strong>sconhecida’.<br />

Temos tido”, acrescenta, “lamentável prova do abuso a que a última tradução<br />

prejudicial po<strong>de</strong> ter sido pervertida nas mãos <strong>de</strong> ignorantes ou entusiastas insidiosos,<br />

presumindo que o termo significa ‘língua <strong>de</strong>sconhecida <strong>de</strong> todo o gênero humano’; e daí,<br />

por meio <strong>de</strong> uma inferência ímpia, supernatural ou divina; em vez <strong>de</strong> relativamente, ‘<strong>de</strong>sconhecida<br />

<strong>de</strong> outras pessoas’. E no entanto, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tudo, ‘<strong>de</strong>sconhecida’ não a palavra<br />

do apóstolo, mas apenas um suplemente em itálico sugerida pelos revisores ingleses do<br />

século <strong>de</strong>zessete.”<br />

4 “Comme on dit en prouerbe – Il presche à soy-mesme et aux murailles.” – “Como dizem<br />

proverbialmente: Ele prega a si mesmo e às pare<strong>de</strong>s.” Crê-se que o provérbio, “Sibi canit<br />

et Musis” – “Ele canta para si mesmo e para as musas”, originou-se <strong>de</strong> um dito <strong>de</strong> Antigeni<strong>de</strong>s,<br />

um músico célebre <strong>de</strong> Tebes, que, quando sua Ismenia escolar cantava com<br />

bom gosto, mas não ao ponto <strong>de</strong> granjear os aplausos do povo, excalamava: “Mihi cane<br />

et Musis” – “Canto para mi e para as musas”, significando que nada era se agradasse os<br />

bons juízes.<br />

5 Pleonasmo é uma figura <strong>de</strong> linguagem que envolve uma redundância <strong>de</strong> expressão.


476 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Ele fala no Espírito, ou, seja, “por meio <strong>de</strong> um dom espiritual”<br />

(pois esta é a forma como a explico, juntamente com Crisóstomo),<br />

“fala mistérios e coisas que permanecem secretas, e que, portanto,<br />

não trazem nenhum proveito”. Crisóstomo aqui toma mistério num<br />

sentido positivo, como sendo revelações extraordinárias <strong>de</strong> Deus.<br />

Quanto a mim, porém, consi<strong>de</strong>ro o termo num sentido negativo, como<br />

certas expressões ininteligíveis, confusas, enigmáticas, como se Paulo<br />

houvera escrito: “Ninguém enten<strong>de</strong> uma só palavra do que ele diz.”<br />

3. Aquele que profetiza fala aos homens. “A profecia”, diz ele,<br />

“enriquece a todos, enquanto que uma língua estrangeira é um tesouro<br />

oculto no solo. Quão estúpido, pois, é <strong>de</strong>sperdiçar alguém seu tempo<br />

com algo que é inútil, e negligenciar algo que é obviamente o mais<br />

valioso <strong>de</strong> todos! “Falar com o intuito <strong>de</strong> edificação” é ministrar ensinamentos<br />

próprios para a edificação. Pois tomo este termo no sentido <strong>de</strong><br />

um ensino que nos educa na religião, na fé, no culto e no temor <strong>de</strong> Deus,<br />

bem como nas responsabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> santida<strong>de</strong> e justiça. Visto, porém,<br />

que a maioria <strong>de</strong> nós necessita <strong>de</strong> estímulos, enquanto que outros são<br />

acossados por tribulações, ou assenhoreados por fraquezas, ele menciona<br />

exortação e conforto como um a<strong>de</strong>ndo ao ensino. É evi<strong>de</strong>nte, à<br />

luz <strong>de</strong>ste versículo e do prece<strong>de</strong>nte, que a profecia não é o dom <strong>de</strong> predição;<br />

visto, porém, que já falei sobre isso, não serei repetitivo.<br />

4. Aquele que fala em outra língua edifica a si próprio. Ele afirmou<br />

no versículo 2 que uma pessoa que possui este dom “fala a Deus”;<br />

agora, porém, diz que ela “fala a si própria”. Não obstante, tudo o que<br />

se faz na Igreja <strong>de</strong>ve visar ao benefício comum. Fora, pois, com toda<br />

e qualquer ambição que <strong>de</strong>sencaminha, a qual propicia que se ponha<br />

obstáculos no caminho daqueles que precisam ser beneficiados! Além<br />

disso, o apóstolo está falando à guisa <strong>de</strong> concessão; pois quando a<br />

ambição <strong>de</strong>rrama um dilúvio <strong>de</strong> linguagem bombástica 6 <strong>de</strong>sse gênero,<br />

o coração se sente carente <strong>de</strong> auxílio; todavia, é como se o apóstolo<br />

estivesse <strong>de</strong>stacando as pessoas exibicionistas, as quais só se preocu-<br />

6 “Iettent ainsi <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s boufféés et se brauent en leur parler.” – “Fazem uso <strong>de</strong>ssa forma<br />

<strong>de</strong> extravagâncias e se gabam <strong>de</strong> seu modo <strong>de</strong> falar.”


Capítulo 14 • 477<br />

pam com suas próprias pessoas, e não nutrem nenhum interesse pelos<br />

crentes quando se acham reunidos em assembléia.<br />

5. Ora, gostaria que todos falassem em línguas. Ele volta a <strong>de</strong>clarar<br />

que não está dando preferência à profecia sem <strong>de</strong>ixar qualquer<br />

espaço às línguas. Devemos prestar muita atenção a este ponto, pois<br />

Deus jamais conce<strong>de</strong>u a sua Igreja dom algum sem que tivesse algum<br />

propósito para o mesmo; e as línguas eram <strong>de</strong> alguma utilida<strong>de</strong> 7 naquele<br />

tempo. No entanto admitido que, através <strong>de</strong> seu equivocado apetite<br />

por exibicionismo, os coríntios estavam convertendo esse dom que<br />

era, em alguma extensão, supérfluo e sem valor, e em certo sentido até<br />

mesmo nocivo; todavia, ao corrigir esse erro, ele está dando, não obstante,<br />

sua aprovação às línguas. Daí, é fora <strong>de</strong> dúvida que seu <strong>de</strong>sejo<br />

era abolir as línguas ou mantê-las fora do ambiente da Igreja.<br />

Em nossa própria época, quando se vê uma alarmante necessida<strong>de</strong><br />

do conhecimento <strong>de</strong> línguas, e quando, em nosso drama na história, Deus,<br />

em sua maravilhosa con<strong>de</strong>scendência, as resgatou das trevas e as trouxe<br />

para a luz, há gran<strong>de</strong>s teólogos 8 que, confrontados por essa situação, são<br />

espalhafatosos e violentos em seus protestos contra elas. Uma vez que<br />

não há dúvida alguma <strong>de</strong> que o Espírito Santo se dignou revestir as línguas<br />

<strong>de</strong> honras imperecíveis, neste versículo, é fácil chegar à conclusão <strong>de</strong> que<br />

gênero <strong>de</strong> espírito move os críticos que fazem ataques estrondosos contra<br />

o estudo <strong>de</strong> línguas, em linguagem tão insultuosa quanto possam. No<br />

entanto, eles estão tratando <strong>de</strong> coisas diversas. Porque o apóstolo está se<br />

referindo a todas as línguas, sem distinção, as quais eram <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valia<br />

na proclamação do evangelho entre todas as nações. Em contrapartida,<br />

os críticos <strong>de</strong> nosso tempo estão con<strong>de</strong>nando as línguas das quais, como<br />

fontes, a genuína verda<strong>de</strong> da Escritura <strong>de</strong>ve ser extraída. Não obstante,<br />

<strong>de</strong>ve-se acrescentar uma exceção, a saber: que não <strong>de</strong>vemos tomar tempo<br />

<strong>de</strong>masiado às línguas, enquanto damos pouquíssima atenção à profecia,<br />

quando ela <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>sfrutar do primeiro lugar.<br />

7 “Les langues aidoyent lors aucunement à l’auancement <strong>de</strong>s Eglises.” – “Línguas, naquele<br />

tempo, eram <strong>de</strong> algum auxílio para o avanço das igrejas.”<br />

8 “Ces gentils reformateurs.” – “Aqueles atraentes reformadores.”


478 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Exceto se as interpretar. Pois se a interpretação for adicionada, então<br />

teremos profecia. Não obstante, não se <strong>de</strong>ve concluir que o apóstolo<br />

esteja aqui permitindo que alguém <strong>de</strong>sperdice o tempo da Igreja com um<br />

amontoado <strong>de</strong> palavras estranhas. Pois quão ridículo seria proclamar a<br />

mesma coisa em muitas línguas, quando não há nenhuma necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> assim proce<strong>de</strong>rmos! Mas, às vezes suce<strong>de</strong> que o uso <strong>de</strong> uma língua<br />

estrangeira é oportuno. Finalmente, que nosso único objetivo seja este:<br />

que tudo quanto fizermos, façamo-lo para a edificação da Igreja.<br />

6. Ora, se eu for a vós. Ele se apresenta como exemplo, visto que sua<br />

própria situação ilustrava o que ele tinha a dizer particularmente favorável.<br />

9 Os coríntios estavam conscientes do rico fruto que a doutrina paulina<br />

produzira. Ele, pois, lhes pergunta que utilida<strong>de</strong> lhes seria se ele empregasse<br />

línguas <strong>de</strong>sconhecidas quando lhes falasse. Através <strong>de</strong>ste apelo à<br />

experiência, o apóstolo lembra aos coríntios que seria muito melhor que<br />

voltassem sua atenção para as profecias. Além do mais, era menos ofensivo<br />

reprovar tal vício em sua própria pessoa do que na <strong>de</strong> outros.<br />

Entretanto, o apóstolo faz menção <strong>de</strong> quatro tipos <strong>de</strong> edificação:<br />

revelação, conhecimento, profecia e doutrina. Visto que os intérpretes<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m diferentes pontos <strong>de</strong> vista sobre estes elementos, seja-me<br />

permitido apresentar também o que penso <strong>de</strong>les. No entanto, visto<br />

que este é apenas um ponto <strong>de</strong> vista conjetural, <strong>de</strong>ixo a meus leitores<br />

a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> formar seu próprio juízo.<br />

Enfeixo revelação e profecia, e minha conclusão é que a profecia é serva<br />

da revelação. E faço o mesmo com o conhecimento e a doutrina. Portanto,<br />

tudo o que alguém tiver obtido por meio <strong>de</strong> revelação, ele difun<strong>de</strong> por meio<br />

da profecia. Doutrina é a forma <strong>de</strong> chegar ao conhecimento. Assim, um profeta<br />

será o intérprete e ministro da revelação. Isto apóia, em vez <strong>de</strong> gerar<br />

conflito, a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> profecia que formulei supra. Pois afirmei que profecia<br />

não consiste na simples interpretação da Escritura, mas também inclui<br />

o conhecimento para fazer aplicação às necessida<strong>de</strong>s do momento, e isso<br />

só se po<strong>de</strong> obter por meio da revelação e da inspiração especial <strong>de</strong> Deus.<br />

9 “Estoit plus propre pour leur imprimer ce qu’il dit.” – “Era mais próprio para imprimir<br />

neles o que ele dizia.”


Capítulo 14 • 479<br />

7. E até as coisas inanimadas, como a<br />

flauta, ou a cítara, quando emitem<br />

sons, se não os <strong>de</strong>rem bem distintos,<br />

como se reconhecerá o que se<br />

toca na flauta, ou na cítara?<br />

8. Pois se a trombeta <strong>de</strong>r um som incerto,<br />

quem se preparará para a<br />

batalha?<br />

9. Assim também vós, se com a língua<br />

não disser<strong>de</strong>s palavra compreensível,<br />

como se enten<strong>de</strong>rá o que estais<br />

falando? pois estareis como que falando<br />

ao ar.<br />

10. Há, por assim dizer, muitos tipos <strong>de</strong><br />

vozes no mundo, e nenhum <strong>de</strong>les é<br />

sem sentido.<br />

11. Portanto, se eu não enten<strong>de</strong>r o<br />

sentido da voz, serei bárbaro para<br />

aquele que fala; e o que fala será<br />

bárbaro para mim.<br />

12. Assim também vós, visto que sois<br />

zelosos pelos dons espirituais, buscai<br />

exce<strong>de</strong>r naqueles que visam à<br />

edificação da igreja.<br />

13. Por isso, aquele que fala em outra<br />

língua, ore para que a possa interpretar.<br />

14. Porque, se eu orar numa língua <strong>de</strong>sconhecida,<br />

meu espírito ora <strong>de</strong> fato,<br />

porém minha mente fica infrutífera.<br />

15. Que farei, pois? Orarei com o espírito,<br />

e também orarei com o<br />

entendimento; cantarei com o espírito,<br />

e também cantarei com o<br />

entendimento.<br />

16. E se bendisseres com o espírito,<br />

como o indouto dirá o amém após<br />

tua ação <strong>de</strong> graças, visto que não<br />

enten<strong>de</strong> o que dizes?<br />

17. Porque tu <strong>de</strong> fato dás graças muito<br />

bem, porém o outro não é edificado.<br />

7. Quin et inanimia vocem red<strong>de</strong>ntia,<br />

sive tibia, sive cithara, nisi distinctionem<br />

sonis <strong>de</strong><strong>de</strong>rint: quomodo<br />

cognoscetur, quod tibia canitur aut<br />

cithara?<br />

8. Etenim si incertam vocem tuba <strong>de</strong><strong>de</strong>rit,<br />

quis apparabitur ad bellum?<br />

9. Sic et vos per linguam, nisi significantem<br />

sermonem <strong>de</strong><strong>de</strong>ritis:<br />

quomodo intelligetur quod dicitur?<br />

eritis enim in aërem loquentes.<br />

10. Tam multa, verbi gratia, genera vocum<br />

sunt in mundo, et nihil horum<br />

mutum.<br />

11. Itaque si nesciero vim vocis, erro ei<br />

qui loquitur, barbarus: et qui loquitur,<br />

apud me barbarus.<br />

12. Itaque et vos, quandoqui<strong>de</strong>m<br />

sectatores estis spirituum, ad ædificationem<br />

Ecclesiæ quærite, ut<br />

excellatis.<br />

13. Quapropter qui loquitur lingua,<br />

oret ut interpretetur.<br />

14. Nam si orem lingua, spiritus meus<br />

orat, mens autem mea fructu caret.<br />

15. Quid igitur est? orabo spiritu, sed<br />

orabo et mente: canam spiritu, sed<br />

canam et mente.<br />

16. Alioqui si benedixeris spiritu, is qui<br />

implet locum idiotæ, quomodo dicturus<br />

est Amen ad tuam gratiarum<br />

actionem? quandoqui<strong>de</strong>m quid dicas,<br />

nescit.<br />

17. Nam tu qui<strong>de</strong>m bene gratias agis,<br />

sed alius non ædificatur.


480 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

7. E até as coisas inanimadas. Ele então introduz similitu<strong>de</strong>s,<br />

primeiro a dos instrumentos musicais, e em seguida a da natureza<br />

geral das coisas, pois todo som tem seu próprio caráter peculiar,<br />

apropriado para fazer distinção. 10 “Até as próprias coisas sem vida”,<br />

diz ele, “nos ensinam uma lição.” É verda<strong>de</strong> que há muitos sons ou<br />

estampidos que se ouvem ao acaso, sem qualquer modulação, 11 mas<br />

Paulo aqui fala <strong>de</strong> vozes nas quais há algum indício <strong>de</strong> arte, como<br />

se quisesse dizer: “Uma pessoa não po<strong>de</strong> dar vida a uma harpa ou<br />

flauta, porém a faz produzir um som, que é regulado <strong>de</strong> tal sorte, que<br />

po<strong>de</strong> ser distinguido. Que disparida<strong>de</strong>, pois, quando pessoas reais,<br />

dotadas que são <strong>de</strong> inteligência, produzem sons totalmente confusos,<br />

sem qualquer distinção!”<br />

Não obstante, aqui <strong>de</strong>vemos gastar pouco tempo na discussão<br />

das harmonias musicais, porquanto Paulo está tocando só <strong>de</strong> leve naquilo<br />

<strong>de</strong> que todos tinham consciência, ou, seja, o som <strong>de</strong> trombeta, 12<br />

por exemplo, a que ele se refere no versículo 8. Pois a trombeta se<br />

<strong>de</strong>stinava a excitar o sangue <strong>de</strong> tal maneira que agitava não só os homens,<br />

mas também os próprios corcéis. Esta é a razão por que, como<br />

relatam os registros históricos, os espartanos preferiam usar a flauta 13<br />

quando se reuniam para a batalha, a fim <strong>de</strong> que, no primeiro assalto, o<br />

exército não se precipitasse sobre o inimigo com fúria excessivamente<br />

violenta. 14 Finalmente, todos sabemos, pela própria experiência, quão<br />

10 “C’est à dire, pour signifier quelque chose.” – “Equivale dizer, para significar algo.”<br />

11 “Sans mesure ou distinction.” – “Sem medida ou distinção.”<br />

12 “Sabe-se bem que as trombetas eram empregadas em quase todos os exércitos antigos,<br />

com o propósito <strong>de</strong> orientar os movimentos dos soldados e informá-los do que estavam<br />

para fazer: como quando atacar, avançar ou retrair. Este era o costume mesmo nos exércitos<br />

judaicos mais antigos, quando a lei exigiu que se fizessem duas trombetas <strong>de</strong> prata<br />

para esse propósito (Nm 10.1, 2, 9). Naturalmente, a distinção <strong>de</strong> tons se fazia necessário<br />

para expressar as várias convocações que eram assim comunicadas; e se a trombeta não<br />

<strong>de</strong>sse a entonação certa, os soldados po<strong>de</strong>riam não saber como agir, ou corriam o risco<br />

<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r mal e agir erroneamente.”<br />

13 Ils vsoyent plustost <strong>de</strong> fluste, que <strong>de</strong> trompette.” – “Usavam a flata, em vez da trombeta.”<br />

14 Valério Máximo supõe que o uso da flauta em tais ocasiões pelos lace<strong>de</strong>monianos visava<br />

a “<strong>de</strong>spertar a coragem dos soldados, para que começassem o avanço com maior violência<br />

e fúria”. Mas a razão ressaltada por Calvino concorda com o relato dado por Tucídi<strong>de</strong>s<br />

(com quem concorda os <strong>de</strong>mais historiadores antigos).


Capítulo 14 • 481<br />

tremendo é o po<strong>de</strong>r da música para agitar as emoções do ser humano;<br />

como corretamente ensina Platão, que <strong>de</strong> uma forma ou outra a música<br />

é da maior importância para moldar o caráter moral do Estado.<br />

Falar ao ar é golpear o ar. É como se dissesse: “Vossa voz não alcançará<br />

nem a Deus nem aos homens, mas se per<strong>de</strong>rá no ar.”<br />

10. Nenhum <strong>de</strong>les é sem sentido. 15 Agora ele se expressa em termos<br />

gerais; pois evoca os sons naturais <strong>de</strong> todo o reino animal. Ele<br />

aqui usa o termo sem sentido no sentido <strong>de</strong> ininteligível, ou, seja, como<br />

oposto do que é nítido, um som distinto. Pois o latido dos cães é diferente<br />

do relincho dos corcéis; o rugido dos leões, do zurro dos asnos.<br />

Cada espécie <strong>de</strong> pássaro tem seu próprio modo particular <strong>de</strong> trinar,<br />

gorjear ou chilrear. Portanto, toda a or<strong>de</strong>m da natureza, como <strong>de</strong>siganda<br />

por Deus, nos convida a observar uma distinção. 16<br />

11. Serei bábaro 17 para aquele que fala. Nossa linguagem <strong>de</strong>ve<br />

ser o reflexo <strong>de</strong> nossas mentes; não só como observa o provérbio,<br />

mas como nos ensina Aristóteles no início <strong>de</strong> sua obra Da Interpretação.<br />

18 Portanto, é fora <strong>de</strong> propósito e um crasso absurdo alguém falar<br />

15 “Que nesta passagem”, diz o Dr. Hen<strong>de</strong>rson, “φωνὴ, que significa propriamente som, então<br />

voz, <strong>de</strong>ve ser tomado no sentido <strong>de</strong> língua ou dialeto, é evi<strong>de</strong>nte, pois não seria verda<strong>de</strong><br />

que não há sons nem vozes no mundo (ἄφωνων) sem significação, como usualmente esses<br />

termos são entendidos. Significa que toda língua é inteligível a uma ou outra nação. E é<br />

somente para pessoas que lhe são ignorantes que suas palavras são <strong>de</strong>stituídas <strong>de</strong> significação.<br />

Isto o apóstolo ilustra <strong>de</strong> uma maneira enérgica.”<br />

16 “C’est à dire nous monstre aucunement qu’il faut parler en sorte que nous soyons entendus.”<br />

– “Equivale dizer, ela nos mostra, <strong>de</strong> certa maneira, que <strong>de</strong>vemos falar para sermos<br />

entendidos.”<br />

17 “Os gregos, segundo o costume dos egípcios, mencionados por Heródoto (lib. 2), chamavam<br />

bárbaros a todos quantos não falassem seu idioma. No processo do tempo, contudo,<br />

os romanos, tendo subjugado os gregos, se eximiram, pela força das armas, daquele epíteto<br />

vexatório; e se juntaram aos gregos chamando bárbaros a todos quantos não falassem os<br />

idiomas grego e latino. Mais tar<strong>de</strong>, bárbaro passou a significar alguém que não se expressava<br />

em linguagem compreensível a outro. E assim o filósofo siciliano Anacarsis disse que<br />

para os atenienses os sicilianos eram bárbaros; e para os sicilianos os atenienses eram<br />

bárbaros. E é assim que lemos em Ovid. Trist. v.10: ‘Barbarus hic ego sum, quia non intelligor<br />

ulli.’ – ‘Eu sou um bárbaro aqui, porque não sou compreendido por ninguém.’ Este é o<br />

sentido que o apóstolo afixa à palavra bárbaro, na presente passagem.” – M’Knight.<br />

18 “La langue doit estre comme vn image, pour exprimer et representer ce qui est en<br />

l’enten<strong>de</strong>ment.” – “A língua seria como uma imagem que expressa e representa o que<br />

está no entendimento.”


482 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

numa assembléia da Igreja, quando os ouvintes não enten<strong>de</strong>m sequer<br />

uma palavra do que ele diz. Paulo, pois, está plenamente certo em<br />

consi<strong>de</strong>rar como sendo o cúmulo da absurdo quando alguém prova<br />

ser um bárbaro para seu auditório, “matando o tempo”, por assim dizer,<br />

com sua verbosida<strong>de</strong> totalmente estranha. Ao mesmo tempo, ele<br />

graceja da estapafúrdia ambição dos coríntios, porque, ao proce<strong>de</strong>rem<br />

exatamente assim, estavam <strong>de</strong>spertando o povo para louvá-los<br />

e tê-los na conta <strong>de</strong> pessoas fantásticas. Paulo lhes diz: “Toda a recompensa<br />

que granjeastes por meio <strong>de</strong> vossos esforços é a <strong>de</strong> ser<strong>de</strong>s<br />

consi<strong>de</strong>rados bárbaros.”<br />

O termo bárbaro, quer seja algo manufaturado (como pensa<br />

Estrabo) 19 , quer seja <strong>de</strong> outra <strong>de</strong>rivação, é tomado num sentido negativo.<br />

Assim, os gregos, que se consi<strong>de</strong>ravam o único povo constituído<br />

<strong>de</strong> bons oradores e <strong>de</strong> linguagem refinada, <strong>de</strong>nominavam todos os<br />

<strong>de</strong>mais povos <strong>de</strong> bárbaros em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu dialeto ru<strong>de</strong> e rústico.<br />

Não importa, porém, quão refinada uma língua seja, o fato é que uma<br />

pessoa será <strong>de</strong>scrita como bárbara se ninguém a po<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r! “O ouvinte”,<br />

diz Paulo, “será um bárbaro para mim, e vice-versa.” O que ele<br />

tem em mente com essas palavras é que, se alguém se expressa numa<br />

linguagem <strong>de</strong>sconhecida, o mesmo não é participante da comunhão<br />

da Igreja, mas, antes, se acha a longa distância <strong>de</strong>la; e que os ouvintes<br />

são plenamente justificados se mantêm uma opinião <strong>de</strong>ficitária <strong>de</strong> alguém<br />

que proce<strong>de</strong> assim, visto que cultivam um conceito negativo <strong>de</strong><br />

seus ouvintes.<br />

12. Visto que buscais com zelo os espíritos [spiritus]. Ele conclui<br />

dizendo que o dom <strong>de</strong> línguas não fora dado para que umas<br />

poucas pessoas <strong>de</strong>sfrutassem da chance <strong>de</strong> exibir-se, sem nada<br />

19 Ele consi<strong>de</strong>ra o termo βάρβαρος (bárbaro) como sendo um termo construído em imitação<br />

do sentido – comunicar a idéia <strong>de</strong> alguém que fala com dificulda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> forma abrupta.<br />

Ver Strabo, Book xiv. p. 62. Bloomfield consi<strong>de</strong>ra o termo bárbaro como <strong>de</strong>rivativo – “não”,<br />

como alguns pensam, do árabe berber, murmurar, mas do púnico berber, um pastor – tendo<br />

originalmente apropriado aos habitantes indígenas e pastoris da África; os quais, para<br />

seus companheiros mais civilizados do outro lado do Mediterrânio, pareciam rústicos e<br />

bárbaros. Daí, o termo βάρβαρος veio extensamente significar rústico ou caipira.”


Capítulo 14 • 483<br />

contribuirem para o benefício da Igreja. Diz ele: “Se os dons espirituais<br />

vos constituem uma fonte <strong>de</strong> <strong>de</strong>leite pessoal, ve<strong>de</strong> que<br />

sejam eles direcionados para a edificação [mútua]. Somente quando<br />

a Igreja obtém <strong>de</strong> vós algum benefício é que sereis realmente<br />

<strong>de</strong>stacados e merecedores <strong>de</strong> louvor.” Mas não significa que Paulo<br />

permitia que alguém nutrisse o profundo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> exce<strong>de</strong>r aos <strong>de</strong>mais,<br />

mesmo que esteja <strong>de</strong> alguma forma beneficiando a Igreja. Ao<br />

corrigir esse erro, porém, o apóstolo mostra quão rápido <strong>de</strong>caíram<br />

do que inicialmente almejavam. Ao mesmo tempo, ele gostaria <strong>de</strong><br />

nutrir pensamentos mais elogiosos. Quanto mais ansiosa uma pessoa<br />

esteja em <strong>de</strong>votar-se à edificação, com mais nobreza o apóstolo<br />

<strong>de</strong>seja seja ela respeitada. Entretanto, no que concerne a nós, este<br />

<strong>de</strong>ve ser nosso alvo, aqui e agora, a saber: que o Senhor seja a pessoa<br />

mais proeminente e <strong>de</strong> maior projeção, e que seu domínio se<br />

amplie cada vez mais.<br />

Paulo aqui usa o termo espíritos 20 [ou espirituais] metonimicamente,<br />

querendo indicar “os dons espirituais”, no mesmo sentido <strong>de</strong><br />

Espírito <strong>de</strong> doutrina, ou <strong>de</strong> entendimento, ou <strong>de</strong> juízo, querendo <strong>de</strong>notar<br />

doutrina, ou entendimento, ou juízo espiritual. Todavia, <strong>de</strong>vemos<br />

ter em mente o que ele ensinou antes, ou, seja, que é “um só e o<br />

mesmo Espírito que distribui diferentes dons, a indivíduos, segundo<br />

lhe apraz” [12.11].<br />

13. Por isso, o que fala em outra língua. Ele aqui está respon<strong>de</strong>ndo,<br />

à guisa <strong>de</strong> antecipação, a uma pergunta que facilmente po<strong>de</strong>ria<br />

ser-lhe formulada, ou, seja: “Portanto, se alguém for capaz <strong>de</strong> falar um<br />

idioma estrangeiro, seu dom será sem valor? E por que seria mantido<br />

em segredo, se po<strong>de</strong> ser trazido à luz para a glória <strong>de</strong> Deus?” Ele apresenta<br />

o remédio: “Então”, diz ele, “que se peça também a Deus o dom<br />

<strong>de</strong> interpretação. E se ele não o possuir, que se abstenha, no intervalo,<br />

da ostentação.” 21<br />

20 “Les dons spirituels, il y a mot à mot, les esprits.” – “dons espirituais, literalmente falando,<br />

é espíritos.”<br />

21 “De parler à ostentation.” – “De falar por amor à ostentação.”


484 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

14. Porque, se eu orar em outra língua. 22 Ainda que isso também<br />

sirva como um exemplo a<strong>de</strong>quado para confirmar o que ele tem<br />

realçado até este ponto, acredito, contudo, que este é um novo tema.<br />

Pois é bem provável que os coríntios estivessem igualmente equivocados<br />

neste aspecto, a saber: assim como formaram o hábito <strong>de</strong> falar<br />

fazendo uso <strong>de</strong> línguas estrangeiras, assim também faziam uso <strong>de</strong>las<br />

na oração. Não obstante, ambos os abusos provinham da mesma fonte,<br />

pois pertenciam a uma e a mesma classe.<br />

O significado <strong>de</strong> orar numa língua 23 salta à vista à luz dos versículos<br />

prece<strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong>ste mesmo capítulo, ou, seja, articular uma<br />

oração numa língua estrangeira. Em contrapartida, não é tão fácil explicar<br />

o que significa espírito, aqui. A referência que Ambrósio faz ao<br />

Espírito que recebemos no batismo não possui nenhum fundamento,<br />

nem qualquer semelhança <strong>de</strong>le. Agostinho, muito mais sutilmente, o<br />

consi<strong>de</strong>ra como sendo aquela apreensão que concebe idéias e sinais<br />

inferiores à percepção mental. Há mais plausibilida<strong>de</strong> na opinião dos<br />

que o enten<strong>de</strong>m como sendo a respiração da garganta – em termos<br />

mais acessíveis, o fôlego. No entanto, a forma como o apóstolo usa<br />

constantemente o termo nesta discussão está em conflito com esta<br />

22 “O que significa”, diz Witsius (em seu ‘Da Sacred Dissertation’), “orar com a língua? com o<br />

espírito? com a mente? (1Co 14.14, 15). Aqui língua significa um idioma <strong>de</strong>sconhecido para<br />

outros e empregado por alguém que é dotado com um dom supernatural do Espírito Santo.<br />

Orar com a língua significa orar num idioma <strong>de</strong>sconhecido <strong>de</strong> ourtras pessoas; como,<br />

por exemplo, orar no idioma hebreu na presença <strong>de</strong> gregos. Nesse sentido, ele disse [v.<br />

2]: ‘Aquele que fala com a língua, fala não a homens, mas a Deus; porque ninguém o enten<strong>de</strong>’,<br />

isto é, aquele que fala num idioma estrangeiro, cujo conhecimento ele adquiriu por<br />

meio <strong>de</strong> um dom extraordinário do Espírito, só tem a Deus por testemunha. Ele não po<strong>de</strong><br />

consi<strong>de</strong>rar como suas testemunhas, ou como pessoas cônscias do que ele está fazendo,<br />

os que são ignorantes do idioma e para cuja edificação pouco ou em nada contribuiu. O<br />

espírito significa, aqui, aquele dom extraordinário por meio do qual o homem é levado a<br />

agir <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada maneira, assistido por emoções quase estáticas, <strong>de</strong> modo que<br />

às vezes ele não está consciente do que diz, nem leva outros a enten<strong>de</strong>rem o que quer dizer.<br />

Orar com o Espírito significa orar <strong>de</strong> tal maneira que revele que você sente a presença<br />

<strong>de</strong> um dom extraordinário do Espírito, o qual o move e o agiliza, <strong>de</strong> uma forma po<strong>de</strong>rosa,<br />

a fazer coisas que <strong>de</strong>sperta espanto.<br />

23 “Que c’est que prier <strong>de</strong> langue, (car il y a ainsi mot à mot, là où nous traduisons Prier en<br />

langage incognu).” – “O que significa orar numa língua, pois esse é o significado literal,<br />

on<strong>de</strong> o traduzimos orar numa língua <strong>de</strong>sconhecida.”


Capítulo 14 • 485<br />

interpretação. Mais que isto, na verda<strong>de</strong> o termo parece ter sido repetido<br />

com muita freqüência à guisa <strong>de</strong> concessão. Pois os coríntios se<br />

orgulhavam daquela condição louvável que o apóstolo permitiu que<br />

tivessem; ele, porém, por outro lado, põe em relevo quão arriscado<br />

seria fazer mau uso 24 <strong>de</strong> algo bom e excelente. É como se dissesse:<br />

“Vós vos vangloriais, a mim, <strong>de</strong>sse vosso espírito, mas, a troco <strong>de</strong> quê,<br />

se ele não passa <strong>de</strong> algo sem valor?” Esta é a razão por que sou levado<br />

a concordar com o raciocínio <strong>de</strong> Crisóstomo sobre esta palavra, pois<br />

ele lhe aplica o mesmo significado que ela vem tendo, a saber: um dom<br />

espiritual. Assim, meu espírito significará exatamente “o dom a mim<br />

conferido”. 25<br />

Aqui, porém, surge uma nova questão, pois é incrível (pelo menos<br />

nunca lemos <strong>de</strong> algum caso) que houvesse alguém que falasse,<br />

pela influência do Espírito, uma língua que ele mesmo <strong>de</strong>sconhecia.<br />

Porquanto o dom <strong>de</strong> línguas não foi concedido meramente com o propósito<br />

<strong>de</strong> produzir algum ruído, mas certamente com o propósito <strong>de</strong><br />

comunicar algo. Pois quão risível teria sido que a língua <strong>de</strong> um romano<br />

fosse dirigida pelo Espírito <strong>de</strong> Deus a pronunciar palavras gregas,<br />

quando ele mesmo não tinha qualquer conhecimento <strong>de</strong> grego. Ele se<br />

assemelharia a papagaios, os quais po<strong>de</strong>m ser treinados pelo ser humano<br />

a emitir sons humanos! Mas se alguém era dotado com o dom<br />

<strong>de</strong> línguas e falava <strong>de</strong> forma simples e inteligível, então teria sido estranho<br />

que Paulo falasse <strong>de</strong> “o espírito ora, porém o entendimento fica<br />

infrutífero”, pois o entendimento <strong>de</strong>ve agir em sintonia com o espírito.<br />

Minha resposta a esta questão é a seguinte: à guisa <strong>de</strong> ilustração,<br />

o apóstolo está levando em conta uma situação pura e simplesmente<br />

hipotética, ou, seja: “Se o dom <strong>de</strong> línguas for algo discrepante do entendimento,<br />

<strong>de</strong> modo que quem fala é bárbaro para si mesmo, tanto<br />

quanto para outros, que bem estaria ele fazendo ao balbuciar <strong>de</strong>ssa<br />

24 “Quel danger il y a, quand on abuse.” – “Que risco há, quando alguém abusa.”<br />

25 “O que o apóstolo tem em mente por τὸ πνευ̑μα μου (meu espírito) não é nem o Espírito<br />

Santo agilizando-o a falar, nem algum dote espiritual com que ele foi dotado; mas, como a<br />

frase significa em outras passagens em que ela ocorre [Rm 1.9; 1Co 5.3; 2Tm 4.22; Fm 25],<br />

sua própria mente, com que ele se engajara no serviço.


486 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

forma?” Pois não é lógico que aqui se diga que a mente seja infrutífera<br />

[ἄκαρπον], com base no fato <strong>de</strong> que a Igreja não recebe daí nenhum<br />

benefício, já que aqui o apóstolo está falando <strong>de</strong> orações privativas<br />

e individuais. Portanto, tenhamos em mente que as coisas que são<br />

mutuamente conectadas, aqui são dissociadas à guisa <strong>de</strong> ilustração, e<br />

não porque é possível, ou geralmente suce<strong>de</strong> ser assim. Então o significado<br />

se torna óbvio: “Portanto, se formulo orações numa língua que<br />

não é conhecida, e o espírito me supre com palavras, é evi<strong>de</strong>nte que<br />

o próprio espírito, que regula minha língua, nesse caso orará, minha<br />

mente, porém, ou estará vagando sem rumo, ou, ao menos, não tomará<br />

parte alguma na oração.”<br />

É indispensável notarmos bem que o apóstolo consi<strong>de</strong>ra um gran<strong>de</strong><br />

erro se a mente não toma parte na oração. E não há que estranhar,<br />

pois o que mais fazemos em oração senão <strong>de</strong>rramar nossos pensamentos<br />

e <strong>de</strong>sejos diante <strong>de</strong> Deus? Além disso, diante do fato <strong>de</strong> a oração<br />

espiritual ser um meio <strong>de</strong> adorar a Deus, o que po<strong>de</strong>ria estar mais em<br />

<strong>de</strong>sarmonia com sua própria natureza do que vir ela estar presente<br />

só nos lábios, e não no mais íntimo recesso da alma? E essas coisas<br />

seriam perfeitamente familiarizadas a toda mente, não fosse o diabo<br />

privar o mundo <strong>de</strong> uma maneira tão extrema, ao ponto <strong>de</strong> convencer<br />

os homens <strong>de</strong> que oram corretamente, quando meramente movem<br />

seus lábios!<br />

E a obstinação dos papistas os leva a tal <strong>de</strong>mência, que não só<br />

apresentam justificativas para formularem suas orações sem a participação<br />

da mente, mas também preferem o ignorante aglomerado e<br />

murmúrio <strong>de</strong> palavras vazias <strong>de</strong> todo e qualquer significado. 26 Ao mesmo<br />

tempo, motejam <strong>de</strong> Deus com um mordaz exemplo <strong>de</strong> sofisma, 27<br />

dizendo que “a intenção final” é o que conta. Que se me permita ilustrar<br />

isso. Suponhamos que um espanhol amaldiçoe a Deus em alemão,<br />

26 “Mais qui plus est, aiment mieux que les idiots et ignorans barbotent <strong>de</strong>s pationestres en<br />

langage qui leur est incorgnu.” – “Mas, pior ainda, não passando <strong>de</strong> pessoas incultas e<br />

ignorantes, murmuram o Pai Nosso em uma linguagem que eles não compreen<strong>de</strong>m.”<br />

27 “Ils ont vne solution bien aigue et peremptoire.” – “Apresentam uma solução muito perpicaz<br />

e peremptória.”


Capítulo 14 • 487<br />

ao encontrar-se em um estado <strong>de</strong> revolta mental em <strong>de</strong>corrência das<br />

muitas preocupações mundanas; em seguida, faz uso <strong>de</strong> uma oração<br />

formal, e insinua paz com Deus com um pensamento que logo se <strong>de</strong>svanece.<br />

28<br />

15. Orarei com o espírito. Para que ninguém viesse a indagar à<br />

guisa <strong>de</strong> objeção: “O espírito, pois, não será <strong>de</strong> nenhum préstimo na<br />

oração?”, o apóstolo ensina que se <strong>de</strong>ve orar com o espírito, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que a mente, ou, seja, o entendimento, esteja também em ativida<strong>de</strong>.<br />

Portanto, ele permite e aprova o uso do dom espiritual na oração; porém<br />

insiste em que a mente não fique inativa, e que sem dúvida este é<br />

o ponto principal. 29<br />

Ao dizer: “Cantarei salmos”, ou cantarei, ele está falando em termos<br />

específicos e não gerais. Porque, visto que os salmos continham<br />

como seu tema os louvores divinos, ele usa “cantar salmos” 30 (ψάλλειν)<br />

em vez <strong>de</strong> bendizer ou dar graças a Deus. Pois em nossas orações, ou<br />

pedimos algo a Deus ou reconhecemos as bênçãos divinas <strong>de</strong>rramadas<br />

sobre nós.<br />

Entretanto, <strong>de</strong>ste versículo também <strong>de</strong>duzimos que naquele tempo<br />

o costume <strong>de</strong> cantar já se achava em vigor entre os crentes. Este<br />

fato é também estabelecido por Plínio que, escrevendo nos últimos<br />

quarenta anos, ou, seja, logo após a morte do apóstolo, nos conta<br />

que os cristãos tinham o hábito <strong>de</strong> cantar hinos a Cristo antes do crepúsculo.<br />

31 E <strong>de</strong> fato acredito que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início adotaram o hábito da<br />

Igreja judaica <strong>de</strong> cantar Salmos.<br />

16. E se bendisseres com o espírito. Até aqui ele esteve mostrando<br />

que as orações <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong> nós será fútil e inútil, caso o<br />

entendimento não participar da voz. Ele agora avança mais e trata tam-<br />

28 “Vne pensee esuanouissante en l’air, qu’ils appellent Intention finale.” – “Um pensamento<br />

que se <strong>de</strong>svanece no ar, o que chamam <strong>de</strong> intenção final.”<br />

29 “Que ne soit point sans intelligence.” – “Para que não seja <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> entendimento.”<br />

30 A palavra original é ψαλω̑ – cantarei Salmos. É o mesmo verbo usado por Tiago [5.13],<br />

εὐθυμε τίς; ψαλλέτω. – Está alguém alegre, então cante Salmos.<br />

31 Carta <strong>de</strong> Plínio mencionada por Calvino (escrita em 107 d.C.) é apresentada em plena<br />

extensão (como traduzida pelo Dr. Lardner) na Introdução <strong>de</strong> Horne, vol. i. pp. 205, 206.


488 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

bém das orações públicas. Se aquele que compõe e recita as orações<br />

em lugar do povo não for entendido pela assembléia, como o povo<br />

comum po<strong>de</strong>rá participar <strong>de</strong>las <strong>de</strong> maneira proveitosa e será capaz <strong>de</strong><br />

perceber no final que a oração inclui o que eles mesmos gostariam <strong>de</strong><br />

pedir? Porquanto o povo não estará tomando parte na oração a menos<br />

que todos estejam unidos <strong>de</strong> mente nos mesmos <strong>de</strong>sejos. A mesma<br />

observação se aplica à bênção, ou ações <strong>de</strong> graças a Deus.<br />

Não obstante, a expressão <strong>de</strong> Paulo revela 32 que um dos ministros<br />

repetia ou oferecia as orações em voz audível, e que toda a congregação<br />

seguia mentalmente o que o dirigente falava, até que chegasse ao<br />

término, quando todos eles – o que é correto – diziam amém, a fim <strong>de</strong><br />

notificar publicamente que as orações, feitas por um, eram <strong>de</strong> fato <strong>de</strong><br />

todos eles. 33 Sabe-se que a palavra hebraica para amém se <strong>de</strong>riva do<br />

mesmo termo do qual nos veio a palavra fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ou veracida<strong>de</strong>. 34<br />

Portanto, ela indica a confirmação 35 não só daquilo que afirmamos na<br />

oração, mas também do que pedimos nela. 36 Além do mais, visto que<br />

os ju<strong>de</strong>us foram se familiarizando com a palavra através <strong>de</strong> uso prolongado,<br />

o resultado foi que ela passou <strong>de</strong>les [ju<strong>de</strong>us] para os gentios,<br />

e os gregos a usavam como se fosse parte <strong>de</strong> sua própria língua. Portanto,<br />

o termo tornou-se comum entre todas as nações. Paulo agora<br />

diz: “Se empregar<strong>de</strong>s na oração pública uma linguagem <strong>de</strong>sconhecida,<br />

que não seja entendida pelas pessoas incultas, em cuja presença estiver<strong>de</strong>s<br />

falando, ninguém participará <strong>de</strong> vossa oração, e vossa oração,<br />

32 “Signifie et presuppose.” – “Insinua e pressupõe.”<br />

33 Amém, ou Assim seja, era, entre os ju<strong>de</strong>us, usado pela congregação no final <strong>de</strong> uma<br />

oração ou bênção, para <strong>de</strong>notar seu assentimento ou apropriação do que uma pessoa<br />

pronunciara. Muitos exemplos <strong>de</strong>ssa prática ocorrem no Velho Testamento. Da sinagoga<br />

judaica este costume no culto, entre muitos outros, passou para a Igreja Cristã, na qual é<br />

ainda retido.<br />

34 A palavra a que Calvino se refere é ma (Amém), verda<strong>de</strong>. O termo ocorre em Isaías 65.16,<br />

ma yjla (Elohe Amen), o Deus da verda<strong>de</strong>.<br />

35 “Confirmation et approbation.” – “Confirmação e aprovação.”<br />

36 “Amém”, diz Witsius, em seu Dissertation on the Lord’s Prayer, “é uma partícula judaica<br />

que expressa tanto afeição forte quanto <strong>de</strong>sejo ar<strong>de</strong>nte. Lutero, com seu costumeiro estilo<br />

vívido, escreveu a Melancthon nos seguintes termos: ‘Eu oro por você, tenho orado<br />

e orarei, e não tenho dúvida <strong>de</strong> que serei ouvido, pois tenho o amém em meu coração’.”<br />

– Biblical Cabinet, vol. xxiv. p. 382.


Capítulo 14 • 489<br />

ou vossa bênção, não mais será pública.” “Por quê?” “Ninguém”, diz<br />

o apóstolo, “po<strong>de</strong>rá adicionar seu amém à oração ou salmo, a menos<br />

que todos a entendam.”<br />

Mas a mesma coisa que o apóstolo rejeita como fora <strong>de</strong> propósito,<br />

os papistas a consi<strong>de</strong>ram como uma prática sagrada e legítima. Tal<br />

atitu<strong>de</strong> só serve para revelar sua espantosa impudência. Mais profundo<br />

ainda, realmente este é um clássico exemplo que nos faz divisar a<br />

maneira como Satanás tem tido carta branca para incrementar os dogmas<br />

papais. 37 Pois, o que existe <strong>de</strong> mais evi<strong>de</strong>nte do que estas palavras<br />

do apóstolo, a saber: que uma pessoa inculta não po<strong>de</strong> tomar parte na<br />

oração pública, a menos que entenda o que se diz nela? O que é mais<br />

evi<strong>de</strong>nte do que esta proibição, a saber: “As ações <strong>de</strong> graças, ou as orações,<br />

não <strong>de</strong>vem ser repetidas em público exceto na língua que todos<br />

enten<strong>de</strong>m, a língua nativa”? Quando todos os dias fazem o que o apóstolo<br />

disse que não se fizesse, ou ainda que não po<strong>de</strong> ser feito, não estão,<br />

porventura, tratando o apóstolo como se fosse uma pessoa inculta?<br />

Quando não revelam nenhum escrúpulo em observar o que Deus proíbe,<br />

não estão lançando a Deus um franco <strong>de</strong>safio? Assim vemos como<br />

Satanás se diverte entre eles impunemente. Mas sua diabólica obstinação<br />

é <strong>de</strong>nunciada pelo fato <strong>de</strong> que, ainda <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> serem advertidos,<br />

até hoje não se mostraram arrependidos; ao contrário, ainda <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m<br />

uma corrupção grave como esta, com fogo e espada.<br />

18. Dou graças a Deus porque falo em<br />

línguas mais do que todos vós.<br />

19. Contudo, prefiro falar na igreja cinco<br />

palavras com meu entendimento,<br />

para que, por meio <strong>de</strong> minha voz, eu<br />

possa instruir os outros também, a<br />

falar <strong>de</strong>z mil palavras numa língua<br />

<strong>de</strong>sconhecida.<br />

18. Gratias ago Deo meo, quod magis<br />

quam vos omnes linguis loquor:<br />

19. Sed in Ecclesia volo quinque verba<br />

mente mea loqui, ut et alios instituam,<br />

potius quam <strong>de</strong>cem millia<br />

verborum, lingua.<br />

37 “Par lequel nous voyons comment Satan a tenu ses rangs, et dominé en la Papaute furieusement,<br />

et d’une license merueilleusement <strong>de</strong>sbor<strong>de</strong>e.” – “Do que vemos como Satanás<br />

tem mantido seu lugar e com fúria tem governado no papado, e com liberda<strong>de</strong> espantosamente<br />

temerária.”


490 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

20. Irmãos, não sejais crianças no juízo;<br />

na malícia, sim, se<strong>de</strong> criancinhas;<br />

quanto ao juízo, se<strong>de</strong> homens.<br />

21. Na lei está escrito: Falarei a este<br />

povo por meio <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> outras<br />

línguas e por lábios <strong>de</strong> estrangeiros;<br />

e nem assim me ouvirão, diz o Senhor<br />

[Is 28.11, 12].<br />

22. De sorte que as línguas constituem<br />

um sinal, não para os que crêem,<br />

mas para os incrédulos. A profecia,<br />

porém, constitui um sinal, não para<br />

os incrédulos, e, sim, para os que<br />

crêem.<br />

23. Se, pois, toda a igreja se reunir num<br />

lugar, e todos se puserem a falar<br />

em línguas, no caso <strong>de</strong> entrarem<br />

indoutos ou incrédulos, não dirão,<br />

porventura, que estais loucos?<br />

24. Mas se todos se puserem a profetizar,<br />

e ali entrar algum incrédulo ou<br />

indouto, ele é por todos convencido,<br />

e por todos julgado.<br />

25. E assim os segredos <strong>de</strong> seu coração<br />

se farão manifestos; e assim, prostrando-se<br />

sobre seu rosto, adorará<br />

a Deus, <strong>de</strong>clarando que Deus <strong>de</strong> fato<br />

está entre vós.<br />

20. Fratres, ne sitis pueri sensibus, sed<br />

malitia pueri sitis: sensibus vero sitis<br />

perfecti.<br />

21. In lege scriptum est: (Ies. xxviii.11,<br />

12:) Alienis linguis et labiis alienis<br />

loquar populo huic: et ne sic qui<strong>de</strong>m<br />

audient me, dicit Dominus.<br />

22. Itaque linguæ signi vice sunt, non<br />

iis qui credunt, sed incredulis: contra<br />

prophetia non incredulis, sed<br />

cre<strong>de</strong>ntibus.<br />

23. Ergo si convenerit Ecclesia tota<br />

simul, et omnes linguis loquantur,<br />

ingrediantur autem indocti aut increduli,<br />

nonne dicent vos insanire?<br />

24. Quodsi omnes prophetent, ingrediatur<br />

autem incredulus aut<br />

indoctus, coarguitur ab omnibus,<br />

diiudicatur ab omnibus,<br />

25. Et sic occulta cordis eius manifesta<br />

fiunt; atque ita proci<strong>de</strong>ns in faciem,<br />

adorabit Deum, renuntians, quod<br />

Deus revera in vobis sit.<br />

18. Dou graças a Deus. Como há muitos que <strong>de</strong>preciam as habilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> outros, simplesmente porque eles mesmos não po<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong>stacar-se sobre os <strong>de</strong>mais, Paulo não quer <strong>de</strong>ixar a impressão <strong>de</strong><br />

que está aviltando o dom <strong>de</strong> línguas pelo prisma da maledicência<br />

ou ciúme, e por isso antecipa uma atitu<strong>de</strong> suspeita <strong>de</strong>sse gênero,<br />

afirmando que ele mesmo se sobressai a todos. Diz ele: “Deveis compreen<strong>de</strong>r<br />

que o que vos estou dizendo não <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado<br />

motivo <strong>de</strong> suspeita, como se eu estivesse <strong>de</strong>negrindo algo <strong>de</strong> que<br />

pessoalmente sou carente, pois se fôssemos fazer uma competição


Capítulo 14 • 491<br />

sobre as línguas, nenhum <strong>de</strong> vós seria capaz <strong>de</strong> me superar. Mas embora<br />

eu pu<strong>de</strong>sse fazer uma boa <strong>de</strong>monstração nesta esfera da vida,<br />

minha preocupação primordial é com a edificação.” A doutrina <strong>de</strong><br />

Paulo não <strong>de</strong>riva pouco valor da circunstância, ou, seja, que ele não<br />

focaliza a si próprio. Mas, para que não ficasse a impressão <strong>de</strong> ser<br />

insolente <strong>de</strong>mais, ao ponto <strong>de</strong> colocar-se na dianteira dos outros,<br />

ele atribui tudo a Deus e a seu dom. Assim ele tempera sua auto-<br />

-apreciação com a modéstia.<br />

19. Prefiro falar cinco palavras. Isso é expresso hiperbolicamente,<br />

a menos que consi<strong>de</strong>remos “cinco palavras” no sentido <strong>de</strong><br />

cinco orações gramaticais. Visto, porém, que o apóstolo, caso o<br />

<strong>de</strong>sejasse, podia ter falado em línguas e feito uma <strong>de</strong>slumbrante<br />

<strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> sua própria pessoa, voluntariamente se refreia,<br />

e calmamente faz da edificação seu único alvo, e assim francamente<br />

<strong>de</strong>smascara a cínica ambição daqueles que são por <strong>de</strong>mais<br />

ávidos por atrair sobre si a atenção [dos outros] através <strong>de</strong> meros<br />

sons confusos [1Co 13.1]. Ao mesmo tempo, a autorida<strong>de</strong> do apóstolo<br />

<strong>de</strong>ve exercer não pouca influência em dissuadi-los <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sse gênero.<br />

20. Irmãos, não sejais crianças no entendimento. Agora ele dá<br />

mais um passo, pois mostra que os coríntios são tão enfatuados que,<br />

<strong>de</strong> sua própria iniciativa, atraem sobre si, e <strong>de</strong>sejam ar<strong>de</strong>ntemente,<br />

como se fosse um benefício singular, o que o Senhor ameaça enviar-<br />

-lhes, quando <strong>de</strong>seja aplicar a seu povo o mais severo castigo. Que<br />

terrível <strong>de</strong>mência é esta: perseguir avidamente, <strong>de</strong> todo o coração, o<br />

que, aos olhos <strong>de</strong> Deus, é tido como maldição!<br />

Não obstante, para que se entenda mais acuradamente a intenção<br />

<strong>de</strong> Paulo, <strong>de</strong>vemos observar que esta frase <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do testemunho<br />

<strong>de</strong> Isaías [28.11], o qual ele acrescenta imediatamente a seguir. Visto,<br />

porém, que os intérpretes têm se equivocado, não percebendo tal conexão,<br />

e para superar todos os pontos <strong>de</strong> vista errôneos, antes <strong>de</strong> tudo<br />

faremos uma explanação da passagem <strong>de</strong> Isaías, e então estaremos<br />

aptos a analisar as palavras <strong>de</strong> Paulo.


492 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Naquele capítulo, o profeta <strong>de</strong>sfere um fulminante ataque<br />

contra as <strong>de</strong>z tribos, as quais se haviam entregue a toda sorte <strong>de</strong><br />

práticas perversas. A única consolação é que Deus ainda tinha,<br />

<strong>de</strong>ntro da tribo <strong>de</strong> Judá, um povo que não se corrompera, porém<br />

logo ele estaria <strong>de</strong>clarando sua corrupção também, e da forma a<br />

mais amarga, porque não havia esperança para sua recuperação.<br />

Pois ele fala em nome <strong>de</strong> Deus, dizendo: “A quem ensinarei o conhecimento?<br />

Acaso aos <strong>de</strong>smamados, e aos que foram afastados<br />

dos seios maternos?” O que ele preten<strong>de</strong> transmitir é que o povo<br />

não seria capaz <strong>de</strong> ser instruído mais do que as crianças recém-<br />

-<strong>de</strong>smamadas.<br />

Então, prossegue: “Preceito sobre preceito, instrução sobre instrução,<br />

mandamento sobre mandamento, regra sobre regra, um pouco<br />

aqui, um pouco ali.” Nestas palavras que ele expressa, utilizando-se da<br />

mímica, 38 o profeta põe em relevo a frouxidão e estupi<strong>de</strong>z a que o povo<br />

se recuara. “Ao instruí-los, perco meu tempo, pois não fazem nenhum<br />

progresso, porque são excessiva e incuravelmente ignorantes, e o que<br />

lhes foi ensinado durante um longo período, com incansável labor, esqueceram<br />

num piscar <strong>de</strong> olhos.”<br />

Acrescenta-se ainda mais: “Aquele que fala a esse povo é como<br />

alguém que faz uso <strong>de</strong> lábios gaguejantes e <strong>de</strong> uma língua estrangeira.”<br />

Esta é a passagem que o apóstolo ora cita. Ora, o significado 39<br />

consiste em que o povo se achava dominado por uma cegueira tal, e<br />

por insensatez <strong>de</strong> tal proporção que, quando Deus lhes fala, eles não<br />

o enten<strong>de</strong>m mais do que se fossem bárbaros ou estrangeiros, e Deus<br />

estivesse emitindo sons ininteligíveis <strong>de</strong> um idioma <strong>de</strong>sconhecido; e<br />

esta é uma terrível maldição. O apóstolo, porém, não citou as palavras<br />

do profeta com exatidão, visto que lhe era suficiente realçar o teor do<br />

versículo para que os coríntios o mantivessem na memória e o pu<strong>de</strong>ssem<br />

consi<strong>de</strong>rar mais atentamente.<br />

38 Mimetice. Nosso autor, aqui, evi<strong>de</strong>ntemente tem diante <strong>de</strong> seus olhos o advérbio grego<br />

μιμητικω̑ς – imitativamente.<br />

39 Or le Prophete signifie.” – “Ora, o profeta quer dizer.”


Capítulo 14 • 493<br />

Quanto a sua expressão, “está escrito na lei”, 40 isto <strong>de</strong> forma alguma<br />

é inconsistente com o modo usual <strong>de</strong> se expressar. Porque os<br />

profetas não tinham um ministério <strong>de</strong>sconectado com a lei, senão que<br />

eram <strong>de</strong> fato e na verda<strong>de</strong> os intérpretes da lei, e todo seu ensino é,<br />

por assim dizer, um suplemento da lei. Isto significa que a lei cobre<br />

todo o conteúdo da Escritura em vigência até o evento <strong>de</strong> Cristo.<br />

Ora, o apóstolo extrai a seguinte conclusão <strong>de</strong>ste versículo:<br />

“Irmãos, ten<strong>de</strong> cuidado para que não vos assemelheis a crianças, situação<br />

esta que o profeta con<strong>de</strong>na com tanta veemência, pois significa<br />

que a voz <strong>de</strong> Deus ressoa em vossos ouvidos sem qualquer resultado.<br />

Ora, quando rejeitais a profecia que ressoa em vossos ouvidos, e preferis<br />

emu<strong>de</strong>cer-vos com espanto ante aquilo que nada mais é do que<br />

ruídos sem sentido, porventura não significa que voluntariamente vos<br />

incorreis na maldição divina?” 41<br />

Além do mais, neste caso os coríntios po<strong>de</strong>riam protestar, dizendo<br />

que em outras partes é consi<strong>de</strong>rado como algo louvável ser<br />

crianças espiritualmente [Mt 18.4]; então Paulo os antecipa, e <strong>de</strong> fato<br />

insta a que não sejam “crianças em seu entendimento”. Deste fato<br />

po<strong>de</strong>mos inferir o seguinte: quão insolentes são aqueles que fazem a<br />

simplicida<strong>de</strong> dos cristãos consistir em ignorância. O apóstolo anseia<br />

pelo dia em que todos os cristãos sejam, tanto quanto possível, maduros<br />

em seu entendimento. Visto que é mais fácil guiar asnos do que<br />

40 “Está escrito na lei.” Na lei, isto é, na Escritura em oposição às palavras dos escribas. Pois<br />

esta distinção era muito comum nas escolas. Isto apren<strong>de</strong>mos da lei, e isto das palavras<br />

dos escribas. As palavras da lei (isto é, da Escritura) não carecem <strong>de</strong> confirmação, mas<br />

as palavras dos escribas carecem <strong>de</strong> confirmação. Os Profetas anteriores, e os Profetas<br />

posteriores, bem como os Hagiografa, são intitulados a lei.”<br />

41 Hen<strong>de</strong>rson, sobre Isaías, ao comentar esta passagem citada pelo apóstolo [Is 28.9-11], observa<br />

que ela “contém a linguagem sarcástica dos sacerdotes e juízes ébrios dos ju<strong>de</strong>us,<br />

os quais repeliam com escárnio a idéia <strong>de</strong> que <strong>de</strong>veriam requerer as claras e reiteradas<br />

lições que Jeová ensinava através <strong>de</strong> seus mensageiros. Essa instrução elementar só era<br />

a<strong>de</strong>quada (em seu conceito) “para os recém-nascidos. Constituía-se num insulto a seu entendimento<br />

presumir que ainda necessitavam <strong>de</strong>la. A linguagem do versículo 10 [preceito<br />

e mais preceito etc.] se assemelha mais à <strong>de</strong> pessoas embriagadas do que a usada por<br />

pessoas em estado sóbrio. As palavras são obviamente selecionadas para a<strong>de</strong>quar-se ao<br />

caráter daqueles que supostamente as empregavam.”


494 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

homens, o papa, pretextando simplicida<strong>de</strong>, orienta a todo seu povo a<br />

permanecer na ignorância. 42 Em razão disto, <strong>de</strong>vemos fazer comparação<br />

entre o que está sob a direção do papa e o que Cristo instituiu, e<br />

vejamos até on<strong>de</strong> concordam. 43<br />

22. De sorte que as línguas constituem um sinal. Este versículo<br />

po<strong>de</strong> ser explicado <strong>de</strong> duas maneiras, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo se “<strong>de</strong> sorte que”<br />

for consi<strong>de</strong>rado como uma referência só à oração prece<strong>de</strong>nte, ou, <strong>de</strong><br />

maneira geral, a toda a discussão que antece<strong>de</strong>. Se for uma conexão<br />

particular com a frase anterior, o significado será: “Vós, irmãos, <strong>de</strong>veis<br />

compreen<strong>de</strong>r que aquilo que tanto almejais não é um benefício<br />

que Deus conce<strong>de</strong> aos crentes, e, sim, um castigo pelo qual ele toma<br />

vingança contra os incrédulos.” Quando é entendido <strong>de</strong>sta forma,<br />

o apóstolo não estaria levando em conta o uso permanente das línguas,<br />

mas, sim, estaria se referindo somente à real situação que se<br />

precipitou. Entretanto, se alguém <strong>de</strong>seja esten<strong>de</strong>r-se e incluir toda a<br />

discussão, não questionarei com ele, embora esteja plenamente satisfeito<br />

com a explicação que já apresentei.<br />

Se o tomarmos <strong>de</strong> maneira geral, o significado será: “As línguas,<br />

quanto a serem dadas como sinal, ou, seja, como milagre, são <strong>de</strong>stinadas<br />

aos incrédulos, não aos crentes.” As línguas foram úteis em muitos<br />

aspectos. Aten<strong>de</strong>ram às necessida<strong>de</strong>s da real situação, <strong>de</strong> modo que a<br />

diferença <strong>de</strong> idiomas não impedisse os apóstolos <strong>de</strong> divulgarem o evangelho<br />

por todo o mundo; e não houve, pois, nenhuma nação em que<br />

não o comunicassem. As línguas foram igualmente úteis para mover ou<br />

assustar os incrédulos, confrontando-os com o miraculoso. Pois este<br />

milagre, bem como os <strong>de</strong>mais, almejava preparar aqueles que ainda<br />

eram estranhos a Cristo, para que viessem a obe<strong>de</strong>cê-lo. Os crentes, que<br />

42 “En ignorance et bestise.” – “Em ignorância e estupi<strong>de</strong>z.”<br />

43 Calvino faz uma observação semelhante quando comenta Efésios 4.14: “Nam postquam<br />

Christo nati sumus, <strong>de</strong>bemus adolescere, ita ut non simus intelligentia pueri. Hinc<br />

apparet, qualis sub Papatu sit Chrstianismus, ubi, quam diligentissime possunt, in hoc<br />

laborant pastores, uto prebem to prima infantia <strong>de</strong>tineant.” – “Pois <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Cristo haver<br />

nascido, <strong>de</strong>vemos crescer e não permanecer crianças no entendimento [1Co 14.20].<br />

Daí suce<strong>de</strong>r que sorte <strong>de</strong> cristianismo há em conexão com o papado, no qual os pastores<br />

trabalham tão exaustivamente quanto po<strong>de</strong>m para conservar as pessoas na infância.”


Capítulo 14 • 495<br />

já haviam se <strong>de</strong>votado à doutrina <strong>de</strong> Cristo, não necessitavam <strong>de</strong> preparação<br />

na mesma proporção. Portanto, os coríntios estavam errando<br />

o alvo em dar in<strong>de</strong>vida ênfase a esse dom, enquanto punham a profecia<br />

<strong>de</strong> lado e a negligenciavam. A profecia, naturalmente, era <strong>de</strong>stinada<br />

especial e particularmente aos crentes, e por esta razão <strong>de</strong>viam estar<br />

familiarizados com ela; pois, no que respeitava às línguas, tudo o que<br />

interessava aos coríntios era seu elemento miraculoso.<br />

23. Se, pois, toda a igreja se reunir num lugar. Os coríntios não<br />

tinham consciência <strong>de</strong> seu próprio erro, porque suas mentes estavam<br />

completamente dominadas por um <strong>de</strong>sejo tolo e equivocado. O apóstolo,<br />

pois, os adverte, dizendo que estariam se expondo ao ridículo<br />

perante os incrédulos ou aos mal informados, ao entrarem estes em<br />

suas reuniões, e ao ouvirem a emissão <strong>de</strong> sons confusos, porém não<br />

uma expressão inteligível. Pois alguém, sendo completamente ignorante<br />

<strong>de</strong> tudo isso, não pensará que tais pessoas são loucas, as quais<br />

emitem ruídos sem sentido em lugar <strong>de</strong> conversação normal, gastando<br />

seu tempo com pias futilida<strong>de</strong>s, quando presumia que a<strong>de</strong>ntraria uma<br />

reunião para ouvir o ensino <strong>de</strong> Deus? Há muita ferroada nesta frase:<br />

“Estais <strong>de</strong>masiadamente satisfeitos convosco mesmos, em vossos próprios<br />

corações; os incrédulos e os <strong>de</strong>senformados, porém, estão rindo<br />

<strong>de</strong> vossa estupi<strong>de</strong>z. Significa que não estais cônscios <strong>de</strong> algo que é perfeitamente<br />

óbvio para os que não têm qualquer conhecimento acerca<br />

<strong>de</strong> tudo isso, e não crêem.”<br />

Crisóstomo suscita um problema aqui, a saber: “Se as línguas<br />

foram dadas como sinal aos incrédulos, por que o apóstolo está afirmando<br />

agora que essas mesmas pessoas escarnecerão das línguas?”<br />

Sua própria resposta é que, como sinal, seu propósito era encher<br />

os incrédulos <strong>de</strong> assombro, e não para que lhes fosse um meio <strong>de</strong><br />

instrução ou transformação. Não obstante, ele também adiciona que<br />

se <strong>de</strong>ve a sua própria pecaminosida<strong>de</strong> que interpretem o sinal como<br />

sendo loucura. Esta sua explicação não conta com minha aprovação.<br />

Admitido que um incrédulo ou ignorante se comova ante o milagre<br />

e se encha <strong>de</strong> medo <strong>de</strong>ste dom divino, não obstante tal fato não o


496 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

faz <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong> ridicularizar e <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nar o abuso <strong>de</strong>ste dom 44 e seu<br />

uso no tempo errado. Além do mais, ele pensará consigo mesmo:<br />

“O que essas pessoas preten<strong>de</strong>m, cansando a si mesmas e aos <strong>de</strong>mais<br />

sem qualquer propósito? A que leva o hábito <strong>de</strong> falar sem dizer<br />

nada?” Portanto, o que Paulo preten<strong>de</strong> é que os coríntios po<strong>de</strong>riam<br />

ficar muito satisfeitos em seu próprio íntimo, porém os incrédulos<br />

e ignorantes serão plenamente justificados em con<strong>de</strong>ná-los por seu<br />

comportamento insensato. 45<br />

24. Se todos, porém, se puserem a profetizar. Assim como previamente<br />

mostrara como a profecia é mais benéfica do que as línguas,<br />

aos que são da família da fé [Gl 6.10], agora ele ensina que ela é também<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valor para os <strong>de</strong> fora [1Co 5.13]. Este é o argumento<br />

mais po<strong>de</strong>roso para provar que os coríntios trilhavam a vereda do<br />

erro. Pois era extremamente perverso <strong>de</strong> sua parte dar pouca importância<br />

a um dom que gera imenso benefício aos que vivem fora da<br />

Igreja, tanto quanto aos que vivem <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seus próprios muros; em<br />

contrapartida, é prejudicial <strong>de</strong>ixar-se fascinar por outro dom que resulta<br />

inútil aos que pertencem à família da fé, bem como colocar uma<br />

pedra <strong>de</strong> tropeço no caminho daqueles que lhe são estranhos. Ele realça<br />

o efeito que a profecia produz, ou, seja: ela intima as consciências<br />

dos incrédulos a comparecerem perante o tribunal divino, e as satura<br />

<strong>de</strong> uma mui vívida apreensão do juízo divino, <strong>de</strong> modo que qualquer<br />

um que em sua indiferença costuma menosprezar a sã doutrina se vê<br />

constrangido a glorificar a Deus.<br />

Não obstante, este versículo nos será muito mais fácil à compreensão<br />

se o compararmos com outro, a saber, Hebreus 4.12: “Porque<br />

a palavra <strong>de</strong> Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer<br />

espada <strong>de</strong> dois gumes, e penetra até ao ponto <strong>de</strong> dividir alma e espírito,<br />

juntas e medulas, e apta para discernir os pensamentos e<br />

44 “Le sot abus <strong>de</strong> ce don, quand on le met en auant sans raison et consi<strong>de</strong>ration.” – “O tolo<br />

abuso <strong>de</strong>sse dom quando o exibem sem razão e consi<strong>de</strong>ração.”<br />

45 “En ceste façon <strong>de</strong> faire.” – “Dessa maneira <strong>de</strong> agir.”


Capítulo 14 • 497<br />

propósitos do coração.” 46 Pois em ambos os textos lemos que a Palavra<br />

<strong>de</strong> Deus possui o mesmo tipo <strong>de</strong> eficácia, porém, em Hebreus,<br />

a <strong>de</strong>scrição é muito mais completa e clara. No tocante ao versículo<br />

que se acha diante <strong>de</strong> nós, agora não resta a menor dificulda<strong>de</strong> em<br />

enten<strong>de</strong>r o que significa ser convencido e ser julgado. As consciências<br />

dos homens se encontram em estado <strong>de</strong> letargia, 47 e não se comovem<br />

com o senso <strong>de</strong> insatisfação em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> seus pecados, enquanto<br />

se <strong>de</strong>senvolvem nas trevas da ignorância. Em suma, a <strong>de</strong>scrença é<br />

como a sonolência que faz alguém impassível. Mas a Palavra <strong>de</strong> Deus<br />

penetra até os recessos mais íntimos da mente, e, ao jorrar facho <strong>de</strong><br />

luz, por assim dizer, dissipa as trevas e expulsa a mortífera letargia.<br />

Portanto, esta é a forma em que os incrédulos são reprovados, porque,<br />

assim que compreen<strong>de</strong>m que é a Deus que terão <strong>de</strong> enfrentar, ficam<br />

seriamente perturbados e <strong>de</strong>veras assustados e dominados <strong>de</strong> pavor.<br />

É assim que também são julgados, porque, enquanto viviam envoltos<br />

por trevas, enquanto não faziam a menor idéia do estado miserável e<br />

vergonhoso <strong>de</strong> suas vidas, agora são trazidos à luz e testificam contra<br />

si mesmos.<br />

Ao dizer Paulo que são julgados e convencidos por todos, é<br />

preciso entendê-lo como que falando por todos os que profetizam,<br />

pois ele dissera no início do versículo [v. 24]: se todos profetizar<strong>de</strong>s.<br />

Ele fez um uso intencional do termo todos a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>movê-los<br />

do menosprezo que sentiam pela profecia. 48 O incrédulo, digo eu,<br />

é convencido, não como se o profeta pronunciasse juízo sobre ele,<br />

quer silenciosamente em seu íntimo, ou publicamente com os lábios,<br />

mas porque, ao ouvir, a consciência do ouvinte apreen<strong>de</strong> da<br />

doutrina seu próprio julgamento. Ele é julgado porquanto <strong>de</strong>sce às<br />

profun<strong>de</strong>zas <strong>de</strong> seu próprio ego e, após examinar-se, chega a um autoconhecimento,<br />

embora previamente não nutrisse tal disposição.<br />

46 “Des pensees et intentions du cœur.” – “Dos pensamentos e intentos do coração.”<br />

47 “Elles sont comme endormies et estupi<strong>de</strong>s.” – “Estão, por assim dizer, entorpecidos e<br />

estúpidos.”<br />

48 “Afin <strong>de</strong> monstrer qu’il ne se faut point lasser <strong>de</strong> la prophetie.” – “A fim <strong>de</strong> mostrar que<br />

não <strong>de</strong>viam nutrir sentimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgosto pela profecia.”


498 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Há uma palavra <strong>de</strong> Cristo que contém a mesma idéia: “Quando ele<br />

[o Espírito] vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do<br />

juízo” [Jo 16.8]. Logo a seguir Paulo adiciona: “Os segredos <strong>de</strong> seu<br />

coração se farão manifestos.” Pois, em minha opinião, em qualquer<br />

caso, o apóstolo não quer dizer que se torna manifesto a outros que<br />

sorte <strong>de</strong> pessoa ele é, mas, sim, que sua consciência é <strong>de</strong>spertada<br />

para que ele perceba seus pecados, os quais lhe estiveram ocultos<br />

até então.<br />

Neste ponto, Crisóstomo formula novamente uma pergunta:<br />

como se po<strong>de</strong> dizer <strong>de</strong> forma consistente que a profecia é tão eficaz<br />

em influenciar os incrédulos, quando o apóstolo diz um pouco antes<br />

que ela não <strong>de</strong>veria ser-lhes ministrada? Segundo sua própria resposta,<br />

ela lhes é transmitida não como um sinal inútil, mas como um<br />

meio <strong>de</strong> instruí-los. Eu pessoalmente sinto que seria mais simples, e<br />

portanto mais a<strong>de</strong>quado, dizer que ela não é ministrada a incrédulos<br />

que estão perecendo, cujas mentes Satanás cegou para impedi-los <strong>de</strong><br />

contemplar nela a luz [2Co 4.3, 4]. E se a<strong>de</strong>quará ainda melhor se esta<br />

frase for associada à profecia <strong>de</strong> Isaías [28.11]; porque ali o profeta<br />

está falando dos incrédulos, em cujo caso a profecia é sem valor e<br />

improdutiva.<br />

25. Prostrando-se sobre seu rosto, adorará a Deus. Pois somente<br />

o conhecimento <strong>de</strong> Deus, e nada mais, é que po<strong>de</strong> reduzir o<br />

orgulho da carne. A profecia leva isso à concretização. Por sua própria<br />

natureza, ela é peculiarmente eficaz para <strong>de</strong>rrubar os homens <strong>de</strong><br />

seus pináculos e fazê-los prostrar-se em adoração a Deus. Todavia,<br />

mesmo a profecia é para muitos <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> valor; aliás, ao ouvi-la,<br />

se tornam piores ainda. Além do mais, ao atribuir este po<strong>de</strong>r à profecia,<br />

o apóstolo não pretendia atribuir-lhe tal efeito, como se fosse<br />

resultado <strong>de</strong>la. Seu intuito era simplesmente realçar que <strong>de</strong>la advém<br />

gran<strong>de</strong> benefício e qual a natureza <strong>de</strong> sua função. Portanto, é uma<br />

singular acomodação o fato <strong>de</strong> ela arrancar dos incrédulos esta confissão<br />

– que Deus está presente no meio <strong>de</strong> seu povo e sua majesta<strong>de</strong><br />

é refletida em sua reunião.


Capítulo 14 • 499<br />

26. Então, irmãos, o que fazer? Quando<br />

vos reunis, um tem salmo,<br />

outro doutrina; este tem revelação,<br />

aquele tem línguas, e ainda outro,<br />

interpretação. Seja tudo feito para<br />

edificação.<br />

27. No caso <strong>de</strong> alguém falar numa língua<br />

<strong>de</strong>sconhecida, que não seja<br />

mais do que dois, ou quando muito<br />

três, e isso sucessivamente, e haja<br />

quem interprete.<br />

28. Mas se não houver intérprete,<br />

guar<strong>de</strong> silêncio na igreja, e que fale<br />

consigo mesmo e com Deus.<br />

29. E que os profetas falem dois ou três,<br />

e os <strong>de</strong>mais julguem.<br />

30. Se alguma coisa for revelada a um<br />

que estiver assentado, que o primeiro<br />

fique em silêncio.<br />

31. Porque todos po<strong>de</strong>reis profetizar,<br />

um após outro, para que todos<br />

aprendam e sejam consolados.<br />

32. Os espíritos dos profetas estão sujeitos<br />

aos próprios profetas;<br />

33. porque Deus não é o autor <strong>de</strong> confusão,<br />

e, sim, <strong>de</strong> paz; como em todas<br />

as igrejas dos santos.<br />

26. Quid igitur est, fratres? Quoties<br />

convenitis, unusquisque vestrum<br />

canticum habet, doctrinam habet,<br />

linguam habet, revelationem habet,<br />

interpretationem habet: omnia ad<br />

ædificationem fiant.<br />

27. Sive lingua quis loquitur, fiat per<br />

duos, aut ad summum tres, idque<br />

vicissim, et unus interpretetur.<br />

28. Quodsi non sit interpres, taceat in<br />

Ecclesia: cæterum sibi ipsi loquatur<br />

et Deo.<br />

29. Prophetæ autem duo aut tres loquantur,<br />

et caeteri diiudicent.<br />

30. Quodsi alii fuerit revelatum assi<strong>de</strong>nt,<br />

prior taceat:<br />

31. Potestis enim singulatim omnes<br />

prophetare, ut omnes discant, et<br />

omnes consolationem accipiant. 49<br />

32. Et spiritus prophetarum prophetis<br />

sunt subiecti:<br />

33. Non enim seditionis est Deus, sed<br />

pacis, quemadmodum in omnibus<br />

Ecclesiis sanctorum. 50<br />

26. Então, irmãos, o que fazer? Ele então lhes mostra uma maneira<br />

ou um antídoto para corrigir estes males. Primeiramente, cada<br />

dom <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> seu espaço, porém sucessivamente e na <strong>de</strong>vida<br />

proporção. Além do mais, a Igreja não <strong>de</strong>ve entregar-se às práticas inúteis<br />

e fúteis, mas tudo o que fizer, que seja feito visando à edificação.<br />

No entanto ele começa <strong>de</strong>finindo edificação da seguinte forma: “Todo<br />

aquele que recebe algum dom <strong>de</strong>ve esforçar-se por empregá-lo visan-<br />

49 “Que tous soyent consolez, ou, exhortez.” – “Para que todos sejam confortados ou exortados.”<br />

50 “Comme en toutes les Eglises <strong>de</strong>s saincts, ou, comme on voit en toutes.” – “Como em<br />

todas as igrejas dos santos, ou como alguém vê em tudo.”


500 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

do ao bem <strong>de</strong> todos.” Pois o termo todo aquele não <strong>de</strong>ve ser entendido<br />

em sentido universal, como se todos os homens fossem dotados com<br />

algum dom.<br />

27. Se alguém falar em outra língua. Ele agora <strong>de</strong>screve a or<strong>de</strong>m<br />

e limita a medida. “Se preten<strong>de</strong>is falar em outras línguas, que só<br />

falem dois, e, quando muito, não fale mais que três, e que haja concomitantemente<br />

um intérprete por perto. Sem um intérprete, as línguas<br />

são inúteis, e portanto <strong>de</strong>vem ser dispensadas.” Deve-se observar que<br />

o apóstolo não está promulgando um mandamento; simplesmente<br />

permite. Pois a Igreja po<strong>de</strong> subsistir sem línguas, sem enfrentar inconveniências,<br />

exceto on<strong>de</strong> elas se tornarem cooperadoras da profecia,<br />

como, por exemplo, o hebraico e o grego o são hoje. Paulo, porém,<br />

faz esta concessão para não <strong>de</strong>ixar a impressão <strong>de</strong> estar reprimindo a<br />

congregação dos fiéis na prática <strong>de</strong> algum dom do Espírito.<br />

Ao mesmo tempo, po<strong>de</strong> parecer como se houvesse aqui alguma<br />

inconsistência, uma vez que ele não disse previamente [v. 22] que as<br />

línguas, até on<strong>de</strong> são um sinal, são oportunas para os incrédulos. Minha<br />

resposta está fundamentada neste fato: ainda que um milagre seja<br />

realizado especialmente para o benefício dos incrédulos, disto não<br />

se segue que ele, em alguns aspectos, não afete também os crentes.<br />

Se levarmos em conta que uma língua <strong>de</strong>sconhecida é um sinal para<br />

os incrédulos, no sentido em que as palavras <strong>de</strong> Isaías 51 testificam,<br />

então o método que o apóstolo esboça aqui é diferente. Pois ele admite<br />

que se <strong>de</strong>ve dar espaço às línguas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que haja concomitante<br />

interpretação, <strong>de</strong>notando, naturalmente, que nada seja <strong>de</strong>ixado obscuro.<br />

Portanto, ao corrigir o erro dos coríntios, o apóstolo usa uma<br />

mistura bem equilibrada. De um lado, ele <strong>de</strong> forma alguma <strong>de</strong>scarta<br />

qualquer dom divino, qualquer que seja, 52 <strong>de</strong> modo que todos seus<br />

benefícios possam ser vistos entre os crentes. Do outro, ele impõe<br />

restrições para impedir que a ambição furtivamente tome o lugar que<br />

pertence à glória <strong>de</strong> Deus, e para evitar que algum dom menos impor-<br />

51 As palavras referidas são aquelas que Paulo citara supra no versículo 21.<br />

52 “Tant petit soit-il.” – “Mesmo que seja tão pequeno.”


Capítulo 14 • 501<br />

tante obstrua a ação dos que são mais importantes. E ainda adiciona<br />

o condimento: 53 para que não haja mera ostentação sem quaisquer resultados<br />

[positivos].<br />

28. E que fale consigo mesmo e com Deus. Ele está dizendo: “Que<br />

<strong>de</strong>sfrute <strong>de</strong> seu dom em seu próprio coração, e que dê graças a Deus.”<br />

Pois consi<strong>de</strong>ro “falar consigo mesmo e com Deus” no sentido <strong>de</strong> refletir<br />

em seu íntimo sobre o dom que graciosamente lhe fora conferido, 54<br />

e dar graças por ele em silêncio, bem como <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong>le como se<br />

fosse sua própria possessão privativa, caso não haja oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

fazer-se uso <strong>de</strong>le publicamente. Pois o apóstolo esboça um contraste<br />

entre este modo secreto <strong>de</strong> expressar-se e o que é feito publicamente<br />

na Igreja; e este último ele proíbe. 55<br />

29. E os profetas falem apenas dois ou três. No tocante à profecia,<br />

ele prescreve também restrições, porque multidão, como comumente<br />

se diz, “cria confusão”. Eis uma gran<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, pois estamos cientes<br />

disso por nossas experiências diárias. Ele não limita o número com<br />

tanta precisão como as línguas, pois há menos risco <strong>de</strong> se dar mais<br />

tempo às profecias; aliás, o i<strong>de</strong>al seria se recebem atenção constante;<br />

Paulo, porém, ao mesmo tempo leva em conta o que o homem po<strong>de</strong><br />

suportar em suas fraquezas.<br />

Entretanto, resta ainda uma pergunta: por que ele restringe as<br />

profecias e as línguas ao mesmo número, exceto que no caso das línguas<br />

particularmente acrescenta: “no máximo três”, pois se as línguas<br />

não são tão valiosas, então <strong>de</strong>veriam ter um uso muito mais restrito?<br />

Minha resposta é que a profecia está imbutida nas línguas, na forma<br />

em que o apóstolo enten<strong>de</strong> o termo, pois as línguas eram usadas ou<br />

para discursos 56 ou para oração. Nos discursos, o intérprete assumia o<br />

lugar do profeta, e assim esta era a principal e a mais freqüente forma<br />

em que as línguas eram empregadas. Ele lhe põe restrição só para evi-<br />

53 “Ascauoir l’interpretatiton.” – “Isto é, a interpretação.”<br />

54 “Le benefice et don <strong>de</strong> Dieu.” – “A bonda<strong>de</strong> e dom <strong>de</strong> Deus.”<br />

55 “En ce cas.” – “Neste caso.”<br />

56 “Pour traiter <strong>de</strong> quelques matieres <strong>de</strong> la religião.” – “Para tratar <strong>de</strong> algumas matérias da<br />

religião.”


502 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

tar que elas fossem <strong>de</strong>gradadas em <strong>de</strong>corrência do orgulho humano e<br />

para evitar que os que eram menos capazes fossem privados <strong>de</strong> sua<br />

disposição e oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar. Pois a intenção do apóstolo é que<br />

aqueles a quem ele <strong>de</strong>signa a tarefa <strong>de</strong> falar <strong>de</strong>veriam empregar seu<br />

máximo <strong>de</strong>sempenho e ser aprovados pelo assentimento geral. 57 No<br />

entanto não há ninguém mais inclinado a impeli-los para frente do que<br />

os que só têm uma leve noção <strong>de</strong> cultura, <strong>de</strong> modo que o provérbio<br />

prova ser verda<strong>de</strong>iro: “Os tolos entram <strong>de</strong> roldão on<strong>de</strong> os anjos temem<br />

pisar” 58 [audax inscitia]. O intuito do apóstolo, ao <strong>de</strong>signar a dois<br />

ou três a tarefa <strong>de</strong> falar, era neutralizar este mal.<br />

E os <strong>de</strong>mais julguem. A fim <strong>de</strong> não dar aos <strong>de</strong>mais a chance <strong>de</strong><br />

protestar, concluindo que a intenção <strong>de</strong>le era que o dom divino 59<br />

fosse suprimido, pondo um ponto final neste caso, o apóstolo lhes<br />

exemplifica que é possível usar o dom para o bem da Igreja, mesmo<br />

quando tivessem que conservar-se quietos, ou, seja, fazendo uma<br />

avaliação, em seus próprios corações, sobre aquilo que era pronunciado<br />

por outros. Porquanto é um inestimável benefício que haja<br />

alguns que sejam experientes em formular juízo, a fim <strong>de</strong> que não se<br />

permitisse fosse a sã doutrina pervertida pelas imposturas <strong>de</strong> Satanás,<br />

ou fosse <strong>de</strong> alguma forma corrompida por futilida<strong>de</strong>s ridículas.<br />

Portanto, o apóstolo está realçando que, mesmo permanecendo em<br />

silêncio, os <strong>de</strong>mais profetas estariam prestando relevante serviço<br />

à Igreja.<br />

Não obstante, po<strong>de</strong> parecer algo inusitado que a homens se permita<br />

que formulem juízos com relação à doutrina divina, a qual <strong>de</strong>ve<br />

ser estabelecida além <strong>de</strong> toda e qualquer controvérsia. Minha resposta<br />

a esta questão é que a doutrina <strong>de</strong> Deus não está sujeita ao juízo<br />

humano, senão que a tarefa do homem é simplesmente julgar, por<br />

meio do Espírito <strong>de</strong> Deus, se é sua Palavra que está sendo proclamada,<br />

57 “Par l’approbation commune <strong>de</strong> l’Eglise.” – “Pela aprovação comum da Igreja.”<br />

58 Os latinos têm um provérbio similar: “Stater in lagena bis bis clamat.” – “Uma moeda num<br />

vaso <strong>de</strong> barro está constantemente tinindo.”<br />

59 “Le don <strong>de</strong> Dieu qu’ils ont receu.” – “O dom <strong>de</strong> Deus que têm recebido.”


Capítulo 14 • 503<br />

ou se, usando esta como pretexto, os homens estão enganosamente<br />

exibindo o que eles mesmos engendraram; como teremos ocasião <strong>de</strong><br />

averiguar novamente sem muita <strong>de</strong>longa.<br />

30. Se, porém, algo for revelado a outro. Aqui está outra vantagem<br />

– que sempre que houver ocasião, o caminho lhes será também<br />

aberto. 60 Daí não mais terão razão <strong>de</strong> queixar-se, dizendo que o Espírito<br />

está preso ou sua boca está fechada. Pois quando se <strong>de</strong>parar alguma<br />

ocasião, todos terão oportunida<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar. A única condição<br />

é que ninguém se precipite, satisfazendo mais a seu amor-próprio<br />

do que aten<strong>de</strong>ndo às necessida<strong>de</strong>s dos <strong>de</strong>mais. Em contrapartida, o<br />

apóstolo exige que todos eles ponham em prática esta auto-restrição:<br />

que cada um <strong>de</strong>les, por sua vez, dê lugar a outro que tenha algo mais<br />

importante a comunicar. 61 Pois somente esta é a genuína liberda<strong>de</strong> do<br />

Espírito, não que a cada um se permita tagarelar temerariamente o<br />

que bem quiser, mas que todos, do superior ao inferior, voluntariamente<br />

permita ser controlado, e que o único Espírito seja ouvido, pela<br />

boca <strong>de</strong> quem ele quiser usar. No que respeita à fi<strong>de</strong>dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta<br />

revelação, veremos mais adiante.<br />

31. Todos po<strong>de</strong>reis profetizar, um após o outro. Antes <strong>de</strong> tudo,<br />

quando o apóstolo diz todos, sua intenção não é incluir todos os fiéis,<br />

mas apenas os que foram dotados com este dom. Além do mais, ele<br />

não quer dizer que todos <strong>de</strong>vem ter oportunida<strong>de</strong>s iguais, mas que, <strong>de</strong><br />

acordo com sua possibilida<strong>de</strong>, e para o benefício do povo, cada um se<br />

apresentaria para falar, com mais freqüência ou mais esporadicamente.<br />

62 O apóstolo po<strong>de</strong>ria ter posto em outros termos: “Ninguém ficaria<br />

a espera para sempre, mas a chance <strong>de</strong> falar se apresentaria às vezes<br />

a um e outras vezes a outro.”<br />

60 “Que toutes fois et quantes qu’il sera besoin, eux aussi auront lieu <strong>de</strong> parler.” – “Sempre<br />

que houver uma ocasião, eles também terão oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar.”<br />

61 “Mas se algo for revelado a outro que esteja sentado. Isso é freqüentemente afirmado dos<br />

doutores judaicos, kwy hyh. Ele sentou-se, significando não meramente que ele estava sentado,<br />

mas ensinava sentado em sua ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> mestre, ou que, assentado, ensinava, ou se<br />

preparava para ensinar. De forma que, ele sentou-se e ensinava, equivale a mesma coisa.”<br />

62 “Ainsi qu’il sera auisé pour le mieux.” – “Quando for julgado pelo melhor.”


504 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Ele acrescenta: para que todos aprendam, pois ainda que isso<br />

se aplique a todas as pessoas, todavia diz respeito aos profetas; aliás,<br />

o apóstolo aponta especialmente para eles. Pois ninguém jamais<br />

será um bom mestre, se não revelar-se suscetível <strong>de</strong> aprendizado, bem<br />

como jamais se achará alguém que tenha, unicamente em si mesmo,<br />

um transbordamento tal <strong>de</strong> respeito pela perfeição da doutrina, ao<br />

ponto <strong>de</strong> nada lucrar ouvindo outros. Portanto, todos <strong>de</strong>vem executar<br />

seus <strong>de</strong>veres como mestres <strong>de</strong> maneira a não <strong>de</strong>clinarem <strong>de</strong> seu papel<br />

<strong>de</strong> aprendizes, ou <strong>de</strong> se sentirem aborrecidos em proce<strong>de</strong>r assim toda<br />

vez que a outros for propiciado os meios <strong>de</strong> edificar a Igreja.<br />

Em segundo lugar, Paulo diz: para que possam receber consolação.<br />

Daqui po<strong>de</strong>mos inferir que os ministros <strong>de</strong> Cristo, longe <strong>de</strong><br />

invejarem, <strong>de</strong>veriam antes alegrar-se sinceramente por não serem os<br />

únicos a se distinguir, mas porque há tantos outros que são co-participantes<br />

do mesmo dom, disposição essa que Moisés <strong>de</strong>scobriu, como<br />

relatam os registros sagrados [Nm 11.28]. Pois quando seu servo<br />

[Josué] inflamou-se com tolo ciúme, sentindo-se profundamente indignado<br />

só porque o dom <strong>de</strong> profecia fora igualmente conferido a outros<br />

homens, ele o censura, dizendo: “Tens tu ciúmes por mim? Tomara<br />

todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor lhes <strong>de</strong>sse seu Espírito!”<br />

[Nm 11.28, 29]. E <strong>de</strong> fato é particularmente consolador para os<br />

ministros piedosos verem o Espírito <strong>de</strong> Deus, em cujos instrumentos<br />

eles mesmos foram constituídos, operando em e através <strong>de</strong> outros.<br />

Esta é uma consolação que também contribui para a expansão da palavra<br />

<strong>de</strong> Deus, cujo alvo principal são os ministros e testemunhas.<br />

Visto, porém, que o verbo παρακαλεσθαι, o qual o apóstolo usa<br />

aqui, é <strong>de</strong> significação 63 ambígua, po<strong>de</strong>-se traduzi-lo também “para<br />

que recebam exortação”. 64 Isto é plenamente plausível, pois às vezes<br />

é bom ouvirmos a alguém mais a fim <strong>de</strong> recebermos incentivo e fazermos<br />

nosso trabalho com disposição mais intensa.<br />

63 “Ha double signification.” – “Tem uma dupla significação.”<br />

64 Assim em Atos 15.32, παρεκάλεσαν significa exortado, embora o substantivo παρακλήσις<br />

seja usado no versículo imediatamente prece<strong>de</strong>nte no sentido <strong>de</strong> consolação.”


Capítulo 14 • 505<br />

32. E os espíritos dos profetas. Esta também é outra das razões por<br />

que é necessário que esperem sua vez, porque é possível que suceda<br />

<strong>de</strong> outros profetas encontrarem erro e terem que reprovar a doutrina<br />

<strong>de</strong> outro profeta. Diz ele: “Não é razoável que alguém vá além da esfera<br />

do escrutínio. E assim, po<strong>de</strong>rá suce<strong>de</strong>r que chegue a vez <strong>de</strong> uma pessoa<br />

falar, a qual estava presente no auditório assentada e em silêncio.”<br />

Há quem compreenda mal este versículo, como se o apóstolo estivesse<br />

dizendo que os profetas do Senhor não eram “homens dotados”,<br />

que, uma vez tomados <strong>de</strong> súbito frenezi, quando apo<strong>de</strong>rados pelo impulso<br />

(ἐνθουσιασμὸς) divino, 65 perdiam seu equilíbrio. 66 Sem dúvida,<br />

é verda<strong>de</strong> que os profetas <strong>de</strong> Deus não perdiam o equilíbrio mental,<br />

mas isso nada tem a ver com esta passagem dos escritos do apóstolo.<br />

Porque significa, como eu já o <strong>de</strong>clarei, que ninguém é isentado do escrutínio<br />

<strong>de</strong> outras pessoas, mas que todos <strong>de</strong>vem ser ouvidos, com esta<br />

condição: que sua doutrina seja, não obstante, submetida a um exame.<br />

Entretanto, isso não está isento <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>, pois o apóstolo nos<br />

<strong>de</strong>clara que seus espíritos estão sujeitos. Embora esteja ele se referindo<br />

aos dons, como po<strong>de</strong> a profecia, que é outorgada pelo Espírito Santo,<br />

ser julgada pelos homens, <strong>de</strong> modo que o próprio Espírito se sujeita<br />

ao juízo <strong>de</strong>les? Segundo este raciocínio, o apóstolo está sujeitando a<br />

própria Palavra <strong>de</strong> Deus ao escrutínio humano, a qual é revelada pelo<br />

Espírito. Não há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enfatizar quão intolerável é tal raciocínio,<br />

visto que por si só ele sobejamente se evi<strong>de</strong>ncia. Não obstante,<br />

afirmo que nem o Espírito <strong>de</strong> Deus, nem sua palavra, se restringe por<br />

um escrutínio <strong>de</strong>sse gênero. Digo mais que o Espírito Santo retém sua<br />

majesta<strong>de</strong> inalterada, <strong>de</strong> modo que ele “julga todas as coisas, sem ser<br />

julgado por ninguém” [1Co 2.15]. A santa Palavra <strong>de</strong> Deus também retém<br />

o respeito que lhe é <strong>de</strong>vido, <strong>de</strong> modo a ser recebida sem qualquer<br />

disputa, tão logo seja ela apresentada.<br />

65 “Depuis que leur folie les prenoit, laquelle ils appeloyent vn mouuement Diuin.” – “Sempre<br />

que apo<strong>de</strong>rados <strong>de</strong> extravagância, o que <strong>de</strong>nominavam impulso divino.”<br />

66 A referência aqui é claramente aos que praticavam a adivinhação (Θεομαντεία), dos quais<br />

havia entre os gregos três tipos, distinguidos por três formas distintas <strong>de</strong> receber a inspiração<br />

(ἐνθουσιασμὸς) divina.


506 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

“Então”, perguntará o leitor, “quem está sujeito a exame?” Eis minha<br />

resposta: se alguém for agraciado com uma revelação completa,<br />

indubitavelmente tal pessoa, juntamente com seu dom, está acima<br />

<strong>de</strong> qualquer escrutínio. Digo ainda que não existe sujeição on<strong>de</strong> está<br />

presente uma plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> revelação; visto, porém, que Deus tem distribuído<br />

seu Espírito a todos numa <strong>de</strong>terminada medida, há sempre<br />

alguma coisa faltando, o que não <strong>de</strong>ve causar surpresa se ninguém é<br />

elevado a uma altitu<strong>de</strong> tal que possa <strong>de</strong> lá olhar com <strong>de</strong>sdém para os<br />

<strong>de</strong>mais, e que não tenha alguém que formule juízo sobre o mesmo.<br />

Então percebemos, sem querermos absolutamente <strong>de</strong>sonrar o<br />

Espírito Santo, que seus dons admitem ser examinados. E mais ainda:<br />

quando tudo estiver investigado, e nada for encontrado digno <strong>de</strong> reprovação,<br />

haverá ainda algo que requeira polimento. A suma <strong>de</strong> tudo,<br />

pois, é esta: o dom é submetido a tal exame que, não importa o que for<br />

publicado, os profetas consi<strong>de</strong>rarão como tendo sua procedência no<br />

Espírito <strong>de</strong> Deus; pois se ficar estabelecido que o Espírito é <strong>de</strong> fato seu<br />

autor, não haverá espaço para qualquer hesitação.<br />

Entretanto, ainda resta uma pergunta: Que regra se <strong>de</strong>ve usar no<br />

exame? Parte da resposta é fornecida pelos lábios do próprio apóstolo,<br />

que em Romanos 12.6 me<strong>de</strong> a profecia “segundo a analogia da fé”<br />

[ad analogiam fi<strong>de</strong>i]. Mas no tocante ao julgamento real, é indiscutível<br />

que ele <strong>de</strong>ve ser controlado pela Palavra e pelo Espírito <strong>de</strong> Deus,<br />

para que somente o que se perceber provir <strong>de</strong> Deus receba aprovação;<br />

que nada seja con<strong>de</strong>nado exceto no tribunal <strong>de</strong> sua Palavra, e que, em<br />

suma, unicamente Deus é quem po<strong>de</strong> presidir neste julgamento, e que<br />

os homens sejam simplesmente seus arautos.<br />

À luz <strong>de</strong>sta passagem po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>duzir o quanto aquela igreja<br />

florescia com uma notável riqueza e varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> dons espirituais.<br />

Pois havia escolas <strong>de</strong> profetas, para que houvesse esmero e cumprissem<br />

a tarefa <strong>de</strong> distribuir seus respectivos turnos. Havia tão gran<strong>de</strong><br />

diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dons, que havia superabundância. Hoje vemos nossos<br />

próprios recursos reduzidos, pior ainda, nossa pobreza; mas nisto temos<br />

um justo castigo, enviado como recompensa <strong>de</strong> nossa ingratidão.


Capítulo 14 • 507<br />

Pois as riquezas <strong>de</strong> Deus não se exauriram, nem sua liberalida<strong>de</strong> se<br />

arrefeceu; porém não somos dignos <strong>de</strong> suas dádivas nem capazes <strong>de</strong><br />

receber tudo o que sua generosida<strong>de</strong> tem para dar. Não obstante, temos<br />

ainda uma ampla suficiência <strong>de</strong> luz e doutrina, contanto que não<br />

haja <strong>de</strong>ficiência com respeito ao cultivo da pieda<strong>de</strong> e aos frutos que<br />

<strong>de</strong>la emanam.<br />

33. Porque Deus não é <strong>de</strong> confusão. 67 Devemos subenten<strong>de</strong>r a<br />

palavra autor ou algum termo <strong>de</strong>sse gênero. 68 Esta é uma frase valiosíssima,<br />

pois ela nos ensina que a única maneira <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rmos servir a<br />

Deus é tornando-nos pessoas amantes da paz e solícitas em possuí-la.<br />

Daí, on<strong>de</strong> os homens amam a disputa, estejamos plenamente certos<br />

<strong>de</strong> que Deus não está reinando ali. E quão fácil é dizer isso! Não é o<br />

que baila constantemente nos lábios do povo? Ao mesmo tempo, a<br />

maioria das pessoas realmente faz reboliço sobre nada ou provoca<br />

motim na Igreja quando <strong>de</strong>sejam <strong>de</strong> um modo ou <strong>de</strong> outro ser tidas<br />

como proeminentes, e quando, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o conseguir, adquirem ar <strong>de</strong><br />

importância [Gl 2.6].<br />

Portanto, ao formarmos juízo acerca dos servos <strong>de</strong> Cristo, tenhamos<br />

em mente que se <strong>de</strong>ve ter isto em vista: quer almejem ou não a paz<br />

e concórdia, e, ao conduzir-se pacificamente, estão evitando contenda<br />

o quanto está em seu po<strong>de</strong>r, ainda mais porque enten<strong>de</strong>m ser esta paz<br />

aquele vínculo que é a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Pois se formos chamados a<br />

conten<strong>de</strong>r contra as doutrinas ímpias, mesmo que a terra e o céu se confundam,<br />

<strong>de</strong>vemos, não obstante, perseverar na disputa. Aliás, <strong>de</strong>vemos<br />

67 “Car Dieu n’est point Dieu <strong>de</strong> consusion.” – “Pois Deus não é um Deus <strong>de</strong> confusão.”<br />

68 Granville Penn traduz o versículo assim: “Pois eles não são espíritos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, mas<br />

<strong>de</strong> paz.” Ele crê ser provável que “o singular ἐστι tem causado distorções <strong>de</strong>sta passagem,<br />

sugerindo a introdução <strong>de</strong> um singular nominativo para concordar com ela, isto é, ὁ Θεος:<br />

‘Deus’; enquanto na redação <strong>de</strong> Tertuliano, anterior ainda ao segundo ou terceiro século,<br />

ἐστι se referia ao plural neutro, πνεύματα: ‘Et spiritus prophetarum prophetis subditi sunt<br />

– non enim eversionis sunt, sed pacis.’ (E os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas<br />

– pois não são <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, mas <strong>de</strong> paz.) Portanto, o grego fica assim: οὐ γάρ ἐστιν<br />

ἀκαταστασίας (πνεύματα) αλλ̕ εἰρήνης. Este antigo testemunho externo, combinado com o<br />

testemunho interno do contexto, é evidência suficiente <strong>de</strong> que Θεὸς foi displicentemente<br />

inserido aqui por filólogos, como Θεὸς, Κὺριος, Χριστός foi introduzido em muitas outras<br />

passagens do Sacro Texto.”


508 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

primeiramente fazer <strong>de</strong>la nosso alvo, para que a verda<strong>de</strong> divina, sem<br />

qualquer controvérsia, conserve seu fundamento; mas se os perversos<br />

resistirem, <strong>de</strong>vemos encará-los <strong>de</strong> frente sem qualquer medo e sem<br />

qualquer receio <strong>de</strong> levar a culpa pelos distúrbios. Pois maldita é aquela<br />

paz da qual a rebelião contra Deus é o emblema, e benditas são aquelas<br />

contendas pelas quais se faz necessário <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o reino <strong>de</strong> Cristo.<br />

Como em todas as igrejas. A comparação 69 não aponta meramente<br />

para a primeira parte <strong>de</strong>ste versículo, mas para tudo quanto o apóstolo<br />

esboçou supra. É como se ele quisesse dizer: “Até aqui não vos apresentei<br />

quaisquer diretrizes que não fossem seguidas em todas as igrejas, e<br />

esta é a razão por que as mesmas igrejas estão qualificadas a manter-<br />

-se unidas e em paz. Portanto, <strong>de</strong>víeis tomar para vós o que as outras<br />

igrejas <strong>de</strong>scobriram por experiência, na busca <strong>de</strong> seu bem-estar, e que<br />

é mui valioso para a preservação da paz.” Ele faz menção particular <strong>de</strong><br />

os santos à guisa <strong>de</strong> ênfase, como se preten<strong>de</strong>sse livrar todas as igrejas<br />

a<strong>de</strong>quadamente organizadas <strong>de</strong> algum estigma <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdita. 70<br />

34. Que as mulheres guar<strong>de</strong>m silêncio<br />

nas igrejas, porque não lhes é<br />

permitido falar; mas estejam em<br />

obediência, como também diz a lei.<br />

35. E se elas <strong>de</strong>sejam apren<strong>de</strong>r alguma<br />

coisa, que interroguem seus<br />

esposos em casa; porque para uma<br />

mulher é vergonhoso falar na igreja.<br />

36. Porventura a palavra <strong>de</strong> Deus se<br />

originou no meio <strong>de</strong> vós, ou veio ela<br />

exclusivamente para vós?<br />

37. Se alguém se consi<strong>de</strong>ra profeta, ou<br />

espiritual, então que reconheça que<br />

as coisas que vos escrevi, são mandamentos<br />

do Senhor.<br />

34. Mulieres vestræ in Ecclesiis taceant;<br />

non enim permissum est ipsis<br />

loqui, sed subiectae sint, quemadmodum<br />

et Lex dicit.<br />

35. Si quid autem velint discere, domi<br />

maritos suos interrogent: turpe<br />

enim est mulieribus in Ecclesia loqui.<br />

36. An a vobis sermo Dei profectus est,<br />

aut ad vos solos pervenit?<br />

37. Si quis vi<strong>de</strong>tur sibi propheta esse<br />

aut spiritualis, agnoscat, quæ scribo<br />

vobis, Domini esse mandata.<br />

69 “Ce mot, Comme.” – “Esta palavra Como.”<br />

70 “Comme s’il vouloit dire qu’il n’y auroit point <strong>de</strong> propos d’auoir quelque souspeçon sur<br />

les Eglises bien reformees.” – “Como se ele quisesse dizer: que não houve ocasião para<br />

nutrir alguma suspeita no tocante às igrejas plenamente reformadas.”


Capítulo 14 • 509<br />

38. Mas se alguém é ignorante, então<br />

que permaneça ignorante.<br />

39. Portanto, meus irmãos, cobiçai [o<br />

dom <strong>de</strong>] profetizar, e não proibais<br />

falar em línguas.<br />

40. Que todas as coisas sejam feitas <strong>de</strong>centemente<br />

e em or<strong>de</strong>m.<br />

38. Si quis autem ignorat, ignoret.<br />

39. Itaque, fratres, æmulamini prophetiam,<br />

et linguis loqui ne prohibeatis.<br />

40. Porro omnia <strong>de</strong>center et ordine<br />

fiant.<br />

Tudo faz crer que a Igreja <strong>de</strong> Corinto se encontrava também contaminada<br />

por mais um erro, ou, seja: quando se reuniam, havia espaço<br />

para a tagarelice feminina, ou, quem sabe, era-lhes permitido <strong>de</strong>masiada<br />

liberda<strong>de</strong>. O apóstolo, conseqüentemente, as proíbe <strong>de</strong> falarem em<br />

público, seja com o intuito <strong>de</strong> ensinar ou <strong>de</strong> profetizar. Não obstante,<br />

<strong>de</strong>vemos enten<strong>de</strong>r isso como uma referência ao serviço ordinário, ou<br />

on<strong>de</strong> haja uma igreja num estado regularmente constituído; pois po<strong>de</strong><br />

ocorrer a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal natureza que requeira que uma mulher<br />

fale em público; Paulo, porém, se restringe ao que é conveniente numa<br />

assembléia <strong>de</strong>vidamente organizada.<br />

34. Estejam em submissão, como também diz a lei. O que tem a<br />

submissão, sob a qual a lei coloca a mulher, a ver com o que o apóstolo<br />

está ensinando agora? Pois alguém dirá: “O que as impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> ensinar,<br />

embora estejam em submissão?” Minha resposta é que a tarefa <strong>de</strong> ensinar<br />

71 é uma função que pertence a alguém incumbido da supervisão da<br />

Igreja, e é, por esta razão, inconsistente com a condição <strong>de</strong> submissão.<br />

Pois quão inconveniente seria para uma mulher, que vive em sujeição<br />

a um dos membros, presidir 72 sobre todo o corpo! Portanto, é um argumento<br />

baseado em incompatibilida<strong>de</strong>s; porque, se a mulher está em<br />

submissão, ela está, pois, impedida <strong>de</strong> exercer autorida<strong>de</strong> para ensinar<br />

em público. 73 E não há dúvida 74 <strong>de</strong> que on<strong>de</strong> quer que o próprio <strong>de</strong>co-<br />

71 “D’enseigner ou <strong>de</strong> prescher.” – “De ensinar ou <strong>de</strong> pregar.”<br />

72 “Eust preminence et authorite.” – “Teria preeminência e autorida<strong>de</strong>.”<br />

73 “Elle ne peut donc auoir authorite publique <strong>de</strong> prescher ou enseigner.” – “Ela não po<strong>de</strong>,<br />

pois, ter autorida<strong>de</strong> pública para pregar ou ensinar.”<br />

74 “Entre toutes les nationes et peuples.” – “Entre todas as nações e povos.”


510 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

ro natural tem tido seus efeitos, as mulheres <strong>de</strong> todas as épocas têm<br />

sido excluídas do controle dos negócios públicos. E o ditame do senso<br />

comum nos ensina que o governo das mulheres é impróprio e inconveniente.<br />

Além do mais, quando nos dias <strong>de</strong> Roma lhes foi permitido<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se nos tribunais, 75 a impudência <strong>de</strong> Caia Afrânia 76 resultou<br />

em ser ela proibida <strong>de</strong> fazer até mesmo isso. O raciocínio do apóstolo,<br />

porém, é honesto: a autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ensinar está excluída da função<br />

da mulher, porque, caso ela venha a ensinar, logicamente se colocará<br />

acima <strong>de</strong> todos os homens, embora ela <strong>de</strong>vesse estar em submissão.<br />

35. E se elas <strong>de</strong>sejam apren<strong>de</strong>r alguma coisa. Portanto, para que<br />

não <strong>de</strong>sse a impressão, ao falar assim, <strong>de</strong> estar fechando as portas<br />

ao aprendizado das mulheres, ele as instrui a fazerem suas inquirições<br />

privativamente, caso tivessem dúvida sobre algum ponto, para<br />

evitar que sua iniciativa suscitasse alguma discussão em público. Embora<br />

faça referência a esposos, ele não está proibindo as mulheres <strong>de</strong><br />

consultarem pessoalmente os profetas, caso houvesse necessida<strong>de</strong>;<br />

porque nem todos os esposos são capazes <strong>de</strong> formular uma resposta.<br />

Mas como ele aqui está discutindo a organização externa [externa politia],<br />

é bastante, para seu propósito, ressaltar o que é in<strong>de</strong>coroso, para<br />

que os coríntios o evitassem. Não obstante, o leitor <strong>de</strong> discernimento<br />

<strong>de</strong>ve tomar uma <strong>de</strong>cisão, ou, seja, que as coisas que o apóstolo está<br />

tratando aqui são neutras, nem boas nem ruins; e que só são proibidas<br />

porque elas se põem contra o <strong>de</strong>coro e a edificação.<br />

75 “On les souffroit proposer <strong>de</strong>uant les iuges, et plai<strong>de</strong>r publiquement.” – “Foi-lhes permitido<br />

comparecer ante os juízes e pleitear publicamente.”<br />

76 “Caia Afrânia era esposa <strong>de</strong> um senador, Licinius Buccio. A circunstância referida por Calvino<br />

se relaciona com Valério Máximo (lib. 8. c. 3. n. 2), nos seguintes termos: “Muliebris<br />

verecundiæ oblita, suas per se causas agebat, et importunis clamoribus judicibus obstrepebat;<br />

non quod advocati ei <strong>de</strong>essent, sed quia impu<strong>de</strong>ntia abundabat. Hinc factum<br />

est, ut mulieres perfrictæ frontis et matronalis pudoris oblitæ, Afraniæ per contumeliam<br />

dicerentur.” – “Esquecida da modéstia conveniente ao sexo feminino, ela pleiteou pessoalmente<br />

sua própria causa, e aborreceu os juízes com clamorosa insensibilida<strong>de</strong> – não<br />

por falta <strong>de</strong> advogados para tomar em suas mãos a causa <strong>de</strong>la, mas em <strong>de</strong>corrência<br />

<strong>de</strong> sua excessiva impudência. Em conseqüência disso, os homens que eram <strong>de</strong> fronte<br />

ousada, e esquecidos da modéstia que proce<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma matrona que era, à guisa <strong>de</strong> reprovação,<br />

chamada Afrânia.”


Capítulo 14 • 511<br />

36. A palavra <strong>de</strong> Deus proce<strong>de</strong>u <strong>de</strong> vós? Esta é uma reprovação<br />

um tanto mordaz, porém era indispensável para coibir o orgulho dos<br />

coríntios. Pois viviam <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nadamente satisfeitos consigo mesmos,<br />

e não toleravam a idéia <strong>de</strong> que algum erro pu<strong>de</strong>sse ser encontrado<br />

neles ou relacionado a eles. Então o apóstolo inquire <strong>de</strong>les, se porventura<br />

são os únicos, se realmente são o supra-sumo <strong>de</strong> todos os<br />

cristãos do mundo. Pergunta-lhes: “Preten<strong>de</strong>is dizer que a Palavra <strong>de</strong><br />

Deus teve sua origem em vosso meio? Em outros termos: ela proce<strong>de</strong>u<br />

<strong>de</strong> vós? Ela começou e termina em vós, ou, seja, ela não será divulgada<br />

a ninguém mais?” Ao admoestá-los, a intenção do apóstolo é dizer que,<br />

tendo ignorado as práticas <strong>de</strong> outros, não <strong>de</strong>viam acomodar-se satisfeitos<br />

com seus vícios e costumes pessoais.<br />

Mas esta doutrina é <strong>de</strong> natureza geral, pois nenhuma igreja <strong>de</strong>ve<br />

existir voltada para si mesma, negligenciando as <strong>de</strong>mais. Ao contrário,<br />

todas elas <strong>de</strong>vem esten<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>stra umas às outras, buscando promover<br />

a comunhão mútua, e acomodando-se uns aos outros até on<strong>de</strong> a<br />

harmonia o requeira. 77<br />

Neste ponto, porém, é possível que surja a perguntar se uma igreja<br />

que fora estabelecida antes <strong>de</strong> outra 78 [ordine praecessit] po<strong>de</strong>, por<br />

essa razão, obrigá-la também aceitar suas instituições. 79 Pois o apóstolo<br />

parece <strong>de</strong>ixar isso implícito no que está afirmando. Por exemplo,<br />

Jerusalém era a mãe <strong>de</strong> todas as igrejas, visto que a Palavra do Senhor<br />

originara-se ali. Ela po<strong>de</strong>ria usar este dispositivo para reivindicar para<br />

si uma posição privilegiada e submeter todas as <strong>de</strong>mais igrejas à obrigação<br />

<strong>de</strong> agir como ela agia? Minha resposta é que o apóstolo aqui<br />

não emprega um argumento <strong>de</strong> aplicação universal, mas um que era<br />

especialmente aplicável aos coríntios, que freqüentemente é o caso.<br />

Portanto, ele está <strong>de</strong> olho nos indivíduos, e não na coisa propriamente<br />

dita. Eis a razão por que não se segue necessariamente que as igrejas<br />

77 “Autant qu’il est requis pour nourrir paix et concor<strong>de</strong>.” – “Até on<strong>de</strong> o requisito seja a<br />

manutenção da paz e da harmonia.”<br />

78 “Et est plus ancienne.” – “E é mais antiga.”<br />

79 “A ses ordonnances et manieres <strong>de</strong> faire.” – “A suas or<strong>de</strong>nanças e métodos <strong>de</strong> ação.”


512 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

que nascem <strong>de</strong>pois são obrigadas a adotar, em cada <strong>de</strong>talhe, as práticas<br />

daquelas que se estabeleceram primeiro. Realmente, Paulo mesmo<br />

serve <strong>de</strong> exemplo, pois ele não se prendia por este princípio com fim<br />

<strong>de</strong> impor às outras igrejas os costumes que foram adotados em Jerusalém.<br />

Tal atitu<strong>de</strong> não subenten<strong>de</strong> autopromoção, nem obstinação, nem<br />

orgulho, nem menosprezo por outras igrejas; ao contrário, é para que<br />

haja solicitu<strong>de</strong> pela edificação; haja mo<strong>de</strong>ração e bom senso; e quando<br />

tal coisa acontece, mesmo on<strong>de</strong> há gran<strong>de</strong> volume <strong>de</strong> práticas diferentes,<br />

não haverá nada digno <strong>de</strong> reprovação.<br />

Lembremo-nos, pois, que era o orgulho dos coríntios que estava<br />

sendo censurado aqui. Porquanto sua preocupação mirava exclusivamente<br />

80 suas pessoas, sem <strong>de</strong>monstrar nenhum respeito pelas igrejas<br />

<strong>de</strong> origem mais antiga, das quais tinham recebido o evangelho, e não<br />

buscavam acomodar-se às <strong>de</strong>mais igrejas das quais o evangelho fluiu<br />

para eles. Como eu gostaria que em nossa época não existisse nenhuma<br />

Corinto no que respeita a estes ou a outros erros! Todavia,<br />

percebemos como os homens cruéis, que jamais provaram o evangelho,<br />

provocam distúrbios nas igrejas fiéis, impondo suas próprias leis<br />

como autênticos tiranos. 81<br />

37. Se alguém se consi<strong>de</strong>ra profeta. Aqui se caracteriza o critério<br />

que ele previamente <strong>de</strong>terminara para os profetas – que eles [coríntios]<br />

recebessem o que eles [profetas] reconheciam como vindo <strong>de</strong><br />

Deus. Ele, porém, não está afirmando-lhes que fizessem investigações<br />

quando nutrissem alguma dúvida sobre algum ponto, mas que abraçassem<br />

seu ensinamento como a infalível Palavra <strong>de</strong> Deus; porque,<br />

se julgassem corretamente, a reconheceriam como a genuína Palavra<br />

<strong>de</strong> Deus. Além disso, é em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta autorida<strong>de</strong> apostólica que<br />

ele a toma para si a fim <strong>de</strong> prescrever-lhes a sentença que <strong>de</strong>veriam<br />

pronunciar. 82<br />

80 “Ne regardans qu’a eux mesmes, et se plaisans en leur façons <strong>de</strong> faire.” – “Olhando somente<br />

para si, e <strong>de</strong>leitando-se em seu modo pessoal <strong>de</strong> agir.”<br />

81 “En voulant d’vne façon tyrannique contraindre tout le mon<strong>de</strong> à receuoir leurs lix.” – “Por<br />

tudo fazer, <strong>de</strong> uma forma tirnânica, para constranger a cada um <strong>de</strong> receber suas leis.”<br />

82 “En cest endroit.” – “Neste caso.”


Capítulo 14 • 513<br />

Há ainda maior confiança no que ele acrescenta imediatamente:<br />

Aquele que é ignorante, que permaneça ignorante. Isso, na verda<strong>de</strong>,<br />

era lícito a Paulo, o qual estava plenamente convicto quanto à<br />

revelação que recebera <strong>de</strong> Deus, e também teria sido bem conhecida<br />

dos coríntios, <strong>de</strong> modo que teriam olhado para ele <strong>de</strong> nenhum outro<br />

prisma senão através <strong>de</strong> sua prerrogativa <strong>de</strong> apóstolo do Senhor. Não<br />

obstante, não cabe a qualquer um ousar fazer para si tal reivindicação,<br />

ou, se o faz, por sua vanglória se exporá a franco e merecido <strong>de</strong>sprezo,<br />

pois então só haverá base para tal confiança quando o que for afirmado<br />

por sua boca revele ser realida<strong>de</strong>. O que Paulo afirmava nada mais<br />

nada menos era que a plena verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>clarando que suas <strong>de</strong>terminações<br />

eram do próprio Senhor; em contrapartida, muitos estavam<br />

preparados a afirmar a mesma coisa, porém sobre falsos fundamentos.<br />

Seu gran<strong>de</strong> objetivo era este: para que fosse claramente percebido <strong>de</strong><br />

que ele não se permitia estar sob controle, fala como instrumento do<br />

Espírito Santo, não como produto <strong>de</strong> seu próprio cérebro. Portanto, o<br />

homem que outra coisa não é senão um perfeito órgão do Espírito Santo<br />

terá a coragem <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar <strong>de</strong>stemidamente, como Paulo, que os<br />

que rejeitarem sua doutrina não são profetas nem pessoas espirituais; e<br />

isso ele fará em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um direito que lhe pertence, em concordância<br />

com o que tivemos no início da Epístola: “aquele que é espiritual,<br />

julgue todas as coisas” [1Co 2.15].<br />

Neste ponto, porém, po<strong>de</strong>-se perguntar como po<strong>de</strong>ria Paulo asseverar<br />

que são <strong>de</strong>terminações do Senhor quando não há nenhuma<br />

corroboração <strong>de</strong>las nas Escrituras? Além disso, há também outra dificulda<strong>de</strong><br />

que se apresenta: se elas são mandamentos do Senhor, então<br />

sua observância é imprescindível e cegam a consciência [humana]; e<br />

se porventura são meros ritos vinculados à administração, então não<br />

existe necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua observância. Não obstante, tudo o que o<br />

apóstolo está dizendo é que ele não está impondo nada, senão aquilo<br />

que está em consonância com a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Além do mais, Deus<br />

o dotara com sabedoria para que ele pu<strong>de</strong>sse recomendar aos coríntios<br />

esta or<strong>de</strong>m das coisas externas [ordinem istum in rebus externis] e


514 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

em outros lugares – não para que fosse uma lei inviolável, como as que<br />

se relacionam com o culto espiritual <strong>de</strong> Deus, mas para que fossem<br />

um diretório útil a todos os filhos <strong>de</strong> Deus, e que não fossem <strong>de</strong> forma<br />

alguma menosprezadas.<br />

38. Mas se alguém for ignorante. A Vulgata traduz: “Aquele<br />

que não sabe essas coisas, esse mesmo será <strong>de</strong>sconhecido”; 83 o que<br />

constitui um equívoco. Pois a intenção <strong>de</strong> Paulo não era dar alguma<br />

oportunida<strong>de</strong> aos amantes <strong>de</strong> controvérsia, que nunca se sentem<br />

exaustos em meio às disputas, e sempre com o pretexto <strong>de</strong> saber<br />

mais, como se algo ainda não estivesse claro para eles; ou no mínimo<br />

ele está realçando, em termos gerais, que não tinha tempo a per<strong>de</strong>r<br />

com aqueles que punham em dúvida o que ele ensinava. É como se<br />

quisesse dizer: “Se alguém é ignorante, eu não tenho tempo a per<strong>de</strong>r<br />

com suas dúvidas; pois a infalibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> minha doutrina <strong>de</strong> forma<br />

alguma é prejudicada com isso. Então que ele se vá, não importa quem<br />

seja. Quanto a vós outros, não <strong>de</strong>ixeis <strong>de</strong> forma alguma seja abalada<br />

vossa confiança <strong>de</strong> que Cristo está falando por meu intermédio.” Em<br />

suma, ele quer dizer que os céticos, os amantes <strong>de</strong> controvérsias e<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes [os meticulosos] em seus questionamentos, 84 não <strong>de</strong>vem<br />

reduzir, sequer um mínimo grau, a autorida<strong>de</strong> da sã doutrina e <strong>de</strong>sta<br />

verda<strong>de</strong> sobre a qual os crentes não po<strong>de</strong>m nutrir dúvida alguma. Ao<br />

mesmo tempo, ele nos adverte a não permitirmos que a incerteza dos<br />

coríntios seja algum obstáculo em nosso caminho. Entretanto, essa<br />

gran<strong>de</strong>za da mente que <strong>de</strong>spreza todos os juízos humanos <strong>de</strong>ve estar<br />

fundamentada na verda<strong>de</strong> averiguada. Daí, como seria a parte <strong>de</strong> perversa<br />

temerida<strong>de</strong>, quer por manter pertinazmente, em oposição aos<br />

pontos <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>mais, opinião que uma vez assumida, ou<br />

83 Beausobre, quando chama a atenção para esta redação, diz: “La Vulgate porte, il sera<br />

ignoré, Dieu le méconnóitra; ce qui veut dire, le punira. Ce sens est fort bom.” – “A Vulgata<br />

traduz assim: ele será <strong>de</strong>sconhecido – Deus o repudiará – significando: Ele o punirá. Este é<br />

um bom sinificado.” Em um manuscrito grego, a redação é: ἀγνοεται – é <strong>de</strong>sconhecido.<br />

84 “Les sophistes qui ne font iamais que disputer, sans rien resoudre ou accor<strong>de</strong>r, ne les contentieux,<br />

et subtils iaseurs.” – “Sofistas que nunca fazem outra coisa senão disputar, sem<br />

chegar a nenhuma solução ou acordo, nem pessoas contenciosas e palradores sutis.”


Capítulo 14 • 515<br />

por audazmente a<strong>de</strong>rir a ela, enquanto outros nutrem dúvidas, assim,<br />

por outro lado, quando temos sentido certeza <strong>de</strong> que é Deus quem<br />

fala, <strong>de</strong>stemidamente rompamos todos os impedimentos humanos e<br />

todas as dificulda<strong>de</strong>s. 85<br />

39. Portanto, meus irmãos. Esta é a parte conclusiva relativa à<br />

questão principal, ou, seja: que a profecia <strong>de</strong>veria ter a preferência<br />

sobre os <strong>de</strong>mais dons, porque, <strong>de</strong> todos eles, ela é o mais proveitoso;<br />

enquanto, ao mesmo tempo, os outros não <strong>de</strong>vem ser negligenciados.<br />

Não obstante, <strong>de</strong>ve-se observar a maneira como ele o coloca. Pois ele<br />

notifica que a profecia é digna <strong>de</strong> ser aspirada sincera e ar<strong>de</strong>ntemente,<br />

acima <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>mais [dons]. Entrementes, ele os exorta com os<br />

coríntios a não invejarem outros que têm o dom mais raro, 86 o qual não<br />

<strong>de</strong>ve ser tão <strong>de</strong>sejado; sim, mais ainda, para conce<strong>de</strong>r-lhes o louvor<br />

que merecem, se <strong>de</strong>spem <strong>de</strong> toda inveja.<br />

40. Todas as coisas sejam feitas com <strong>de</strong>cência e or<strong>de</strong>m. Aqui<br />

temos uma conclusão mais geral, a qual não inclui meramente, em breve<br />

extensão, todo o caso, mas também as partes diferentes. Mais que<br />

isso, ela nos fornece um padrão a<strong>de</strong>quado para a avaliação 87 <strong>de</strong> tudo o<br />

que se acha conectado com a organização externa [ad externam politiam].<br />

Como já discursou, em vários casos, quanto aos ritos, ele <strong>de</strong>seja<br />

sintetizar tudo aqui num breve sumário, ou, seja: que a <strong>de</strong>cência seja<br />

preservada, e que a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m seja evitada. Esta afirmação revela que<br />

ele não estava disposto a cegar as consciências pelos preceitos prece<strong>de</strong>ntes,<br />

como se eles fossem em si mesmos necessários, mas até on<strong>de</strong><br />

a <strong>de</strong>cência e a paz se tornem indispensáveis. Daqui <strong>de</strong>vemos extrair<br />

(por assim dizer) um princípio geral, a saber: que o propósito da organização<br />

da Igreja [Ecclesiae politia] é o espírito <strong>de</strong> serviço.<br />

85 “Sans nous en soucier aucunement.” – “Sem entregar-se a qualquer preocupação por<br />

eles.”<br />

86 “Autres, qui ont le don <strong>de</strong>s langues, qui est vne don plus rare.” – “Outros, que têm o dom<br />

<strong>de</strong> línguas, que é o dom mais raro.”<br />

87 “Este preceito é às vezes aplicado em apoio do uso <strong>de</strong> ritos e cerimônias no culto divino,<br />

não or<strong>de</strong>nados na Escritura. Mas quem quer que consi<strong>de</strong>re o lugar que ele mantém neste<br />

discurso, se tocará <strong>de</strong> que ele não tinha relação com ritos e cerimônias, mas com o exercício<br />

<strong>de</strong>cente e or<strong>de</strong>iro dos dons espirituais.”


516 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

O Senhor <strong>de</strong>ixa ao sabor <strong>de</strong> nossa escolha os ritos externos com<br />

isto em vista: que não po<strong>de</strong>mos concluir que seu culto consiste totalmente<br />

<strong>de</strong>ssas coisas. Não obstante, ao mesmo tempo ele não nos<br />

conce<strong>de</strong>u uma liberda<strong>de</strong> ilimitada e <strong>de</strong>senfreada, mas a fechou, por<br />

assim dizer, com uma cerca; 88 ou, <strong>de</strong> algum modo, restringiu a liberda<strong>de</strong><br />

que nos <strong>de</strong>u, <strong>de</strong> tal maneira, que somente à luz <strong>de</strong> sua Palavra é<br />

que po<strong>de</strong>mos orientar nossas mentes sobre o que é correto. Portanto,<br />

quando esta passagem for consi<strong>de</strong>rada <strong>de</strong> forma apropriada, ela revelará<br />

a diferença entre os editos tirânicos dos papas que subjugam as<br />

consciências humanas, através <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>testável forma <strong>de</strong> escravidão,<br />

bem como violentam as pias leis da Igreja, as quais preservam sua<br />

disciplina e or<strong>de</strong>m. Além do mais, po<strong>de</strong>mos facilmente inferir <strong>de</strong>sse<br />

fato que as leis da Igreja não <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>radas como meras<br />

tradições humanas, visto que se acham fundamentadas nesta injunção<br />

geral, e claramente dão a impressão <strong>de</strong> receber, por assim dizer, a<br />

aprovação pessoal dos lábios <strong>de</strong> Cristo.<br />

88 Cancellos (ut ita loquar) circum<strong>de</strong>dit. Calvino tem aqui, muito provavelmente, diante <strong>de</strong><br />

seus olhos uma expressão usada por Cícero: “Si extra hos cancellos egredi conaber, quos<br />

mihi circum<strong>de</strong>di” – “Se eu tentar ir além <strong>de</strong>sses limites, os quais eu <strong>de</strong>marquei para mim<br />

mesmo.” (Cic. Quint. 10.)


Capítulo 15<br />

1. Além do mais, irmãos, vos <strong>de</strong>claro o<br />

evangelho que vos preguei, o qual<br />

igualmente recebestes, no qual também<br />

permaneceis<br />

2. e pelo qual também sois salvos, se retiver<strong>de</strong>s<br />

na memória o que vos preguei,<br />

a menos que tenhais crido em vão.<br />

3. Porque, antes <strong>de</strong> tudo vos entreguei<br />

o que também recebi: que Cristo<br />

morreu por nossos pecados, segundo<br />

as Escrituras;<br />

4. e que foi sepultado, e que ressuscitou<br />

ao terceiro dia, segundo as<br />

Escrituras;<br />

5. e que foi visto por Cefas, e <strong>de</strong>pois<br />

pelos doze;<br />

6. <strong>de</strong>pois apareceu a mais <strong>de</strong> quinhentos<br />

irmãos, <strong>de</strong> uma só vez, dos<br />

quais a maioria ainda vive, mas alguns<br />

já dormem;<br />

7. <strong>de</strong>pois disso ele foi visto por Tiago, e<br />

em seguida por todos os apóstolos;<br />

8. e por fim, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> todos, foi visto<br />

também por mim, como um nascido<br />

fora do <strong>de</strong>vido tempo.<br />

9. Porque eu sou o menor dos apóstolos;<br />

aliás, nem mesmo digno sou <strong>de</strong><br />

ser chamado apóstolo, porque persegui<br />

a igreja <strong>de</strong> Deus.<br />

10. Mas pela graça <strong>de</strong> Deus eu sou<br />

o que sou; e sua graça que me foi<br />

concedida não foi em vão; antes,<br />

trabalhei muito mais do que todos<br />

eles; todavia não eu, mas a graça <strong>de</strong><br />

Deus que era comigo.<br />

1. Notum autem vobis facio, fratres,<br />

evangelium quod evangelizavi vobis,<br />

quod et recepistis, in quo etiam<br />

stetistis.<br />

2. Per quod etiam salutem habetis: quo<br />

pacto annuntiarim vobis, si tenetis,<br />

nisi frustra crediditis.<br />

3. Tradidi enim vobis imprimis quod et<br />

acceperam, quod Christus mortuus<br />

fuerit, pro pecatis nostris secundum<br />

Scripturas,<br />

4. Et quod seputus sit, et quod resurrexit<br />

tertio die, secundum Scripturas.<br />

5. Et quod visus fuit Cephæ, <strong>de</strong>in<strong>de</strong> ipsis<br />

duo<strong>de</strong>cim:<br />

6. Postea visus fuit plus quam quingentis<br />

fratribus simul, ex quibus plures<br />

manent adhuc ad hunc usque diem:<br />

quidam autem obdormierunt.<br />

7. Dein<strong>de</strong> visus fuit Iacobo: post apostolis<br />

omnibus:<br />

8. Postremo vero omnium, velut abortivo,<br />

visus fuit et mihi.<br />

9. Ego enim sum minimus apostolorum,<br />

qui non sum idoneus ut dicar<br />

apostolus: quandoqui<strong>de</strong>m persequutus<br />

sum ecclesiam Dei.<br />

10. Sed gratia Dei sum id quod sum:<br />

et gratia ejus, quæ mihi collata est,<br />

non fuit imanis, sed copiosius quam<br />

illi omnes laboravi: non ego tamen,<br />

sed gratia Dei quæ mihi a<strong>de</strong>rat.


518 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

1 Além do mais, eu vos faço saber. Ele agora apresenta outro<br />

tema, a saber, a ressurreição, convicção que entre os coríntios fora<br />

abalada por algumas pessoas perversas. Entretanto, é incerto se sua<br />

dúvida era só no tocante à ressurreição do corpo no último dia, ou se<br />

também envolvia a imortalida<strong>de</strong> da alma. Sabe-se muito bem que havia<br />

muitos pontos <strong>de</strong> visto equivocados a esse respeito. Alguns filósofos<br />

argumentavam que a alma humana é imortal, porém a questão da ressurreição<br />

do corpo jamais entrava em suas cogitações. Os saduceus,<br />

por exemplo, <strong>de</strong>fendiam um conceito muito vulgar acerca do corpo,<br />

pois o limitavam apenas a esta presente vida; além disso, criam que<br />

a alma humana não passava <strong>de</strong> mero fôlego, <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> qualquer<br />

substância.<br />

Portanto, não nos fica totalmente claro (como já afirmei) se nesse<br />

tempo os coríntios já tinham atingido tal estágio <strong>de</strong> <strong>de</strong>mência, que<br />

tivessem se <strong>de</strong>svencilhado da expectativa <strong>de</strong> uma vida futura, ou se<br />

simplesmente negavam a ressurreição do corpo; pois os argumentos<br />

<strong>de</strong> que Paulo lança mão parecem subenten<strong>de</strong>r que estavam completamente<br />

fascinados pelo <strong>de</strong>mente sonho dos saduceus.<br />

Por exemplo, quando ele diz: “Qual a vantagem <strong>de</strong> se batizar pelos<br />

mortos? [v. 29]. Não seria preferível comer e beber? [v. 32]. Por que<br />

temos <strong>de</strong> enfrentar perigos a toda hora?” [v. 30]. Seria muito mais fácil<br />

respon<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> acordo com o raciocínio dos filósofos: “Porque <strong>de</strong>pois<br />

da morte nossas almas sobrevivem ao corpo.” Conseqüentemente,<br />

alguns aplicam todo o raciocínio <strong>de</strong> Paulo, contido neste capítulo, à<br />

imortalida<strong>de</strong> das almas. De minha parte, embora eu <strong>de</strong>ixe in<strong>de</strong>terminado<br />

qual era o erro dos coríntios, contudo não posso ver as palavras<br />

do apóstolo como uma referência a algo mais além da ressurreição do<br />

corpo. Portanto, que seja estabelecido, uma vez por todas, que ele,<br />

neste capítulo, está tratando <strong>de</strong>la, e nada além <strong>de</strong>la.<br />

É como se a heterodoxia [impietas] <strong>de</strong> Himeneu e Fileto já houvesse<br />

chegado tão longe, 1 pois ambos diziam que a ressurreição já era<br />

1 “Iusques a Corinthe.” – “À longínqua Corinto.”


Capítulo 15 • 519<br />

um fato do passado [2Tm 2.18], e que não mais ocorreria no futuro.<br />

Semelhantes a eles, há em nossos dias alguns <strong>de</strong>mentes ou, preferivelmente,<br />

alguns <strong>de</strong>mônios 2 que se <strong>de</strong>nominam os libertinos. 3 Não<br />

obstante, tenho a impressão <strong>de</strong> estar mais perto da verda<strong>de</strong>, arriscando-me<br />

a conjeturar que fossem arrebatados por alguma fantasia 4 que<br />

<strong>de</strong>cepava sua esperança na ressurreição futura, da mesma forma que<br />

os libertinos <strong>de</strong> nossos dias que imaginam alguma sorte <strong>de</strong> ressurreição<br />

alegórica, 5 eliminando <strong>de</strong> nós a verda<strong>de</strong>ira ressurreição que nos<br />

é prometida.<br />

O que quer que isso tenha sido, seguramente apresenta um caso<br />

realmente terrível e que se aproxima <strong>de</strong> um prodígio, a saber: os que<br />

tinham sido instruídos por um mestre tão eminente fossem capaz <strong>de</strong><br />

cair tão rapidamente 6 em erros <strong>de</strong> natureza tão grosseira. Todavia, o<br />

que há <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>nte nisso, quando na Igreja israelita os saduceus<br />

tinham a audácia <strong>de</strong> confessar publicamente que o homem não é diferente<br />

<strong>de</strong> um bruto no que tange à natureza essencial da alma, e que<br />

ele não é mais ditoso do que as bestas? Observemos, contudo, que<br />

tal cegueira é a recompensa do justo juízo <strong>de</strong> Deus, pois aqueles que<br />

não aquiescem na verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus são levados <strong>de</strong> um lado para outro<br />

pelas enganosas artimanhas <strong>de</strong> Satanás.<br />

Entretanto, alguém po<strong>de</strong>ria perguntar: por que ele <strong>de</strong>feriu ou<br />

adiou para o fim <strong>de</strong>sta carta um tema que merecia precedência sobre<br />

todos os <strong>de</strong>mais? Há quem responda que o apóstolo proce<strong>de</strong>u assim<br />

para <strong>de</strong>ixar uma profunda impressão em suas memórias. Preferivelmente,<br />

creio que o apóstolo não tencionava fazer nenhuma menção <strong>de</strong><br />

2 “Posse<strong>de</strong>z d’autres diahles.” – “Possuídos por outros <strong>de</strong>mônios.”<br />

3 “Os libertinos <strong>de</strong> Genebra eram mais uma súcia <strong>de</strong> <strong>de</strong>vassos do que um grupo <strong>de</strong> fanáticos;<br />

pois não <strong>de</strong>fendiam nenhum sistema religioso, mas apenas pleiteavam a liberda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> levar vidas voluptuosas e imorais. Essa súcia se compunha <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado número<br />

<strong>de</strong> cidadãos licienciosos que não podiam suportar a severa disciplina <strong>de</strong> Calvino, o qual<br />

punia com rigor, não só os costumes dissolutos, mas também tudo que levava o aspecto<br />

<strong>de</strong> irreligião e impieda<strong>de</strong>.” – Paterson’s History of the Church, vol. ii. p. 383.<br />

4 “Par quelque opinion fantastique.” – “Por alguma noção fantástica.”<br />

5 “Vne ie ne scay quelle resurrection allegorique.” – “Uma ressurreição alegórica, não sei <strong>de</strong><br />

que gênero.”<br />

6 “Si soudainement seduits.” – “Tão subitamente seduzidos.”


520 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

um assunto tão importante até que tivesse <strong>de</strong>fendido sua autorida<strong>de</strong>,<br />

a qual, em alguma extensão, tinha perdido sua influência sobre os coríntios,<br />

e até que tivesse reprimido seu orgulho e tivesse <strong>de</strong>spertado<br />

seu anseio <strong>de</strong> receber com docilida<strong>de</strong> sua doutrina.<br />

Eu vos faço conhecer. Fazer conhecer não significa aqui ensinar<br />

algo do qual não tivessem previamente o menor conhecimento, e, sim,<br />

<strong>de</strong>spertar-lhes a lembrança <strong>de</strong> algo que já haviam ouvido. É como se<br />

quisesse dizer: “Evocai a vossa lembrança, juntamente comigo, daquele<br />

evangelho com o qual vos tornastes tão familiarizados, antes<br />

<strong>de</strong> vos afastar<strong>de</strong>s do caminho certo.” O apóstolo se refere à doutrina<br />

da ressurreição como sendo o evangelho, para que não viessem a imaginar<br />

que provavelmente ela fora ensinada para o entretenimento <strong>de</strong><br />

alguém, e em seguida ser <strong>de</strong>scartada, como se po<strong>de</strong> fazer com outros<br />

assuntos sem nenhum prejuízo à salvação.<br />

Ao agregar, que vos preguei, ele amplia o que já havia dito:<br />

“Se me reconheceis como apóstolo, com toda certeza eu vos ensinei<br />

isso.” Há outra ampliação nas palavras que também recebestes,<br />

pois se agora concordam em <strong>de</strong>ixar-se persuadir do contrário, então<br />

teriam <strong>de</strong> ser acusados <strong>de</strong> levianda<strong>de</strong>. Uma terceira ampliação<br />

é no sentido que agora precisam perseverar nessa fé com uma inabalável<br />

e <strong>de</strong>terminada resolução, uma porção maior do que aquela<br />

que mantiveram em outro tempo. Mas, a mais importante <strong>de</strong>ssas<br />

afirmações ampliativas é a <strong>de</strong>claração que o apóstolo faz, ou, seja,<br />

que é precisamente neste mesmo fato que consiste sua salvação.<br />

Pois a conclusão que daqui se extrai é que, se a ressurreição for<br />

eliminada, então não lhes é <strong>de</strong>ixada nenhuma religião, nenhuma<br />

certeza <strong>de</strong> fé e, em suma, não lhes é <strong>de</strong>ixada espécie alguma <strong>de</strong> fé.<br />

Outros tomam o verbo permanecer em sentido diferente, significando<br />

“estar apoiado” ou “agüentar-se”. Mas a interpretação que tenho<br />

formulado é a mais correta. 7<br />

7 Bloomfield observa que “em ἑστήκατε (que significa ten<strong>de</strong>s perseverado e perseverais),<br />

há uma metáfora agonística (como em Ef 4.13) ou alguém arquitetural, como ἑδραοι<br />

γίνεσθε (se<strong>de</strong> inabaláveis), em 1 Coríntios 15.58.”


Capítulo 15 • 521<br />

2. Se guardar<strong>de</strong>s na memória ... a menos que em vão. 8 Estas<br />

duas sentenças condicionais trazem em si uma mordacida<strong>de</strong> cortante.<br />

Na primeira, ele reprova a indiferença e levianda<strong>de</strong> <strong>de</strong>les, porque uma<br />

queda tão súbita quanto a <strong>de</strong>les era prova <strong>de</strong> que jamais haviam entendido<br />

o que lhes fora ensinado, ou que seu conhecimento não passava<br />

<strong>de</strong> algo frágil, sem resistência, <strong>de</strong>svanecendo logo <strong>de</strong>pois. Na segunda<br />

sentença, ele os exorta a que empregassem seu tempo e gastassem seu<br />

fôlego <strong>de</strong>clarando seu compromisso <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a Cristo, caso não<br />

preten<strong>de</strong>ssem conservar esta doutrina fundamental. 9<br />

3. Porque, antes <strong>de</strong> tudo vos entreguei. Ele agora confirma o<br />

que afirmara previamente, mostrando que a ressurreição fora anunciada<br />

por ele, e sendo ela <strong>de</strong> fato um dos elementos primordiais e<br />

fundamentais do evangelho. “Antes <strong>de</strong> tudo”, diz ele, significando<br />

que ela é como o fundamento que normalmente lançamos quando<br />

erguemos um edifício.<br />

E ao mesmo tempo ele solidifica a autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua pregação,<br />

acrescentando que não entregara outra coisa senão aquilo que havia<br />

recebido. Porque ele <strong>de</strong>clara que relatou não simplesmente o que<br />

outros lhe contaram, mas também o que o Senhor pessoalmente lhe<br />

confiara. 10 Pois a palavra 11 <strong>de</strong>ve ser explicada em concordância com<br />

a conexão da passagem. Ora, é <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> um apóstolo não anunciar<br />

nenhuma outra coisa senão o que ele recebeu do Senhor, visto ser<br />

ele diretamente [<strong>de</strong>manu, quod aiunt, in manum – corpo a corpo 12 ]<br />

responsável por transmitir [administret] à Igreja a autêntica Palavra<br />

<strong>de</strong> Deus.<br />

8 “Nossa versão não expressa inteligivelmente o sentido <strong>de</strong> ἐκτὸς εἰ μὴ εὶκῃ̑ ἐπιστεύσατε, traduzindo-o<br />

muito literalmente – a menos que tenhais crido em vão. Crer em vão, segundo<br />

o uso <strong>de</strong> idiomas antigos, é crer sem justa razão e autorida<strong>de</strong>, dando crédito a notícias<br />

infundadas como sendo verídicas e autênticas.”<br />

9 “Ce principal poinct <strong>de</strong> la foy.” – “Este artigo principal <strong>de</strong> fé.”<br />

10 “Que le Seigneur mesme luy auoit enseignee et comman<strong>de</strong>e.” – “O que o Senhor mesmo<br />

lhe ensinara e lhe or<strong>de</strong>nara.”<br />

11 “Le mot <strong>de</strong> receuoir.” – “A palavra recebida.”<br />

12 O leitor encontrará nosso autor fazendo uso da mesma expressão proverbial quanto comenta<br />

1 Coríntios 4.1 e 11.23.


522 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Que Cristo morreu etc. Agora o leitor po<strong>de</strong> ver mais nitidamente<br />

<strong>de</strong> que fonte ele a recebeu, porquanto cita as Escrituras como evidência.<br />

Em primeiro lugar, ele faz menção da morte <strong>de</strong> Cristo, e inclusive<br />

<strong>de</strong> seu sepultamento, para que pudéssemos chegar à conclusão <strong>de</strong><br />

que Cristo que, em ambos os estágios, se assemelhou a nós; o mesmo<br />

se aplica em referência a sua ressurreição. Portanto, ele mesmo participou<br />

da morte juntamente conosco para que pudéssemos ressuscitar<br />

juntamente com ele. A realida<strong>de</strong> da morte que ele participou conosco<br />

é realçada ainda mais vividamente ao mencionar também seu sepultamento.<br />

Além disso, a morte e a ressurreição <strong>de</strong> Cristo foram preditas<br />

em muitas passagens da Escritura, mas em nenhuma mais claramente<br />

13 do que em Isaías 53, Daniel 9.26 e Salmo 22.<br />

Por nossos pecados. Significa que ele tomou sobre si nossa<br />

maldição, a fim <strong>de</strong> redimir-nos <strong>de</strong>la. Pois o que mais era a morte <strong>de</strong><br />

Cristo senão um sacrifício para expiar nossos pecados; um castigo<br />

satisfatório [poena satisfactoria] por meio do qual somos reconciliados<br />

com Deus; a con<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> alguém para a aquisição <strong>de</strong> nosso<br />

perdão? Ele fala também nos mesmos termos em Romanos 4.25; ali,<br />

porém, em contrapartida, ele diz que a ressurreição produz outro<br />

efeito, a saber: nela se nos confere justiça. Porque, como o pecado<br />

foi <strong>de</strong>struído pela morte <strong>de</strong> Cristo, assim a justiça foi adquirida por<br />

sua ressurreição. Esta distinção <strong>de</strong>ve ser cuidadosamente observada<br />

para que saibamos o que esperar da morte <strong>de</strong> Cristo, e o que<br />

esperar <strong>de</strong> sua ressurreição. Finalmente, quando outras passagens<br />

da Escritura faz alusão somente à sua morte, <strong>de</strong>vemos enten<strong>de</strong>r<br />

que, em tais casos, sua ressurreição está inclusa em sua morte;<br />

mas quando são mencionadas separadamente, o ponto <strong>de</strong> partida<br />

[initium] <strong>de</strong> nossa salvação se encontra em sua morte, como vemos<br />

aqui, e sua consumação [complementum] se encontra em sua ressurreição.<br />

13 “Il n’y en a point <strong>de</strong> plus expres, et où il en soit traitté plus apertement.” – “Nenhuma<br />

<strong>de</strong>las é mais explícita, ou on<strong>de</strong> seja tratada com mais clareza.”


Capítulo 15 • 523<br />

5. E que foi visto por Cefas. Ele agora cita testemunhas oculares<br />

(αὐτόπτας), como são chamadas em Lucas [1.20], que viram o cumprimento<br />

do que as Escrituras predisseram suce<strong>de</strong>ria. Entretanto, ele<br />

não fornece uma lista completa, porquanto omite as mulheres. Portanto,<br />

quando ele diz que antes <strong>de</strong> todos apareceu a Pedro, <strong>de</strong>vemos<br />

enten<strong>de</strong>r que ele [Pedro] é o primeiro entre os homens, <strong>de</strong> modo que<br />

a afirmação <strong>de</strong> Marcos [16.9] <strong>de</strong> que Jesus apareceu primeiro a Maria<br />

não é <strong>de</strong> forma alguma inconsistente.<br />

Todavia, como po<strong>de</strong> ele dizer que Jesus apareceu aos doze, quando<br />

só ficaram onze <strong>de</strong>les após a morte <strong>de</strong> Judas? Crisóstomo é <strong>de</strong><br />

opinião que isso aconteceu após Matias ter sido eleito em seu lugar.<br />

Outros preferem corrigir a expressão, consi<strong>de</strong>rando-a como se fosse<br />

um equívoco. 14 Mas quando compreen<strong>de</strong>mos que foi pela or<strong>de</strong>nação<br />

do próprio Cristo que doze entre eles fossem separados, mesmo que<br />

um <strong>de</strong>les fosse suprimido da lista, não nos causa estranheza que o termo<br />

fosse conservado. Foi pela mesma razão que um grupo <strong>de</strong> homens<br />

em Roma foi <strong>de</strong>nominado Centumviri [Os Cem], 15 quando <strong>de</strong> fato eram<br />

em número <strong>de</strong> cento e dois, 16 pois o uso da <strong>de</strong>signação persistira também<br />

ali. Portanto, <strong>de</strong>vemos simplesmente consi<strong>de</strong>rar os doze, aqui, no<br />

sentido <strong>de</strong> os apóstolos escolhidos.<br />

Não está muito claro quando se <strong>de</strong>u essa aparição a “mais <strong>de</strong><br />

quinhentos”. A única possibilida<strong>de</strong> é que essa gran<strong>de</strong> multidão estivesse<br />

reunida em Jerusalém, quando ele se lhes manifestou. Pois<br />

Lucas [24.33] fala em termos gerais <strong>de</strong> discípulos que se encontravam<br />

reunidos com os onze, mas não especifica seu número. Crisóstomo o<br />

14 Granville Penn supõe que a redação comum, ετα τοι̑ς δώδεκα – então aos doze –, é uma<br />

corruptela para ετα τοι̑ς δε δεκα – e então aos <strong>de</strong>z –, enten<strong>de</strong>ndo o apóstolo como querendo<br />

dizer que Cristo apareceu primeiramente a Cefas, e então aos outros <strong>de</strong>z. O Dr. Adam<br />

Clarke, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> afirmar que “em vez <strong>de</strong> δώδεκα, doze, ἕνδεκα, onze, é a redação <strong>de</strong> D* E<br />

F G, Síríaca na margem, algumas das versões Eslavônica, Armênia, Vulgata, Itala e vários<br />

dos pais”, e que “esta redação é apoiada por Marcos 16.14”, e observa: “Talvez o termo<br />

doze seja usado aqui meramente para ressaltar a socieda<strong>de</strong> dos apóstolo, que, embora<br />

nesse tempo eles fossem apenas onze, eram ainda chamados os doze, porque esse era<br />

seu número original, e um número que foi mais tar<strong>de</strong> preenchido.” “Doze era um título,<br />

não <strong>de</strong> número, mas <strong>de</strong> ofício.” – M’Knight.<br />

15 “C’est a dire, les Cents.” – “Equivale dizer, os Cem.<br />

16 O leitor achará o mesmo termo referido por Calvino quando comenta 1 Coríntios 10.8.


524 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

aponta para a ascensão, e explica ἐπάνω como “do alto”. 17 Isso certamente<br />

po<strong>de</strong>ria ter acontecido <strong>de</strong>pois da ascensão, em vista do fato <strong>de</strong><br />

que Paulo nos diz que ele [Jesus] apareceu a Tiago sozinho.<br />

Pela expressão, por todos os apóstolos, entendo não só os doze,<br />

mas também os discípulos a quem Jesus confiara a tarefa <strong>de</strong> pregar<br />

o evangelho. 18 À luz do fato <strong>de</strong> que nosso Senhor pretendia que sua<br />

ressurreição contasse com muitas testemunhas oculares [Lc 1.1],<br />

que falassem <strong>de</strong>la mais e mais, <strong>de</strong>vemos, pois, ter em mente que nossa<br />

fé nela <strong>de</strong>ve ser a mais sólida possível. E visto que os apóstolos<br />

proclamavam a ressurreição <strong>de</strong> Cristo a partir do fato <strong>de</strong> haver ele<br />

aparecido a muitos, ele então realça que esta não foi nenhuma ressurreição<br />

simbólica, e, sim, uma ressurreição genuína e física [naturalem],<br />

já que nossos olhos não po<strong>de</strong>m ser testemunhas <strong>de</strong> uma ressurreição<br />

espiritual.<br />

8. Depois <strong>de</strong> todos, apareceu também a mim, como um nascido<br />

fora do <strong>de</strong>vido tempo. Ele agora se inclui no número das outras testemunhas,<br />

pois Cristo se revelou a ele também, vivo, e revestido <strong>de</strong><br />

glória. 19 Uma vez que esta aparição não foi fruto <strong>de</strong> alguma alucinação,<br />

ela veio a ser igualmente valiosa 20 para o fortalecimento da fé na ressurreição;<br />

e este é o uso que Paulo faz <strong>de</strong>ste argumento em Atos 26.8.<br />

Visto, porém, que era importantíssimo que sua autorida<strong>de</strong><br />

recebesse o maior peso possível entre os coríntios, ele insere, <strong>de</strong> passagem,<br />

algo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevância em seu próprio favor. Ele, porém,<br />

o suaviza <strong>de</strong> tal forma que, embora estar apresentando uma fortíssima<br />

reivindicação em seu favor, contudo se mostra, ao mesmo tempo,<br />

muitíssimo mo<strong>de</strong>sto. Portanto, no caso <strong>de</strong> alguém o <strong>de</strong>safiar, dizendo:<br />

17 “Este uso peculiar <strong>de</strong> ἐπάνω para πλεον (que parece ter sido popular ou provincial, não<br />

sendo encontrado nos escritores clássicos), ocorre também em Marcos 14.5, porém com<br />

um genitivo. Entretanto, é provável que ele não tenha propriamente nenhum regime, mas<br />

seja usado como parêntese, como o latim plus trecentos, 300 e mais.” – Bloomfield.<br />

18 O ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> Calvino concorda com o <strong>de</strong> Crisóstomo, que diz: σαν γὰρ καὶ ἄλλοι<br />

ἀπόστολοι, ὡς ὁι ἑβδομήκοντα – “pois houve também outros apóstolos, tais como os sententa.”<br />

19 “En sa vie et gloire immortelle.” – “Em sua vida e glória imortal.”<br />

20 “Elle estoit suffisante et receuable.” – “Era suficiente e admissível.”


Capítulo 15 • 525<br />

“Quem és tu para que te <strong>de</strong>mos algum crédito?”, ele espontaneamente<br />

reconhece sua própria indignida<strong>de</strong>. Primeiramente, ele se compara a<br />

uma criança prematura, e (em minha opinião) esta é uma referência<br />

a sua súbita conversão. Pois assim como os bebês não <strong>de</strong>ixam o ventre<br />

materno até que tenham cumprido nele o período <strong>de</strong>terminado <strong>de</strong><br />

tempo, e estejam plenamente formados, assim nosso Senhor seguiu<br />

uma escala a<strong>de</strong>quada ao criar, adotar e formar os apóstolos. Paulo,<br />

em contrapartida, fora retirado do ventre materno antes que a fagulha<br />

vital 21 tivesse tempo <strong>de</strong> ser a<strong>de</strong>quadamente concebida nele.<br />

Há quem consi<strong>de</strong>re o termo abortivo, como empregado no sentido<br />

<strong>de</strong> posthumous. 22 A primeira idéia, porém, é muito mais a<strong>de</strong>quada,<br />

visto que ele foi gerado, nasceu e se fez adulto num só momento. Além<br />

disso, esse nascimento abortivo torna a graça <strong>de</strong> Deus muito mais<br />

evi<strong>de</strong>nte no caso <strong>de</strong> Paulo do que se ele tivesse crescido em Cristo,<br />

paulatinamente, até chegar à maturida<strong>de</strong>.<br />

9. Porque sou o menor. Não é certo se seus inimigos se expressavam<br />

assim às pessoas com o intuito <strong>de</strong> enfraquecer sua confiança<br />

21 Em concordância com o ponto <strong>de</strong> vista assumido por Calvino, Bloomfield consi<strong>de</strong>ra o<br />

termo original, ἔκτρωμα, no sentido <strong>de</strong> uma criança nascida antes do <strong>de</strong>vido tempo (em<br />

cujo sentido o termo abortivus é empregado por Horácio, Sat. i. 3. 46), o apóstolo “se <strong>de</strong>nomina<br />

assim como sendo um apóstolo não formado e qualificado por prévia preparação<br />

e instrução”. Penn, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> citar a <strong>de</strong>finição dada por Eustátio do termo ἔκτρωμα – τὸ<br />

μήτω τετυπώμενον – an unformed fœtus –, observa: “A todos os <strong>de</strong>mais apóstolos nosso Senhor<br />

apareceu <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua ressurreição, quando já tinham adquirido sua forma adulta<br />

em seu ministério; a Paulo, porém, ele apareceu no primeiro momento <strong>de</strong> sua concepção<br />

espiritual, e antes <strong>de</strong> ser formado ou mo<strong>de</strong>lado.” O mesmo ponto <strong>de</strong> vista, em substância,<br />

é dado por M’Knight. “Embora ele (Paulo) se <strong>de</strong>nomine um apóstolo abortivo, isso não se<br />

<strong>de</strong>u por ser ele sensível a alguma imperfeição em sua comissão, ou a alguma fraqueza<br />

em sua qualificação como apóstolo; pois em 2 Coríntios 11.5 ele afirma que em nada<br />

se consi<strong>de</strong>rava inferior aos super apóstolos”; porém se <strong>de</strong>nominava apóstolo abortivo,<br />

porque, segundo nos diz [v. 9], ele havia perseguido a igreja <strong>de</strong> Deus, e porque fora feito<br />

apóstolo sem que um prévio curso <strong>de</strong> instrução e preparação, que os <strong>de</strong>mais apóstolos<br />

haviam recebido na companhia <strong>de</strong> Jesus Cristo durante seu ministério terreno; <strong>de</strong> modo<br />

que, no sentido próprio do termo, ele era ἔκτρωμα – um nascido antes <strong>de</strong> haver chegado à<br />

maturida<strong>de</strong>. Entretanto, essa carência foi ricamente suprida pelas muitas revelações que<br />

seu Senhor lhe comunicou <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ser feito apóstolo.”<br />

22 “C’est a dire qui est nay apres là mort <strong>de</strong> son pere.” – “Equivale dizer, alguém que nasceu<br />

<strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong> seu pai.”


526 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

nele, ou se ele proce<strong>de</strong>u assim numa confissão inteiramente extraída<br />

<strong>de</strong> seu próprio arbítrio. Quanto a mim, embora eu não tenha dúvida<br />

<strong>de</strong> que ele em todo tempo estava espontâneamente, e também alegremente,<br />

disposto a aviltar-se, para que pu<strong>de</strong>sse magnificar a graça <strong>de</strong><br />

Deus, contudo suspeito que nestes caso ele queria obviar calúnias.<br />

Em Corinto havia pessoas que se ocupavam <strong>de</strong> minar sua autorida<strong>de</strong>,<br />

falando maliciosamente contra ele. Po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>duzir tal fato das<br />

muitas passagens prece<strong>de</strong>ntes, e também <strong>de</strong> uma comparação que ele<br />

introduz um pouco mais adiante, o que jamais faria se não fora forçado<br />

a assim fazer pela perversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> algumas pessoas. Ele po<strong>de</strong>ria ter<br />

posto assim: “Insultai-me tanto quanto vos agra<strong>de</strong>, eu não me importarei<br />

<strong>de</strong> ser lançado mesmo abaixo do próprio pó; não me importarei<br />

<strong>de</strong> ser tido na conta <strong>de</strong> nulida<strong>de</strong>, 23 para que a benevolência divina para<br />

comigo esteja em muito maior evidência. Portanto, que eu seja consi<strong>de</strong>rado<br />

como o menor dos apóstolos; na verda<strong>de</strong> tenho consciência<br />

<strong>de</strong> nem mesmo merecer tal distinção. Pois que méritos tive eu para<br />

que fosse digno 24 <strong>de</strong> tal honra? Quando costumava perseguir a Igreja<br />

<strong>de</strong> Deus, o que então merecia? Mas não há razão para me julgar<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

acordo com minha própria dignida<strong>de</strong>, pois o Senhor não olhou para o<br />

que eu era, porém, por sua graça, me transformou completamente em<br />

outro homem.”<br />

Eis a suma <strong>de</strong> tudo: Paulo não recusa ser o menos digno <strong>de</strong> todos,<br />

na verda<strong>de</strong> quase uma nulida<strong>de</strong>, contanto que, ao ser assim<br />

consi<strong>de</strong>rado, não constituísse, no mínimo grau, um obstáculo ao seu<br />

ministério, e nem prejudicasse absolutamente sua doutrina. Ele se sente<br />

plenamente satisfeito em seu íntimo ao ser consi<strong>de</strong>rado indigno <strong>de</strong><br />

qualquer honra, contanto que pu<strong>de</strong>sse enaltecer seu apostolado em<br />

razão da graça que lhe fora concedida. E Deus certamente não o adornou<br />

com dons tão excelentes para que sua graça fosse sepultada ou<br />

negligenciada; seu propósito, porém, era tornar o apostolado <strong>de</strong> Paulo<br />

mais eminente e mais confiável possível.<br />

23 “Estre estimé moins que rien.” – “Ser estimado menos que nada.”<br />

24 “Par ma petite et basse condition.” – “Por minha ínfima e humil<strong>de</strong> condição.”


Capítulo 15 • 527<br />

10. E sua graça... não foi em vão. Os que se põem o livre-arbítrio<br />

em oposição à graça <strong>de</strong> Deus, temendo que não venhamos atribuir-<br />

-lhe totalmente todo o bem que fizermos, torcem estas palavras para<br />

que se ajustem a sua interpretação, como se o apóstolo estivesse se<br />

vangloriando <strong>de</strong> haver, por seus próprios esforços, cuidado para que<br />

a graça em seu favor não fosse mal orientada. Conseqüentemente, chegaram<br />

à conclusão <strong>de</strong> que a graça é certamente oferecida por Deus,<br />

mas o uso correto <strong>de</strong>la é algo que o homem tem em seu próprio po<strong>de</strong>r,<br />

e é <strong>de</strong>le a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> obtê-la, mantendo-a latente. Não<br />

obstante, nego que estas palavras do apóstolo dêem qualquer apoio<br />

a seu ponto <strong>de</strong> vista equivocado, porque neste versículo ele não está<br />

reivindicando para si absolutamente nada, como se tivesse feito, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />

<strong>de</strong> Deus, algo louvável. Então, o que ele quer dizer? A<br />

fim <strong>de</strong> não dar a impressão <strong>de</strong> fazer vã ostentação, ele <strong>de</strong>clara que está<br />

afirmando aquilo que é público, para quem quiser ver. Finalmente, admitido<br />

que estas palavras revelam que o apóstolo não fazia mau uso<br />

da graça <strong>de</strong> Deus, e não a tornou sem efeito por sua própria negligência,<br />

todavia sou <strong>de</strong> opinião que não temos nenhuma justificativa, por<br />

essa conta, para dividir entre ele e Deus o louvor que se <strong>de</strong>ve atribuir<br />

exclusivamente a Deus, diante do fato <strong>de</strong> que Deus nos outorga não só<br />

a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer o bem, mas também a inclinação e a habilida<strong>de</strong>.<br />

Trabalhei muito mais. Alguns atribuem esta expressão aos fanfarrões<br />

25 que, ao <strong>de</strong>negrirem a pessoa do apóstolo, estavam promovendo<br />

a si próprios e a seus próprios interesses futuros, porque, segundo<br />

este ponto <strong>de</strong> vista, não seria digno <strong>de</strong> Paulo querer entrar em competição<br />

com os apóstolos. Entretanto, quando se compara com os<br />

apóstolos, ele o faz motivado por pessoas ímpias que tinham o hábito<br />

<strong>de</strong> confrontá-lo com eles a fim <strong>de</strong> rebaixar sua reputação, segundo vemos<br />

na Epístola aos Gálatas [1.11]. Daí, é bem provável que ele esteja<br />

falando dos apóstolos, quando avalia seus próprios esforços acima<br />

dos esforços <strong>de</strong>les. E a plena verda<strong>de</strong> é que ele se sobressaía nas <strong>de</strong>-<br />

25 “Thrasones.” O apelo é emprestado <strong>de</strong> Thraso, um capitão tolo <strong>de</strong> Terence (Eun. iii.1).


528 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

mais áreas, não só em suportar as muitas dificulda<strong>de</strong>s, em passar por<br />

muitas provas e experiências, em abster-se <strong>de</strong> muitas coisas para cujo<br />

uso ele tinha toda a liberda<strong>de</strong>, mas porque o Senhor estava coroando<br />

seus esforços com uma maior medida <strong>de</strong> sucesso. 26 Pois consi<strong>de</strong>ro labor<br />

no sentido <strong>de</strong> os frutos que <strong>de</strong>viam ser vistos em seu trabalho.<br />

Não eu, mas a graça <strong>de</strong> Deus. Ao omitir o relativo [que], a Vulgata<br />

<strong>de</strong>u aos que não conhecem o grego uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se cometer<br />

equívoco. Porquanto ela traz: “Não eu, mas a graça <strong>de</strong> Deus comigo”, 27 o<br />

que leva à conclusão <strong>de</strong> que só a meta<strong>de</strong> do crédito é atribuído a Deus,<br />

enquanto que a outra meta<strong>de</strong> é atribuída ao homem. Portanto, seu raciocínio<br />

é que o apóstolo não agia <strong>de</strong> moto próprio, porquanto nada po<strong>de</strong>ria<br />

fazer sem a graça cooperante, 28 enquanto que, ao mesmo tempo, seu<br />

próprio livre-arbítrio e seus próprios esforços tinham sua própria participação<br />

na ação. Suas palavras, porém, vibram uma nota completamente<br />

diferente, pois havendo dito que algo lhe era aplicável, ele corrige isso e o<br />

transfere inteiramente para Deus; inteiramente, insisto, e não apenas uma<br />

parte; pois ele afirma que, qualquer coisa que fosse como que feita por<br />

ele, na verda<strong>de</strong> era totalmente obra da graça. Este é <strong>de</strong>veras um versículo<br />

notável, não só em sua função <strong>de</strong> reduzir a pó o orgulho humano, mas<br />

também em pôr em relevo como a graça divina age em nós. Porque, como<br />

se tivesse in<strong>de</strong>vidamente feito <strong>de</strong>le mesmo o autor <strong>de</strong> algo bom, o apóstolo<br />

corrige o que dissera, e <strong>de</strong>clara que a graça <strong>de</strong> Deus é a causa eficiente<br />

<strong>de</strong> tudo. Não <strong>de</strong>vemos imaginar que ele aqui está meramente simulando<br />

humilda<strong>de</strong>. 29 É <strong>de</strong> bom grado que ele fale assim e por saber que essa é a<br />

26 “Dieu donnoit plus heureuse issue à ses labeurs, et les faisoit proufiter plus amplement.” –<br />

“Deus <strong>de</strong>u a seus labores um resultado mais próspero, e os fez muito mais bem sucedidos.”<br />

27 “No manuscrito alexandrino, a redação é: Οὐκ ἐγὼ δε, ἀλλ̕ ἡ χάρις του̑ Θεου̑ σὺν ἐμοί. “Porém<br />

não eu, mas a graça <strong>de</strong> Deus comigo.” – Correspon<strong>de</strong>ndo a isto a tradução <strong>de</strong> Wiclif<br />

(1380): “Porém não eu, mas a graça <strong>de</strong> Deus comigo.”<br />

28 Ele faz menção disso nas Institutas.<br />

29 Hei<strong>de</strong>ggerus parece ter tido a exposição <strong>de</strong> Calvino diante dos olhos nas seguintes observações<br />

sobre a expressão usada pelo apóstolo: “Non Gratia Dei mecum, ut vetus Itala<br />

vertit, quasi effectus inter Gratiam Dei, et Pauli arbitrium distribueretur; nihil enim habuit<br />

ipse, quod non acceperit; sed ἡ σὺν ἐμοί, quœ mecum, ut totum et in solidum omne gratiæ<br />

soli acceptum feratur. Neque ita loquitur solius humitatis et mo<strong>de</strong>stiæ explicandæ ergo,<br />

quanquam et hanc testari voluit; sed quia potens illa gratia <strong>de</strong>monstratio et testmonium


Capítulo 15 • 529<br />

plena verda<strong>de</strong>. Devemos, pois, apren<strong>de</strong>r que o único bem que temos é<br />

aquele que o Senhor nos conce<strong>de</strong> graciosamente; que o único bem que<br />

praticamos é aquele que ele produz em nós [Fp 2.13]; que nada fazemos<br />

por nós mesmos, mas que só agimos quando somos influenciados; em outros<br />

termos, quando estamos sob a direção e influência do Espírito Santo.<br />

11. Portanto, seja eu, ou [sejam] eles,<br />

assim pregamos, e assim crestes.<br />

12. Ora, se se prega que Cristo ressuscitou<br />

<strong>de</strong>ntre os mortos, como é que<br />

alguns <strong>de</strong>ntre vós afirmam que não<br />

há ressurreição <strong>de</strong> mortos?<br />

13. Mas, se não há ressurreição dos mortos,<br />

então Cristo não ressuscitou;<br />

14. e, se Cristo não ressuscitou, então<br />

é vã nossa pregação, e vã também<br />

vossa fé.<br />

15. Sim, e ainda somos tidos por falsas<br />

testemunhas <strong>de</strong> Deus, porque testificamos<br />

<strong>de</strong> Deus que ele ressuscitou<br />

a Cristo, a quem ele não ressuscitou,<br />

se é certo que os mortos não<br />

ressuscitam.<br />

16. Porque, se os mortos não ressuscitam,<br />

então Cristo não ressuscitou;<br />

17. e, se Cristo não ressuscitou, é vã<br />

vossa fé, e ainda permaneceis em<br />

vossos pecados.<br />

18. Então os que também adormeceram<br />

em Cristo pereceram.<br />

19. Se temos esperança em Cristo somente<br />

nesta vida, somos os mais<br />

miseráveis <strong>de</strong> todos os homens.<br />

11. Sive ego igitur, sive illi, ita prædicamus,<br />

et ita credidistis.<br />

12. Si autem Christus prædicatur excitatus<br />

a mortuis, quomodo dicunt<br />

quidam, mortuorum resurrectionem<br />

non esse?<br />

13. Si autem mortuorum resurrectio<br />

non est, neque Christus resurrexit.<br />

14. Quodsi Christus non resurrexit,<br />

inanis igitur est prædicatio nostra,<br />

inanis et fi<strong>de</strong>s vestra.<br />

15. Invenimur etiam falsi testes Dei,<br />

quia testati sumus a Deo, quod<br />

suscitaverit Christum; quem non<br />

suscitavit, siqui<strong>de</strong>m mortui non resurgunt.<br />

16. Si enim mortui non resurgunt, neque<br />

Christus resurrexit.<br />

17. Si autem Christus non resurrexit,<br />

vana est fi<strong>de</strong>s vestra: adhuc estis in<br />

peccatis vestris.<br />

18. Ergo et qui obdormierunt in Christo<br />

perierunt.<br />

19. Quodsi in hac vita solum speramus<br />

in Christo, miserrimi sumus omnium<br />

hominum.<br />

irrefragabile erat resurrectionis Domini.” – “Não a graça <strong>de</strong> Deus comigo, segundo o traduz<br />

a antiga versão itálica, como se o efeito fosse dividido entre a gaça <strong>de</strong> Deus e o livre-arbítrio<br />

<strong>de</strong> Paulo; pois ele nada tem que não fosse recebido, mas ἡ σὺν ἐμοί, que é comigo, para<br />

que cada coisa seja total e inteiramente atribuída à graça somente. Tampouco fala assim<br />

simplesmente com o propósito <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar humilda<strong>de</strong> e modéstia, embora ele tivesse<br />

também em vista testificar <strong>de</strong>sse fato, mas porque a graça era uma po<strong>de</strong>rosa <strong>de</strong>monstração<br />

e irrefutável testemunho da ressurreição <strong>de</strong> nosso Senhor.” – Hei<strong>de</strong>ggeri Labores Exegetici<br />

in Cor. (Giguri. 1700), p. 154.


530 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

11. Seja eu, ou [sejam] eles. Havendo se comparado com os <strong>de</strong>mais<br />

apóstolos, ele agora se põe lado a lado com eles, e vice-versa,<br />

em concordância com o tema <strong>de</strong> sua pregação. É como se quisesse<br />

dizer: “Não estou falando <strong>de</strong> mim mesmo, mas todos nós temos ensinado<br />

como se fosse uma só boca, e ainda continuamos a ensinar<br />

assim.” Pois o verbo κηρύσσομεν [pregamos] está no tempo presente,<br />

indicando ação contínua ou persistência no ensino. 30 “Se, pois, ele for<br />

diferente, nosso apostolado é sem efeito; não só isso, assim crestes;<br />

vossa religião, pois, se pulveriza .”<br />

12, 13. Ora, se Cristo. Ele então começa provando a ressurreição<br />

<strong>de</strong> todos nós pelo prisma da ressurreição <strong>de</strong> Cristo. Pois uma inferência<br />

mútua e recíproca é bem estabelecida <strong>de</strong> um lado e do outro, tanto<br />

afirmativa quanto negativa. Em primeiro lugar, se consi<strong>de</strong>rarmos “<strong>de</strong><br />

Cristo para nós”, então temos: “Se Cristo ressuscitou, então também<br />

ressuscitaremos. Se Cristo não ressuscitou, então também não ressuscitaremos.”<br />

Se mudarmos a or<strong>de</strong>m, “<strong>de</strong> nós para Cristo”, teremos: “Se<br />

ressuscitarmos, é porque Cristo ressuscitou. Se não ressuscitarmos, é<br />

porque também Cristo não ressuscitou.”<br />

Agora tomemos essas partes em sua or<strong>de</strong>m. Este é o raciocínio<br />

por trás do argumento que é extraído do termo “<strong>de</strong> Cristo para nós”:<br />

“Cristo não morreu nem ressuscitou por sua própria causa, mas por<br />

nossa causa; portanto, sua ressurreição é a substância [hypostasis] 31 da<br />

nossa; e o que foi efetuado nele <strong>de</strong>ve concretizar-se em nós também.”<br />

A forma negativa, por outro lado, é a seguinte: “Do contrário, não haveria<br />

qualquer razão ou propósito para sua ressurreição, visto que o<br />

resultado <strong>de</strong>la não <strong>de</strong>ve ser buscado em sua própria pessoa, mas em<br />

seus membros.”<br />

Em contrapartida, o raciocínio por trás da conclusão prece<strong>de</strong>nte,<br />

do qual se <strong>de</strong>ve extrair o argumento “<strong>de</strong> nós para ele”, é o seguinte: “A<br />

ressurreição não é um fato natural, e não se origina <strong>de</strong> nenhuma ou-<br />

30 “Perseuerance à enseigner ceste mesme chose.” – “Perseverança em ensinar a mesma<br />

coisa.”<br />

31 “La substance et le fon<strong>de</strong>ment <strong>de</strong> la nostre.” – “A substância e fundamento da nossa.”


Capítulo 15 • 531<br />

tra fonte, senão unicamente <strong>de</strong> Cristo. Visto que em Adão morremos,<br />

somente em Cristo é que voltamos à vida. Segue-se <strong>de</strong>ste fato que sua<br />

ressurreição é a base da nossa; portanto, se a sua for eliminada, então<br />

não nos ficará nada.” 32 O raciocínio por trás da conclusão negativa já<br />

foi apresentado; porque, uma vez que ele ressuscitou unicamente por<br />

nossa causa, então, se não houver benefício algum para nós, 33 não haverá<br />

também nenhuma ressurreição <strong>de</strong> sua parte.<br />

14. Então é vã nossa pregação, não simplesmente porque ela<br />

inclua um certo elemento <strong>de</strong> falsida<strong>de</strong>, mas porque é indigna e um<br />

completo logro. Pois o que fica se Cristo foi <strong>de</strong>vorado pela morte;<br />

se foi aniquilado; se sucumbiu-se sob a maldição do pecado; se, finalmente,<br />

ficou cativo <strong>de</strong> Satanás? Numa palavra, uma vez que o<br />

princípio fundamental foi removido, tudo o que resta será <strong>de</strong> nenhum<br />

valor.<br />

Pela mesma razão ele adiciona que a fé <strong>de</strong>les seria inútil; pois<br />

que soli<strong>de</strong>z <strong>de</strong> fé po<strong>de</strong> haver, quando nenhuma esperança <strong>de</strong> vida vigora?<br />

Mas que na morte <strong>de</strong> Cristo, consi<strong>de</strong>rada em si mesma, 34 nada<br />

<strong>de</strong>scobrimos senão motivo para <strong>de</strong>sespero; pois aquele que foi completamente<br />

vencido pela morte não po<strong>de</strong> efetuar a salvação <strong>de</strong> outros.<br />

Lembremo-nos, pois, que o principal fundamento <strong>de</strong> todo o evangelho<br />

é a morte e ressurreição <strong>de</strong> Cristo; <strong>de</strong> sorte que <strong>de</strong>vemos <strong>de</strong>dicar especial<br />

atenção a ambas, caso queiramos fazer bom e normal progresso<br />

no evangelho, ou, antes, se não quisermos permanecer estéreis e infrutíferos<br />

[2Pe 1.8].<br />

32 “Si ce fon<strong>de</strong>ment est osté, nostre resurrection ne pourra consister.” – “Se este fundamento<br />

for removido, nossa ressurreição não po<strong>de</strong> <strong>de</strong> modo algum permanecer.”<br />

33 Billroth, ao citar a afirmação supra <strong>de</strong> Calvino, observa que “Calvino parece ter se enganado<br />

com o duplo significado das palavras que ele usa – ‘nulla ejus resurrectio foret’; elas<br />

po<strong>de</strong>m significar ou ‘ejus resurrectio non est’, ou ‘ejus resurrectio non est vera resurrectio’<br />

– ‘sua ressurreição não é uma ressurreição real, e <strong>de</strong> fato só a última [expressão] se<br />

a<strong>de</strong>qua a seu ponto <strong>de</strong> vista sobre o argumento <strong>de</strong> Paulo.” Entretanto, é bem observado<br />

pelo Dr. Alexan<strong>de</strong>r, em sua tradução <strong>de</strong> Billroth, que Calvino po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado como<br />

tendo “usado a palavra nulla aqui no sentido <strong>de</strong> nossa palavra nula, vazia, inútil” sendo<br />

sua asseveração com este propósito – que “se não ressuscitarmos, então a ressurreição<br />

<strong>de</strong> Cristo se tornou nula.” Ver Biblical Cabinet, vol. xxiii. p. 86.<br />

34 “C’est à dire, sans la resurrection.” – “Equivale dizer, à parte <strong>de</strong> sua ressurreição.”


532 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

15. Somos ainda tidos por falsas testemunhas. Os outros resultados<br />

negativos que ele já relatou são certamente muitíssimo sérios,<br />

no tocante a nós, ou, seja: que a fé <strong>de</strong>svanece; que todo o ensino do<br />

evangelho é inútil e sem valor; que somos privados <strong>de</strong> toda esperança<br />

<strong>de</strong> salvação. Mas também não é uma questão trivial e sem importância<br />

o fato <strong>de</strong> os apóstolos passarem por homens que estiveram enganando<br />

o mundo com suas mentiras; pois tal coisa faria Deus repelível e o<br />

revelaria da pior forma possível.<br />

Po<strong>de</strong>mos tomar a frase, falsas testemunhas <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong> duas formas:<br />

ou que estavam mentindo ao fazerem mau uso do nome <strong>de</strong> Deus,<br />

simplesmente como pretexto; ou que o povo <strong>de</strong>scobriu que eram mentirosos<br />

quando testificavam quanto ao que haviam recebido <strong>de</strong> Deus.<br />

A segunda exerce um apelo mais forte sobre mim, visto ser uma questão<br />

mais grave do que a outra; e Paulo já havia falado <strong>de</strong> como afetava<br />

os homens. 35 Ele agora ensina que, se a ressurreição <strong>de</strong> Cristo for negada,<br />

então Deus será culpado <strong>de</strong> mentir na pessoa <strong>de</strong> testemunhas que<br />

foram apresentadas e contratadas por ele. 36 A razão acrescida também<br />

concorda muito com isso, visto que fizeram falsa asseveração, não por<br />

sua própria iniciativa, mas pela <strong>de</strong> Deus.<br />

Estou ciente <strong>de</strong> haver os que explicam a preposição κατα <strong>de</strong> forma<br />

diferenciada. A Vulgata a traduz adversus, contra; enquanto Erasmo a<br />

traduz <strong>de</strong>, concernente. 37 Visto, porém, que ela em grego também produz<br />

o sentido <strong>de</strong> από, ou, seja, <strong>de</strong>, este significado pareceu-me estar em<br />

35 “Et aussi il auoit <strong>de</strong>sia parlé du <strong>de</strong>shonneur qui en reuindroit aux hommes, c’est à dire<br />

aux Apostres et autres preschurs.” – “E além disso ele falara previamente da <strong>de</strong>sonra que<br />

resultava <strong>de</strong>la para os homens – isto é, aos apóstolos e aos <strong>de</strong>mais pregadores.”<br />

36 “Comme subornez.” – “Como se fossem alugados.”<br />

37 Raphelius adiciona dois exemplos <strong>de</strong> κατα sendo empregado pelos escritores clássicos<br />

no sentido <strong>de</strong> concernente. Ταυ̑τα μὲν δὴ κατα πάντων Περσω̑ν ἔχομεν λέγειν – “E estas são<br />

coisas que po<strong>de</strong>mos afirmar concernentes a todos os persas.” (Xen. Cyrop., Livro i. p. 6,<br />

linha 33). ʻΟ κατα τω̑ν τεχνω̑ν καὶ ἐπιστημω̑ν λέγειν εἰώθαμεν ταυτὸν καὶ κατα τη̑ς ἀρετη̑ς φατέον<br />

ἐστίν – “Que estamos acostumados a dizer em referência às artes e ciências, po<strong>de</strong> também<br />

ser dito em referência à virtu<strong>de</strong>.” (Plutarco, cap. 4). Bloomfield sugere que o apóstolo<br />

provavelmente empregou κατα no sentido “muito raro” <strong>de</strong> concernente, “como que <strong>de</strong>sejando<br />

incluir o sentido “em prejuízo <strong>de</strong>”, o que ocasionaria falsificação, visto que quase<br />

implicaria uma carência <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r em Deus para ressuscitar os mortos, pois os filósofos<br />

gentios o negavam.”


Capítulo 15 • 533<br />

mais harmonia com a intenção do apóstolo. Porquanto ele aqui não<br />

está tratando da reputação humana (como já afirmei), mas do fato <strong>de</strong><br />

Deus ser exposto à acusação <strong>de</strong> mentir, visto que aquilo que estavam<br />

proclamando tinha sua origem nele.<br />

17. E ainda permaneceis em vossos pecados. Embora Cristo tenha<br />

feito expiação por nossos pecados, <strong>de</strong> modo que não são mais<br />

levados em conta para acusação contra nós ante o tribunal <strong>de</strong> Deus, e<br />

tenha crucificado nosso velho homem para que suas paixões não mais<br />

reinassem em nós, e finalmente ele, por meio <strong>de</strong> sua própria morte, tenha<br />

<strong>de</strong>struído o po<strong>de</strong>r da morte e do próprio diabo [Hb 2.14], contudo<br />

não haveria nenhuma virtu<strong>de</strong> nesses fatos caso ele não emergisse vitorioso<br />

por meio <strong>de</strong> sua ressurreição. Assim, caso a ressurreição fosse<br />

anulada, a tirania do pecado seria outra vez estabelecida.<br />

18. Então os que adormeceram. Tendo em vista provar que, se<br />

a ressurreição <strong>de</strong> Cristo fosse eliminada, nossa fé seria baldada e o<br />

Cristianismo 38 não passaria <strong>de</strong> uma ilusão, então ele disse que a existência<br />

[humana] permaneceria em seus pecados; mas como há uma<br />

ilustração mais clara <strong>de</strong>sta matéria a ser vista nos mortos, ele então<br />

faz alusão a eles como um exemplo. “Que vantagem teriam os mortos<br />

que uma vez foram cristãos? Portanto, nossos irmãos que já enfrentaram<br />

a morte viveram na fé em Cristo sem nenhuma objetivida<strong>de</strong>.” Mas<br />

se se admitir que a essência da alma é imortal, então este argumento,<br />

à primeira vista, parece conclusivo; porque mui prontamente se replicará<br />

que os mortos não pereceram, visto que suas almas continuam<br />

existindo num estado <strong>de</strong> separação <strong>de</strong> seus corpos. Daí, alguns fanáticos<br />

concluem, à luz <strong>de</strong>ste versículo, que não po<strong>de</strong> haver vida alguma<br />

no período intermediário entre a morte e a ressurreição; mas não é<br />

difícil refutar tal frenesi. 39 Porque, embora as almas dos mortos estejam<br />

agora vivas e felizes no bendito repouso, todavia a plenificação <strong>de</strong><br />

38 “La profession <strong>de</strong> Chrestiente.” – “A profissão [<strong>de</strong> fé] do Cristianismo.”<br />

39 Beza menciona em seu livro Vida <strong>de</strong> Calvino, o qual antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar a França, em 1534,<br />

“publicou seu admirável tratado, intitulado Psychopannychia, contra o erro dos que, revivendo<br />

uma doutrina que fora <strong>de</strong>fendida nos primeiros séculos, ensinavam que a alma,<br />

quando se separa do corpo, permanece dormente.” Calvin’s Tracts, vol, ii, p. xxvi.


534 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

sua felicida<strong>de</strong> e consolação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> unicamente da ressurreição; pois<br />

há boas razões para que estejam aguardando aquele dia quando serão<br />

convocados a tomarem posse do reino <strong>de</strong> Deus. Daí, no que tange à<br />

esperança dos mortos, tudo se <strong>de</strong>svanecerá, a menos que aquele dia<br />

chegue logo, ou chegue mais tar<strong>de</strong>.<br />

19. Se esperamos em Cristo somente nesta vida. Aqui temos outro<br />

absurdo, não só pelo fato <strong>de</strong> estarmos <strong>de</strong>sperdiçando baldadamente<br />

nosso tempo e esforço, teimando em crer, uma vez que o benefício<br />

<strong>de</strong>rivado <strong>de</strong> nossa fé perece com a morte, mas também pelo fato <strong>de</strong> ser<br />

preferível não crermos <strong>de</strong> forma alguma, pois os incrédulos estariam<br />

numa posição muito mais consistente e muito mais <strong>de</strong>sejável.<br />

Esperar “somente nesta vida”, aqui, significa restringir a este<br />

mundo os benefícios <strong>de</strong>rivados <strong>de</strong> nossa fé, <strong>de</strong> modo que esta fé nada<br />

vê nem se esten<strong>de</strong> para além dos limites <strong>de</strong>sta presente vida. Esta<br />

afirmação mostra ainda mais claramente que os coríntios se <strong>de</strong>ixaram<br />

influenciar por alguma noção equivocada e fantasiosa <strong>de</strong> que a ressurreição<br />

era <strong>de</strong> caráter simbólico, como aquela <strong>de</strong>fendida por Himeneu<br />

e Fileto, naquele tempo, como se o fruto final <strong>de</strong> nossa fé estivesse<br />

diante <strong>de</strong> nós apenas nesta vida [2Tm 2.17, 18]. Porque, visto que a<br />

ressurreição é a completação <strong>de</strong> nossa salvação, e como todas as bênçãos,<br />

por assim dizer, visam a um alvo mais além, 40 aquele que afirma<br />

que nossa ressurreição é assunto do passado não nos <strong>de</strong>ixa nada que<br />

valha a pena esperar <strong>de</strong>pois da morte. Seja como for, esta passagem<br />

não oferece qualquer apoio ao <strong>de</strong>spropósito daqueles que imaginam<br />

que nossas almas adormecem juntamente com nossos corpos até o<br />

dia da ressurreição. 41 Pois replicam que, se nossas almas continuam<br />

40 Esta afirmação quanto à ressurreição está notavelmente em contraste com o célebre<br />

sentimento <strong>de</strong> Horácio (Epístola i. 16, 79): “Mors est ultima linea rerum.” – “A morte é a<br />

fronteira final das coisas.” Os filósofos pagãos negavam a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma ressurreição.<br />

Assim Plínio (Hist. Nat. L. ii. c. 7) diz: “Revocare <strong>de</strong>functos ne Deus qui<strong>de</strong>m potest.”<br />

– “Chamar <strong>de</strong> volta os mortos é algo que o próprio Deus não po<strong>de</strong> fazer.”<br />

41 Pareus, ao comentar esta passagem, chama a atenção, nos seguintes termos, para o princípio<br />

infra-referido: “Nequaquam vero hinc sequitur, quod Psychopannychitæ finxerunt:<br />

animas post mortem dormire, aut in nihilum cum corporibus redigi. Perire enim dicuntur<br />

infi<strong>de</strong>les quoad animas, non physicà, quod corruptæ inereant; sed theologicèd, quod


Capítulo 15 • 535<br />

vivas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> serem separadas <strong>de</strong> nossos corpos, então Paulo não<br />

teria dito que, se a ressurreição fosse eliminada, teríamos esperança<br />

somente nesta vida, visto que nossas almas teriam em si alguma<br />

sorte <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>. Minha resposta a esta questão é que o apóstolo<br />

não tinha em mente os campos Elíseos 42 nem algum outro disparatado<br />

absurdo <strong>de</strong>sse gênero, mas ele aponta para o indubitável fato <strong>de</strong> que<br />

os cristãos direcionam sua esperança inteiramente para o dia do Juízo<br />

Final; que as almas crentes, hoje, também se regozijam precisamente<br />

com a mesma expectativa; e, por essa razão, tudo estaria perdido para<br />

nós se uma segurança <strong>de</strong>ssa sorte nos fosse provada ser falsa.<br />

Por que, pois, nos disse ele que seríamos os mais miseráveis <strong>de</strong><br />

todos os homens, como se a sorte <strong>de</strong> um cristão fosse pior que a <strong>de</strong><br />

um incrédulo? “Tudo suce<strong>de</strong> igualmente a todos... ao justo e ao ímpio”,<br />

diz Salomão [Ec 9.2]. Replico que todos os homens, sejam eles bons ou<br />

maus, estão indubitável e igualmente expostos às mesmas calamida<strong>de</strong>s<br />

e experimentam as mesmas frustrações e os mesmos infortúnios;<br />

entretanto, há duas razões por que os cristãos sofrem mais, em todos<br />

os tempos; e há ainda outra razão que pertenceu peculiarmente ao<br />

tempo <strong>de</strong> Paulo.<br />

A primeira razão consiste em que, embora o Senhor pu<strong>de</strong>sse com<br />

mais freqüência castigar também os incrédulos com seus azorragues,<br />

e começar a exercer seus juízos contra eles, contudo, particularmente,<br />

ele cuida <strong>de</strong> afligir seu próprio povo, e isso <strong>de</strong> diferentes formas.<br />

Ele assim proce<strong>de</strong>, primeiramente, porque aqueles a quem ele ama<br />

também os disciplina; e, em segundo lugar, a fim <strong>de</strong> treiná-los na paciência,<br />

para provar sua obediência, ele os prepara, paulatinamente,<br />

viventes felicitatem cœlestem non consequantur; sed in tartara ad pænas solæ vel cum<br />

corporibus tan<strong>de</strong>m <strong>de</strong>trudantur.” – “Entretanto, <strong>de</strong> modo algum se segue disto, segundo<br />

as maquinações dos que acreditam que as almas dormem, que <strong>de</strong> fatos as almas dormem<br />

<strong>de</strong>pois da morte, ou que são reduzidas a nada juntamente com o corpo. Pois lemos<br />

que os incrédulos perecem no tocante a suas almas, não fisicamente, como se elas se<br />

<strong>de</strong>teriorassem e morressem, mas teologicamente, porque, embora vivam, não alcançam<br />

a felicida<strong>de</strong> celestial, mas são, por fim, lançadas no inferno para castigo, sozinhas ou<br />

juntamente com o corpo.”<br />

42 Descrito em maior extensão por Virgílio (Eneida, 6, 637-703).


536 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

pelo caminho da cruz, para uma genuína renovação. Seja como for,<br />

o seguinte fato sempre se prova verda<strong>de</strong>iro no tocante aos crentes:<br />

“Pois chegou a hora <strong>de</strong> começar o julgamento pela casa <strong>de</strong> Deus” [Jr<br />

25.29; 1Pe 4.17 43 ]; ainda: “Somos consi<strong>de</strong>rados como ovelhas para o<br />

matadouro” [Sl 44.22]; e mais: “Porque já morrestes, e vossa vida está<br />

escondida com Cristo em Deus” [Cl 3.3]. Conquanto isto, as circunstâncias<br />

dos incrédulos são geralmente mais afortunadas, porque o<br />

Senhor os engorda como suínos para o dia da matança.<br />

A segunda razão consiste em que os crentes, ainda que possuam<br />

em abundância riquezas e bens <strong>de</strong> toda sorte, todavia nem tudo corre<br />

bem em sua esfera, e nem se saciam festivamente. Numa palavra, o<br />

mundo não os satisfaz, como se dá com os incrédulos; ao contrário, seguem<br />

seu caminho com corações ansiosos, suspirando todo o tempo<br />

[2Co 5.2], em parte porque são cônscios <strong>de</strong> suas próprias <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>s,<br />

e em parte porque sentem sauda<strong>de</strong> da vida por vir. Os incrédulos, em<br />

contrapartida, vivem completamente absortos pelos <strong>de</strong>leites intoxicantes<br />

<strong>de</strong>sta presente vida. 44<br />

A terceira razão, como disse antes, a qual era peculiar ao próprio<br />

tempo <strong>de</strong> Paulo, consiste em que o nome cristão era, naquele tempo,<br />

algo tão odioso e <strong>de</strong>sacreditado, que ninguém selaria seu compromisso<br />

<strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a Cristo sem se expor a imediatos riscos <strong>de</strong> morte.<br />

Portanto, Paulo tem boas razões para dizer que os cristãos seriam “os<br />

mais miseráveis <strong>de</strong> todos os homens” se sua confiança se limitasse a<br />

este mundo.<br />

43 Calvino, ao comentar 1 Pedro 4.17, ao falar do juízo que começa pela casa <strong>de</strong> Deus, diz:<br />

“I<strong>de</strong>o dicit Paulus, (1 Cor. xv. 19,) Christianos sublata fi<strong>de</strong> resurrectionis, comnium hominum<br />

miserrimos fore: et merito, quia dum alii absque metu sibi indulgent, assidue<br />

ingemiscunt fi<strong>de</strong>les: dum aliorum peccata dissimulat Deus, et alios torpore sinit, suos<br />

sub crucis disciplina multo rigidius exercet.” – “Daí Paulo dizer, e com justiça [1Co 15.19],<br />

que os cristãos, caso a esperança numa ressurreição fosse apagada, seriam todos eles<br />

homens em extremo miseráveis, porque, enquanto outros se refestelam sem temor, os<br />

crentes <strong>de</strong>snecessariamente gemem; embora Deus pareça permitir que os pecados dos<br />

outros passem <strong>de</strong>sapercebidamente, e permitir que ainda outros vivam em estado <strong>de</strong><br />

torpor, ele exercita seu próprio povo <strong>de</strong> forma mais severa sob a disciplina da cruz.”<br />

44 “Es voluptez et <strong>de</strong>lices <strong>de</strong> ce mon<strong>de</strong>.” – “com os prazeres e <strong>de</strong>leites <strong>de</strong>sta vida.”


Capítulo 15 • 537<br />

20. Mas <strong>de</strong> fato Cristo ressuscitou<br />

<strong>de</strong>ntre os mortos, e veio a ser as<br />

primícias dos que dormem.<br />

21. Porque, assim como a morte veio<br />

por [meio <strong>de</strong>] um homem, também<br />

por [meio <strong>de</strong>] um homem veio a ressurreição<br />

dos mortos.<br />

22. Pois assim como em Adão todos<br />

morrem, assim também em Cristo<br />

todos serão vivificados.<br />

23. Mas cada um em sua própria or<strong>de</strong>m:<br />

Cristo, as primícias; então os<br />

que são <strong>de</strong> Cristo, em sua vinda.<br />

24. Então virá o fim, quando tiver entregue<br />

o reino a Deus, sim, ao Pai; e<br />

quando tiver abolido todo governo<br />

e toda autorida<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>r.<br />

25. Porque importa que ele reine, até<br />

que ponha todos seus inimigos <strong>de</strong>baixo<br />

<strong>de</strong> seus pés.<br />

26. O último inimigo a ser <strong>de</strong>struído é<br />

a morte.<br />

27. Porque ele pôs todas as coisas <strong>de</strong>baixo<br />

<strong>de</strong> seus pés. Mas quando diz<br />

que todas as coisas lhe estão sujeitas,<br />

é evi<strong>de</strong>nte que excetua aquele<br />

que lhe sujeitou todas as coisas.<br />

28. E quando todas as coisas lhe estiverem<br />

sujeitas, então o Filho também<br />

se sujeitará àquele que todas as coisas<br />

lhe sujeitou, para que Deus seja<br />

tudo em todos.<br />

20. Nunc autem Christus resurrexit a<br />

mortuis, primitiæ eorum qui domierunt,<br />

fuit.<br />

21. Quandoqui<strong>de</strong>m enim per hominem<br />

mors, etiam per hominem resurrectio<br />

mortuorum.<br />

22. Quemadmodum enim in Adam omnes<br />

moriuntur, ita et in Chiristo<br />

omnes vivificabuntur.<br />

23. Unusquisque autem in proprio ordine.<br />

Primitiæ Christus, <strong>de</strong>in<strong>de</strong>, qui<br />

Christi erunt in adventu ipsius.<br />

24. Postea finis, quum tradi<strong>de</strong>rit regnum<br />

Deo et Patri, quum aboleverit<br />

omnem principatum, et omnem potestatem,<br />

et virtutem.<br />

25. Oportet enim ipsum regnare, donec<br />

posuerit omnes inimicos sub pe<strong>de</strong>s<br />

suos.<br />

26. Novissimus <strong>de</strong>struetur hostis mors.<br />

27. Omnia enim subjecit sub pe<strong>de</strong>s eius:<br />

quum omnia dixerit, Clarum est,<br />

quod omnia sunt subjecta præter<br />

eum, qui omnia illi subjecit.<br />

28. Quum autem subjecerit illi omnia,<br />

tunc et ipse Filius subjicietur ei, qui<br />

omnia illi subjecit, ut sit Deus omnia<br />

in omnibus.<br />

20. Mas <strong>de</strong> fato Cristo ressuscitou. Uma vez <strong>de</strong>monstrado como<br />

tudo ficaria completamente transtornado caso neguemos a ressurreição<br />

dos mortos, o apóstolo agora toma como certo o que havia plenamente<br />

comprovado antes, a saber: que Cristo ressuscitou, e acrescenta que ele<br />

é as primícias, 45 uma metáfora emprestada (ao que parece) da antiga<br />

45 “Embora a ressurreição <strong>de</strong> Cristo, comparada com as primícias <strong>de</strong> qualquer espécie,<br />

mantenha plena harmonia com elas, contudo mais especialmente concorda com o oferecimento<br />

da gavela [feixe], comumente <strong>de</strong>nominada rmw[, ômer, não só como a coisa em si,


538 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

prática sob a lei. Pois assim como nas primícias toda a colheita anual<br />

era consagrada, também o po<strong>de</strong>r da ressurreição <strong>de</strong> Cristo se esten<strong>de</strong><br />

a todos nós; ou, se se preferir uma explicação mais simples, que nele<br />

colheram-se os primeiros frutos da ressurreição. Entretanto, eu mesmo<br />

prefiro enten<strong>de</strong>r o versículo neste sentido, ou, seja: que o <strong>de</strong>scanso dos<br />

mortos o seguirá, da mesma maneira como sucedia com as primícias <strong>de</strong><br />

toda a colheira; 46 e isso é confirmado pelo próximo versículo.<br />

21, 22. Assim como a morte veio por [meio <strong>de</strong>] um homem. O<br />

ponto a ser comprovado é este: que Cristo é as primícias e, em contrapartida,<br />

que ele não ressuscitou <strong>de</strong>ntre os mortos como um mero<br />

indivíduo. Ele produz sua prova partindo dos contrários; visto que<br />

a morte não provém da natureza, mas em conseqüência do pecado<br />

humano. Portanto, assim como Adão não provou a morte só para si,<br />

senão que ela atingiu a todos nós, segue-se que Cristo <strong>de</strong> forma semelhante,<br />

que é o antítipo, 47 não ressuscitou exclusivamente para si.<br />

Porque ele veio restaurar tudo quanto foi danificado em Adão.<br />

Deve-se observar, contudo, a força do argumento, pois ele não discute<br />

à guisa <strong>de</strong> similitu<strong>de</strong>, nem à guisa <strong>de</strong> exemplo, senão que se vale<br />

mas também quanto às circunstâncias do tempo. Pois primeiramente houve a Páscoa, e o<br />

dia seguinte foi o dia sabático, e no dia seguinte a esse ele, as primícias dos que dormiam,<br />

ressuscitou. Todos os que morreram antes <strong>de</strong> Cristo, e ressuscitaram para a vida, morreram<br />

novamente; Cristo, porém, é as primícias <strong>de</strong> todos os que ressuscitarão <strong>de</strong>ntre os<br />

mortos para nunca mais morrerem.” – Lightfoot.<br />

46 “As primícias lhe era, por or<strong>de</strong>m divina, apresentadas numa <strong>de</strong>terminada estação do ano,<br />

não só como um emblema da gratidão dos israelitas por sua liberalida<strong>de</strong>, mas como uma<br />

garantia da próxima colheita. Neste sentido, ele é chamado as primícias dos mortos. Ele<br />

foi o primeiro na or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> tempo, pois embora alguns foram restaurados à vida, pela instrumentalida<strong>de</strong><br />

dos profetas, e por ele próprio durante seu ministério pessoal, nenhum<br />

<strong>de</strong>les saiu <strong>de</strong> seu túmulo para voltar para aqueles que ainda viviam <strong>de</strong>pois da ressurreição<br />

<strong>de</strong>le; e como ele foi o primeiro no tocante ao tempo, assim ele foi o primeiro na or<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong> sucessão. Todos os santos que o seguiam como a colheita, seguiram a apresentação<br />

das primícias no templo. O intervalo é longo, e a lúgubre esterilida<strong>de</strong> do túmulo po<strong>de</strong>ria<br />

justificar a conclusão <strong>de</strong> que a semente que lhe foi entregue pereceu para sempre. Nossa<br />

esperança, porém, repousa em seu po<strong>de</strong>r, o qual po<strong>de</strong> transformar o <strong>de</strong>serto em ramalhetes<br />

<strong>de</strong> rosas; e ainda esperamos que as influências celestiais <strong>de</strong>sçam como o orvalho<br />

sobre as ervas, quando o solo estéril exibirá toda a exuberância da vegetação, e a própria<br />

morte se esvaziará com a vida.” – Dick’s Theology, vol. iv. pp. 50, 51.<br />

47 “Le premier patron <strong>de</strong> la resurrection pour opposer à la mort d’Adam.” – “O primeiro<br />

mo<strong>de</strong>lo da ressurreição, em oposição à morte <strong>de</strong> Adão.”


Capítulo 15 • 539<br />

<strong>de</strong> causas opostas com o propósito <strong>de</strong> provar efeitos opostos. A causa<br />

da morte é Adão, e nós morremos nele; portanto, Cristo, cuja ofício é<br />

restaurar o que per<strong>de</strong>mos em Adão, é para nós a causa da vida; e sua<br />

ressurreição é a substância [hypostasis] e penhor <strong>de</strong> nossa própria [ressurreição].<br />

E assim como o primeiro [Adão] é o originador da morte,<br />

assim o último [Cristo] é o originador da vida. No quinto capítulo <strong>de</strong> Romanos,<br />

ele usa o mesmo contraste, mas com esta diferença: ali ele está<br />

tratando da vida e da morte espirituais; aqui, porém, o ponto em questão<br />

é a ressurreição do corpo, a qual é a recompensa da vida espiritual.<br />

23. Cada um em sua própria or<strong>de</strong>m. Aqui temos uma antecipação<br />

<strong>de</strong> uma dúvida que po<strong>de</strong>ria ser formulada: “Se a vida <strong>de</strong> Cristo”,<br />

alguém po<strong>de</strong>ria perguntar, “alonga a nossa com ela, por que não temos<br />

a menor sombra <strong>de</strong> evidência visível <strong>de</strong>ste fato? Em vez disso, embora<br />

Cristo tenha saído vivo do túmulo, nós nos <strong>de</strong>compomos nele.” A<br />

resposta do apóstolo é que Deus <strong>de</strong>signou outro meio <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nar as<br />

coisas. Portanto, que nos seja suficiente o fato <strong>de</strong> agora termos em<br />

Cristo as primícias, 48 mas o tempo <strong>de</strong> nossa ressurreição será no tempo<br />

<strong>de</strong> sua vinda. 49 Pois nossa vida <strong>de</strong>ve ainda continuar escondida com<br />

Cristo [Cl 3.3, 4], porque ele ainda não se manifestou. Portanto, seria<br />

muitíssimo errôneo querermos antecipar o dia da revelação <strong>de</strong> Cristo.<br />

24. Então virá o fim, quando ele tiver entregue. Ele põe um freio<br />

à impaciência humana, ao asseverar que o tempo não seria plenificado<br />

para nossa nova vida 50 até à vinda <strong>de</strong> Cristo. Visto, porém, que este<br />

mundo é semelhante a um mar tormentoso, no meio do qual somos<br />

constantemente arremessados <strong>de</strong> um lado paro o outro, e visto que<br />

nossa porção é tão incerta, ou antes cheia <strong>de</strong> lutas, e visto que tudo<br />

está sujeito a mudanças súbitas, as mentes frágeis são precipitadas a<br />

um estado <strong>de</strong> agitação por estas coisas. Por isso o apóstolo agora chama<br />

nossa atenção para aquele dia, dizendo que, então, tudo será posto<br />

em or<strong>de</strong>m. O fim, pois, em outros termos, será a meta final <strong>de</strong> nosso<br />

48 “Les premices <strong>de</strong> la resurrection.” – “As primícias da ressurreição.”<br />

49 “Quand il viendra en juízo.” – “Quando ele vier para o juízo.”<br />

50 “C’est à dire, <strong>de</strong> la resurrection.” – “Equivale dizer, da ressurreição.”


540 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

percurso, o céu <strong>de</strong> paz, a situação imune <strong>de</strong> todo gênero <strong>de</strong> mudanças.<br />

Ao mesmo tempo nos adverte a que <strong>de</strong>vamos esperar por esse final,<br />

porquanto não é justo que sejamos coroados no meio da trajetória.<br />

Como Cristo entregará o reino ao Pai será explicado logo em<br />

seguida. Ao dizer “a Deus o Pai”, isto po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado <strong>de</strong> duas<br />

formas: ou que Deus o Pai é chamado o Deus e Pai <strong>de</strong> Cristo, ou que<br />

o título Pai é adicionado à guisa <strong>de</strong> explicação. No segundo caso, a<br />

conjunção et (e) significará isto é. Quanto ao primeiro, não há nada <strong>de</strong><br />

incongruente ou inusitado em dizer que Cristo está em sujeição a Deus<br />

no que se refere a sua natureza humana.<br />

Quando tiver abolido todo governo. Há quem consi<strong>de</strong>re esta expressão<br />

como uma referência às potências que se põem em oposição<br />

ao próprio Cristo. Pois quem assim pensa a associa ao conteúdo do<br />

próximo versículo: “até que haja posto todos seus inimigos <strong>de</strong>baixo<br />

<strong>de</strong> seus pés.” Entretanto, esta sentença reflete o que ele disse no início<br />

do versículo, ou, seja: que Cristo não entregará o reino antes do fim.<br />

Daí, não há razão para limitarmos esta sentença da forma como essas<br />

pessoas presumem. Por isso, procuro explicá-la <strong>de</strong> uma forma geral,<br />

e entendo o termo como indicativo dos po<strong>de</strong>res legítimos que foram<br />

or<strong>de</strong>nadas por Deus [Rm 13.1].<br />

Em primeiro lugar, o que encontramos nos profetas sobre o escurecimento<br />

do sol e da lua [Is 13.10; Ez 32.7], significa que somente a<br />

glória <strong>de</strong> Deus resplan<strong>de</strong>ce; embora o cumprimento já teve início sob<br />

o reinado <strong>de</strong> Cristo, não obstante não se consumará até que tudo esteja<br />

plenamente cumprido naquele dia; mas então toda gran<strong>de</strong>za virá a<br />

baixo [Lc 3.5], para que a glória <strong>de</strong> Deus seja o único resplendor. Além<br />

do mais, estamos cientes <strong>de</strong> que todos os principados e honras terrenos<br />

estão conectados exclusivamente com a manutenção da presente<br />

vida, e, conseqüentemente, são uma parte do mundo. Daí se segue que<br />

são <strong>de</strong> caráter temporal.<br />

Portanto, visto que o mundo caminha para um final, assim também<br />

será com a socieda<strong>de</strong>, com a magistratura, com as leis, com as<br />

distinções hierárquicas, com os graus <strong>de</strong> honra e tudo o mais <strong>de</strong>s-


Capítulo 15 • 541<br />

se gênero. O servo não mais será diferente <strong>de</strong> seu senhor; o rei, do<br />

homem ordinário; e o magistrado, do cidadão comum. Além disso, haverá<br />

então um fechar <strong>de</strong> cortinas tanto para o governo que os anjos<br />

exercem no céu, quanto para os ofícios dos ministros e supervisores<br />

das igrejas, a fim <strong>de</strong> que unicamente Deus exerça seu próprio po<strong>de</strong>r<br />

e domínio, pessoalmente, e não mais pelas mãos <strong>de</strong> homens e anjos.<br />

Naturalmente, ainda haverá anjos, e eles também manterão sua superiorida<strong>de</strong><br />

[excellentia]. Os justos também resplan<strong>de</strong>cerão, cada um<br />

segundo a medida da graça recebida. Os anjos, porém, renunciarão o<br />

governo que agora exercem em nome e pela <strong>de</strong>legação divina. Os bispos,<br />

os mestres e os profetas não mais <strong>de</strong>sempenharão seus papéis,<br />

e renunciarão o ofício que agora <strong>de</strong>sempenham. Governo, autorida<strong>de</strong><br />

e po<strong>de</strong>r, neste versículo, significam quase a mesma coisa; estas três<br />

palavras, porém, se acham enfeixadas umas às outras com o fim <strong>de</strong><br />

tornar seu significado ainda mais pleno.<br />

25. Porque importa que ele reine. O apóstolo mostra que ainda<br />

não chegou o tempo <strong>de</strong> Cristo entregar o reino ao Pai, procurando<br />

enfatizar, ao mesmo tempo, que o fim ainda não chegou, quando tudo<br />

será restaurado a sua condição real e a um estado <strong>de</strong> paz, porquanto<br />

Cristo ainda não subjugou todos seus inimigos. Mas tal <strong>de</strong>verá acontecer,<br />

visto que o Pai o assentou a sua <strong>de</strong>stra sob a condição <strong>de</strong> que ele<br />

não resigne a autorida<strong>de</strong> que recebera até que todos sejam trazidos<br />

sob seu controle. Isto também foi dito para que os crentes sejam consolados,<br />

<strong>de</strong> modo que sua impaciência não cresça ante o fato <strong>de</strong> que<br />

o dia da ressurreição se faz tão <strong>de</strong>morado. Esta <strong>de</strong>claração é tomada<br />

do Salmo 110.1.<br />

Entretanto tudo indica que o apóstolo está se precavendo mais<br />

com a palavra até do que sua simples e natural significação o requer.<br />

Pois neste versículo o Espírito está anunciando, não o que ocorrerá<br />

após o fim, mas somente o que tiver acontecido <strong>de</strong> antemão. Minha resposta<br />

a isso é que o apóstolo não afirma que Cristo <strong>de</strong>volverá o reino<br />

ao Pai por isto estar predito neste Salmo, mas porque ele fez uso da<br />

evidência do Salmo simplesmente com o propósito <strong>de</strong> provar que ainda


542 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

não chegou o dia para a entrega do reino, porquanto Cristo terá ainda<br />

<strong>de</strong> enfrentar seus inimigos. Finalmente, Paulo explica, <strong>de</strong> passagem, o<br />

que está implícito por “Cristo assentado à <strong>de</strong>stra do Pai”, porque, em<br />

vez <strong>de</strong>ssa expressão metafórica, ele meramente usa o verbo reinar.<br />

26. O último inimigo ... a morte. Estamos cientes <strong>de</strong> que ainda<br />

há muitos inimigos resistindo a Cristo e obstinadamente opondo-se a<br />

seu reinado. A morte, porém, será o último inimigo 51 a ser <strong>de</strong>struído, e<br />

assim Cristo <strong>de</strong>verá continuar sendo o administrador do reino <strong>de</strong> seu<br />

Pai. Os crentes <strong>de</strong>vem, pois, criar coragem e não per<strong>de</strong>r a esperança,<br />

até que todas as coisas que <strong>de</strong>vem vir antes da ressurreição realmente<br />

se concretizem.<br />

Mas alguém po<strong>de</strong>ria perguntar o que exatamente ele tem em mente<br />

ao dizer que a morte será o último 52 inimigo a ser <strong>de</strong>struído, quando já<br />

foi <strong>de</strong>struída pela morte <strong>de</strong> Cristo, ou, sobretudo, por sua ressurreição,<br />

a qual é a vitória sobre a morte e a conquista da vida? Minha resposta é<br />

que ela já foi <strong>de</strong>struída <strong>de</strong> uma maneira tal que não mais será fatal para<br />

os crentes, mas não <strong>de</strong> maneira que não mais lhes cause sofrimento. É<br />

51 “Não po<strong>de</strong> ser impróprio observar que há uma inexatidão em nossa versão comum, a<br />

qual vicia tanto sua implicação que não parece manter a conclusão a que chegou o apóstolo.<br />

Seu propósito era estabelecer a perfeição da vitória <strong>de</strong> nosso Salvador, o avanço <strong>de</strong><br />

seus triunfos e a prostração <strong>de</strong> seus inimigos totalmente sob seu po<strong>de</strong>r. Ora, dizer que<br />

‘o último inimigo a ser <strong>de</strong>struído é a morte’, <strong>de</strong> modo algum propicia uma prova <strong>de</strong>ssa<br />

posição. Embora a morte possa ser <strong>de</strong>struída, e o último inimigo a ser <strong>de</strong>struído será<br />

ela, <strong>de</strong>sse fato não pareceria senão que os outros inimigos po<strong>de</strong>m permanecer sem ser<br />

<strong>de</strong>struídos. Mas a tradução a<strong>de</strong>quada é: ‘a morte, o último inimigo, será <strong>de</strong>struída’.” – R.<br />

Hall’s Works (Londres, 1846), vol. vi. pp. 140, 141.<br />

52 “Ultimum vero seu novissimum hostem cur vocat? Chrysostomus putat, quia ultimo<br />

accessit. Primus fuit Satan, solicitans hominem ad peccatum. Alter voluntas homimis,<br />

sponte se a Deuo avertens. Tertius peccatum. Quartus <strong>de</strong>mique mors, superveniens<br />

peccato. Sed haud dubie Apostolus novissimum vocat duratione, respectu aliorum externorum<br />

hostium Ecclesiæ, quos Christus in fine abolebit omnes. Postremo et mortem<br />

corporalem pellet, suscitando omnes exmorte: ut hoc mortale induat immortalitatem.”<br />

– “Mas, por que ela chama a morte, o mais ferrenho e último inimigo? Crisóstomo crê por<br />

ter ela vindo por último. O primeiro foi Satanás, tentando o homem a pecar. O segundo,<br />

a vonta<strong>de</strong> humana voluntariamente se voltando contra Deus. O terceiro, o pecado. Então<br />

por fim vem o quarto, a morte, seguindo na retarguarda do pecado. Entretanto, não po<strong>de</strong><br />

haver dúvida <strong>de</strong> que o apóstolo a <strong>de</strong>nomina o último no que tange à duração em relação<br />

a outros inimigos externos da Igreja, tudo quanto no fim Cristo abolirá. Depois <strong>de</strong> tudo,<br />

ele eliminará a morte do corpo, levantando a todos da morte, para que este que é mortal<br />

seja vestido <strong>de</strong> imortalida<strong>de</strong>.” – Pareus in loco.


Capítulo 15 • 543<br />

verda<strong>de</strong> que o Espírito <strong>de</strong> Deus, que habita em nós, é vida; não obstante,<br />

ainda possuímos um corpo mortal [1Pe 1.24]. A subsistência da morte,<br />

que ainda subsiste em nós, um dia será exaurida, porém tal coisa ainda<br />

não se concretizou. Já nascemos da semente incorruptível [1Pe 1.23], todavia<br />

a perfeição [perfectionem] ainda não chegou a sua plenitu<strong>de</strong>. Ou,<br />

convertendo a questão em símile, a espada da morte, que penetra nosso<br />

coração, se acha no momento embotada. Ela ainda fere, naturalmente,<br />

mas sem qualquer risco 53 [fatal]; é verda<strong>de</strong> que morremos, porém, ao<br />

morrermos, entramos na [posse da] vida. Finalmente, como Paulo ensina<br />

em Romanos [6.12-14] acerca do pecado, <strong>de</strong>vemos encarar a morte<br />

por este prisma, a saber, que ela indubitavelmente habita em nós, todavia<br />

já não exerce mais domínio sobre nós.<br />

27. Ele pôs todas as coisas <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> seus pés. Há quem pense<br />

que esta citação foi extraída do Salmo 8.7, e estou <strong>de</strong> pleno acordo<br />

com isso, embora não seja fora <strong>de</strong> propósito dizer que esta é uma conclusão<br />

a que Paulo chegou ao consi<strong>de</strong>rar a natureza do governo <strong>de</strong><br />

Cristo. Sigamos, contudo, a opinião mais geralmente aceita.<br />

Paulo mostra, à luz <strong>de</strong>ste Salmo, que Deus o Pai conferiu a Cristo<br />

o po<strong>de</strong>r sobre todas as coisas, porquanto lemos: “Puseste todas as coisas<br />

<strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> seus pés.” As palavras por si sós são suficientemente<br />

claras, não fossem a existência <strong>de</strong> duas dificulda<strong>de</strong>s. A primeira é que<br />

o profeta ali não está falando só <strong>de</strong> Cristo, mas <strong>de</strong> toda a raça humana.<br />

A segunda é que, pela expressão “todas as coisas”, ele quer dizer<br />

somente aquelas coisas que servem ao propósito <strong>de</strong> beneficiar nossa<br />

existência física, como encontramos em Gênesis 2.19.<br />

A primeira dificulda<strong>de</strong> é facilmente resolvida, porque, visto que<br />

Cristo é o primogênito <strong>de</strong> toda a criação [Cl 1.15] e o her<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> todas<br />

as coisas [Hb 1.2], Deus o Pai não conce<strong>de</strong>u à raça humana o uso <strong>de</strong><br />

todas as coisas criadas <strong>de</strong> maneira a interferir no po<strong>de</strong>r primordial<br />

e, por assim dizer, o senhorio legítimo permanecendo nas mãos <strong>de</strong><br />

Cristo. Sabemos, além do mais, que Adão per<strong>de</strong>u o direito que lhe fora<br />

53 “Mais c’est sans danger <strong>de</strong> mort;” – “mas é sem risco <strong>de</strong> morte.”


544 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

outorgado, <strong>de</strong> modo que não mais po<strong>de</strong>mos chamar coisa alguma <strong>de</strong><br />

nossa, porque a terra – bem como tudo o que nela existe – foi amaldiçoada,<br />

e é tão-somente por meio <strong>de</strong> Cristo que recuperamos aquilo <strong>de</strong><br />

que fomos <strong>de</strong>spojados. Há, pois, plena justificativa <strong>de</strong> esta afirmação<br />

– <strong>de</strong> que o Pai pôs todas as coisas <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> seus pés – ser aplicada<br />

particularmente à pessoa <strong>de</strong> Cristo, visto que não temos qualquer direito<br />

<strong>de</strong> posse senão nele. Pois como po<strong>de</strong>mos ser her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> Deus<br />

a não ser que sejamos filhos? E por meio <strong>de</strong> quem somos feitos seus<br />

filhos senão por meio <strong>de</strong> Cristo?<br />

A solução para a segunda dificulda<strong>de</strong> é a seguinte – o profeta <strong>de</strong>veras<br />

faz menção específica às aves do ar, aos peixes do mar e aos<br />

animais do campo, porque esta espécie <strong>de</strong> senhorio é plenamente<br />

visível e perfeitamente óbvia. Mas, ao mesmo tempo, esta afirmação<br />

geral abrange muito mais do que isso, ou, seja: céu e terra, e tudo o<br />

que eles contêm. Ora, as coisas sujeitas <strong>de</strong>vem a<strong>de</strong>quar-se à pessoa<br />

do governante, ou, seja, as condições <strong>de</strong>las <strong>de</strong>vem assemelhar-se e<br />

correspon<strong>de</strong>r às <strong>de</strong>le. Contudo, Cristo não exige animais para alimento,<br />

nem quaisquer outras coisas criadas para suprir alguma <strong>de</strong> suas<br />

necessida<strong>de</strong>s. Portanto, ele governa para que todas as coisas venham<br />

a servir a sua glória. Visto que ele nos elegeu a fim <strong>de</strong> participarmos <strong>de</strong><br />

seu domínio, vemos claramente os resultados disso na forma <strong>de</strong> algo<br />

mais que flui <strong>de</strong>sse domínio, algo que tem uma aplicação mais ampla,<br />

como já me referi.<br />

Todas as coisas... exceto aquele que lhe sujeitou todas as coisas.<br />

Paulo apresenta dois pontos: (1) que todas as coisas <strong>de</strong>vem estar em<br />

sujeição a Cristo, antes que ele <strong>de</strong>volva ao Pai sua soberania sobre o<br />

mundo; e (2) que o Pai passou tudo às mãos do Filho, para manter a<br />

principal autorida<strong>de</strong> em suas próprias mãos.<br />

Segue-se do primeiro ponto que a hora do juízo final ainda não<br />

chegou; e, do segundo, que Cristo é agora o Mediador entre nós e o<br />

Pai, a fim <strong>de</strong> nos conduzir a ele no final. E assim o apóstolo prossegue<br />

imediatamente em direção à conclusão <strong>de</strong> que “<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> todas as<br />

coisas estarem sujeitas ao Filho, o próprio Filho se sujeitará ao Pai” (v.


Capítulo 15 • 545<br />

28). É como se quisesse dizer: “Aguar<strong>de</strong>mos tranqüilamente até Cristo<br />

ser vitorioso sobre todos seus inimigos e trazer-nos, juntamente com<br />

ele, sob a soberania <strong>de</strong> Deus, para que o reino <strong>de</strong> Deus seja levado à<br />

plenificação em nós.”<br />

Todavia, o que várias partes das Escrituras asseveram sobre<br />

a eternida<strong>de</strong> do reino <strong>de</strong> Cristo parece estar em conflito com esta<br />

frase. Pois, como estas afirmações se coadunam entre si? ou, seja:<br />

“o reino eterno <strong>de</strong> nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” [2Pe 1.11]<br />

e “tornando-se obediente até à morte” [Fp 2.8]. Ao resolvermos este<br />

problema, veremos mais claramente o que Paulo quis dizer. Antes<br />

<strong>de</strong> tudo, <strong>de</strong>vemos observar que todo o po<strong>de</strong>r foi conferido a Cristo,<br />

quando ele se manifestou na carne. Tão imensa majesta<strong>de</strong> não se<br />

a<strong>de</strong>quaria a um mero homem, não obstante o Pai o exaltou na mesma<br />

natureza em que se humilhou, e lhe <strong>de</strong>u o nome diante do qual<br />

todo joelho se dobrará etc. [Fp 2.8]. Além disso, <strong>de</strong>vemos notar que<br />

ele foi <strong>de</strong>signado Senhor e supremo Rei a fim <strong>de</strong> tornar-se o Vice-Regente<br />

do Pai, por assim dizer, no governo do mundo. Não é o caso,<br />

contudo, que ele faça todo o trabalho enquanto o Pai não faz nada.<br />

(Pois, como tal po<strong>de</strong>ria ser, visto que ele é a sabedoria e o conselho<br />

<strong>de</strong> Deus, que ele é <strong>de</strong> uma só essência com o Pai e que, portanto, é<br />

também Deus?) Mas a razão por que a Escritura dá testemunho do<br />

fato <strong>de</strong> que Cristo agora <strong>de</strong>tém a soberania sobre o céu e terra em<br />

lugar do Pai é porque não po<strong>de</strong>mos imaginar nenhum outro no governo,<br />

no senhorio, na <strong>de</strong>fesa, nem no papel <strong>de</strong> julgar os vivos e os<br />

mortos, senão conservando nossos olhos fixos nele, e tão-somente<br />

nele. 54 Naturalmente, estamos cônscios <strong>de</strong> que Deus é o Governante,<br />

porém seu governo está incorporado no Cristo-Homem [sed in<br />

facie hominis Christi]. Mas Cristo <strong>de</strong>volverá, pois, o reino que recebeu,<br />

<strong>de</strong> modo a unir-se plenamente a Deus. 55 Não significa que<br />

54 “Mais que nous fichions les yeux <strong>de</strong> nostre enten<strong>de</strong>ment en luy seul.” – “Mas para que<br />

possamos fixar os olhos <strong>de</strong> nosso entendimento tão-somente nele.”<br />

55 “O reino medianeiro <strong>de</strong> Cristo ... terminará quando seu <strong>de</strong>sígnio for consumado; ele cessará<br />

<strong>de</strong> exercer uma autorida<strong>de</strong> que não mais tem nenhum objetivo. Quando todos os<br />

eleitos se converterem pela verda<strong>de</strong> e se unirem a um só corpo, apresentando ao Pai


546 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Cristo abdicará do reino, mas que o transferirá <strong>de</strong> uma forma ou<br />

<strong>de</strong> outra [quodammodo] <strong>de</strong> sua Humanida<strong>de</strong> para sua gloriosa Deida<strong>de</strong>,<br />

porque então nos abrirá uma via <strong>de</strong> acesso, da qual estamos<br />

agora privados em razão <strong>de</strong> nossas fraquezas. Desta forma, pois,<br />

Cristo se sujeitará ao Pai, porque, quando o véu for <strong>de</strong>scerrado,<br />

veremos a Deus nitidamente, reinando em sua majesta<strong>de</strong>, 56 e a Humanida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Cristo não mais se interporá entre nós para privar-nos<br />

<strong>de</strong> uma visão <strong>de</strong> menos distância <strong>de</strong> Deus. 57<br />

28. Para que Deus seja tudo em todos. Isso se dará com o diabo<br />

e com os homens ímpios? Em hipótese alguma! – a menos, quem<br />

sabe, que estejamos dispostos a tomar o verbo ser no sentido <strong>de</strong><br />

“ser conhecido e ser contemplado publicamente”. Nesse caso, o<br />

sentido seria: “Visto que o diabo está agora lutando contra Deus;<br />

visto que os ímpios transtornam a or<strong>de</strong>m por ele instituída, lançando-a<br />

no caos; visto que incontáveis coisas, que nos são ofensivas,<br />

nos encaram <strong>de</strong> frente, dificilmente po<strong>de</strong>-se dizer que certamente<br />

uma igreja gloriosa, sem qualquer mancha ou ruga ou qualquer coisa indigna; quando a<br />

idolatria, a superstição e a heresia forem subjugadas e todo o mal for repelido do reino<br />

<strong>de</strong> Deus; quando os planos e os esforços dos espíritos ímpios forem <strong>de</strong>rrotados e encerrados<br />

em sua prisão, da qual não haverá escape; quando a morte tiver <strong>de</strong>volvido o<br />

que <strong>de</strong>spojou e <strong>de</strong>puser o cetro aos pés <strong>de</strong> seu Vencedor; quando o gran<strong>de</strong> julgamento<br />

for completado, sua sentença imparcial tiver anunciada a sorte da raça humana e suas<br />

moradas eternas forem distribuídas entre os justos e os ímpios, nada restará a ser feito<br />

pelo po<strong>de</strong>r com que nosso Salvador foi investido em sua ascensão; e sua obra sendo<br />

completada, sua comissão expirará. Sobre este tema não po<strong>de</strong>mos falar com certeza, e<br />

corremos gran<strong>de</strong> risco <strong>de</strong> cometer erros, visto que o evento será ainda no futuro e nossa<br />

informação é imperfeita. Aqui falha qualquer analogia e requer-se a máxima prudência,<br />

emprestando uma ilustração das ativida<strong>de</strong>s humanas; mas sem insinuar que os dois casos<br />

são exatamente afins, não po<strong>de</strong>mos dizer que, como regente ou vice-regente <strong>de</strong> um<br />

Rei a quem a autorida<strong>de</strong> régia fora confiada por algum tempo, a resigna, e o próprio soberano<br />

reassume as ré<strong>de</strong>as do governo; assim nosso Re<strong>de</strong>ntor, que agora empunha o cetro<br />

do univerno, <strong>de</strong>volverá seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>legado sob o qual a <strong>de</strong>pendência que os homens<br />

têm da Deida<strong>de</strong> será imediata; e o Pai, o Filho e o Espírito Santo, um só em essência e<br />

conselho e operação, reinarão para todo o sempre sobre os habitantes do céu. Este é o<br />

provável significado das palavras: Então o próprio Filho se lhe sujeitará, para que ponha<br />

todas as coisas <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> seus pés.” – Dick’s Theology, vol. iii. pp. 250, 251.<br />

56 “Nous contemplerons nostre Dieu face à face, regnant en sa maieste.” – “Contemplaremos<br />

a Deus face a face, reiando em sua majesta<strong>de</strong>.”<br />

57 “Pour nous empescher <strong>de</strong> veoir <strong>de</strong> pres la maieste <strong>de</strong> Dieu.” – “Para <strong>de</strong>ter-nos <strong>de</strong> aproximar<br />

a vista da majesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus.”


Capítulo 15 • 547<br />

Deus será tudo em todos. Mas quando Cristo exercer o juízo que<br />

o Pai lhe confiou, e subjugar a Satanás e a todos os <strong>de</strong>sobedientes,<br />

então a glória <strong>de</strong> Deus será visualizada na <strong>de</strong>struição <strong>de</strong>les. O<br />

mesmo se po<strong>de</strong> dizer também com respeito às potências que são<br />

sacras e legítimas em seu próprio caráter, pois em certo sentido<br />

elas nos impe<strong>de</strong>m <strong>de</strong> visualizar a Deus corretamente tal como ele<br />

é. Mas quando Deus estiver governando céu e terra pessoalmente,<br />

sem qualquer mediação, nesse sentido ele será tudo; e, conseqüentemente,<br />

ele estará finalmente em todos, não meramente em todas<br />

as pessoas, mas igualmente em todas as criaturas.”<br />

Esta é uma interpretação fiel, 58 e já que concorda plenamente com<br />

o que o apóstolo tinha em mente, estou disposto a aceitá-la. Todavia,<br />

não estará fora <strong>de</strong> propósito se esta frase for tomada como uma<br />

referência exclusiva aos crentes, em quem Deus já iniciou seu reino,<br />

e então o conduzirá à plenitu<strong>de</strong>, e isso <strong>de</strong> tal forma que lhe a<strong>de</strong>rirão<br />

completamente.<br />

Cada uma <strong>de</strong>stas interpretações é por si só suficiente para<br />

repelir os conceitos ímpios e <strong>de</strong>spropositados nutridos por certos<br />

indivíduos que fazem uso errôneo <strong>de</strong>ste versículo com o intuito<br />

<strong>de</strong> provar suas conjeturas. Há quem imagine que Deus será tudo<br />

em todos no sentido em que tudo se <strong>de</strong>svanecerá e dissolverá<br />

em nada. Não obstante, o único significado que as palavras do<br />

apóstolo produzem é que todas as coisas <strong>de</strong>vem ser restauradas<br />

à relação com Deus como seu único princípio e fim, para que estejam<br />

estreitamente ligadas a ele. Outros inferem disso que o diabo<br />

e todos os <strong>de</strong>sobedientes serão salvos, como se Deus não <strong>de</strong>vesse,<br />

na verda<strong>de</strong>, ser melhor conhecido na <strong>de</strong>struição do diabo do<br />

que em fazer-se amigo <strong>de</strong>le, e até mesmo em fazer-se um com ele.<br />

Assim vemos quão impu<strong>de</strong>ntes são os homens perversos <strong>de</strong>sse<br />

gênero, quando torcem este dito do apóstolo com o fim <strong>de</strong> sustentarem<br />

suas próprias blasfêmias.<br />

58 “Ce sens contient <strong>de</strong>ctrine saincte.” – “Este conceito contém doutrina sacra.”


548 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

29. Doutra sorte, que farão os que se<br />

batizam pelos mortos, se absolutamente<br />

os mortos não ressuscitam?<br />

Por que, pois, se batizam eles pelos<br />

mortos?<br />

30. E por que estamos nós em perigo a<br />

toda hora?<br />

31. Eu protesto, gloriando-me em vós,<br />

irmãos, por Cristo Jesus nosso Senhor,<br />

que a cada dia eu morro.<br />

32. Se, segundo o costume dos homens,<br />

lutei com feras em Éfeso, que<br />

proveito isso me traz? Se os mortos<br />

não ressuscitam, comamos e bebamos,<br />

porque amanhã morreremos.<br />

33. Não vos enganeis: as más conversações<br />

corrompem os bons costumes.<br />

34. Atentai para a justiça, e não pequeis;<br />

porque alguns ainda não têm<br />

conhecimento <strong>de</strong> Deus; digo isto<br />

para vergonha vossa.<br />

29. Quid alioqui facient qui baptizantur<br />

pro mortus, si omnino mortui<br />

non resurgunt? quid etiam baptizantur<br />

pro mortuis?<br />

30. Quid etiam nos periclitamur omni<br />

hora?<br />

31. Quotidie morior per nostrarm<br />

gloriam, fratres, quam habeo in<br />

Christo Iesu Domino nostro.<br />

32. Si secundum hominem pugnavi ad<br />

bestias Ephesi, quid mihi pro<strong>de</strong>st?<br />

edamus et bibamus: cras enim moriemur.<br />

33. Ne erretis: Mores honestos corrumpunt<br />

mala colloquia.<br />

34. Evigilate juste, et ne peccetis: ignorantiam<br />

enim Dei quidam habent:<br />

ad pudorem vobis incutiendum<br />

dico.<br />

29. Doutra sorte, que farão? Uma vez mais, ele retroce<strong>de</strong> às seqüências<br />

absurdas do erro sob o qual os coríntios estavam vivendo.<br />

No início ele começou tratando <strong>de</strong>ssas pretensões, porém introduziu<br />

ensino e consolação, interrompendo por um pouco o fio do argumento;<br />

e agora o retoma.<br />

Em primeiro lugar, ele apresenta esta objeção: o batismo, que<br />

é recebido por pessoas já consi<strong>de</strong>radas mortas, será <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong><br />

qualquer proveito, se não há ressurreição. Antes <strong>de</strong> explicar este versículo,<br />

vale a pena refutar a exposição costumeira, a qual é apoiada<br />

pela autorida<strong>de</strong> dos Pais, e <strong>de</strong>sfruta do assentimento <strong>de</strong> quase todos.<br />

Daí Crisóstomo e Ambrósio, seguidos <strong>de</strong> outros, acreditam que,<br />

quando alguém era privado do batismo por morte súbita, os coríntios<br />

tinham o hábito 59 <strong>de</strong> substituir a pessoa viva pela do falecido, a qual<br />

era batizada em seu túmulo. De fato eles não negam que tal costume<br />

59 “Esta”, <strong>de</strong>clara Barnes, “era a opinião <strong>de</strong> Grotius, Michaelis, Tertuliano e Ambrósio.”


Capítulo 15 • 549<br />

era uma perversão e estava saturado <strong>de</strong> superstição. No entanto, dizem<br />

também que, para refutar os coríntios, o apóstolo confiava neste<br />

argumento, 60 ou, seja: que embora negassem a existência <strong>de</strong> uma ressurreição,<br />

ao mesmo tempo <strong>de</strong>claravam que criam nela. Não obstante,<br />

<strong>de</strong> minha parte, não posso <strong>de</strong> modo algum me persuadir a crer nisso, 61<br />

pois é inacreditável que os que negavam a existência <strong>de</strong> uma ressurreição<br />

estivesse, juntamente com outros, fazendo uso <strong>de</strong> um costume<br />

como este. Paulo, pois, teria enfrentado <strong>de</strong> imediato esta réplica que<br />

lhe fizeram: “Por que nos pressionas com esta antiga superstição <strong>de</strong><br />

viúvas, quando, na verda<strong>de</strong>, tu mesmo não a aprovas?” Além disso,<br />

se esta fosse a prática <strong>de</strong>les, teriam prontamente respondido: “Se tal<br />

coisa foi praticada até agora por nós por uma questão <strong>de</strong> equívoco,<br />

então seria melhor que o equívoco fosse corrigido do que ser usado<br />

para provar algo <strong>de</strong> tanta importância.”<br />

Entretanto, admitindo que o argumento <strong>de</strong>les fosse conclusivo,<br />

po<strong>de</strong>mos presumir que, se uma prática corrupta como esta prevalecia<br />

entre os coríntios, o apóstolo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> reprovar quase todos seus<br />

erros, teria mantido silêncio sobre este? Nos capítulos anteriores ele<br />

con<strong>de</strong>nou certas práticas que não eram tão graves como esta. Ele não<br />

hesitou em dar diretrizes quanto às mulheres e ao uso <strong>de</strong> cobrir a cabeça<br />

e outros problemas <strong>de</strong>ssa natureza. Não reprovou meramente a<br />

administração errônea da Ceia, mas foi muito mais penetrante em sua<br />

crítica. Ao mesmo tempo, não diria ele uma única palavra sobre tão<br />

horrível profanação do batismo, quando esta era uma questão muito<br />

mais grave do que as outras? Ele fora tão veemente em seu ataque<br />

contra aqueles que davam sua tácita aprovação às crenças e práticas<br />

supersticiosas dos pagãos, freqüentando seus banquetes. Teria<br />

ele permitido que esta abominável superstição pagã fosse praticada<br />

publicamente na própria Igreja sob o nome <strong>de</strong> santo batismo? Mesmo<br />

admitindo, pois, que ele tivesse guardado silêncio sobre isso, qual<br />

60 “De ce seul argumento.” – “Com este único argumento.”<br />

61 “Mais ie ne voy rien qui me puisse amener à suyure ceste coniecture.” – “Porém nada vejo<br />

que pu<strong>de</strong>sse me induzir a seguir tal conjetura.”


550 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

<strong>de</strong>ve ser nossa atitu<strong>de</strong> diante do fato <strong>de</strong> que ele realmente faz menção<br />

específica <strong>de</strong>le? Pergunto: seria provável que o apóstolo citasse, na<br />

forma <strong>de</strong> argumento, um sacrilégio 62 por meio do qual o batismo era<br />

corrompido e convertido completamente num uso mágico e abusivo, e<br />

nem assim tenha uma única sílaba a dizer em con<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> tal erro?<br />

Ao tratar <strong>de</strong> coisas que não são da maior importância, ele, não obstante,<br />

introduz parêntesis, insinuando que está falando como homem [Rm<br />

3.5; 6.19; Gl 3.15]. No presente caso, não teria sido mais apropriado e<br />

conveniente que usasse parêntesis? Ora, o fato <strong>de</strong> fazer ele menção <strong>de</strong><br />

tal coisa sem qualquer palavra <strong>de</strong> reprovação, quem não enten<strong>de</strong>ria<br />

que tal coisa era permitida? De minha parte, por certo que aqui o entendo<br />

como se estivesse falando do uso correto do batismo, e não <strong>de</strong><br />

um mal uso <strong>de</strong>le <strong>de</strong>ssa natureza.<br />

Ora, inquiramos agora quanto ao significado. Houve um tempo<br />

em que eu costumava pensar que Paulo aqui estava realçando o <strong>de</strong>sígnio<br />

universal do batismo, porquanto o benefício do batismo não se<br />

restringe a esta presente vida. Mas, no transcorrer do tempo, ao consi<strong>de</strong>rar<br />

mais atentamente a terminologia, percebi que aqui Paulo está<br />

tratando <strong>de</strong> algo peculiar. Pois ele não está falando <strong>de</strong> todos quando<br />

pergunta o que farão aqueles que são batizados etc. Além do mais, não<br />

aprecio as interpretações que são mais engenhosas do que sólidas. Então,<br />

o que ele quis dizer? Digo que aqueles que eram batizados pelos<br />

mortos são os que eram consi<strong>de</strong>rados como já mortos e perdido completamente<br />

qualquer esperança <strong>de</strong> vida. E assim a partícula ὑπέρ terá a<br />

mesma função do latim pro [como], por exemplo, na expressão habere<br />

pro <strong>de</strong>relicto, ou, seja, tido como abandonado. 63 Essa significação não<br />

é <strong>de</strong> forma alguma forçada. Ou, se o leitor preferir outra significação,<br />

ser batizado pelos mortos significaria ser batizado em benefício dos<br />

mortos, não dos vivos. 64 Ora, sabe-se bem que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primórdios da<br />

62 “Ce sacrilege horrible.” – “Este horrível sacrilégio.”<br />

63 A forma da expressão referida é usada por Cícero (Att. 8.1).<br />

64 “Proufite apres la mort, et non pas la vie durant.” – “Proveito após a morte, não durante<br />

a vida.”


Capítulo 15 • 551<br />

Igreja, quando os neófitos na fé [catechumeni], 65 ainda não batizados,<br />

caíam enfermos, 66 caso estivessem em iminente risco <strong>de</strong> vida, então<br />

costumavam solicitar o batismo a fim <strong>de</strong> não partirem <strong>de</strong>ste mundo<br />

antes que pu<strong>de</strong>ssem professar a Cristo, e igualmente pu<strong>de</strong>ssem levar<br />

consigo o selo <strong>de</strong> sua salvação.<br />

À luz dos escritos dos Pais transparece que tal superstição<br />

infiltrou-se mais tar<strong>de</strong> nesta prática também, pois os encontramos investindo-se<br />

contra aqueles que <strong>de</strong>longavam seu batismo até o tempo<br />

<strong>de</strong> sua morte, para que, uma vez purificados <strong>de</strong> todos seus pecados,<br />

pu<strong>de</strong>ssem, nesse estado, aproximar-se do tribunal <strong>de</strong> Deus. 67 Este é<br />

<strong>de</strong>veras um erro por <strong>de</strong>mais estapafúrdio, oriundo em parte <strong>de</strong> profunda<br />

ignorância, e em parte <strong>de</strong> profunda hipocrisia. Aqui, porém, o<br />

apóstolo está meramente tocando <strong>de</strong> leve um costume que era sagrado<br />

e que estava em concordância com a instituição <strong>de</strong> nosso Senhor,<br />

a saber, que, se um catecúmeno já havia aceito a fé cristã, 68 e em seu<br />

coração percebia que a morte o rondava, então solicitava o batismo,<br />

em parte para seu próprio conforto, e em parte para o fortalecimento<br />

[aedificationem] <strong>de</strong> seus irmãos. Pois dar prova <strong>de</strong>sta salvação selada<br />

em seu próprio corpo não é um conforto <strong>de</strong> pouco valor. Há também<br />

65 “Estans encore sur la premiere instruction <strong>de</strong> la doctrine Chrestienne.” – “Estando ainda<br />

nos primeiros rudimentos da doutrina cristã.”<br />

66 “Quelque maladie dangereuse.” – “Alguma doença perigosa.”<br />

67 Cornelius à Lapi<strong>de</strong>, em seu Comentário sobre as Epístolas Canônicas (Paris, 1631), p. 423,<br />

adverte, nos termos seguintes, para o costume referido por Calvino: “Inter conversos<br />

alim multi erant qui Baptismum diu differebant, etiam usque ad mortem, a<strong>de</strong>oque ægri in<br />

lecto baptizabantur, ut per Baptismum expiati ab omni culpa et pœna illico puri evolarent<br />

in cœlum.” – “Entre os convertidos antigamente havia muitos que <strong>de</strong>feriam o batismo por<br />

muito tempo, mesmo para o tempo <strong>de</strong> sua morte, e eram conseqüentemente batizados<br />

quando no leito <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>, crendo que pelo batismo eram lavados <strong>de</strong> toda falta e<br />

do castigo [eterno], po<strong>de</strong>ndo ir para o céu puros.” Milner, em seu Church History (vo. ii.<br />

276), quando trata <strong>de</strong> Gregório Nazianzeno, diz: “Em outro discurso, ele protesta contra a<br />

prática tão em voga <strong>de</strong> <strong>de</strong>longar o batismo, o que, à luz do exemplo <strong>de</strong> Constantino, tinha<br />

estado muito em voga, por razões igualmente corruptas e supersticiosas. Os homens<br />

viviam no pecado enquanto criam que estavam seguros, e <strong>de</strong>feriam o batismo até que a<br />

morte se avizinhasse, sob uma infundada esperança <strong>de</strong> lavar imediatamente todas suas<br />

culpas.” Ver também em Turretine’s Theology (Genebra, 1690), vol. iii. p. 435.<br />

68 “Si celuy qui n’ estoit pas encore parfaitement instruit en la doctrine Chrestienne, et<br />

toutesfois auoit <strong>de</strong>sia <strong>de</strong> vraye affection embrassé la foy.” – “Se alguém, que não tinha<br />

ainda como ser plenamente instruído na doutrina cristã, mas já havia abraçado a fé com<br />

verda<strong>de</strong>ira afeição.”


552 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

uma edificação que não se <strong>de</strong>ve per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista, a saber, a <strong>de</strong> fazer confissão<br />

<strong>de</strong> sua fé. Assim, aquelas pessoas eram batizadas pelos mortos,<br />

visto que o batismo não lhes seria <strong>de</strong> nenhuma valia neste mundo, e<br />

a ocasião propícia <strong>de</strong> se fazer seu batismo era <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> qualquer<br />

esperança nesta vida.<br />

Agora enten<strong>de</strong>mos que não foi sem boa razão que o apóstolo lhes<br />

perguntou o que fariam se não lhes restasse nenhuma esperança <strong>de</strong>pois<br />

da morte. 69 Este versículo é também uma prova <strong>de</strong> que aqueles<br />

impostores que estavam subvertendo a fé dos coríntios tinham forjado<br />

uma ressurreição simbólica, fazendo com que o alvo último dos<br />

crentes não estivesse além <strong>de</strong>ste mundo. Ele põe maior ênfase em sua<br />

pergunta, repetindo-a na seguinte forma: “por que, pois, se efetua o<br />

batismo pelos mortos?” É como se quisesse dizer: “Não só as pessoas<br />

que acreditam viver uma vida mais longa que se batizam, mas também<br />

aquelas que sentem a morte <strong>de</strong> espreita; e estas se batizam para que<br />

possam colher os benefícios <strong>de</strong> seu batismo após sua partida.”<br />

30. Por que estamos nós também em perigo a toda hora? Se<br />

a ressurreição e a felicida<strong>de</strong> últimas não vão além <strong>de</strong>ste mundo, por<br />

que, pois, nós espontaneamente o abandonamos e <strong>de</strong> bom grado vamos<br />

<strong>de</strong> encontra à morte? Seu raciocínio po<strong>de</strong> ser também explicado<br />

<strong>de</strong>sta maneira: ser-nos-ia fútil viver em perigo a toda hora, caso uma<br />

vida melhor não esperasse por nós após nosso encontro com a morte.<br />

Ele, porém, está falando dos riscos que cercavam suas vidas, os quais<br />

os crentes enfrentam espontaneamente, em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> confessarem<br />

a Cristo. “Esta magnanimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alma, em <strong>de</strong>sprezar-se a morte,<br />

seria o cúmulo da estupi<strong>de</strong>z, e não mero sangue frio, caso os santos<br />

perecessem com a morte, porquanto é uma diabólica <strong>de</strong>mência granjear<br />

uma fama imortal através da morte.” 70<br />

69 “O batismo”, diz o Dr. Dick em seu Lectures on Theology (vol. iv. pp. 183, 184), “implica<br />

nosso interesse na ressurreição <strong>de</strong> Cristo e suas conseqüências. Ele foi chamado pelos<br />

antigos ‘o penhor das boas coisas futuras”, e ‘o tipo da ressurreição futura’. Não po<strong>de</strong>ria<br />

ser esse o significado daquela passagem no capítulo 15 <strong>de</strong> sua primeira Epístola aos Coríntios,<br />

concernente à qual há havido uma tão gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> opiniões?”<br />

70 “Quand quelques fois les mondaines s’exposent à la mort seulement pour acquerir vn


Capítulo 15 • 553<br />

31. A cada dia morro. Ele <strong>de</strong>clara que pessoalmente sentia <strong>de</strong>sprezo<br />

pela morte a fim <strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixar a impressão <strong>de</strong> estar falando<br />

com bravura quando ele mesmo não corria nenhum risco pessoal.<br />

Diz ele: “A cada dia sinto-me, <strong>de</strong> muitas formas, sob constante<br />

ameaça <strong>de</strong> morte. Quão insensato seria atrair sobre mim mesmo<br />

tanta infelicida<strong>de</strong>, caso não esperasse receber para mim nenhum<br />

galardão no céu! Sim, e mais ainda, se minha glória e bem-aventurança<br />

não passassem <strong>de</strong>ste mundo, por que não <strong>de</strong>sfrutá-lo em vez<br />

<strong>de</strong> renunciá-lo espontaneamente?” Ele diz que morria diariamente<br />

porque se encontrava constantemente assediado pelos perigos, tão<br />

gran<strong>de</strong>s e tão opressivos, que a morte estava, em certo sentido, <strong>de</strong><br />

espreita, a encará-lo. É a mesma sorte <strong>de</strong> situação que encontramos<br />

<strong>de</strong>scrita no Salmo 44.23, e com que nos <strong>de</strong>frontaremos na próxima<br />

carta [2Co 11.23].<br />

Gloriando-me em vós. A Vulgata traz propter [por causa <strong>de</strong>], 71 mas<br />

isso obviamente se <strong>de</strong>ve à ignorância dos copistas, pois não existe<br />

ambigüida<strong>de</strong> alguma na partícula grega. 72 Portanto, temos aqui um<br />

juramento pelo qual o apóstolo pretendia incitar os coríntios a prestarem<br />

mais atenção no que ele tem a dizer em relação a este ponto em<br />

particular. 73 Ele po<strong>de</strong>ria ter-se expresso assim: “Meus irmãos, não sou<br />

um filósofo que <strong>de</strong>rrama no discurso torrentes <strong>de</strong> verbosida<strong>de</strong>. 74 Visto<br />

que me exponho à morte a cada dia, é um imperativo que eu medite<br />

seriamente na vida celestial. Creio, portanto, ser um homem profundamente<br />

experiente!”<br />

É também uma inusitada forma <strong>de</strong> juramento, porém um [tipo <strong>de</strong><br />

juramento] que se ajusta ao tema em questão. O bem conhecido jubruit<br />

immortel.” – “Quando pessoas mortais em alguns casos se expõem à morte, meramente<br />

para granjear uma fama imortal.”<br />

71 A tradução <strong>de</strong> Wiclif (1380) traz para sua glória.<br />

72 A partícula νὴ, usada como um protesto solene.<br />

73 “Veu qu’il parloit à bom escient, ayant luy-mesme les mains à la besongue, ainsi qu’on<br />

dit.” – “Visto como ele falou em boa disposição, tendo suas próprias mãos na obra, como<br />

dizem.”<br />

74 “Quelque Philosophe qui triomphe <strong>de</strong> dire, estant loin <strong>de</strong> la prattique.” – “Alguns filósofos,<br />

que falam suavemente, embora longe da cena <strong>de</strong> ação.”


554 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

ramento <strong>de</strong> Demóstenes, citado por Fábio, 75 é semelhante a este [<strong>de</strong><br />

Paulo], quando jurou pelos espíritos dos homens que encontraram a<br />

morte na batalha <strong>de</strong> Maratona, porém sua real intenção era que outras<br />

pessoas fossem incitadas a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a República. 76 E assim Paulo aqui<br />

jura “pela glória que os cristãos têm em Cristo”. Ora, essa glória está<br />

no céu. Ele mostra, pois, que aquilo que <strong>de</strong>spertava sua dúvida é <strong>de</strong><br />

fato uma questão da qual ele está plenamente certo <strong>de</strong> estar preparado<br />

para fazer uso <strong>de</strong> um sacro juramento – a exibição <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong><br />

que merece ser cuidadosamente observada.<br />

32. Se segundo o método dos homens. Ele menciona uma forma<br />

notória <strong>de</strong> morte; e é evi<strong>de</strong>nte, à luz <strong>de</strong> sua própria natureza, que ao<br />

enfrentá-la ele po<strong>de</strong>ria ser consi<strong>de</strong>rado muito pior que um estúpido,<br />

se porventura uma vida superior não nos aguardasse após a morte;<br />

pois ele se expôs a um gênero <strong>de</strong> morte que era consi<strong>de</strong>rado como<br />

o mais ignominioso <strong>de</strong> todos. Ele está dizendo: “Que vantagem haveria<br />

em granjear para mim um infamante nome e ao mesmo tempo<br />

submeter-me à mais cruel das mortes, se todas minhas esperanças<br />

se limitassem apenas a este mundo?” Segundo o método dos homens<br />

significa, nesta passagem, com respeito à vida humana, <strong>de</strong> modo a obtermos<br />

um galardão neste mundo.<br />

Os que lutavam com feras não quer dizer aqueles que eram<br />

lançados aos animais selvagens para lutarem com eles, como intuiu<br />

Erasmo erroneamente, mas aqueles que eram con<strong>de</strong>nados a apresentar<br />

um espetáculo ao povo, sendo obrigados a lutarem com animais<br />

selvagens. Havia, pois, duas espécies completamente distintas <strong>de</strong> castigo:<br />

(1) ser lançado às feras e (2) lutar com elas. Pois os que fossem<br />

lançados a esses animais eram instantaneamente feitos em pedaços;<br />

enquanto os que lutavam com eles, costumavam entrar armados na<br />

75 “Lequel Quintilian allegue.” – “O qual Quintiliano Cita.”<br />

76 “Quid <strong>de</strong>nique Demosthenes? ... non illud jusjurandum per cæsos in Marathone ac Salamine<br />

propugnatores reipublicæ, satis manisfeto docet. præceptorem ejus Platonem<br />

fuisse?” – “Que fim levou Demóstenes? ... não que celebrou juramento por esses <strong>de</strong>fensores<br />

da República que foram mortos em Maratona e Salamina, oferece ampla evidência <strong>de</strong><br />

que Platão era seu preceptor?”


Capítulo 15 • 555<br />

arena, <strong>de</strong> modo que, se <strong>de</strong>sfrutassem da vantagem da força, da coragem<br />

e da agilida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>riam sair ilesos, matando as feras. Além<br />

disso, havia uma escola <strong>de</strong> treinamento para aqueles que lutavam<br />

com as feras, assim como havia uma para os gladiadores. 77 Contudo,<br />

bem poucos <strong>de</strong>les logravam escapar com vida, porque aquele que<br />

liquidava um animal era forçado a lutar com um segundo, 78 até que a<br />

cruelda<strong>de</strong> dos espectadores fosse saciada, ou, dir-se-ia, até que encontrasse<br />

ele mercê [da parte do povo]. E ainda havia aqueles que<br />

se sentiam tão infelizes e <strong>de</strong>sesperados que se ofereciam para isso. 79<br />

E, permita-me dizer <strong>de</strong> passagem, que este “espetáculo <strong>de</strong> caça” foi<br />

tão severamente punido pelos cânones antigos quanto caracterizado<br />

pelas leis civis como infame. 80<br />

Volto ao que o apóstolo tem a dizer. 81 Vemos a que estado Deus<br />

permitiu chegasse seu servo, e quão maravilhosamente também o<br />

resgatou. Lucas, 82 porém, não faz menção <strong>de</strong>ste contexto; e daqui po<strong>de</strong>mos<br />

<strong>de</strong>duzir que Paulo passou por muitas situações sobre as quais<br />

não se permitiu fossem escritas.<br />

77 “Et mesme comme il y auoit le ieu <strong>de</strong> l’escrime pour duire <strong>de</strong>s gens à combatre les vns<br />

contre les autres, pour donner passetemps au peuple, aussi il y auoit vn ieu auquel on<br />

façonnoit <strong>de</strong>s gens à combatre contre les bestes es spectacles publiques.” – “Mais ainda,<br />

como havia um jogo <strong>de</strong> esgrima para treinar pessoas para a luta entre si, propiciando entretenimento<br />

às pessoas; por isso havia um jogo no qual pessoas eram postas a lutarem<br />

com animais selvagens em shows públicos.”<br />

78 “N’estoit pas quitte, mais il luy faloit retourner au combat contre la secon<strong>de</strong>.” – “Ele não<br />

era socorrido, porém tinha que voltar a lutar com um segundo.”<br />

79 “Às vezes homens livres, <strong>de</strong> circunstâncias <strong>de</strong>sesperadoras, buscavam uma precária<br />

subsistência, aventurando suas vidas nessa profissão; mas ela era exercida principalmente<br />

por escravos e prisioneiros <strong>de</strong> guerra, os quais seus senhores ou conquistadores<br />

os <strong>de</strong>votavam; ou por pessoas con<strong>de</strong>nadas, a quem assim se oferecia um prolongamento<br />

incerto <strong>de</strong> existência, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> sua própria bravura, ativida<strong>de</strong> e habilida<strong>de</strong>.” – Illustrated<br />

Commentary.<br />

80 “O que era chamado venatio” (caça), “ou a luta <strong>de</strong> animais selvagens entre si, ou com<br />

homens chamados lestiarii (lutadores com animais selvagens), que eram ou forçados a<br />

isso à guisa <strong>de</strong> castigo, como às vezes acontecia aos cristãos primitivos, ou induzidos por<br />

salário (auctormento), Cic. Tusc. Quæst ii.17. Fam. vii. 1., Off. ii. 16, Vat. 17. Um número<br />

incrível <strong>de</strong> animais <strong>de</strong> várias espécies era trazido <strong>de</strong> todos os quadrantes, para o entretenimento<br />

do povo e <strong>de</strong> <strong>de</strong>spesas imensas. Cic. Fam. viii. 2, 4, 6. Eram mantidos fora da<br />

vista, em um lugar chamado vivaria, até o dia da exibição.”<br />

81 “Le retourne maintenant à parler <strong>de</strong> Sanct Paul.” – “E agora volto a falar <strong>de</strong> São Paulo.”<br />

82 “Sainct Luc aux Actes.” – “São Lucas nos Atos.”


556 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

Comamos e bebamos. Esse era um provérbio dos epicureus, os quais<br />

<strong>de</strong>fendiam a tese <strong>de</strong> que o sumo bem do homem consiste em ter ele prazer<br />

aqui e agora. Isaías também asseverou [22.13] que o mesmo é proclamado<br />

pelos homens dissolutos, quando os profetas <strong>de</strong> Deus os ameaçam<br />

com ruína 83 com o fim <strong>de</strong> intimá-los ao arrependimento. Pois, escarnecendo<br />

<strong>de</strong>ssas ameaças, eles se entregam sem restrição ao comodismo e<br />

aos prazeres; e para <strong>de</strong>monstrar sua arrogante in<strong>de</strong>pendência, dizem: “Já<br />

que temos <strong>de</strong> morrer, <strong>de</strong>sfrutemos do tempo que agora é nosso, e não<br />

nos torturemos com um sombrio medo antes mesmo que chegue a hora.”<br />

Em contrapartida, atentemos bem para o que certo comandante disse a<br />

seu exército: 84 “Camaradas <strong>de</strong> armas, tomemos nosso <strong>de</strong>sjejum com o<br />

coração jovial, porque hoje mesmo jantaremos no inferno.” 85 Ora, este<br />

era um convite para que a morte fosse encarada com <strong>de</strong>stemor, e nada<br />

tem a ver com este tema. Sou <strong>de</strong> opinião que o apóstolo apropriara-se <strong>de</strong><br />

um provérbio que era <strong>de</strong> uso corrente entre os dissolutos e impu<strong>de</strong>ntes<br />

imprestáveis; ou (para ser breve) <strong>de</strong> uma máxima comum aos epicureus,<br />

que equivalia ao seguinte: “Se morte significa o aniquilamento do homem,<br />

este nada tem melhor a fazer senão entregar-se aos prazeres, sem preocupar-se<br />

com nada mais enquanto tiver alento <strong>de</strong> vida.” Sentimentos <strong>de</strong>sse<br />

gênero ocorrem com freqüência em Horácio. 86<br />

83 “De reuine et perdition.” – “Com ruína e perdição.”<br />

84 “Car quant a ce qui on trouue entre les histoires anciennes que quelqu’vn disoit aux<br />

doldats.” – “Pois como se acha registrado nas histórias antigas, que alguém disse a seus<br />

soldados.”<br />

85 A alusão é a Leônidas, rei <strong>de</strong> Esparta, quando, conduzindo 300 espartanos ao Passo <strong>de</strong><br />

Thermopylæ, por ato <strong>de</strong> intrepi<strong>de</strong>z, com raro paralelo na história, se puseram a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />

aquele Passo em oposição a uma tropa persa <strong>de</strong> 20.000 soldados, e durante a noite<br />

espalharam terrível confusão e consternação entre os persas, porém <strong>de</strong> manhã, <strong>de</strong>scobrindo<br />

por fim seu pequeno número, foram imediatamente cercados e massacrados.”<br />

– Robertson’s History of Greece, p. 151.<br />

86 Os seguintes exemplos po<strong>de</strong>m ser citados como um espécimen:<br />

“O beate Sesti!<br />

Vitæ summa brevis nos vetat inchoare longam,<br />

Jam te premet nox, fabulæque Manes<br />

Et domus exilis Plutonia:<br />

Ó feliz Sestius! a breve extensão da vida humana nos coíbe <strong>de</strong> ce<strong>de</strong>r à fascinação <strong>de</strong> uma<br />

esperança distante. Logo a noite <strong>de</strong>scerá sobre ti, e o fabuloso Manes, e a sombria mansão<br />

<strong>de</strong> Pluto.” – Hor. Carm. I. 4, 13-17.


Capítulo 15 • 557<br />

33. Não vos enganeis: as más conversações corrompem os bons<br />

costumes. Visto nada haver mais fácil do que fomentar o método <strong>de</strong> fazer<br />

especulações irreverentes, enquanto se preten<strong>de</strong> fazer investigações, 87<br />

o apóstolo se <strong>de</strong>para com este perigo ao advertir que passar informação<br />

errônea é mais eficaz do que po<strong>de</strong>mos imaginar para contaminar nossas<br />

mentes e corromper-nos moralmente. 88 Para isso ele usa um adágio do<br />

poeta Menan<strong>de</strong>r; 89 pois somos livres para lançar mão <strong>de</strong> qualquer espécie<br />

<strong>de</strong> fonte que venha <strong>de</strong> Deus. E como toda a verda<strong>de</strong> emana <strong>de</strong> Deus,<br />

não há dúvida <strong>de</strong> que o Senhor tem posto nos lábios, mesmo <strong>de</strong> incrédulos,<br />

tudo o que contenha uma lição genuína e sadia; porém prefiro<br />

consi<strong>de</strong>rar Oração aos Jovens, <strong>de</strong> Basílio, para a abordagem <strong>de</strong>ste tema.<br />

Portanto, visto que o apóstolo sabia que este adágio era familiar aos<br />

gregos, ele <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> fazer uso <strong>de</strong>le, em vez <strong>de</strong> expressar a mesma idéia em<br />

suas próprias palavras, a fim <strong>de</strong> que o ouvissem com mais disposição.<br />

Porquanto, era-lhes mais fácil receber algo com o qual estavam familiarizados;<br />

e nós mesmos po<strong>de</strong>mos concordar com isso, à luz <strong>de</strong> nossa<br />

própria experiência com os adágios gastos pelo uso.<br />

Mas esta é uma frase que particularmente merece nossa atenção,<br />

visto que, quando Satanás não po<strong>de</strong> dirigir-nos um ataque direto e<br />

franco, 90 ele nos ludibria insinuando que nada há <strong>de</strong> errôneo em diligenciarmos<br />

todo gênero <strong>de</strong> especulações com o propósito <strong>de</strong> fazer<br />

investigação da verda<strong>de</strong>. Portanto, falando do ponto <strong>de</strong> vista oposto,<br />

o apóstolo protesta energicamente contra isso, dizendo que precisamos<br />

pôr-nos em guarda contra a comunicação <strong>de</strong> informação errônea,<br />

assim como proce<strong>de</strong>mos no tocante a um veneno que po<strong>de</strong> matar<br />

instantaneamente; pois tal informação penetra sutilmente em nossas<br />

mentes, para logo em seguida corromper todo nosso ser. Notemos,<br />

87 “De douter et s’enquerir.” – “De duvidar e inquirir.”<br />

88 “Les bonnes mœurs.” – “Bons costumes.”<br />

89 “Menan<strong>de</strong>r foi um célebre poeta cómico <strong>de</strong> Atenas, educado aos pés <strong>de</strong> Theophrastus.<br />

Seus escritos eram repletos <strong>de</strong> elegância, espírito refinado e observações judiciosas. De<br />

cento e oito comédias que escreveu, nada resta senão uns poucos fragmentos. Diz-se<br />

que ele afogou-se quando tinha cinqüenta e dois anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, em 293 a.C., porque as<br />

composições <strong>de</strong> seu rival Filemom granjearam mais aplausos que as suas. “ – Barnes.<br />

90 “Pour nous seduire.” – “Em <strong>de</strong>sviar-nos.”


558 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

pois, que nada há mais nocivo do que uma doutrina perversiva e as<br />

especulações ímpias, que nos conduzem a um <strong>de</strong>svio, mesmo em grau<br />

mínimo, da fé ortodoxa e pura. 91 Portanto, não é sem razão que o apóstolo<br />

nos exorta para não nos <strong>de</strong>ixarmos enganar. 92<br />

34. Vigiai com retidão. Assim que ele percebeu que os coríntios<br />

haviam, por assim dizer, caído no sono dos ébrios, através <strong>de</strong> um senso<br />

<strong>de</strong> segurança excessivamente falsa, então se põe a sacudi-los <strong>de</strong><br />

seu torpor. Mas, ao adicionar o termo retidão, notifica <strong>de</strong> que maneira<br />

ele quer que eles estejam quando acordarem. Pois eles mantinham-se<br />

alertas e bastante lúcidos no que tange a seus afazeres; e, além do<br />

mais, não há dúvida <strong>de</strong> que se orgulhavam <strong>de</strong> sua perspicácia; todavia,<br />

mantinham-se indolentes em relação a algo que, mais que qualquer<br />

outra coisa, exigia que se mantivessem plenamente <strong>de</strong>spertos. Eis a<br />

razão por que ele diz “vigiai com retidão”; em outros termos: “Volvei<br />

vossa mente e almejai as coisas que são boas e santas.”<br />

Ao mesmo tempo ele adiciona a razão para se proce<strong>de</strong>r assim, dizendo:<br />

“Alguns <strong>de</strong>ntre vós”, diz ele, “não têm conhecimento <strong>de</strong> Deus.”<br />

Era indispensável que isso fosse dito, pois <strong>de</strong> outra forma teriam<br />

consi<strong>de</strong>rado sua advertência como algo completamente fora <strong>de</strong> propósito,<br />

já que eram excessivamente sábios a seus próprios olhos. Mas<br />

ele os acusa <strong>de</strong> ignorância em relação a Deus, <strong>de</strong> modo que ficassem<br />

cientes <strong>de</strong> que eram <strong>de</strong>ficitários naquilo que constituía a coisa mais<br />

importante <strong>de</strong> todas. Isso é valioso como advertência contra os que<br />

são a<strong>de</strong>ptos dos que flutuam no espaço, mas que, ao mesmo tempo,<br />

são cegos em relação ao que está a seus pés; e que são estupidamente<br />

estultos, quando <strong>de</strong>viam ser tão espertos quanto possível.<br />

91 “De la simplicite <strong>de</strong> la foy.” – “Da simplicida<strong>de</strong> da fé.”<br />

92 “A conexão não é aquela que teríamos esperado <strong>de</strong> uma máxima inserida. Ela está no<br />

meio <strong>de</strong> um conceito sensitivo e instrutivo sobre a ressurreição dos mortos e a vida<br />

eterna; mas a concessão <strong>de</strong>la foi esta: os coríntios tinham recebido, a partir da intrusão<br />

<strong>de</strong> falsos mestres, princípios que militavam contra a gran<strong>de</strong> doutrina. Tinham sido ensinados<br />

a modificá-la e a resolvê-la meramente por um processo que se dá no presente<br />

mundo; interpretando o que se diz da ressurreição dos mortos <strong>de</strong> uma maneira mística<br />

e figurativa. O apóstolo insinua que se <strong>de</strong>u por meio <strong>de</strong> uma mistura das comunicações<br />

corrompidas <strong>de</strong> tais homens com a Igreja Cristã.”


Capítulo 15 • 559<br />

Despertar-vos o pudor, ou, seja, da mesma maneira como os pais<br />

<strong>de</strong>spertam o brio <strong>de</strong> seus filhos, repreen<strong>de</strong>ndo-os por suas traquinagens,<br />

a fim <strong>de</strong> que eles venham, por meio <strong>de</strong>ssa vergonha, cobrir<br />

sua vergonha. Em contrapartida, ao dizer que sua intenção não era<br />

humilhá-los, ele pretendia informar que não <strong>de</strong>sejava que se sentissem<br />

envergonhados caso ele viesse fazer uma exposição pública dos<br />

escândalos <strong>de</strong>les <strong>de</strong> forma hostil e <strong>de</strong>sagradável. Mas, neste ponto, era<br />

do interesse <strong>de</strong>les que fossem reprovados em termos bem severos,<br />

visto que ainda se <strong>de</strong>leitavam em males <strong>de</strong> tal magnitu<strong>de</strong>. Ora, quando<br />

o apóstolo os acusa <strong>de</strong> ignorância em relação a Deus, ele os <strong>de</strong>spe<br />

inteiramente <strong>de</strong> toda honra.<br />

35. Mas alguém dirá: Como os mortos<br />

ressuscitam? e com que espécie <strong>de</strong><br />

corpo eles vêm?<br />

36. Insensato! o que semeias não nasce,<br />

se primeiro não morrer;<br />

37. e o que semeias, semeias não o corpo<br />

como há <strong>de</strong> ser, mas o simples<br />

grão, como <strong>de</strong> trigo, ou <strong>de</strong> qualquer<br />

outra semente.<br />

38. Deus, porém, lhe dá um corpo como<br />

lhe aprouve dar, e a cada semente<br />

seu corpo apropriado.<br />

39. Nem toda carne é a mesma; porém<br />

uma é a carne dos homens, outra a<br />

dos animais, outra a das aves e outra<br />

a dos peixes.<br />

40. Também há corpos celestiais e<br />

corpos terrestres; uma, porém, é a<br />

glória dos celestiais, e outra a glória<br />

dos terrestres.<br />

41. Uma é a glória do sol; e outra, a glória<br />

da lua; e ainda outra, a glória das<br />

estrelas; porque até entre estrela e<br />

estrela há diferença <strong>de</strong> esplendor.<br />

42. Assim também é a ressurreição dos<br />

mortos.<br />

35. Sed dicet quispiam: Quomodo<br />

suscitabuntur mortui? quali autem<br />

corpore venient?<br />

36. Demens, tu quod seminas, non vivificatur<br />

nisi mortuum fuerit.<br />

37. Et quod seminas, non corpus quod<br />

nascetur, seminas, sed nudum granum:<br />

exempli gratia, tritici, aut<br />

alterius cujusvis generis:<br />

38. Deus autem illi dat corpus, quemadmodum<br />

voluerit, et unicuique<br />

seminum proprium corpus.<br />

39. Non omnis caro, ea<strong>de</strong>m caro: sed<br />

alia caro hominum, alia vero caro<br />

pecudum, alia volucrum, alia piscium.<br />

40. Sunt et corpora cœlestia, sunt<br />

corpora terrestria: quin etiam alia<br />

cœlestium gloria, alia terrestrium.<br />

41. Alia gloria solis, alia gloria lunæ,<br />

alia gloria stellarum: stella a stella<br />

differt in gloria:<br />

42. Sic et resurrectio mortuorum.


560 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

43. Semeia-se o corpo na corrupção,<br />

ressuscita em incorrupção; semeia-<br />

-se em <strong>de</strong>sonra, ressuscita em<br />

glória; semeia-se em fraqueza, ressuscita<br />

em po<strong>de</strong>r.<br />

44. Semeia-se um corpo natural, ressuscita<br />

um corpo espiritual. Se há<br />

corpo natural, há também corpo<br />

espiritual.<br />

45. Pois assim está escrito: O primeiro<br />

homem, Adão, foi feito alma<br />

vivente.<br />

46. O último Adão, porém, foi feito espírito<br />

vivificante. Mas não é primeiro<br />

o espiritual, e, sim, o natural; então<br />

é que vem o espiritual.<br />

47. O primeiro homem, formado da<br />

terra, é terreno; o segundo homem<br />

é do céu.<br />

48. Como foi o primeiro homem, o terreno,<br />

tais são também os <strong>de</strong>mais<br />

homens terrenos; e como é o homem<br />

celestial, tais são também os<br />

celestiais.<br />

49. E assim como trouxemos a imagem<br />

do que é terreno, também <strong>de</strong>vemos<br />

trazer a imagem do celestial.<br />

50. Isto afirmo, irmãos, que carne e<br />

sangue não po<strong>de</strong>m herdar o reino<br />

<strong>de</strong> Deus, nem a corrupção herdar a<br />

incorrupção.<br />

43. Seminatur in corruptione, resurgit<br />

in incorruptione: seminatur in ignominia,<br />

resurgit in gloria: seminatur<br />

in infirmitate, resurgit in potentia:<br />

44. Seminatur corpus animale, resurgit<br />

corpus spirituale: est corpus animale,<br />

est et corpus spirituale.<br />

45. Quemadmodum et scriptum est,<br />

(Gen. ii.7,) Factus est primus homo<br />

Adam in animam viventem, ultimus<br />

Adam in spiritum vivificantem.<br />

46. Sed non primum quod spirituale<br />

est: sed animale, <strong>de</strong>in<strong>de</strong> spirituale.<br />

47. Primus homo ex terra terrenus, secundus<br />

homo, Dominus e cœlestes.<br />

48. Qualis terrenus, tales et terreni, et<br />

qualis cœlestis, talesd et cœlestes.<br />

49. Et quemadmodum portavimus<br />

imaginem terreni, portabimus et<br />

imaginem cœlestis.<br />

50. Hoc autem dico, fratres, quod caro<br />

et sanguis regnum Dei hereditate<br />

possi<strong>de</strong>re non possunt, neque corruptio<br />

incorruptionem hereditate<br />

possi<strong>de</strong>bit.<br />

35. Como os mortos ressuscitam? Nada é mais repugnante à razão<br />

humana do que este elemento da fé. Porque nenhum outro, senão<br />

Deus, po<strong>de</strong> convencer-nos <strong>de</strong> que nossos corpos, que já se acham<br />

entregues à <strong>de</strong>terioração, à <strong>de</strong>composição, ou são consumidos pelo<br />

fogo, ou <strong>de</strong>spedaçados por animais selvagens, serão restaurados a<br />

sua inteireza, porém com uma natureza muito superior. Todo nosso


Capítulo 15 • 561<br />

gênio não o rejeita como incrível, até mesmo como o mais extremo<br />

absurdo? 93 A fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfazer este aparente absurdo, o apóstolo faz uso<br />

<strong>de</strong> antipófora, ou, seja, como se, através dos lábios <strong>de</strong> um oponente,<br />

ele fizesse uma objeção que aparentasse, à primeira vista, conflitar-se<br />

com a doutrina da ressurreição. Pois esta pergunta particular não é a<br />

<strong>de</strong> alguém que está perguntando por que ele nutre dúvida sobre como<br />

a ressurreição se dará, mas <strong>de</strong> alguém que <strong>de</strong>clara que não po<strong>de</strong> crer<br />

no que se ensina sobre a ressurreição, porque ela é algo que não é possível<br />

acontecer. Eis a razão por que, em sua réplica, o apóstolo refuta<br />

esse gênero <strong>de</strong> objeção com muita aspereza. Portanto, notemos bem<br />

que aqueles que são representados como a falarem aqui são pessoas<br />

que querem <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhar da convicção acerca da ressurreição, que dirigem<br />

gestos insultuosos, com base em sua suposta impossibilida<strong>de</strong>.<br />

36. Insensato! o que semeias. O apóstolo po<strong>de</strong>ria ter replicado,<br />

dizendo que, embora a forma como a ressurreição se dá é algo que vai<br />

além <strong>de</strong> nossa compreensão, para Deus, não obstante, não constitui<br />

problema algum. Conseqüentemente, não <strong>de</strong>vemos aqui formar nosso<br />

próprio juízo em concordância com nosso próprio entendimento, mas<br />

que a honra <strong>de</strong> crer <strong>de</strong>ve ser atribuída ao estupendo e secreto po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> Deus, a saber: que se efetuará o que não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong> forma alguma<br />

compreen<strong>de</strong>r.<br />

O apóstolo, porém, adota outro método. Pois ele mostra que,<br />

longe <strong>de</strong> a ressurreição ser contrária à natureza [naturae adversitur],<br />

po<strong>de</strong>mos ver um claro exemplo <strong>de</strong>la todos os dias <strong>de</strong> nosso viver, no<br />

processo da própria natureza, na forma como os frutos se <strong>de</strong>senvolvem.<br />

Pois on<strong>de</strong> os frutos que colhemos da terra têm sua origem, senão<br />

na <strong>de</strong>composição? Pois a semente, uma vez semeada, não germinará a<br />

não ser que o grão morra. Portanto, pelo fato <strong>de</strong> a <strong>de</strong>composição ser<br />

a origem e a causa da reprodução, temos aqui uma espécie <strong>de</strong> representação<br />

da ressurreição. Desse fato segue-se que nossa avaliação do<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus longe está <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>srespeitosa e ingrata, se apropriarmos<br />

<strong>de</strong>le o que já é evi<strong>de</strong>nte diante <strong>de</strong> nossos olhos.<br />

93 “Comme la plus gran<strong>de</strong> absurdite du mon<strong>de</strong>.” – “Como o maior absurdo do mundo.”


562 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

37. Semeias não o corpo como há <strong>de</strong> ser. Esta comparação<br />

compõe-se <strong>de</strong> duas partes: (1) que não <strong>de</strong>ve surpreen<strong>de</strong>r-nos que os<br />

corpos ressuscitem da <strong>de</strong>composição, com base no fato <strong>de</strong> que o mesmo<br />

suce<strong>de</strong> no caso da semente semeada; (2) que não é contrário à<br />

razão o fato <strong>de</strong> que nossos corpos serão restaurados em um outro<br />

estado, visto que do simples grão Deus produz tantas espigas, produto<br />

perfeito <strong>de</strong> uma habilida<strong>de</strong> que arranca admiração e que gera grãos <strong>de</strong><br />

uma qualida<strong>de</strong> superior.<br />

Visto, porém, que, por assim dizer, aparentemente ele está sugerindo<br />

que muitos corpos emanarão <strong>de</strong> um só corpo, então modifica o que<br />

disse, acrescentando algo mais, a saber: que Deus forma o tipo <strong>de</strong> corpo<br />

que ele quer, significando que nisso também há uma distinção <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>.<br />

Então adiciona: a cada semente seu corpo apropriado, e esta frase<br />

modifica o que dissera sobre o outro corpo; pois ele diz que o corpo não<br />

é tão diferente que não retenha sua própria aparência [speciem].<br />

39. Nem toda carne é a mesma. Esta é outra comparação, mas que<br />

serve ao mesmo propósito, ainda que outros ofereçam uma explicação<br />

diferenciada <strong>de</strong>la. Pois, ao dizer que o termo carne envolve o corpo<br />

tanto do homem quanto do animal, e que cada um conserva ainda um<br />

tipo diferenciado <strong>de</strong> carne, a intenção do apóstolo é dizer que há realmente<br />

uma só substância [unam substantiam], porém uma diferença<br />

<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> [in qualitatem]. O que equivale ao seguinte: seja qual<br />

for a diversida<strong>de</strong> que percebemos em alguma espécie particular [in<br />

quoqua specie], é um tipo <strong>de</strong> prefiguração da ressurreição, porquanto<br />

Deus claramente mostra que para ele não há a menor dificulda<strong>de</strong> em<br />

renovar nossos corpos, transformando seu presente estado. 94<br />

41. Uma é a glória do sol; e outra, a glória da lua. Há não só<br />

diferença entre os corpos celestiais e corpos terrestres, mas inclusive<br />

os corpos celestiais não são iguais em glória; pois o sol exce<strong>de</strong> em<br />

radiância à lua, e as <strong>de</strong>mais estrelas diferem umas das outras. Conse-<br />

94 Quase aliados a estes são os exemplos <strong>de</strong> transformações peculiares experimetnadas por<br />

vários insetos, e o estado <strong>de</strong> repouso e insensibilida<strong>de</strong> que prece<strong>de</strong> tais transformações;<br />

tais como as crisálidas ou estado aurélio das borboletas, moscas e bichos da seda.”


Capítulo 15 • 563<br />

qüentemente, essa similarida<strong>de</strong> se dá 95 na ressurreição dos mortos.<br />

Mas um equívoco geralmente surge na aplicação <strong>de</strong>ste fato, 96 pois<br />

há quem pense que o apóstolo quis dizer que, após a ressurreição,<br />

haverá para os santos diferentes graus <strong>de</strong> honra e <strong>de</strong> glória. Isso é,<br />

naturalmente, perfeitamente correto, e outras passagens da Escritura<br />

dão testemunho <strong>de</strong>sse fato; porém isso nada tem a ver com o que o<br />

apóstolo aqui tem em mente. Pois ele não está discutindo como os santos<br />

se diferenciarão uns dos outros em sua condição pós ressurreição,<br />

mas como os corpos que agora temos se diferenciarão daqueles que<br />

receberemos no porvir. 97<br />

Portanto, ao fazer uso <strong>de</strong>ste símile, ele remove toda e qualquer<br />

idéia absurda, ou, seja: o sol e a lua são <strong>de</strong> uma só substância, porém<br />

diferem gran<strong>de</strong>mente um do outro em honra e esplendor. Há, pois,<br />

algum motivo <strong>de</strong> espanto se nosso corpo se veste <strong>de</strong> uma proprieda<strong>de</strong><br />

muito mais esplêndida? 98 É como se ele dissesse: “Minha doutrina consiste<br />

em que nada acontecerá na ressurreição que já não tenha sido<br />

apresentado aos olhos <strong>de</strong> todo o mundo.” É evi<strong>de</strong>nte, à luz do contexto,<br />

que este é o sentido das palavras. Pois o que levaria o apóstolo, e a<br />

que propósito serviria, fazer um salto tão abrupto, se <strong>de</strong>veras estivesse<br />

agora comparando os santos uns com os outros, em seus diferentes<br />

estados, quando, ao transitar para este ponto, estivesse comparando<br />

o presente estado <strong>de</strong> todos com seu estado futuro apropriado, e quando<br />

ele prossegue com essa comparação nos versículos subseqüentes?<br />

43. Semeia-se na corrupção. Para que não ficasse nenhuma dúvida,<br />

o apóstolo se explica, estabelecendo a diferença entre nosso<br />

presente estado e o que seguirá à ressurreição. Que sorte <strong>de</strong> consistência<br />

sua tese teria se primeiro ele tivesse tentado fazer distinção 99<br />

95 “Ceste diuersite <strong>de</strong> qualite se monstre.” – “Esta diferença <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> se mostra.”<br />

96 “En l’application <strong>de</strong> ceste similitu<strong>de</strong>.” – “Na aplicação <strong>de</strong>sta similitu<strong>de</strong>.”<br />

97 “Comment different nos corps que nous auons maintenant <strong>de</strong> ceux que nous aurons<br />

apres.” – “No que respeita a nossos corpos, os quais temos agora, diferirão dos que teremos<br />

<strong>de</strong>pois.”<br />

98 “Qu’il n’há maintenant.” – “Do que ele tem agora.”<br />

99 “Au propos prece<strong>de</strong>nt.” – “Na afirmação prece<strong>de</strong>nte.”


564 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

entre os graus <strong>de</strong> glória que os santos terão? Portanto, não há dúvida<br />

<strong>de</strong> que, seguindo para este ponto, ele vem perseguindo um único tema.<br />

Ele então volta ao primeiro símile que empregara, porém o ajusta<br />

mais plenamente a seu propósito. Ou, se se preferir, retendo esse<br />

símile, ele compara o tempo <strong>de</strong>sta presente vida, metaforicamente, à<br />

época do plantio, e o da ressurreição à época da colheita; e afirma que<br />

agora nosso corpo está <strong>de</strong>veras sujeito à morte e <strong>de</strong>sonra, mas, então,<br />

será glorioso e incorruptível. Aos Filipenses, ele diz a mesma coisa em<br />

diferentes termos: “Nossa cidadania, porém, está nos céus, <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

esperamos ansiosamente o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, o qual,<br />

pelo po<strong>de</strong>r que o capacita a colocar as coisas <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> seu domínio,<br />

transformará nossos corpos humilhados, para que sejam semelhantes<br />

a seu corpo glorioso [Fp 3.20, 21].”<br />

44. Semeia-se um corpo natural. Como ele não po<strong>de</strong>ria enumerar<br />

cada aspecto isoladamente, ele os enfeixa todos numa só palavra,<br />

dizendo que o corpo, agora, é natural [animale], 100 e <strong>de</strong>pois será espiritual<br />

[spirituale]. Além disso, a <strong>de</strong>signação natural [animale] é dada<br />

ao que é <strong>de</strong>terminado [informatur] pela alma [anima]; a <strong>de</strong>signação<br />

espiritual [spirituale], ao que é <strong>de</strong>terminado pelo Espírito. 101 Pois é a<br />

alma que confere vida ao corpo e o impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> tornar-se um cadáver;<br />

e assim é bem apropriado que ele fosse <strong>de</strong>scrito em termos <strong>de</strong> alma<br />

[anima]. Mas, após a ressurreição, esse po<strong>de</strong>r gerador <strong>de</strong> vida que o<br />

corpo recebe do Espírito será muito mais excelente. 102<br />

100 “É geralmente aceito pelos expositores que ψυχικὸς aqui, como sendo oposto a<br />

πνευματικὸς (espiritual), especialmente como a expressão é usada com uma referência<br />

às palavras <strong>de</strong> Moisés acerca do corpo <strong>de</strong> Adão, ἐγένετο εἰς ψυχὴν ζω̑σαν (tornou-se alma<br />

vivente), <strong>de</strong>ve significar animal (literalmente aquilo que inala o fôlego <strong>de</strong> vida, necessário<br />

à existência <strong>de</strong> todos corpos animais), aquilo que é dotado com faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sentido e<br />

necessita <strong>de</strong> alimento, bebida e sono para seu sustento.” – Bloomfield.<br />

101 “Au reste là où nous traduisons, Sensuel, il y auroit à le trourner au plus pres du Grec,<br />

Animal: c’est à dire, gouuerné et viuiflé <strong>de</strong> l’ame. Voyla donc que signifie Le corps sensuel.<br />

Le corps spirituel est celuy qui est fiuiflé <strong>de</strong> l’Esprit.” – “Mas o que traduzimos sensual<br />

po<strong>de</strong>ria ser traduzido mais estritamente do grego, animal; isto é, governado e vivificado<br />

pela alma. Caracteriza, pois, o que está implícito pelo corpo sensual. O corpo espiritual é<br />

aquilo que é vivificado pelo Espírito.”<br />

102 “Sera vne chose beaucoup plus excellent.” – “Será uma coisa muito mais excelente.”


Capítulo 15 • 565<br />

Tenhamos sempre em mente, porém, o que já vimos, a saber:<br />

que não há senão uma e a mesma substância do corpo, 103 e o que é<br />

referido aqui é somente à proprieda<strong>de</strong>. Para torná-lo plenamente compreensível,<br />

que a presente proprieda<strong>de</strong> do corpo seja <strong>de</strong>nominada<br />

animação; 104 e sua futura proprieda<strong>de</strong> receba o nome <strong>de</strong> inspiração.<br />

Porque, no tocante à alma comunicar vida ao corpo, no presente, tal<br />

fato envolve a intervenção <strong>de</strong> muitos auxílios; pois precisamos beber,<br />

comer, vestir-nos, dormir e outras coisas semelhantes a estas. Isso<br />

nos prova, além <strong>de</strong> qualquer sombra <strong>de</strong> dúvida, que coisa frágil é esta<br />

animação. Mas o po<strong>de</strong>r vivificante do Espírito será muito mais pleno, e<br />

por essa razão in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> manutenção <strong>de</strong>sse gênero. Este é o sentido<br />

correto e natural das palavras do apóstolo; e <strong>de</strong>ve prevenir as<br />

pessoas <strong>de</strong> se extraviarem pelos labirintos das especulações visionárias.<br />

Tal é o que suce<strong>de</strong> aos que acreditam que a substância do corpo<br />

será espiritual; quando o fato é que nenhuma menção se faz <strong>de</strong> sua<br />

substância, e que ele não sofrerá nenhuma mudança.<br />

45. Como está escrito: O primeiro Adão foi feito alma vivente.<br />

Para que aquilo que ele disse sobre o corpo animal 105 não parecesse<br />

ser uma invenção nova, o apóstolo cita a passagem da Escritura que<br />

diz que Adão foi feito alma vivente [Gn 2.7], significando que seu corpo<br />

era então vivificado pela alma, <strong>de</strong> modo que ele veio a ser um homem<br />

vivente. Alguém po<strong>de</strong>ria perguntar o que a palavra alma significa aqui.<br />

Sabe-se bem que a palavra hebraica pn [nephesh], que Moisés usa, tem<br />

muitas nuanças <strong>de</strong> significado; mas, neste versículo, ela é consi<strong>de</strong>rada<br />

no sentido <strong>de</strong> o princípio vital [pro motu vitali], ou a própria essência<br />

da vida [ipsa vita essentiale]; e o último realmente me é muito mais<br />

preferível. Noto que a mesma coisa se diz sobre os animais, os quais<br />

se tornaram almas viventes [Gn 1.20, 24]. Mas, como a alma <strong>de</strong> todo<br />

animal <strong>de</strong>ve ser julgada <strong>de</strong> acordo sua própria espécie [secundum ge-<br />

103 “La substance du corps sera tousiours vne.” – “A substância do corpo será sempre a<br />

mesma.”<br />

104 “Animation, qui est nom <strong>de</strong>scendant <strong>de</strong> ce mot Ame.”Animação, que é um nome <strong>de</strong>rivado<br />

<strong>de</strong>sta palavra Alma.”<br />

105 “Vne nouuelle imagination qu’il ait forgee.” – “Uma nova fantasia que ele teria inventado.”


566 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

nussuum], não há nada que impeça que uma alma, isto é, o princípio<br />

vital [motus vitalis] seja comum a todos; e contudo, ao mesmo tempo,<br />

a alma do homem po<strong>de</strong> possuir algo peculiar e distinto, isto é, a essência<br />

imortal, como a luz da inteligência e da razão.<br />

O último Adão. Esta expressão em parte alguma é encontrada<br />

escrita na Escritura. 106 Daí a frase está escrito <strong>de</strong>ve ser entendida<br />

como uma referência só à primeira parte <strong>de</strong>ste versículo; porém,<br />

após citar a evidência bíblica, o apóstolo começa então a traçar, em<br />

sua própria pessoa, um contraste entre Cristo e Adão. É como se<br />

quisesse dizer: “Moisés afirma que Adão recebeu uma alma vivente;<br />

Cristo, porém, por outro lado, é dotado <strong>de</strong> um Espírito vivificante. E<br />

é algo muitíssimo superior ser Vida, ou a Fonte <strong>de</strong> Vida, do que meramente<br />

ter vida.” 107<br />

Devemos, porém, observar bem que Cristo era também uma alma<br />

vivente como nós, mas que, além <strong>de</strong> sua alma, o Espírito do Senhor<br />

foi <strong>de</strong>rramado sobre ele, para que, pelo po<strong>de</strong>r do Espírito, pu<strong>de</strong>sse<br />

ressuscitar dos mortos, bem como ressuscitar outros. Deve-se prestar<br />

bastante atenção a este fato, a fim <strong>de</strong> que ninguém conclua que<br />

o Espírito tomou o lugar da alma <strong>de</strong> Cristo, como chegou a imaginar<br />

106 “Ceci n’est point trouué en lieu quelconque <strong>de</strong> l’Escriture.” – “Isto não se encontra em<br />

nenhuma passagem da Escritura.”<br />

107 “Como se diz, Adão a princípio era uma alma vivente (pois Deus lhe soprou o fôlego <strong>de</strong><br />

vida – aquele fôlego puro, divino e celestial), e ele veio a ser alma vivente. Então, <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> haver perguntado: O que é o homem?, a resposta <strong>de</strong>ve ser esta: Ele é uma alma vivente;<br />

ele é todo alma, e toda essa alma é vida. Mas agora esta alma vivente é sepultada em<br />

carne, algo que per<strong>de</strong>u os fins e propósitos verda<strong>de</strong>iros, gran<strong>de</strong>s e nobres daquela vida<br />

que a princípio lhe fora dada. Aliás, é verda<strong>de</strong> que isto é algo muito menos do que se diz<br />

do Segundo Adão, em 1 Coríntios 15.45. ‘O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente;<br />

o segundo Adão foi um Espírito vivificado.’ Este último é muito maior. Para ele uma alma<br />

vivente significava viver por si mesmo; mas o espírito vivificante significa po<strong>de</strong>r para<br />

fazer outros viverem. Isso o primeiro Adão não podia fazer; o mais excelente tipo <strong>de</strong> vida<br />

que possuía (pois houve uma complicação <strong>de</strong> vidas na primeira criação <strong>de</strong>sse homem)<br />

ele não podia per<strong>de</strong>r; porém não podia dar. Ele não podia perdê-la <strong>de</strong> si mesmo; mas<br />

também nunca po<strong>de</strong>ria dá-la a outro por meio <strong>de</strong> algum po<strong>de</strong>r ou eficiência imediata<br />

propriamente sua. Aqui o segundo Adão – a constituição do segundo Adão – estava muito<br />

acima daquela do primeiro, a saber, que ele podia vivificar outros – um espírito vivificante,<br />

não apenas vivificado passivamente, mas vivificado ativamente, um espírito tal como<br />

pu<strong>de</strong>sse gerar espírito e vida difusa.” – Howe’s Workes (Londres, 1834), p. 1209.


Capítulo 15 • 567<br />

Apolinário. 108 E, afora isto, o significado <strong>de</strong>ste versículo po<strong>de</strong> ser encontrado<br />

em Romanos capítulo 8, on<strong>de</strong> o apóstolo <strong>de</strong>clara que “o<br />

corpo está <strong>de</strong> fato morto por causa do pecado”, e que levamos em<br />

nós mesmos os elementos da morte; mas que “o Espírito <strong>de</strong> Cristo,<br />

que o ressuscitou dos mortos”, também habita em nós; e que ele é a<br />

Vida, para no porvir nos ressuscitar também [Rm 8.10, 11]. Deduzimos<br />

<strong>de</strong>ste fato que somos constituídos <strong>de</strong> almas viventes, visto que somos<br />

humanos, mas que o Espírito vivificante <strong>de</strong> Cristo é <strong>de</strong>rramado sobre<br />

nós através da graça regeneradora. Em suma, a interpretação <strong>de</strong> Paulo<br />

é que a condição que obtemos através <strong>de</strong> Cristo é muitíssimo superior<br />

à sorte do primeiro homem, porquanto uma alma vivente foi conferida<br />

a Adão, em seu próprio nome e no <strong>de</strong> sua posterida<strong>de</strong>, porém Cristo,<br />

em contrapartida, granjeou para nós o Espírito que é Vida.<br />

A razão pela qual Paulo <strong>de</strong>nomina Cristo <strong>de</strong> o último Adão é a<br />

seguinte: como a raça humana foi trazida à existência no primeiro homem,<br />

assim em Cristo ela foi restaurada. Vou repetir a idéia <strong>de</strong> uma<br />

forma mais simples. Todos os homens foram criados no primeiro homem,<br />

porque, tudo quanto Deus <strong>de</strong>signara dar a todos, ele conferiu<br />

àquele único homem, <strong>de</strong> modo que a condição do gênero humano foi<br />

estabelecida em sua pessoa. Por sua queda, 109 ele trouxe ruína sobre<br />

si mesmo e sobre aqueles que lhe pertenciam, visto que ele arrastou a<br />

todos eles, juntamente consigo, à mesma ruína. Cristo veio restaurar<br />

nossa natureza da ruína, e a soergueu a uma condição muito melhor<br />

do que antes. Eles, 110 portanto, são por assim dizer, as duas origens, ou<br />

raízes, da raça humana. Eis a razão por que é plenamente justificável<br />

<strong>de</strong>nominar um, o primeiro homem; e o outro, o último. Mas isso não<br />

108 Os pontos <strong>de</strong> vista mantidos por Apolinário eram como seguem: “Christum corpus assumpsisse<br />

sine anima, quod pro anima ei fuerit <strong>de</strong>itas illudque corpus consubstantiale<br />

fuisse <strong>de</strong>itati, nec ex substantia Mariæ efformatum.” – “Que Cristo assumiu um corpo<br />

sem uma alma, porque a Deida<strong>de</strong> era para ele no lugar <strong>de</strong> uma alma, e que o corpo era<br />

co-essencial com a Deida<strong>de</strong>, e não foi formado da substância <strong>de</strong> Maria.” – Ver Mastricht’s<br />

Theology (1698), vol. ii, p. 975.<br />

109 “Le poure mal-heureux par sa transgression.” – “As pobres e miseráveis criaturas com<br />

sua transgressão.”<br />

110 “Adam donc et Christ.” – “Adão e Cristo, portanto.”


568 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

fornece apoio aos <strong>de</strong>mentes que fazem <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong> nós um cristo,<br />

como se sempre houvesse somente dois homens; e que esta multidão<br />

que contemplamos não passasse <strong>de</strong> mero fantasma! Em Romanos 5.12<br />

nos <strong>de</strong>paramos com uma comparação semelhante.<br />

46. Mas não é primeiro o espiritual. O apóstolo está dizendo: “É<br />

indispensável que, antes <strong>de</strong> sermos restaurados em Cristo, assumamos<br />

que nossa origem está em Adão e que somos semelhantes a ele.<br />

Esta é a razão por que não <strong>de</strong>vemos ficar surpresos <strong>de</strong> começar com<br />

uma alma vivente, porque, como o nascer prece<strong>de</strong>, em or<strong>de</strong>m, ao renascer,<br />

também a existência prece<strong>de</strong> à ressurreição.”<br />

47. O primeiro homem, formado da terra, é terreno. A vida animal<br />

vem antes, porque o homem terreno vem antes. 111 A vida espiritual<br />

vem em seguida, assim como Cristo, o Homem Celestial, veio <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> Adão.<br />

Ora, os maniqueus perverteram esta passagerm, com seu <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>de</strong> provar que Cristo trouxe do céu um corpo para o ventre da Virgem.<br />

No entanto erraram ao concluir que Paulo aqui estava falando<br />

da substância do corpo, quando, <strong>de</strong> fato, ele estava tratando, antes,<br />

<strong>de</strong> suas características ou proprieda<strong>de</strong>s. Portanto, mesmo possuindo<br />

o homem uma alma imortal, a qual <strong>de</strong> forma alguma se <strong>de</strong>riva da<br />

terra, ele, todavia, possui laivos <strong>de</strong> terra, da qual seu corpo <strong>de</strong>ve sua<br />

origem e na qual ele foi estabelecido para viver. Em contrapartida,<br />

Cristo nos trouxe do céu o Espírito vivificante, a fim <strong>de</strong> nos regenerar<br />

para uma vida muito melhor e mais elevada do que a terrena. 112 Em<br />

suma, nossa vida neste mundo <strong>de</strong>vemo-la a Adão, como os ramos<br />

estão para as raízes; Cristo, em contrapartida, é o princípio e autor<br />

da vida celestial.<br />

Não obstante, é possível que alguém chegue à seguinte conclusão:<br />

Diz-se que Adão é da terra, e Cristo é do céu. A natureza da<br />

comparação 113 existente entre ambos requer que Cristo tenha um<br />

111 “La vie sensuelle, ou animale, c’est à dire, que nous auons par le moyen <strong>de</strong> l’ame, prece<strong>de</strong>.”<br />

– “A vida sensual ou animal, isto é, o que temos por meio da alma, vem primeiro.<br />

112 “Plus haute et excellente que la terre.” – “Mais elevada e mais excelente do que a terra.”


Capítulo 15 • 569<br />

corpo proce<strong>de</strong>nte do céu, assim como o corpo <strong>de</strong> Adão foi formado<br />

da terra; ou, ao menos, que a alma do homem tenha emanado da<br />

terra, enquanto que a alma <strong>de</strong> Cristo, por outro lado, tenha vindo<br />

do céu. Minha resposta é que o apóstolo não fez uma comparação<br />

dos dois homens tão minu<strong>de</strong>nte e estrita quanto possível – pois<br />

isso não era necessário. Visto, porém, estar discutindo a natureza<br />

<strong>de</strong> Cristo e <strong>de</strong> Adão, ele fez uma ligeira referência à criação <strong>de</strong><br />

Adão, dizendo que ele fora formado da terra; e, ao mesmo tempo,<br />

para que percebamos quão valioso é Cristo, então <strong>de</strong>clara que ele<br />

é o Filho <strong>de</strong> Deus, que <strong>de</strong>sceu do céu a nós, e que, por essa razão,<br />

retém sua natureza e po<strong>de</strong>r celestiais. Este é o sentido correto; em<br />

contrapartida, as sutilezas 113 dos maniqueus nada mais são do que<br />

interpretação solerte.<br />

Devemos, não obstante, respon<strong>de</strong>r ainda a outra objeção. Porque,<br />

embora Cristo estivesse no mundo, ele viveu nossa vida comum e,<br />

portanto, terrena; daí, o contraste não é apropriado. A solução a este<br />

problema ajudará ainda mais na refutação da fantasiosa 114 noção dos<br />

maniqueus. Pois sabemos que o corpo <strong>de</strong> Cristo era sujeito à morte,<br />

e que ele ficou livre <strong>de</strong> corrupção, não <strong>de</strong>vido a alguma proprieda<strong>de</strong><br />

inerente [essentiali proprietate], segundo o modo <strong>de</strong> se expressar, mas<br />

pela providência <strong>de</strong> Deus, e nada mais. Portanto, no tocante à substância<br />

<strong>de</strong> seu corpo, não só foi ele terreno, mas também que, por algum<br />

tempo, participou <strong>de</strong> nossa condição terrena. Porque, antes que o po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> Cristo pu<strong>de</strong>sse manifestar-se, conferindo-nos a vida celestial,<br />

era necessário que ele morresse na <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> da carne [2Co 13.4].<br />

Ora, esta vida celestial primeiro se manifestou na ressurreição, para<br />

que nos vivificasse também.<br />

49. E assim como trouxemos a imagem. Alguns acreditam que há<br />

aqui uma exortação a uma vida piedosa e santa, ao quê o apóstolo foi<br />

levado à guisa <strong>de</strong> digressão; e por essa razão eles mudaram o verbo,<br />

do tempo futuro para o subjuntivo hortativo. Além do mais, alguns ma-<br />

113 “La nature <strong>de</strong> l’antithese et comparison.” – “A natureza do contraste e comparação.”<br />

114 “La meschante imagination.” – “A perversa fantasia.”


570 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

nuscritos gregos trazem φορέσωμεν [portemos]. 115 Não obstante, visto<br />

que isso não se ajusta bem, conservemos, antes, o que é apropriado ao<br />

contexto e ao propósito imediato do apóstolo. À guisa <strong>de</strong> introdução,<br />

notemos que isso não constitui uma exortação, e, sim, uma doutrina,<br />

pura e simplesmente; e aqui o apóstolo não está tratando da novida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> vida, e, sim, está dando segmento, sem interrupção, na fiação <strong>de</strong> seu<br />

argumento, sua discussão sobre a ressurreição do corpo. Este, portanto,<br />

será o sentido: Visto que a “natureza animal” que possuímos, antes<br />

<strong>de</strong> mais nada é a imagem <strong>de</strong> Adão, nessa condição nos conformaremos<br />

a Cristo em sua natureza celestial; e quando isso nos acontecer, nossa<br />

restauração será completa. Pois agora começamos a ostentar a imagem<br />

<strong>de</strong> Cristo, e somos transformados nela diária e paulatinamente;<br />

não obstante, esta imagem <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da regeneração espiritual. Mas,<br />

<strong>de</strong>pois, seremos restaurados à plenitu<strong>de</strong>, quer em nosso corpo, quer<br />

em nossa alma; o que agora teve início será levado à completação, e<br />

alcançaremos, em realida<strong>de</strong>, o que agora apenas esperamos.<br />

Ora, caso alguém ainda prefira a outra redação, este versículo teria<br />

tido o efeito <strong>de</strong> inquietar os coríntios; e caso tivessem realmente<br />

viva em sua memória a pieda<strong>de</strong> e a nova vida, é provável que tenham-<br />

-se inflamado, ao mesmo tempo, com a esperança da glória celestial.<br />

50. Isto afirmo. Esta frase indica que o que vem em seguida é uma<br />

explicação da afirmação prece<strong>de</strong>nte. É como se Paulo dissesse: nossos<br />

corpos precisam ser renovados, visto que os mesmos estão sujeitos<br />

à corrupção, e não po<strong>de</strong>m, como tais, possuir o reino incorruptível<br />

<strong>de</strong> Deus. Portanto, a única maneira <strong>de</strong> entrarmos no reino <strong>de</strong> Cristo é<br />

por meio <strong>de</strong> nossa renovação segundo a própria imagem <strong>de</strong> Cristo.”<br />

Finalmente, <strong>de</strong>vemos enten<strong>de</strong>r carne e sangue no sentido <strong>de</strong> carne e<br />

sangue como são atualmente constituídos; pois nossa carne participará<br />

da glória <strong>de</strong> Deus, mas só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ser ela renovada e restaurada à<br />

vida pelo Espírito <strong>de</strong> Cristo.<br />

115 “Pourtant en lieu <strong>de</strong> Nous porterons, aucuns ont traduit Portons. Et mesme aucuns liures<br />

Grees le lisent ainsi.” – “Daí, em vez <strong>de</strong> suportaremos, alguns o traduziram que suportemos.<br />

E mesmo alguns manuscritos gregos contêm essa redação.”


Capítulo 15 • 571<br />

51. Eis que vos digo um mistério: Nem<br />

todos dormiremos, mas transformados<br />

seremos todos,<br />

52. num momento, num abrir e fechar<br />

<strong>de</strong> olhos, ao ressoar a última trombeta.<br />

Pois a trombeta soará, e os<br />

mortos ressuscitarão incorruptíveis,<br />

e nós seremos transformados.<br />

53. Porque é necessário que o corruptível<br />

se revista <strong>de</strong> incorruptibilida<strong>de</strong>,<br />

e o que é mortal se revista <strong>de</strong> imortalida<strong>de</strong>.<br />

54. E quando o corruptível se revestir<br />

<strong>de</strong> incorruptibilida<strong>de</strong>, e o que é<br />

mortal se revestir <strong>de</strong> imortalida<strong>de</strong>,<br />

então se cumprirá a palavra que<br />

está escrita: Tragada foi a morte<br />

pela vitória.<br />

55. On<strong>de</strong> está, ó morte, tua vitória?<br />

on<strong>de</strong> está, ó morte, teu aguilhão?<br />

56. O aguilhão da morte é o pecado, e o<br />

po<strong>de</strong>r do pecado é a lei.<br />

57. Mas, graças a Deus que nos dá a<br />

vitória por meio <strong>de</strong> nosso Senhor<br />

Jesus Cristo.<br />

58. Portanto, meus amados irmãos,<br />

se<strong>de</strong> firmes e inabaláveis, e sempre<br />

abundantes na obra do Senhor,<br />

sabendo que, no Senhor, vosso trabalho<br />

não é vão.<br />

51. Ecce, mysterium vobis dico: Non<br />

omnes qui<strong>de</strong>m dormiemus, omnes<br />

tamen immutabimur,<br />

52. In puncto temporis, in nictu oculi,<br />

cum extrema tuba, (canet enim<br />

tuba ,) et mortui resurgent incorruptibiles,<br />

et nos immutabimur.<br />

53. Oportet enim corruptibile hoc induere<br />

immortalitatem.<br />

54. Quum autem corruptibile hoc<br />

induerit incorruptibilitatem, et<br />

mortale hoc induerit immortalitatem:<br />

tunc fiet sermo qui scriptus<br />

est: (Hos. 13, 14, vel Ies. 25, 8.) Absorpta<br />

est mors in victoriam.<br />

55. Ubi, mors, tuus aculeus? Ubi tua,<br />

inferne, victoria?<br />

56. Aculeus autem mortis, peccatum<br />

est: virtus autem peccati, Lex.<br />

57. Sed Deo gratia, qui <strong>de</strong>dit nobis victoriam<br />

per Dominum nostrum Iesum<br />

Christum.<br />

58. Itaque, fratres mei dilecti, stabiles<br />

sitis, immobiles, abundantes in<br />

opere Domini semper, hoc cognito,<br />

quod labor vester non sit inanis in<br />

Domino.<br />

Até este ponto, o argumento do apóstolo consistiu <strong>de</strong> duas partes.<br />

Ele <strong>de</strong>monstrou, antes <strong>de</strong> tudo, que haverá ressurreição dos mortos; e,<br />

em segundo lugar, qual será a natureza da ressurreição. Agora, porém,<br />

ele prossegue apresentando uma <strong>de</strong>scrição mais completa <strong>de</strong> como<br />

ela terá lugar, chamando sua <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> mistério, visto que não havia<br />

a mesma clareza sobre esta, como no caso dos outros aspectos, na<br />

ausência, até aqui, <strong>de</strong> qualquer revelação <strong>de</strong> Deus sobre o assunto. Ele<br />

proce<strong>de</strong> assim a fim <strong>de</strong> levá-los a prestar mais atenção no que tem a


572 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

dizer. Porque essa doutrina perversa havia granjeado força provinda<br />

do fato <strong>de</strong> que estavam discutindo este tema <strong>de</strong> uma forma displicente<br />

e, com naturalida<strong>de</strong>, 116 como se fosse algo que não lhes proporcionava<br />

a mais leve dificulda<strong>de</strong>. Portanto, ao fazer uso do termo mistério, Paulo<br />

os está advertindo <strong>de</strong> que estão se tornando familiarizados com algo,<br />

sobre o qual não só nada sabem, mas também que <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado<br />

como parte dos segredos celestiais <strong>de</strong> Deus.<br />

51. Nem todos dormiremos. Não há variante nos manuscritos<br />

gregos, mas há três redações diferentes no latim. A primeira é: “Na<br />

verda<strong>de</strong> todos morreremos, mas nem todos seremos transformados.”<br />

A segunda é: “Na verda<strong>de</strong> todos ressuscitaremos, mas nem todos<br />

seremos transformados.” 117 A terceira é: “Certamente, nem todos dormiremos,<br />

mas todos seremos transformados.” Minha conjetura é que<br />

estas diferenças são oriundas do fato <strong>de</strong> que alguns revisores, sendo<br />

um tanto obtusos, e achando a redação genuína um tanto <strong>de</strong>senxabida,<br />

tomaram a iniciativa <strong>de</strong> substituir pela que entendiam ser a mais<br />

provável. 118 Porque, em face da dificulda<strong>de</strong>, parecia-lhes inconsistente<br />

que “nem todos morreremos”, quando Hebreus [9.27] afirma que “aos<br />

homens está <strong>de</strong>terminado morrerem uma vez”. Portanto, o alteraram<br />

para que significasse: “nem todos seremos transformados”, ainda que<br />

“todos ressuscitaremos”, ou “todos morreremos”, e ser transformados,<br />

para eles, significa a glória que somente os filhos <strong>de</strong> Deus receberão.<br />

À luz do contexto, porém, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>cidir qual é a redação genuína.<br />

A intenção do apóstolo é explicar o que já havia dito, ou, seja, que<br />

seremos feitos semelhantes a Cristo, porque “carne e sangue não po<strong>de</strong>m<br />

herdar o reino <strong>de</strong> Deus”. Mas isso traz a lume a pergunta: 119 qual,<br />

pois, será o <strong>de</strong>stino daqueles que sobreviverem até o Dia do Senhor?<br />

O apóstolo respon<strong>de</strong> que, embora não morram, não obstante serão<br />

116 “Par maniere <strong>de</strong> passe-temps, et tout à leur aise.” – “À guisa <strong>de</strong> passa-tempo, e com<br />

naturalida<strong>de</strong>.”<br />

117 Esta é a redação da Vulgata.<br />

118 “Qui leur estoit plus probable.” – “A que lhes parecia a mais provável.”<br />

119 “Il y auoit sur ceci vne question qu’on pouuoit faire.” – “Havia uma questão quanto a<br />

isso, a qual po<strong>de</strong>ria ser apresentada.”


Capítulo 15 • 573<br />

todos renovados, para que a mortalida<strong>de</strong> e a corrupção sejam <strong>de</strong>struídas.<br />

Notemos, porém, que ele está falando somente dos crentes;<br />

porque, ainda que haverá ressurreição, e até mesmo transformação,<br />

dos incrédulos, todavia, diante do fato <strong>de</strong> que são passados em silêncio<br />

aqui, <strong>de</strong>vemos enten<strong>de</strong>r tudo o que se disse até aqui como que<br />

se aplicando exclusivamente aos eleitos. Agora percebemos o quanto<br />

esta frase se ajusta à prece<strong>de</strong>nte, porque, havendo dito que levaremos<br />

a imagem <strong>de</strong> Cristo, agora ele esclarece que tal se dará quando formos<br />

transformados, para que o que é mortal seja absorvido pela vida [2Co<br />

5.4], e também mostra que não se fará nenhuma diferença nesta transformação<br />

e que a vinda <strong>de</strong> Cristo alcançará alguns que ainda estarão<br />

vivos naquele tempo.<br />

Mas ainda temos que encontrar uma solução para o problema,<br />

a saber: que “está <strong>de</strong>terminado que todos os homens morram”; e <strong>de</strong><br />

fato esta não é uma tarefa tão difícil, já que a transformação não po<strong>de</strong><br />

concretizar-se sem a <strong>de</strong>struição da natureza que existia previamente,<br />

e tal transformação é corretamente consi<strong>de</strong>rada como uma espécie<br />

<strong>de</strong> morte; visto, porém, não haver separação entre alma e corpo, esta<br />

não <strong>de</strong>ve ser imaginada como sendo uma morte ordinária. Será morte<br />

no sentido em que nossa natureza corruptível será <strong>de</strong>struída; não será<br />

um adormecer, visto que a alma não se separará do corpo; mas haverá<br />

uma súbita transição <strong>de</strong> nossa natureza corruptível para a bendita<br />

imortalida<strong>de</strong>.<br />

52. Num momento. Ele está ainda falando em termos gerais; em<br />

outros termos, isto cobre tudo. Pois uma transformação se dará em<br />

todos, subitamente, instantaneamente, porquanto a vinda <strong>de</strong> Cristo<br />

será súbita. E para enfatizar a rapi<strong>de</strong>z <strong>de</strong>la, ele então emprega a<br />

frase “num piscar <strong>de</strong> olhos”, pois há duas redações no grego, ῥοπῃ̑<br />

[guinada] ou ῥιπῃ̑ [piscar]. 120 Entretanto, nenhuma faz diferença <strong>de</strong><br />

sentido. Paulo escolheu um movimento específico do corpo, aquele<br />

120 Semler <strong>de</strong>clara que alguns nos dias <strong>de</strong> Jerônimo preferiram ῥοπῃ, mas o próprio Jerônimo<br />

preferiu ῥιπῃ. Ῥοπῃ é <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong> ῥέπω, ten<strong>de</strong>r ou inclinar para. Significa força ou<br />

ímpeto.


574 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

que exce<strong>de</strong> a todos os outros em rapi<strong>de</strong>z; pois não há nada mais rápido<br />

do que o movimento dos olhos. Ao mesmo tempo, contudo, ele<br />

está fazendo uma alusão ao sono, em contraste com uma pisca<strong>de</strong>la<br />

dos olhos. 121<br />

Ao ressoar a última trombeta. Embora a repetição da palavra<br />

trombeta pareça tornar plenamente <strong>de</strong>finido que aqui ela <strong>de</strong>va<br />

ser consi<strong>de</strong>rada literalmente, todavia prefiro consi<strong>de</strong>rá-la como<br />

uma metáfora. Em 1 Tessalonicenses 4.16, ele associa “voz do arcanjo”<br />

com “a trombeta <strong>de</strong> Deus”. Assim como um comandante<br />

convoca seu exército para a batalha ao som <strong>de</strong> trombeta, assim<br />

também Cristo chamará a si os mortos, mediante sua retumbante<br />

proclamação, a qual será ouvida distintamente em todos os recantos<br />

do mundo. Moisés nos fala do tipo <strong>de</strong> sons que ecoavam<br />

quando a lei foi promulgada, e quão fortes eram [ x 19.16]. Quão<br />

diferente situação será quando não só uma nação, mas o mundo<br />

inteiro, for convocado a comparecer perante o tribunal <strong>de</strong> Deus!<br />

E não serão somente os vivos a serem congregados, mas também<br />

os mortos serão convocados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus túmulos. 122 Não só isso,<br />

mas ainda uma or<strong>de</strong>m será publicada aos ossos secos e ao pó,<br />

para que, recuperando sua forma primitiva, e recebendo <strong>de</strong> volta<br />

seus espíritos, surjam imediatamente como seres humanos vivos<br />

na presença <strong>de</strong> Cristo.<br />

Os mortos ressuscitarão. Havendo falado em termos gerais sobre<br />

todos, Paulo agora mostra explicitamente como isso se aplica a<br />

121 “Pour ce que quand on se resueille, on cleigne ainsi <strong>de</strong>s yeux.” – “Porque, quando as<br />

pessoas <strong>de</strong>spertam, piscam <strong>de</strong>ssa forma com seus olhos.”<br />

122 “A trombeta soará [1Co 15.52], diz o mestre profeta. E quão notável, quão estupenda<br />

convocação! Nada igual a ela, nada semelhante já foi ouvido por todas as regiões do universo,<br />

ou todas as revoluções dos tempos. Quando os exércitos em conflito <strong>de</strong>scarregam<br />

o estampido da artilharia <strong>de</strong> guerra, ou quando os exércitos vitoriosos fazem soar seu<br />

grito <strong>de</strong> triunfo ante a vitória, os mares e as praias são cercados, as montanhas e planícies<br />

fazem ecoar. Mas o brado do arcanjo e a trombeta <strong>de</strong> Deus ressoarão <strong>de</strong> um a outro<br />

polo – traspassará o centro e abalará as colunas do céu. Cada vez mais forte, e ainda mais<br />

forte penetrará mesmo os mais profundos recessos do túmulo! Derramará seu espantoso<br />

trovão em todas as moradas do silêncio. Os mortos, os próprios mortos, ouvirão.”<br />

Hervey’s Theron and Aspasio, Vol. ii. p. 66.


Capítulo 15 • 575<br />

ambos: mortos e vivos. Portanto, esta divisão nada mais é do que uma<br />

explicação da frase anterior, ou, seja: “nem todos morreremos, mas<br />

transformados seremos todos.” Ele está dizendo: “Aqueles que já morreram<br />

ressuscitarão incorruptíveis.” Observe-se a mudança que os<br />

mortos sofrerão! Então ele diz: “Aqueles que estiverem vivos também<br />

serão transformados.” Mortos e vivos também serão transformados.<br />

Então o leitor percebe que todos sofrerão a mesma transformação, mas<br />

<strong>de</strong> forma alguma todos adormecerão.<br />

Mas quando diz, seremos transformados, ele se inclui no número<br />

daqueles que estarão vivos na vinda <strong>de</strong> Cristo. Visto que já eram os<br />

últimos tempos [1Jo 2.18], os santos esperavam esse dia como se fosse<br />

aquela hora [2Tm 1.18]. Embora em sua carta aos Tessalonicenses<br />

[2Ts 2.3] ele faça essa notável profecia sobre a dispersão da Igreja concretizar-se<br />

antes da vinda <strong>de</strong> Cristo, isso não o impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> confrontar<br />

os coríntios com o evento aqui e agora, por assim dizer, e <strong>de</strong> colocar<br />

a si e aos coríntios lado a lado com todos aqueles que estiverem vivos<br />

durante o dia final.<br />

53. Porque é necessário que o corruptível. Observe como viveremos<br />

no reino <strong>de</strong> Deus, no corpo e na alma; e ao mesmo tempo<br />

permanece verda<strong>de</strong>iro que carne e sangue não herdarão o reino <strong>de</strong><br />

Deus, porque terão antes que <strong>de</strong>svencilhar-se <strong>de</strong> toda corrupção.<br />

Nossa natureza, pois, corruptível e mortal como é, não é admissível<br />

no reino <strong>de</strong> Deus; mas quando <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong> sua corruptibilida<strong>de</strong><br />

e vestir-se da incorruptibilida<strong>de</strong>, então esta última a dominará totalmente.<br />

E este versículo confirma plenamente que ressuscitaremos na<br />

mesma carne que agora possuímos, pois o apóstolo lhe especificou<br />

uma nova proprieda<strong>de</strong>, como se a mesma fosse uma vestimenta. Se<br />

ele tivesse dito: “Esta corruptibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser renovada”, não teria<br />

liquidado tão clara e eficazmente o erro daqueles fanáticos que engendraram<br />

a noção <strong>de</strong> que os homens haverão <strong>de</strong> receber novos corpos.<br />

Mas, ao dizer aqui que esta corruptibilida<strong>de</strong> será revestida <strong>de</strong> glória,<br />

não sobra espaço algum para mais cavilação.<br />

54, 55. Então se cumprirá a palavra. Isto não é uma simples am-


576 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

pliação (ἐπεξεργασία), 123 mas uma confirmação da frase anterior, pois<br />

o que foi preanunciado pelos profetas preanunciaram seguramente se<br />

cumpre. Ora, esta predição não se cumprirá, até que nossos corpos<br />

não tenham se <strong>de</strong>spido <strong>de</strong> sua corrupção e se vestido <strong>de</strong> incorrupção;<br />

daí, este último resultado é também necessário. Ora, se cumprirá é usado<br />

aqui no sentido <strong>de</strong> consumar-se plenamente; pois o que o apóstolo<br />

menciona já teve início em nós, bem como caminha diariamente para<br />

sua completação, mas não terá seu pleno cumprimento senão no último<br />

dia.<br />

Entretanto, não transparece com niti<strong>de</strong>z <strong>de</strong> qual passagem ele<br />

extraiu esta citação, visto que há muitas afirmações <strong>de</strong>sse teor nos<br />

profetas. A única probabilida<strong>de</strong> é que a primeira sentença foi extraída<br />

ou <strong>de</strong> Isaías 25.8, on<strong>de</strong> lemos: “A morte será <strong>de</strong>struída pelo Senhor<br />

para para sempre”, 124 ou (e esta é a preferência <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> maioria,<br />

<strong>de</strong> fato <strong>de</strong> quase todos) Oséias 13.14, on<strong>de</strong> o profeta, <strong>de</strong>plorando a<br />

obstinação e perversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Israel, lamenta que este era semelhante<br />

a uma criança prematura que se vê lutando contra os esforços <strong>de</strong> sua<br />

mãe em fazê-la sair da madre. E daqui conclui o profeta que Israel não<br />

tinha ninguém, a não ser ele mesmo, a quem responsabilizar pelo fato<br />

<strong>de</strong> não se haver isentado da morte. Diz ele:<br />

“Eu os remirei do po<strong>de</strong>r do inferno;<br />

eu os resgatarei da morte.”<br />

123 “Vne <strong>de</strong>claration ou amplification.” – “Uma <strong>de</strong>claração ou ampliação.”<br />

124 “As palavras, como alegado por Paulo” (<strong>de</strong> Is 25.8), “são encontradas na versão <strong>de</strong> Teodocião,<br />

como que o Targum e a Siríaca concordam em redigir o verbo como passivo. [lk em<br />

Piel, como aqui, comumente significa <strong>de</strong>struir, <strong>de</strong>struir totalmente; em Kal., a significação<br />

mais usual é a <strong>de</strong> tragar, a qual, infelizmente, a maioria das versões adotou. Os tradutores<br />

gregos traduziram j[nl por ἰσχύσας, εἰς τέλος, εἰς νκος; anexando ao termo a idéia <strong>de</strong> que é<br />

irrestível, durável, completo. As significações da raiz hebraica, j[n, usada somente em Niphal<br />

e Piel, são brilhar, guiar, guiar sempre, ser completo; em caldaico, ultrapassar, exce<strong>de</strong>r, sobrepujar;<br />

daí a idéia <strong>de</strong> vitória, eternida<strong>de</strong> etc., anexada a j[n, e <strong>de</strong> completamente, inteiramente,<br />

para sempre etc., a j[n, j[nl. Portanto, as palavras são equivalentes a ὁ θάνατος ὀυκ ἐσται ἐτι<br />

(a morte não mais existirá), Apocalipse 21.4, on<strong>de</strong> parece haver uma alusão a nosso texto; e<br />

on<strong>de</strong> o tema é, como aqui, não um estado milenial da Igreja, mas o estado <strong>de</strong> glória <strong>de</strong>pois<br />

da ressurreição do corpo.” – Hen<strong>de</strong>rson on Isaiah.


Capítulo 15 • 577<br />

Não importa muito se tomarmos os verbos no futuro do indicativo<br />

ou no subjuntivo, 125 porque <strong>de</strong> qualquer forma o significado é o<br />

mesmo, a saber: que Deus estava disposto a conce<strong>de</strong>r-lhes a bênção<br />

<strong>de</strong> sua salvação, uma vez provado que estavam dispostos a aceitá-la;<br />

e que, pois, era por sua própria culpa se viessem a perecer. Então<br />

acrescenta:<br />

“On<strong>de</strong> estão, ó morte, tuas pragas?<br />

On<strong>de</strong> está, ó inferno, tua <strong>de</strong>struição?”<br />

Nestas palavras Deus notifica que ele só concretiza a salvação <strong>de</strong> seu<br />

fiel povo 126 quando a morte e o sepulcro são reduzidos a nada. Assim, não<br />

haverá ninguém que porventura negue que este versículo nos forneça a<br />

<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> um estado plenificado <strong>de</strong> salvação. Portanto, enquanto não<br />

virmos a morte <strong>de</strong>struída assim, segue-se que não po<strong>de</strong>mos ainda tomar<br />

posse da plenitu<strong>de</strong> da salvação que Deus prometeu a seu povo, a qual,<br />

pela mesma razão, é adiada para aquele dia. Conseqüentemente, é então<br />

que a morte será tragada e, noutros termos, será reduzida a nada; 127 para<br />

que tenhamos sobre ela completa e final vitória. 128<br />

No tocante à segunda parte da profecia, na qual o apóstolo escarnece<br />

da morte e do túmulo, não fica claro se ele está usando suas<br />

próprias palavras, ou se sua intenção é citar também as palavras do<br />

profeta. Pois on<strong>de</strong> as traduzimos,<br />

125 “Ie les eusse rachetez – ie les eusse <strong>de</strong>liurez.” – “Eu os po<strong>de</strong>ria ter remido – eu os po<strong>de</strong>ria<br />

ter resgatado.”<br />

126 Lors vrayement et à bom escient il sauue les fi<strong>de</strong>les.” – “Ele então real e eficazmente<br />

salva os crentes.”<br />

127 “Esta vitória não será apenas gradual, mas total e final. Cada coisa que pertence à mortalida<strong>de</strong>,<br />

que estava pen<strong>de</strong>nte sobre esses gloriosos vencedores, será tragada pela vida<br />

perfeita e infindável. Primeiro, o ferrão da morte é arrancado – <strong>de</strong>sarmado –, e então<br />

será facilmente vencida. Lemos que seu ferrão é o pecado – o que é mais letal na morte.<br />

O apóstolo tinha em mente também a morte no sentido moral. E a insultante inquirição:<br />

‘On<strong>de</strong> está?’ implica que esta não po<strong>de</strong> ser encontrada em parte alguma; e significa sua<br />

total abolição, e, conseqüentemente, <strong>de</strong>ve-se inferir que cada coisa que pertence à morte<br />

<strong>de</strong>ve para sempre cessar <strong>de</strong> existir.” – Howe’s Works (Londres, 1834), p. 1035.<br />

128 “En sorte que nous aurons plene et parfaite victoire à l’encontre d’elle.” – “De modo que<br />

teremos uma plena e completa vitória sobre ela.”


578 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

“On<strong>de</strong> estão, ó morte, tuas pragas? 129<br />

On<strong>de</strong> está, ó túmulo, tua <strong>de</strong>struição?”,<br />

o grego (ou, seja, a LXX) traduz:<br />

“On<strong>de</strong> está, ó morte, tua acusação?<br />

On<strong>de</strong> está, ó inferno, teu aguilhão?” [Os 13.14].<br />

Embora o erro dos amanuenses gregos pu<strong>de</strong>sse ser compreendido<br />

levando em conta a semelhança <strong>de</strong> palavras, 130 alguém, estudando<br />

judiciosamente o contexto, perceberá que tal idéia longe estava daquilo<br />

que o profeta tinha em mente. O sentido genuíno, pois, é que o<br />

Senhor <strong>de</strong>struirá a morte e porá fim à sepultura [ha<strong>de</strong>s]. Não obstante,<br />

há também a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que, como a tradução grega estava em<br />

uso popular, Paulo estava fazendo alusão a ela; e não há nenhum inconveniente<br />

nesta sugestão. Entretanto, ele nem mesmo citou palavra por<br />

palavra, pois, em vez <strong>de</strong> vitória, usou uma causa ou processo penal. 131<br />

Tenho plena convicção em minha própria mente que ele nem mesmo<br />

preten<strong>de</strong>u fazer aqui uso do testemunho do profeta, com o intuito<br />

<strong>de</strong> tirar vantagem <strong>de</strong> sua autorida<strong>de</strong>, mas, a propósito, simplesmente<br />

adaptou, com um objetivo pessoal, uma expressão que passou para<br />

o uso popular, visto que, fora isso, ela era <strong>de</strong> cunho religioso. O mais<br />

importante é que <strong>de</strong>vemos compreen<strong>de</strong>r que, com este brado <strong>de</strong> confiança,<br />

Paulo pretendia injetar ânimo nos coríntios, como se quisesse<br />

confrontá-los com a realida<strong>de</strong> da ressurreição, agora e no porvir. Ora,<br />

embora ainda divisemos a vitória com nossos próprios olhos, e o dia<br />

do triunfo ainda não chegou (não só isso, os perigos <strong>de</strong> guerra são a<br />

cada dia noticiados), contudo a certeza <strong>de</strong> fé, como teremos ocasião<br />

<strong>de</strong> observar com mais vagar, <strong>de</strong> forma alguma é diminuída com isso.<br />

129 “Où est ton plaid, c’est à dire, le proces que tu intentes contre nous, ó mort?” – “Ó morte,<br />

on<strong>de</strong> está tua praga? – isto é, o processo que tu moveste contra nós?”<br />

130 “A passagem (diz o Dr. Bloomfield) é <strong>de</strong> Oséias 13.14, e as palavras do apóstolo só diferem<br />

das antigas versões na transposição <strong>de</strong> νκος (vitória) e κέντρον (aguilhão); exceto<br />

que para νκος a Setenta tem δίκη (processo).”<br />

131 “Car en lieu du mot diki, qui signifie plaid ou proces, il a mis nicos, qui signifie victoire.”<br />

– “Pois em lugar da palavra δίκη, que significa uma ação ou processo, usaram νκος, que<br />

significa vitória.


Capítulo 15 • 579<br />

56. O aguilhão da morte é o pecado, ou, seja, “A morte não possui<br />

outra arma senão o pecado, com o qual nos fere, visto que a morte<br />

proce<strong>de</strong> da ira <strong>de</strong> Deus. Ora, Deus só está irado contra nosso pecados;<br />

<strong>de</strong>struamos, pois, o pecado, e a morte não mais será capaz <strong>de</strong> nos<br />

causar dano.” Isso está em harmonia com o que ele diz em Romanos<br />

[6.23], ou, seja: “O salário do pecado é a morte.” Não obstante, aqui<br />

ele usa outra metáfora, pois compara o pecado a um aguilhão, a única<br />

coisa com que a morte está equipada para infligir-nos um golpe fatal.<br />

Se ele for eliminado, então a morte fica <strong>de</strong>sarmada, e não po<strong>de</strong> mais<br />

infligir nenhum dano. Ora, com que intuito o apóstolo diz isso será<br />

explicado por ele antes <strong>de</strong> terminar.<br />

O po<strong>de</strong>r do pecado é a lei. É a lei <strong>de</strong> Deus que comunica a esse aguilhão<br />

[espinho ou ferrão] seu po<strong>de</strong>r mortal, porque ele não meramente<br />

<strong>de</strong>snuda nossa culpa, mas também a incrementa. A interpretação mais<br />

clara <strong>de</strong>sta expressão po<strong>de</strong> ser encontrada em Romanos [7.9], on<strong>de</strong><br />

Paulo nos mostra que estamos vivos enquanto vivemos sem a lei, porque,<br />

em nossa opinião, está tudo bem conosco, e não sentimos nossa<br />

miséria, até que a lei nos convoque a comparecer diante do tribunal<br />

<strong>de</strong> Deus, e dilacere nossa consciência com o senso <strong>de</strong> morte eterna.<br />

Além disso, ele ensina que o pecado ficou, em certo sentido, adormecido,<br />

porém foi <strong>de</strong>spertado pela lei, fazendo-o ainda mais ultrajante<br />

e arbitrário. Entretanto, ao mesmo tempo ele protesta contra a má<br />

compreensão da lei, afirmando que ela é santa e justa, e que em si<br />

mesma não é a geradora do pecado nem a causadora da morte. E assim<br />

sua conclusão é que a culpa <strong>de</strong> todo o mal que existe <strong>de</strong>ve ser<br />

encontrada em nossa própria porta, visto que por certo ela é produto<br />

da corrupção <strong>de</strong> nossa natureza. A lei, pois, só fornece os meios pelos<br />

quais o dano é feito; a causa real do sofrimento está em nós mesmos. A<br />

razão por que ele a chama, neste versículo, força ou po<strong>de</strong>r do pecado, é<br />

que ela evoca sobre nós o juízo divino. Ao mesmo tempo, ele não está<br />

negando que o pecado inflige a morte mesmo sobre aqueles que são<br />

ignorantes da lei, porém diz que, no caso <strong>de</strong>les, ele não é tão violento<br />

no exercício <strong>de</strong> seu domínio escravizante. Porque a lei veio para que


580 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

o pecado se avolumasse [Rm 5.20], ou para que ele extrapolasse toda<br />

medida [Rm 7.13].<br />

57. Mas, graças a Deus. À luz <strong>de</strong>sta atitu<strong>de</strong> transparece por que<br />

ele fez menção do pecado e da lei concomitantemente, enquanto trata<br />

da morte. Esta não teria aguilhão para ferir-nos se não fosse o pecado,<br />

e a este aguilhão a lei adiciona seu po<strong>de</strong>r letal. Cristo, porém, venceu<br />

o pecado, e através <strong>de</strong> seu triunfo nos granjeou vitória e nos redimiu<br />

da maldição da lei. Segue-se, portanto, que não mais estamos <strong>de</strong>baixo<br />

do po<strong>de</strong>r da morte. Conseqüentemente, mesmo que todas as bênçãos<br />

envolvidas não nos foram ainda reveladas, po<strong>de</strong>mos confiadamente<br />

gloriar-nos nelas, porque o que já foi plenificado na Cabeça <strong>de</strong>ve necessariamente<br />

ser plenificado nos membros. Temos plenos direitos,<br />

pois, <strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhar da morte como um po<strong>de</strong>r vencido, porque a vitória<br />

<strong>de</strong> Cristo é a nossa própria.<br />

Portanto, quando ele diz que “a vitória nos foi dada”, <strong>de</strong>vemos<br />

enten<strong>de</strong>r, antes <strong>de</strong> tudo, que em sua própria pessoa Cristo <strong>de</strong>struiu o<br />

pecado, satisfez as exigências da lei, carregou a maldição, aplacou a<br />

ira <strong>de</strong> Deus e conquistou a vida; e, em segundo lugar, ele começou a<br />

fazer-nos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já participantes <strong>de</strong> todas as bênçãos. Porque, embora<br />

sejamos portadores <strong>de</strong> resquícios do pecado, todavia ele não mais<br />

reina em nós; embora ainda nos fira, todavia seus golpes não são mais<br />

fatais, porquanto seu gume está embotado, para que não mais penetre<br />

as partes vitais da alma. Conquanto a lei continua a nos ameaçar,<br />

todavia, em contrapartida, <strong>de</strong>sfrutamos dos benefícios da liberda<strong>de</strong><br />

que Cristo nos granjeou e que neutraliza os terrores da lei. Embora os<br />

restos da carne habitem em nós, todavia o Espírito, que ressuscitou a<br />

Cristo <strong>de</strong>ntre os mortos, é vida por causa da justiça [Rm 8.10].<br />

58. Portanto, meus amados irmãos. Satisfeito em haver provado<br />

satisfatoriamente a doutrina da ressurreição, o apóstolo agora conclui<br />

seu argumento com uma exortação; e isto foi muito mais eficaz do<br />

que se ele tivesse concluído <strong>de</strong> forma corriqueira, confirmando o que<br />

disse, ou, seja: “Já que vosso trabalho, no Senhor, não é em vão, se<strong>de</strong><br />

firmes e vos transbor<strong>de</strong>is <strong>de</strong> boas obras.” A razão por que ele diz que


Capítulo 15 • 581<br />

o trabalho <strong>de</strong>les não é vão é que Deus tem um galardão entesourado<br />

para eles. Eis a única e suficiente esperança que anima os crentes no<br />

ponto <strong>de</strong> partida, e os sustenta ao longo do percurso, <strong>de</strong> modo que<br />

não caiam durante a corrida. Então lhes or<strong>de</strong>na a permanecerem firmes,<br />

visto que repousam sobre um fundamento inabalável, quando<br />

estão conscientes <strong>de</strong> que uma vida muito superior está preparada,<br />

aguardando-os no céu.<br />

E acrescenta: abundantes na obra do Senhor, pois a esperança<br />

na ressurreição produz o efeito <strong>de</strong> fazer-nos incansáveis na prática<br />

do bem, como o apóstolo mesmo ensina em Colossenses [1.10]. Porque,<br />

em face dos obstáculos que temos <strong>de</strong> enfrentar constantemente,<br />

quem não per<strong>de</strong>ria o alento ou se <strong>de</strong>sviaria do caminho, não fosse o<br />

fato <strong>de</strong> sua constante meditação numa vida superior, mantendo-se no<br />

caminho e no temor <strong>de</strong> Deus? Mas, em contrapartida, ele realça que,<br />

se a esperança na ressurreição fosse <strong>de</strong>sfeita, então toda a estrutura<br />

da religião entraria em colapso e ruína, como se o fundamento tivesse<br />

ruído. 132 Não há dúvida <strong>de</strong> que, se a esperança <strong>de</strong> galardão fosse<br />

removida e <strong>de</strong>struída, a ambição <strong>de</strong> prosseguir a corrida não só esmoreceria,<br />

mas também se esvairia completamente.<br />

132 “D’autant que ceste esperance en est le fon<strong>de</strong>ment.” – “Uma vez que a esperança é o<br />

fundamento <strong>de</strong>la.”


Capítulo 16<br />

1. No tocante à coleta para os santos,<br />

fazei vós também o que or<strong>de</strong>nei às<br />

igrejas da Galácia.<br />

2. No primeiro dia da semana, cada um <strong>de</strong><br />

vós ponha à parte, conforme sua prosperida<strong>de</strong>,<br />

e vá juntando, para que não<br />

se façam coletas quando eu for.<br />

3. E quando eu chegar, enviarei, com<br />

cartas, para levarem vossas dádivas<br />

a Jerusalém, aqueles que aprovar<strong>de</strong>s.<br />

4. E, se valer a pena que eu também vá,<br />

os levarei comigo.<br />

5. Ora, eu irei a vós, quando passar por<br />

Macedônia; porque <strong>de</strong>vo percorrer<br />

a Macedônia.<br />

6. Mas é provável que convosco me<br />

<strong>de</strong>more, ou mesmo passe o inverno,<br />

para que me encaminheis nas viagens<br />

que eu tenha <strong>de</strong> fazer.<br />

7. Porque não quero ver-vos agora<br />

apenas <strong>de</strong> passagem, pois espero<br />

permanecer convosco algum tempo,<br />

se o Senhor o permitir.<br />

1. Cæterum <strong>de</strong> collecta quæ fit in<br />

sanctos, quemadmodum ordinavi<br />

Ecclesiis Galatiæ, ita et vos facite.<br />

2. In una sabbatorum unusquisque<br />

vestrum apud se seponat, thesaurizans<br />

quod successerit, ne, quum<br />

venero, tunc collectæ fiant. 1<br />

3. Ubi autem affuero, quos probaveritis<br />

per epistolas, eos mittam, ut<br />

perferant beneficentiam vestram in<br />

Ierusalem.<br />

4. Quodsi fuerit operæ pretium me<br />

quoque profisci, mecum proficiscentur.<br />

5. Veniam autem ad vos, quum Macedoniam<br />

transiero: Macedoniam<br />

enim pertransiturus sum.<br />

6. Apud vos autem forte permanebo,<br />

aut etiam hibernabo, ut vos me <strong>de</strong>ducatis<br />

quocunque proficiscar.<br />

7. Nolo enim vos nunc in transcursu<br />

vi<strong>de</strong>re: sed spero me ad aliquod<br />

tempus mansurum apud vos, si Dominus<br />

permiserit.<br />

1 “C’est qu’en vn <strong>de</strong>s Sabbaths (ou, que chacun premier iour <strong>de</strong> la sepmaine) chacun <strong>de</strong> vous<br />

mette à part par <strong>de</strong>uers soy, thesaurisant <strong>de</strong> ce qu’il aura prosperé, afin que (ou, serrant<br />

ce qu’il pourra par la benignite <strong>de</strong> Dieu, afin) lors que ie viendray, les collectes ne se facent<br />

point.” – “Isto é, que num dos sábados (ou que em cada primeiro dia da semana) cada um<br />

<strong>de</strong> vós ponha pessoalmente à parte, entesourando segundo tem prosperado (ou, pondo o<br />

que ele pu<strong>de</strong>r fazer pela bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus), para que não se faça coleta quanto eu for.”


584 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

1. No tocante à coleta. Lucas nos fala em Atos 11.28 que a profecia<br />

<strong>de</strong> Ágabo, <strong>de</strong> que haveria fome no reinado do imperador Cláudio,<br />

propiciou aos santos a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coletar esmolas para a assistência<br />

dos irmãos em Jerusalém. Pois, embora o profeta haja <strong>de</strong>clarado<br />

que quase o mundo todo seria participante nesta hecatombe, todavia,<br />

visto que os habitantes <strong>de</strong> Jerusalém se encontravam afetados por<br />

terrível pobreza, e visto que todas as igrejas gentílicas, se quisessem<br />

evitar a acusação <strong>de</strong> ser ingratas, estavam na obrigação <strong>de</strong> socorrer<br />

o lugar don<strong>de</strong> haviam recebido o evangelho, o resultado foi que os<br />

crentes esqueceram <strong>de</strong> si mesmos e se preocuparam em prover assistência<br />

a Jerusalém. O fato <strong>de</strong> que viviam uma vida difícil, enfrentando<br />

terrível necessida<strong>de</strong> em Jerusalém, faz-se evi<strong>de</strong>nte, à luz da Epístola<br />

aos Gálatas [2.10], on<strong>de</strong> Paulo <strong>de</strong>clara que os apóstolos o incumbiram<br />

da tarefa <strong>de</strong> animar os gentios a proverem assistência. 2 Os apóstolos,<br />

porém, jamais lhe confiariam tal incumbência se <strong>de</strong> fato sua carência<br />

não fosse em extremo premente. Além do mais, este versículo realça<br />

a verda<strong>de</strong> do que Paulo também assevera naquela outra passagem, a<br />

saber, que ele se esforçara para encorajar os gentios a doarem para<br />

o alívio <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse gênero. Agora, porém, ele ministra<br />

instruções sobre a maneira <strong>de</strong> prestarem esse auxílio. Para que os coríntios<br />

pu<strong>de</strong>ssem concordar com tudo prontamente, ele menciona o<br />

fato <strong>de</strong> que já havia prescrito o mesmo às igrejas da Galácia; pois um<br />

exemplo teria causado forte influência sobre eles, visto que somos por<br />

natureza inclinados a não ter nada a ver com algo que não foi ainda<br />

suficientemente experimentado. Em seguida vem o método pelo qual<br />

ele pretendia livrar-se <strong>de</strong> todas as <strong>de</strong>longas e entraves.<br />

2. Num dos sábados. O que Paulo almeja é que os coríntios<br />

tivessem suas esmolas prontas a tempo. Ele, pois, lhes diz que não esperassem<br />

sua chegada, porque tudo o que é feito inadvertidamente e<br />

às pressas geralmente não é bem feito; mas que contribuíssem segundo<br />

sua intenção, cada um segundo suas posses, no dia <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso;<br />

em outros termos, no dia em que se reuniam para o culto.<br />

2 “D’inciter les Gentiles à subuenir à la pourete qui y estoit.” – “Incitar os gentios a aliviar a<br />

pobreza que existia ali.”


Capítulo 16 • 585<br />

Crisóstomo explica a frase κατὰ μίαν σαββύτων, como significando<br />

“no primeiro sábado”. Não concordo com ele; pois a intenção do<br />

apóstolo é antes que uma pessoa <strong>de</strong>veria contribuir sábado após sábado;<br />

ou cada um <strong>de</strong>les em cada sábado, se assim o <strong>de</strong>sejassem. Pois<br />

o apóstolo está pensando, antes <strong>de</strong> tudo, em termos <strong>de</strong> conveniência;<br />

e, em segundo lugar, que a reunião para o culto, quando os crentes se<br />

regozijavam na comunhão dos santos, po<strong>de</strong>ria ser-lhes um incentivo<br />

adicional.<br />

Não há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aceitar-se a opinião <strong>de</strong> Crisóstomo <strong>de</strong> que<br />

o sábado aqui foi substituído pelo Dia do Senhor; pois é bem provável<br />

que no princípio os apóstolos retivessem o dia que já lhes era familiar,<br />

mas que mais tar<strong>de</strong> as observâncias escrupulosas dos ju<strong>de</strong>us os forçaram<br />

a <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong>le e substituí-lo por outro [dia]. Ora, o Dia do Senhor<br />

foi escolhido em preferência a todos os <strong>de</strong>mais, visto que a ressurreição<br />

<strong>de</strong> nosso Senhor pôs fim às sombras da lei. Portanto, este dia nos<br />

leva a recordar <strong>de</strong> nossa liberda<strong>de</strong> cristã.<br />

Finalmente, é-nos fácil inferir <strong>de</strong>ste versículo que os fiéis sempre<br />

tiveram um dia específico para <strong>de</strong>scansarem <strong>de</strong> suas obras, não porque<br />

a inativida<strong>de</strong> seja uma forma <strong>de</strong> servir a Deus, mas porque ele<br />

é importante na preservação da concórdia, ou, seja, que um dia específico<br />

fosse <strong>de</strong>signado para a reunião <strong>de</strong> culto, visto que a mesma<br />

não po<strong>de</strong> realizar-se todos os dias. Porque, embora Paulo, em outra<br />

passagem, proíba que se faça qualquer distinção entre dia e dia, <strong>de</strong>vemos<br />

entendê-lo proce<strong>de</strong>ndo assim no interesse da religião, e não em<br />

virtu<strong>de</strong> do governo e da or<strong>de</strong>m externos. 3<br />

Entesourando. Preferi reter o particípio grego (θησαυρίζειν), porque<br />

ele pareceu-me expressar a idéia <strong>de</strong> forma muito mais enfática. 4<br />

Pois embora θησαυρίζειν signifique armazenar, entretanto, em minha<br />

3 “Quand on le fait pour <strong>de</strong>uotion, comme cela estant vn seruice <strong>de</strong> Dieu, et non pas pour la<br />

police externe.” – “Quando é feito pela causa da <strong>de</strong>voção, como se fosse um serviço feito<br />

a Deus, e não com vistas à administração externa.”<br />

4 “On a par ci <strong>de</strong>uant traduit, amassant; mais i’ay mieux aimé retenir la propriete du mot<br />

Grec.” – “A palavra diante <strong>de</strong> nós foi traduzida por <strong>de</strong>positar; mas preferi reter a força<br />

peculiar da palavra grega.”


586 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

opinião, o apóstolo pretendia ressaltar aos coríntios que sempre que<br />

pu<strong>de</strong>ssem contribuir para os santos, seria melhor e mais seguro que<br />

armazenassem o que pu<strong>de</strong>ssem. Pois se foi possível a um poeta pagão<br />

dizer: “As riquezas que você distribuir são as únicas que você possuirá<br />

para sempre”, 5 tal princípio não <strong>de</strong>veria ter uma influência ainda<br />

maior entre nós, por não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rmos da gratidão humana, e, sim, <strong>de</strong><br />

Deus que se coloca no lugar do pobre como <strong>de</strong>vedor, para que um dia<br />

venha a restituir-nos, com maior interesse, tudo quanto distribuímos?<br />

Esta é a razão por que a palavra <strong>de</strong> Paulo é um eco do dito <strong>de</strong> Cristo:<br />

“Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, on<strong>de</strong> a traça e<br />

a ferrugem corroem, e on<strong>de</strong> os ladrões escavam e roubam” [Mt 6.19].<br />

Conforme sua prosperida<strong>de</strong>. Em lugar disto a Vulgata tem: “segundo<br />

sua própria discrição”; certamente que o tradutor enten<strong>de</strong>u mal a similitu<strong>de</strong><br />

das palavras. 6 Erasmo, por outro lado, traduziu: “segundo a conveniência.” 7<br />

Nenhuma das duas me satisfaz, por esta razão: que o próprio significado da<br />

palavra é muito mais a<strong>de</strong>quado, a saber, “continuar prosperamente”. Daí<br />

ele chamar a cada um <strong>de</strong>les a consi<strong>de</strong>rar sua capacida<strong>de</strong>: “Que cada um<br />

<strong>de</strong> vós dê em proporção a sua renda, segundo Deus o tenha abençoado.”<br />

3. E quando eu chegar. Visto que somos mais propensos a dar<br />

quando temos uma noção <strong>de</strong>finida <strong>de</strong> que nossos donativos serão bem<br />

administrados, o apóstolo mostra aos coríntios como po<strong>de</strong>rão ter certeza<br />

<strong>de</strong> que seus donativos estarão em boas e dignas mãos, ou, seja,<br />

escolhendo eles pessoas cuja dignida<strong>de</strong> já tenha sido comprovada,<br />

e confiando-lhes este santo mister. Mais que isso, ainda lhes oferece<br />

seus serviços pessoais, caso precisem <strong>de</strong>les; o que revela que o apóstolo<br />

tinha tal propósito em seu coração.<br />

5 “Quas <strong>de</strong><strong>de</strong>ris, solas semper habebis opes.” (Martial. Ep. v.42.) Uma idéia afim ocorre<br />

nos escritos do poeta Rabirius. “Hoc habeo, quodcunque <strong>de</strong>di.” – “Eu tenho tudo quanto<br />

tenho dado.” (Ver Sêneca, lib vi. <strong>de</strong> Benef.) Alexandre o Gran<strong>de</strong> (como <strong>de</strong>clarado por<br />

Plutarco), quando interrogado on<strong>de</strong> <strong>de</strong>positava seus tesouros, respon<strong>de</strong>u: “Apud amicos”<br />

– “Entre meus amigos.”<br />

6 “S’abusant a l’affinite <strong>de</strong>s <strong>de</strong>ux mots Grecs.” – “Enten<strong>de</strong>u mal pela semelhança entre as<br />

duas palavras gregas.” A intenção <strong>de</strong> Calvino parece ser que o verbo εὐοδόομαι (ser próspero)<br />

usado aqui por Paulo fora confundido com εὐδοκέω (parecer bem).<br />

7 “C’est a dire selon sa commodite.” – “Isto é, segundo sua conveniência.”


Capítulo 16 • 587<br />

5. Quando passar por Macedônia. A opinião geralmente aceita é<br />

que esta carta foi enviada <strong>de</strong> Filipos. Se alguém quisesse fazer a viagem<br />

dali para Corínto, por via terrestre, era necessário passar por Macedônia;<br />

porque a colônia <strong>de</strong> Filipos ficava situada na região mais afastada,<br />

contornando os montes ematianos. É verda<strong>de</strong> que Paulo po<strong>de</strong>ria ter<br />

ido lá por via marítima em vez <strong>de</strong> viajar por terra, mas ele queria visitar<br />

as igrejas da Macedônia a fim <strong>de</strong> confirmá-las com sua visita. Esta é<br />

uma forma usual <strong>de</strong> agradar.<br />

Todavia, parece-me mais provável que a carta foi escrita <strong>de</strong> Éfeso,<br />

porque pouco <strong>de</strong>pois ele diz que “ficarei, porém, em Éfeso até ao Pentecoste”<br />

[v. 8]. 8 Da mesma forma, ele saúda os coríntios, não em nome dos<br />

filipenses, e, sim, das igrejas da Ásia [v. 19]. 9 Além do mais, ele faz uma<br />

afirmação muito clara, na segunda carta, ou, seja, que após ter enviado<br />

esta carta ele passaria por Macedônia [2Co 2.13]. E, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> passar por<br />

Macedônia, ele estaria <strong>de</strong>simpedido <strong>de</strong> Éfeso, mas, por outro lado, vizinho<br />

da Acaia. Portanto, não tenho dúvida <strong>de</strong> que nesse tempo ele estava<br />

em Éfeso. Dali alguém po<strong>de</strong>ria cruzar o mar direto a Acaia; enquanto que<br />

alguém, ao visitar a Macedônia, tinha que tomar uma rota mais difícil e<br />

um longo <strong>de</strong>svio. Paulo, pois, os faz saber que não iria ter com eles tomando<br />

uma rota direta, porque ele tem que “passar por Macedônia”.<br />

Não obstante, ele promete aos coríntios que ficará muito tempo<br />

com eles; e é assim que revela seu gran<strong>de</strong> amor [amorem] por eles.<br />

Pois, que outra razão o levaria a fazer uma visita tão extensa, a não ser<br />

o fato <strong>de</strong> estar preocupado com o bem-estar <strong>de</strong>les? Em contrapartida,<br />

ele está mostrando o quanto está convencido, além <strong>de</strong> qualquer sombra<br />

<strong>de</strong> dúvida, da afeição [caritate] que eles, <strong>de</strong> sua parte, têm para<br />

com ele, ao dar por admitido que lhe farão a gentileza <strong>de</strong> escoltá-lo<br />

8 “Paulo agora estava em Éfeso; pois quase todos admitem, em oposição à subscrição no<br />

final da Epístola, que isso expressa ter ela sido escrita <strong>de</strong> Filipos, que ela foi escrita <strong>de</strong><br />

Éfeso; e isso é apoiado por muitos e fortes argumentos; e o versículo 8, aqui, parece colocar<br />

a questão fora <strong>de</strong> toda e qualquer dúvida..” – Dr. Adam Clarke.<br />

9 “As igrejas da Ásia vos saúdam, isto é, às igrejas da Ásia Menor. Éfeso estava nesta Ásia, e<br />

é evi<strong>de</strong>nte à luz <strong>de</strong>ste fato que o apóstolo não estava em Filipos. Estivesse ele em Filipos,<br />

como o título expressa, teria dito: As igrejas da Macedônia, não as igrejas da Ásia, vos<br />

saúdam.”


588 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

com o intuito <strong>de</strong> ajudá-lo no caminho; porquanto diz isso com base na<br />

confiança que <strong>de</strong>positara na amiza<strong>de</strong> <strong>de</strong>les. 10<br />

Mas, após dizer tudo isso, ele o modifica com o a<strong>de</strong>ndo: se o Senhor<br />

mo permitir. Os crentes <strong>de</strong>vem adicionar esta cláusula a todos<br />

seus planos e intenções. Pois é muito temerário comprometer-se e traçar<br />

planos <strong>de</strong>finidos para muitos eventos futuros, visto que não temos<br />

um único momento sob nosso próprio controle. Não obstante, embora<br />

o passo mais importante seja submeter a Deus, em sua providência,<br />

todas nossas intenções, 11 em nossos próprios corações, todavia, ao<br />

mesmo tempo, é saudável que nos habituemos a usar expressões<br />

como esta, para que, ao tratarmos <strong>de</strong> eventos futuros, façamos tudo<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. 12<br />

8. Mas ficarei em Éfeso até o Pentecoste;<br />

9. pois uma porta gran<strong>de</strong> e oportuna se<br />

me abriu; e há muitos adversários.<br />

10. Ora, se Timóteo for, ve<strong>de</strong> que esteja<br />

convosco sem receio, porque<br />

trabalha na obra do Senhor, como<br />

também faço;<br />

11. ninguém, pois, o <strong>de</strong>spreze. Mas encaminhai-o<br />

em paz em sua viagem,<br />

para que venha ter comigo, pois o<br />

espero com os irmãos.<br />

12. No tocante a nosso irmão Apolo,<br />

muito lhe tenho recomendado que<br />

fosse ter convosco em companhia dos<br />

irmãos, mas <strong>de</strong> modo algum era a vonta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>le ir agora; porém irá quando<br />

se lhe <strong>de</strong>parar boa oportunida<strong>de</strong>.<br />

8. Commorabor autem Ephesi usque<br />

ad Pentecosten.<br />

9. Nam ostium mihi apertum est magnum<br />

et efficax, et 13 adversarii multi.<br />

10. Quodsi venerit Timotheus, vi<strong>de</strong>te,<br />

ut absque metu sit apud vos: opus<br />

enim Domini operatur, quemadmodum<br />

et ego.<br />

11. Ne quis igitur eum spernat: sed prosequamini<br />

eum cum pace, ut veniat<br />

ad me: exspecto enim eum cum fratribus.<br />

12. Porro <strong>de</strong> Apollo fratre, multum hortatus<br />

sum illum, ut veniret ad vos<br />

cum fratribus, at omnino non fuit<br />

voluntas nunc eundi: veniet autem,<br />

quum opportunitatem nactus erit.<br />

10 “Ils le conduiront par tout où il ira.” – “Eles o conduzirão por on<strong>de</strong> quer que ele vá.”<br />

11 “Tout ce que nous entreprenons et consultons.” – “Tudo o que empreen<strong>de</strong>rmos e resolvermos.”<br />

12 “De remettre à la volonte <strong>de</strong> Dieu tout ce que nous entreprrendrons pour le temps aduenir.”<br />

– “Ao ponto <strong>de</strong> atribuirmos à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus tudo o que empreen<strong>de</strong>rmos pelo<br />

tempo por vir.”<br />

13 “Et, ou mais, il y a.” – “E, ou mas, há.”


Capítulo 16 • 589<br />

8. Ficarei. Tenho usado este versículo em abono <strong>de</strong> meu argumento<br />

<strong>de</strong> que esta carta foi enviada <strong>de</strong> Éfeso, e não <strong>de</strong> Filipos. Pois<br />

é provável que o apóstolo estivesse se referindo ao lugar on<strong>de</strong> vivia<br />

ao tempo em que escreveu, e não ao lugar on<strong>de</strong> teria chegado por<br />

uma via <strong>de</strong> atalho. Além disso, passar por Macedônia seria preciso<br />

<strong>de</strong>sviar-se <strong>de</strong> Corinto, ao aproximar-se <strong>de</strong>la, e atravessar o mar <strong>de</strong><br />

navio a fim <strong>de</strong> alcançar Éfeso. Portanto, o apóstolo lhes está dizendo<br />

da vantagem <strong>de</strong> permanecer em Éfeso até a chegada do Pentecoste;<br />

e outra razão para proce<strong>de</strong>r assim era fazê-los esperar por ele com<br />

muita paciência.<br />

Erasmo preferiu “até ao qüinquagésimo dia”. Ao adotar esta tradução,<br />

ele estava sob a influência <strong>de</strong> conjeturas malogradas, e não<br />

<strong>de</strong> um raciocínio sólido. Ele alega que o dia <strong>de</strong> Pentecoste, como ora<br />

observado, não havia ainda sido estabelecido como uma festa cristã.<br />

Concordo com ele no tocante a este fato. Ele nega que isso <strong>de</strong>va<br />

ser entendido como uma referência à festa judaica, visto que, mais<br />

<strong>de</strong> uma vez, Paulo con<strong>de</strong>na e renuncia a observância escrupulosa <strong>de</strong><br />

dias. Entretanto, dou-lhe razão, não que o apóstolo observasse esse<br />

dia em Éfeso porque estivesse obrigado pelo escrúpulo relativo a ele,<br />

mas que o fez porque haveria um gran<strong>de</strong> ajuntamento <strong>de</strong> pessoas na<br />

ocasião, e assim ele esperava apresentar-se-lhe uma boa oportunida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> proclamar o evangelho. Semelhantemente, quando se sentiu solícito<br />

<strong>de</strong> chegar em Jerusalém, a razão que apresentou para justificar<br />

sua pressa foi que assim ele estaria lá para o Pentecoste [At 20.16].<br />

Enquanto outros foram lá com o intuito <strong>de</strong> oferecer sacrifícios segundo<br />

os ritos da lei, ele foi com um intuito bem diferente em seu espírito,<br />

pensando que, quanto maior o número <strong>de</strong> pessoas presentes, também<br />

maior seria a eficiência <strong>de</strong> seu ministério. No entanto, seria totalmente<br />

fora <strong>de</strong> propósito sugerir que ele aqui estivesse pensando num período<br />

exato <strong>de</strong> cinqüenta dias. Posto que ele diz explicitamente τὴν<br />

πεντηκοστήν (o Pentecoste), isto só po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado no sentido <strong>de</strong><br />

um dia específico. Se o leitor <strong>de</strong>sejar saber mais sobre esta festa, então<br />

que leia Levítico 23.16.


590 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

9. Pois uma gran<strong>de</strong> porta se me abriu. Paulo tinha duas razões<br />

para ficar mais tempo em Éfeso: (1) porque uma oportunida<strong>de</strong> lhe<br />

está <strong>de</strong>spontando para pregar o evangelho; e (2) porque sua presença<br />

é particularmente necessária <strong>de</strong>vido à presença <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong><br />

número <strong>de</strong> adversários. Portanto, é como se dissesse: “Ao prolongar-se<br />

minha estada aqui um pouco mais, eu po<strong>de</strong>rei realizar uma<br />

porção <strong>de</strong> obras valiosas; ao passo que, se eu não estiver lá, Satanás<br />

po<strong>de</strong>rá fazer enormes danos.<br />

Na primeira parte <strong>de</strong>ste versículo, ele usa uma metáfora bem<br />

comum, ao tomar a palavra porta no sentido <strong>de</strong> uma oportunida<strong>de</strong>,<br />

pois o Senhor estava lhe abrindo uma via <strong>de</strong> acesso para a proclamação<br />

do evangelho. Ele qualifica esta porta <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, porque po<strong>de</strong>ria<br />

ganhar muitas pessoas. Ele a qualifica <strong>de</strong> oportuna, porque o Senhor<br />

estava abençoando seu trabalho e fazendo seu ensino eficaz pelo po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> seu Espírito. Vemos, pois, que este santo homem divisava a<br />

glória <strong>de</strong> Cristo em toda parte, e não escolhia um lugar que se a<strong>de</strong>quasse<br />

a sua própria conveniência ou seu bel-prazer; senão que sua<br />

única preocupação era on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse ser mais útil e on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse<br />

servir o Senhor e pu<strong>de</strong>sse pôr em evidência uma maior extensão <strong>de</strong><br />

seu trabalho.<br />

A isto ele acrescenta que <strong>de</strong> maneira alguma se esquivava das<br />

dificulda<strong>de</strong>s, senão que voluntariamente se colocava on<strong>de</strong> via que a<br />

batalha estava para <strong>de</strong>flagrar mais violentamente e a carga era mais<br />

pesada. Ele estava ficando em razão das ameaças <strong>de</strong> muitos adversários,<br />

e porque era ele o mais bem equipado para resistir seus ataques,<br />

então sentia-se obrigado a apresentar-se bem preparado e disposto a<br />

começar a luta.<br />

10. Ora, se Timóteo for. Ele fala como se ainda não estivesse<br />

certo se Timóteo iria. Mas o recomenda ao cuidado <strong>de</strong>les, para que<br />

pu<strong>de</strong>sse chegar entre eles sem qualquer dano, não porque estivesse<br />

em perigo <strong>de</strong> vida, mas porque certamente encontraria a oposição <strong>de</strong><br />

muitos inimigos <strong>de</strong> Cristo. Portanto, ele <strong>de</strong>seja que cui<strong>de</strong>m bem <strong>de</strong>le<br />

para que não sofra nenhum mal.


Capítulo 16 • 591<br />

E apresenta o motivo: “porque ele trabalha na obra do Senhor.”<br />

Deduzimos disto que a Igreja <strong>de</strong> Cristo <strong>de</strong>ve preocupar-se em preservar<br />

as vidas <strong>de</strong> seus ministros; e é sem dúvida justo que aquele que é mais<br />

rico faça ofertas mais generosas, e assim participe da edificação dos piedosos;<br />

e quanto mais <strong>de</strong>dicado é ele, ainda mais preciosa nos é sua vida.<br />

A frase, “como também faço”, foi adicionada ou para pôr em relevo<br />

sua dignida<strong>de</strong>, ou simplesmente para realçar o fato <strong>de</strong> que ambos<br />

estavam incumbidos da mesma sorte <strong>de</strong> li<strong>de</strong>, labutando no ministério<br />

da Palavra.<br />

11. Ninguém, pois, o <strong>de</strong>spreze. Aqui ele lhes dirige uma diretriz<br />

adicional sobre Timóteo: que ele não fosse <strong>de</strong>sprezado – talvez<br />

porque fosse ainda jovem, visto que os jovens geralmente não são respeitados<br />

<strong>de</strong> maneira tão honrosa. Paulo, pois, queria que estivessem<br />

atentos para que nada obstruísse o caminho <strong>de</strong> um fiel ministro <strong>de</strong><br />

Cristo <strong>de</strong> receber ele as honras que merece. É provável que Paulo tivesse<br />

em mente que, se os coríntios não se preocupavam com a vida<br />

<strong>de</strong> Timóteo, como <strong>de</strong>viam, então tal atitu<strong>de</strong> era um sinal <strong>de</strong> que o <strong>de</strong>sprezavam.<br />

Entretanto, este exemplo <strong>de</strong> recomendação parece ir mais<br />

além, e significa também que não pensavam pouco <strong>de</strong> Timóteo por não<br />

saberem nada <strong>de</strong> sua dignida<strong>de</strong>.<br />

Em terceiro lugar, ele os instrui a encaminharem Timóteo em paz<br />

em sua jornada, ou, seja, a salvo <strong>de</strong> todo mal. Porque paz aqui significa<br />

segurança.<br />

12. No tocante ao irmão Apolo. Apolo suce<strong>de</strong>ra a Paulo na tarefa<br />

<strong>de</strong> edificar os coríntios, e o apóstolo se referiu a ele antes como<br />

aquele que realizava a tarefa <strong>de</strong> regar [1Co 3.6; At 19.1]. Ele agora o<br />

justifica por não ter vindo com os <strong>de</strong>mais, e assim o faz a fim <strong>de</strong> que<br />

os coríntios não viessem a suspeitar <strong>de</strong> que o mantinha escondido.<br />

Porque, visto que Apolo era então bem conhecido <strong>de</strong>les, sentiam-se<br />

todos bem relacionados com ele; e assim era-lhes fácil supor que, uma<br />

vez que Paulo se sentia ofendido com eles, então arquitetara intencionalmente<br />

que Apolo permanecesse ausente. 14 Por certo que po<strong>de</strong>riam<br />

14 “Que sainct Paul se sentant offensé par les Corinthiens, auoit attitré cela tout expres, qu’<br />

Apollos n’allast point vers eux.” – “Que São Paulo, sentindo-se ofendido com os coríntios,


592 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

ter perguntado nestes termos: “Por que ele nos enviou os outros, e não<br />

Apolo?” O apóstolo respon<strong>de</strong> que certamente não foi por culpa sua,<br />

porque ele insistira com Apolo que fosse, porém ele mesmo prometera<br />

que iria assim que uma chance lhe surgisse.<br />

13. Vigiai e permanecei firmes na fé;<br />

portai-vos varonilmente; se<strong>de</strong> fortes.<br />

14. Que todas vossas coisas sejam feitas<br />

com amor.<br />

15. Rogo-vos, pois, irmãos (sabeis que<br />

a casa <strong>de</strong> Estéfanas, que é as primícias<br />

da Acaia, e que se <strong>de</strong>dicaram<br />

ao ministério dos santos),<br />

16. que também vos sujeiteis a esses<br />

tais, bem como a todo aquele que<br />

coopera e luta na obra.<br />

17. Regozijo-me com a vinda <strong>de</strong> Estéfanas,<br />

<strong>de</strong> Fortunato e <strong>de</strong> Acaico;<br />

porque estes supriram o que <strong>de</strong><br />

vossa parte faltava.<br />

18. Porque trouxeram refrigério a meu<br />

espírito e ao vosso. Reconhecei,<br />

pois, a homens como estes.<br />

19. As igrejas da Ásia vos saúdam.<br />

Aquila e Priscila vos saúdam no Senhor<br />

e, bem assim, a igreja que está<br />

na casa <strong>de</strong>les.<br />

20. Todos os irmãos vos saúdam. Saudai-vos<br />

uns aos outros com ósculo<br />

santo.<br />

21. A saudação escrevo-a eu, Paulo, <strong>de</strong><br />

próprio punho.<br />

22. Se alguém não ama ao Senhor, seja<br />

anátema. Maranata!<br />

23. A graça do Senhor Jesus Cristo seja<br />

convosco.<br />

24. Meu amor seja com todos vós em<br />

Cristo Jesus. Amém.<br />

13. Vigilate, state in fi<strong>de</strong>, viriliter agite,<br />

robusti estote.<br />

14. Omnia vestra in caritate fiant.<br />

15. Hortor autem vos, fratres, nôstis<br />

domum Stephanæ, primitias esse<br />

Achaiæ, atque ut se in ministerium<br />

sanctorum ordinaverint:<br />

16. Ut etiam subiecti sitis talibus, et<br />

omnibus qui cooperantur et laborant.<br />

17. Gau<strong>de</strong>o autem <strong>de</strong> præsentia Stephanæ,<br />

et Fortunati, et Achaici:<br />

quia quodo <strong>de</strong>erat a vobis, ipsi suppleverunt.<br />

18. Refocillârunt enim spiritum meum<br />

et vestrum: agnoscite ergo tales.<br />

19. Salutant vos Ecclesiæ Asiæ: salutant<br />

vos multum in Domino Aquila<br />

et Priscilla cum domestica eorum<br />

Ecclesia.<br />

20. Salutant vos fratres omnes: salutate<br />

vos invicem in osculo sancto.<br />

21. Salutatio mea manu Pauli.<br />

22. Si quis non amat Dominum Iesum<br />

Christum, sit anathema maranatha.<br />

23. Gratia Domini Iesu Christi sit vobiscum.<br />

24. Dilectio mea cum vobis omnibus in<br />

Christo Iesu. Amen.<br />

intencionalmente tinha <strong>de</strong>cidido que Apolo não fosse ter com eles.”


Capítulo 16 • 593<br />

13. Vigiai. Uma exortação breve, porém muito importante. Ele os<br />

convoca à vigilância para que Satanás não os colha <strong>de</strong> surpresa quando<br />

porventura baixarem a guarda. Pois assim como a guerra é incessante,<br />

a vigilância também requer que seja sem interrupção. Ora, esta é a vigilância<br />

<strong>de</strong> espírito: quando, livres e <strong>de</strong>sembaraçados das preocupações<br />

terrenas, meditamos nas coisas <strong>de</strong> Deus. Pois como o corpo é vergado<br />

pelos excessos e embriaguês [Lc 21.34], ao ponto <strong>de</strong> para nada servir,<br />

assim os cuidados e paixões do mundo, a indolência ou displicência,<br />

são como excessos espirituais que subjugam a mente. 15<br />

A segunda chamada <strong>de</strong> atenção é que perseverem na fé, ou que<br />

conservem uma fé imperturbável, para que permaneçam firmes, visto<br />

que ela [a fé] é o fundamento sobre o qual repousamos. Entretanto, é<br />

indubitável que ele ressalta os meios da perseverança – <strong>de</strong>scansar em<br />

Deus com uma fé inabalável.<br />

Em terceiro lugar, visto que por natureza somos fracos, ele insta<br />

com eles a se fortalecerem ou a obterem força. Pois on<strong>de</strong> traduzimos<br />

se<strong>de</strong> fortes, Paulo usa apenas uma palavra, que é equivalente em significado<br />

a fortalecei-vos [roborari].<br />

14. Que todas vossas coisas sejam feitas com amor. Uma vez<br />

mais, o apóstolo reitera a regra que <strong>de</strong>ve governar todo nosso comportamento<br />

mútuo. Ele <strong>de</strong>seja, pois, que o amor esteja no controle,<br />

visto que o maior erro dos coríntios era que cada um se preocupava<br />

com seus próprios negócios, ignorando os dos outros.<br />

15. Sabeis que a casa <strong>de</strong> Estéfanas. Sabemos <strong>de</strong> nossa própria<br />

experiência cotidiana qual é um bom critério, a saber: que aqueles<br />

a quem Deus equipou com os dons mais excelentes se revestem <strong>de</strong><br />

maior autorida<strong>de</strong>. Portanto, se quisermos assegurar o bem-estar da<br />

Igreja, então <strong>de</strong>vemos cuidar para que os homens bons sejam honrados.<br />

Que seus conselhos tenham maior peso. Que nos empenhemos<br />

por sua tranqüilida<strong>de</strong> e que nos <strong>de</strong>ixemos guiar por sua sabedoria. O<br />

apóstolo está fazendo isso neste versículo, ao aconselhar os coríntios<br />

15 “Sont comme vne yurongnerie sprituelle, qui assopit et estourdit l’enten<strong>de</strong>ment.” – “São<br />

como a embriaguez espiritual, que faz a mente entorpecida e estúpida.”


594 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

a mostrarem respeito para com a casa <strong>de</strong> Estéfanas. Alguns manuscritos<br />

adicionam e Fortunato. 16 Pois Deus se nos manifesta quando ele nos<br />

exibe os dons <strong>de</strong> seu Espírito. Daí, se não quisermos ser tidos como<br />

<strong>de</strong>sprezadores <strong>de</strong> Deus, então que voluntariamente nos submetamos<br />

àqueles a quem Deus conferiu dons superiores.<br />

Ora, para que se inclinassem mais a revestir <strong>de</strong> honra aquela<br />

casa (pois, neste versículo, a mim me parece que a adição, ao menos<br />

neste lugar, é espúria), ele lhes traz à lembrança que eram “as<br />

primícias da Acaia”; em outros termos, os membros da casa <strong>de</strong> Estéfanas<br />

foram os primeiros a abraçar o evangelho. Por certo que nem<br />

sempre é o caso <strong>de</strong> a pessoa que é a primeira no campo seja por isso<br />

melhor que os <strong>de</strong>mais; mas on<strong>de</strong> a perseverança se faz acompanhar,<br />

aqueles que, em certo sentido, abriram caminho para o evangelho,<br />

pela prontidão com que creram, geralmente merecem ser honrados.<br />

Deve-se observar, contudo, que ele dignifica com este honroso título<br />

os que tinham consagrado aos crentes seus serviços e recursos.<br />

Pela mesma razão ele fala bem <strong>de</strong> Fortunato e <strong>de</strong> Acaico mais adiante<br />

dizendo que, quanto melhor é uma pessoa, quanto mais excelentemente<br />

17 é consi<strong>de</strong>rada, tanto mais capaz é ela <strong>de</strong> prestar um serviço<br />

ainda mais prestimoso. Além do mais, a fim <strong>de</strong> que os coríntios se<br />

sentissem mais inclinados a amá-los, ele diz que esses homens tinham<br />

sido compensados pelos serviços vicários, naquilo que a Igreja<br />

não pu<strong>de</strong>ra lhes oferecer.<br />

19. Com a igreja que está na cada <strong>de</strong>les. Um elogio magnificente,<br />

visto que o nome da Igreja é aplicado a uma única família! Ao mesmo<br />

tempo, é mui apropriado que todas as famílias crentes sejam organizadas<br />

<strong>de</strong> tal forma que se transformem em muitas pequenas igrejas. Em<br />

contrapartida, o título congregação, que Erasmo preferiu, não está em<br />

16 Os manuscritos Alexandrino e Copta lêem: e Fortunato. A Vulgata lê: Fortunatum et Achaicum;<br />

em concordância com a qual está a tradução <strong>de</strong> Wiclif (1380): “Que reconheceis a<br />

casa <strong>de</strong> Estéfanas e <strong>de</strong> Fortunato.” A versão <strong>de</strong> Rheims (1582) lê: “Vós conheceis a casa<br />

<strong>de</strong> Estáfanas e <strong>de</strong> Fortunato.”<br />

17 “Selon que chacun stoit plus homme <strong>de</strong> bien et vertueux.” – “Em proporção quando um<br />

indivíduo era homem honrado e virtuoso.”


Capítulo 16 • 595<br />

harmonia com o que o apóstolo tinha em mente. Pois ele não pretendia<br />

<strong>de</strong>screver um mero grupo <strong>de</strong> pessoas e usar uma palavra comum<br />

para isso, senão que faz referência, com gran<strong>de</strong> respeito, à organização<br />

<strong>de</strong> uma casa cristã particular [<strong>de</strong> christiana oeconomia]. O fato <strong>de</strong><br />

lhes enviar saudações em nome <strong>de</strong> Aquila e Priscila confirma o que já<br />

frisei, ou, seja, que esta carta foi escrita <strong>de</strong> Éfeso e não <strong>de</strong> Filipos. Pois<br />

Lucas nos informa que eles permaneceram em Éfeso enquanto Paulo<br />

foi a outros lugares [At 18.19].<br />

20. Saudai uns aos outros com ósculo santo. Oscular era um<br />

costume muito popular entre os ju<strong>de</strong>us, como a Escritura fornece<br />

evidência. Na Grécia, embora o hábito não fosse tão costumeiro e<br />

comezinho, todavia não era <strong>de</strong> todo <strong>de</strong>sconhecido. No entanto, é provável<br />

que o apóstolo aqui esteja falando <strong>de</strong> um ósculo solene, com<br />

o qual saudavam uns aos outros na santa assembléia. Pois minha<br />

convicção é que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos dos apóstolos um ósculo já era praticado<br />

em relação à administração da Ceia. 18 Mas entre as nações que<br />

não quiseram <strong>de</strong> forma alguma adotar a prática do ósculo, começou-se<br />

18 “É evi<strong>de</strong>nte que o apóstolo”, diz o Dr. Brown em seu comentário sobre 1 Pedro, “tinha em<br />

mente os membros das igrejas, quando recebessem esta Epístola, para que saudassem<br />

uns aos outros; que não era improvável que sua intenção fosse que em todas suas reuniões<br />

religiosas agissem assim. Que ele tinha a intenção <strong>de</strong> fazer disto uma or<strong>de</strong>nança<br />

perene em todas as igrejas cristãs, ainda que às vezes é asseverado, nunca foi provado, e<br />

<strong>de</strong> forma alguma é provável. Que a prática prevalecia extensamente, talvez universalmente,<br />

em seus primórdios, é estabelecido sobre evidência satisfatória. ‘Depois das orações’,<br />

diz Justino Mártir que viveu na primeira parte do segundo século, dando um relato em<br />

sua Apologia dos costumes religiosos dos cristãos – ‘<strong>de</strong>pois das orações abraçamos uns<br />

aos outros com ósculo.’ Tertuliano fala <strong>de</strong>le como uma parte ordinária dos serviços religiosos<br />

no dia do Senhor; e nas Constituições Apostólicas, como são <strong>de</strong>nominadas, a<br />

maneira como ele era praticado é particularmente <strong>de</strong>scrita. ‘Então que cada homem à<br />

parte, e que cada mulher à parte, se saú<strong>de</strong>m reciprocamente com um ósculo no Senhor.’<br />

A Nota <strong>de</strong> Orígenes sobre Romanos 16.16, lemos: ‘À luz <strong>de</strong>sta passagem, o costume foi<br />

liberado às igrejas, para que, <strong>de</strong>pois da oração, os irmãos saudassem uns aos outros com<br />

ósculo.’ Este emblema <strong>de</strong> amor era geralmente praticado na Santa Ceia. Era provável, à<br />

luz da prevalecência <strong>de</strong>ste costume, que teve origem a calúnia <strong>de</strong> que os cristãos se entregavam<br />

à licenciosida<strong>de</strong> em suas reuniões religiosas; e não é improvável que, com o fim<br />

<strong>de</strong> remover tudo como uma ocasião aos caluniadores, a prática que, embora em si mesma<br />

inocente, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser um costume edificativo, sofreu <strong>de</strong>scontinuação.” – Brown’s<br />

Expository Discourses on 1ª Peter, vol. iii. pp. 309, 310. “É notável que, pelo testemunho <strong>de</strong><br />

Suetônio, um édito foi publicado por um dos imperadores romanos, para a abolição <strong>de</strong>sta<br />

prática entre seus súditos – talvez com o fim <strong>de</strong> refrear abusos foi que nosso apóstolo<br />

or<strong>de</strong>nou que ela fosse uma saudação santa.” – Chalmers sobre Romanos, vol. iii. p. 428.


596 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

ali, em seu lugar, o costume <strong>de</strong> oscular a pátena. 19 Seja como for, visto<br />

que ele era um emblema <strong>de</strong> amor recíproco, não tenho dúvida <strong>de</strong> que<br />

Paulo tencionasse exortá-los ao cultivo da boa vonta<strong>de</strong>, entre eles, não<br />

só em suas mentes 20 e nos <strong>de</strong>veres que eram obrigados a realizar, mas<br />

também com esse emblema, conquanto fosse santo, por assim dizer,<br />

não lascivo nem fingido. 21<br />

22. Se alguém não ama ao Senhor Jesus. A conclusão da carta<br />

consiste <strong>de</strong> três partes. Ele ora para que os coríntios possuíssem a graça<br />

<strong>de</strong> Cristo. Faz uma <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> seu amor para com eles, com a mais<br />

severa das ameaças arremetida contra aqueles que faziam uma falsa<br />

confissão do nome do Senhor, quando não o amavam <strong>de</strong> coração. Pois<br />

ele não está se referindo a estranhos, os quais não ocultavam seu mais<br />

intenso ódio pelo nome cristão, mas a pretensiosos e hipócritas que perturbavam<br />

as igrejas em prol <strong>de</strong> seus próprios ventres ou movidos por<br />

vã ostentação. 22 Sobre tais pessoas ele pronuncia anátema, bem como<br />

maldição. Entretanto, não é certo se ele <strong>de</strong>seja sua <strong>de</strong>struição na presença<br />

<strong>de</strong> Deus, ou se <strong>de</strong>seja torná-las odiosas – sim, ainda execráveis<br />

aos olhos dos crentes. Por exemplo, em Gálatas 1.8, ao <strong>de</strong>clarar anátema<br />

23 alguém que corrompe o evangelho, ele não quer dizer que tal era<br />

rejeitado ou con<strong>de</strong>nado por Deus, mas afirma que o tal <strong>de</strong>ve ser tido<br />

por nós na conta <strong>de</strong> repugnante. Eu o explico <strong>de</strong> uma maneira simples,<br />

a saber: “Que sejam eles <strong>de</strong>sarraigados e pereçam, pois são uma peste<br />

19 A pátena era era um prato ou salva na qual a hóstia ou pão era colocado na observância<br />

da missa. O termo é usado pelo Dr. Stillingfleet em seu “Preservative from Popery” (title<br />

vii.chap. v), ao falar da prática da Igreja <strong>de</strong> Roma na adoração da hóstia: “O sacerdote em<br />

toda missa, assim que ele tenha consagado o pão e o vinho, com genuflexos, ele adora o<br />

sacramento; aquilo que ele mesmo consagrou, tudo aquilo que está diante <strong>de</strong>le na pátena<br />

e no cálice; e dá a mesma adoração e sujeição, tanto do corpo quanto da mente, que ele<br />

po<strong>de</strong>ria oferecer a Deus ou ao próprio Cristo.”<br />

20 “Par affection interieure.” – “Por afeição íntima.”<br />

21 “Ou consistast en mine seulement.” – “Ou consistisse em mera aparência.”<br />

22 “Ne cherchans que le proufit <strong>de</strong> leurs ventres, et leur propre gloire.” – “Apenas buscando<br />

o proveito <strong>de</strong> seus ventres e sua própria glória.”<br />

23 Calvino, ao comentar Gálatas 1.8, observa que o termo original ali empregado, anátema,<br />

<strong>de</strong>nota maldição, e correspon<strong>de</strong> à palavra hebraica rj; e explica a expressão “que seja<br />

madito” no sentido <strong>de</strong> “que seja tido por vós como maldito”.


Capítulo 16 • 597<br />

na Igreja.” E <strong>de</strong> fato não há nada mais pernicioso do que esse gênero<br />

<strong>de</strong> pessoas que tiram proveito da profissão religiosa em busca <strong>de</strong> seus<br />

próprios interesses corruptos. Então ele põe em relevo a origem <strong>de</strong>ste<br />

mal, ao dizer que não amam a Cristo, pois um amor sincero e ar<strong>de</strong>nte<br />

por Cristo não nos permitirá dar ocasião para escandalizar os irmãos. 24<br />

O que ele adiciona imediatamente – Maranatha – é um tanto mais<br />

difícil. Quase todos os antigos pais concordam que esses são termos<br />

siríacos. 25 Jerônimo, contudo, a explica nestes termos: O Senhor vem;<br />

enquanto outros a traduzem assim: Na vinda do Senhor; ou, Até que<br />

o Senhor venha. Entretanto, cada um <strong>de</strong>les, creio eu, <strong>de</strong>ve perceber<br />

quão tolo e pueril é a idéia <strong>de</strong> que o apóstolo falou aos gregos no idioma<br />

siríaco, quando queria dizer: O Senhor vem. Os que a traduzem<br />

como: Na vinda do Senhor estão apenas aventurando-se numa mera<br />

conjetura; e, além disso, não há muita plauzibilida<strong>de</strong> nessa interpretação.<br />

Quanto mais provável é que esta era uma forma costumeira <strong>de</strong><br />

expressão entre os hebreus, quando queriam excomungar alguém.<br />

Pois os apóstolos nunca se expressam em línguas estrangeiras, exceto<br />

quando repetem algum pensamento na pessoa <strong>de</strong> outro, como, por<br />

exemplo: Eli, Eli, lama sabachthani [Mt 27.46]; Talitha cumi [Mc 5.41]; e<br />

Ephphatha [Mc 7.34], ou quando fazem uso <strong>de</strong> uma palavra que já havia<br />

passado para o uso popular, como Amém e Hosana. Vejamos, pois, se<br />

Maranatha se a<strong>de</strong>qua à excomunhão. Ora, Bullinger, 26 na autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Teodoro Biblian<strong>de</strong>r, afirmou que, no dialeto caldaico, Maharanata tem<br />

o mesmo significado do termo hebraico, rj [cherem, isto é, maldito]; 27<br />

24 “Car si nous aimons Christ purement, et à bom escient, ce nous sera vne bri<strong>de</strong> qui nous<br />

retiendra <strong>de</strong> donner scandale à nos freress.” – “Pois se amamos a Cristo sinceramente e<br />

<strong>de</strong> bom grado, isto será um freio a restringir-nos <strong>de</strong> ofen<strong>de</strong>r nossos irmãos.”<br />

25 “Que ce sont mots empruntez <strong>de</strong> la langue Syrienne.” – “Que são palavras emprestadas<br />

do idioma siríaco.”<br />

26 Beza, em seus poemas, registrou o seguinte tributo à memória <strong>de</strong>sse homem eminente:<br />

“Henrici Bullingeri, Ecclesiastæ Tigurini, spectatiss, doctrinæ pietatis, et eximii candoris<br />

viri, memoriæ.” – “À memória <strong>de</strong> Henrique Bullinger, eclesiástico <strong>de</strong> Tigurum, homem<br />

eminentíssimo por sua erudição e pieda<strong>de</strong>, e extraordinária candura.”<br />

27 Assim em 1 Reis 20.42 temos a expresão ymrjAya (ish cheremi), o homem <strong>de</strong> minha maldição,<br />

ou o homem a quem eu anatematizo. Ver também Isaías 34.5; Zacarias 14.11.


598 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />

e eu mesmo, em certo tempo, me certifiquei da mesma coisa através<br />

<strong>de</strong> Walfgang Capito, 28 homem <strong>de</strong> memória bendita. Entretanto, nada é<br />

inusitado se o apótolo escreveu tais termos <strong>de</strong> forma diferenciada da<br />

forma na qual eles são pronunciados no idioma do qual têm sua origem;<br />

como po<strong>de</strong>mos ver inclusive <strong>de</strong> exemplos supra-apresentados. O<br />

apóstolo, pois, após pronunciar um anátema sobre os que não amam<br />

a Cristo, 29 profundamente afetado com a serieda<strong>de</strong> da matéria, como<br />

se sentisse que não dissera o bastante, adicionou um termo que era<br />

do uso corrente entre os ju<strong>de</strong>us, e do qual faziam uso quando pronunciavam<br />

uma sentença <strong>de</strong> anátema – justamente como se, falando em<br />

latim, eu dissesse: “Eu te excomungo”’; mas se eu acrescentasse: “e<br />

te <strong>de</strong>claro anátema”, esta seria uma expressão do mais intenso sentimento.<br />

30<br />

28 Calvino, ao comentar Filipenses 3.5, tendo ocasião <strong>de</strong> falar da etimologia do termo<br />

fariseus, diz que o consi<strong>de</strong>rava <strong>de</strong>rivado – não como comumente se presumia, <strong>de</strong> uma palavra<br />

que significava separado –, mas <strong>de</strong> um termo que <strong>de</strong>nota interpretação, sendo este o<br />

ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> Capito sobre ele – “sanctæ memoriæ viro” –, “um homem <strong>de</strong> memória<br />

sacra”. Beza <strong>de</strong>clara, em seu livro, Vida <strong>de</strong> Calvino, que quando em Basle Calvino viveu<br />

<strong>de</strong> uma maneira íntima com esses dois homens eminentes, Simon Grynæus e Wolfgang<br />

Capito, e <strong>de</strong>votou-se ao estudo do hebraico. – Calvin’s Tracts, vol. i. p. xxvii.<br />

29 “Ayant excommunié, et <strong>de</strong>claré execrables ceux-la qui n’aiment point Iesus Christ.” – “Havendo<br />

excomungado e <strong>de</strong>clarado execráveis os que não amam a Jesus Cristo.”<br />

30 “Μαρὰν ἀθὰ (Maran atha) é uma expressão siro-caldaica, significando ‘o Senhor vem’, isto<br />

é, virá tomar vingança sobre os <strong>de</strong>sobedientes e viciosos. Daí, com as palavras Anátema<br />

Maranata, os ju<strong>de</strong>us começavam seu processo <strong>de</strong> excomunhão.” – Bloomfield.

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